Redobra_10_8
-
Upload
danilo-santana -
Category
Documents
-
view
212 -
download
0
Transcript of Redobra_10_8
-
7/23/2019 Redobra_10_8
1/8
56
Deriva paradaJanana Bechler*
CONTRAPONTO
Havia em mim algum que sabia mais ou menosolhar, mas era uma personagem intermitente, sanimada pelo contato de alguma essncia geral,
manifestando-se em muitas coisas. [...] Ento viae ouvia, mas s a determinada profundidade, denada valendo, assim, para observao. Como umgemetra que, despojando os corpos das qualidadessensveis, s lhes visse o substrato linear, escapava-me o que as pessoas contavam, pois no meinteressava o que diziam, e sim o modo pelo qualdiziam, e tanto quanto lhes revelava o carter ouos ridculos. [...] meu esprito, at ento sonolento,
mesmo sob a aparente vivacidade das palavras cujaanimao, na conversa, mascarava para outrem umcompleto torpor espiritual, lanava-se , de sbito caa, mas o que perseguia [...] situava-se a certaprofundidade, para alm da aparncia, em umazona um pouco recuada. (PROUST, 1998,p. 27-28)
Desde junho de 2011, mantenho o exerccio
de ficar parada contra uma parede branca, annima,durante uma hora, uma vez por semana, na ruados Andradas, centro de Porto Alegre. Tenhonominado de Deriva Parada pois essa experinciaest impregnada de um tipo de sensibilidade queaparece como marco nos movimentos artsticosDad, Surrealismo, Situacionismo (do qual eu cunhoessa palavra, deriva), alm de outros dentro da artecontempornea que agem na cidade e no cotidiano
como espao potente, inventivo, maravilhoso.
*psicloga, doutoranda PPG Psicologia Sociale Institucional da UFRGS
-
7/23/2019 Redobra_10_8
2/8
57
Na esteira dessas tantas experincias, aescolha desse lugar obedeceu a um nico princpio:a atrao. Foi como derivao de uma srie decaminhadas, primeiro por qualquer lugar na cidade,depois por muitas ruas do centro e depois pelarua dos Andradas, que almejei ficar parada. Masainda caminhei durante algum tempo por falta decoragem. Ficar parada me desestabilizava de umaforma diferente do movimento, e me dispunha a umestado de ateno prximo ao de alerta.
Nas primeiras vezes, fiquei menos ou maistempo, em dias variados da semana, em diferenteshorrios. At que fixei um dia, um horrio e umadurao. Essa eleio, como todas as demais dessaaventura, se deu por atrao: no dia da semana e nohorrio escolhidos, encontrava um tipo de aglomeroque me interessava. A sistematizao tambm sedeveu por entender que a repetio era um elemento
importante do trabalho, ela daria condies paraque o territrio acontecesse e, tambm, para queo territrio se desfizesse, visibilizando, nessemovimento, as camadas que o compem, nessecaso, que compem essa rua. Meu objetivo ao estarl colocar-me disponvel diante do fluxo, semcompromisso ou inteno de conhecer pessoas,de fazer anotaes ou de ser conhecida; mas, sim,de disponibilizar-me a reagir aos estmulos da rua,
quando/quanto possvel. Depois (imediatamentedepois) sento-me em algum caf do centro eescrevo o que aconteceu durante aquela hora emque permaneci parada na esquina, com algumaobjetividade, seguindo um fluxo de memria.
Minha rotina foi sendo pontuada por algumasatividades, algumas provocadas por mim outras emresposta a algum estmulo. Comecei a fotografar apassagem do tempo e da multido, fixada a partir
do mesmo ponto, um determinado quadrado dalaje da rua, no momento em que chego ao local.
s vezes, tambm fotografo durante o tempo emque fico encostada na parede, assim como, s vezes,
atendo ao telefone pblico, localizado prximo amim, quando ele toca; outras vezes, respondo a umaenquete, e tambm sinto a vertigem da passagem,identifico personagens e s vezes sinto medo dospersonagens que identifico. s vezes, eu no estoul quando estou. s vezes me divirto, s vezes euesqueo que estou, mas sempre sinto intensamenteopercurso dessa hora, atravesso-a com algumaresistncia. Talvez com a mesma densidade dotempo na infncia, da espera pela chegada aodestino em uma viagem; ou a chegada do prximoaniversrio; ou festa junina do dia seguinte: otempo infinito e lento como uma bruma.
Experimento o paradoxo entre um lugar muitoespecfico, aquele pedao da rua dos Andradas,e um lugar qualquer, com as caractersticasdescontextualizadas que essa percepo me permiteacessar. Penso nisso como um certo efeito de
suspenso dos sentidos preconcebidos para aquelarua, inspirada pela leitura de Deleuze (1983)1sobreum tipo de imagem cinematogrfica, chamada porele de imagem-afeco. Nesse tipo de imagem(quase sempre um primeiro plano, e quase semprede rosto), a aproximao da cmera produz umefeito de descontextualizao, acabando com arelao de contiguidade entre os corpos, os espaos,apresentando o rosto (ou outra matria rostificada)
como uma superfcie de expresso de afeto, certamedida de rastro de uma ausncia, de uma fenda decomum, informe, ou antes da forma.2
Uma rua j no mais uma rua, mas umaneblina onde ela rarefeita, quase como a pelede Jacques Demy, na imagem feita Agns Varda,3
testemunho de seu amor que estava prestesa morrer: a cmera extremamente prxima,visibilizava os poros, pequenas manchas, traos
e rugas, pelos, que jamais fariam a imagem deuma face comunicante do indivduo Jacques, masapresentavam a imagem parcial de uma fuso, acriao de uma zona de indeterminao.
-
7/23/2019 Redobra_10_8
3/8
58
Um espao qualquer no um universal abstrato,
em qualquer tempo, em qualquer lugar. umespao perfeitamente singular que apenas perdeusua homogeneidade, isto , o princpio de suasrelaes mtricas ou a conexo de suas prpriaspartes, tanto que as junes podem se dar de umainfinidade de modos. um espao de conjunovirtual, apreendido como puro lugar do possvel.(DELEUZE, 1983, p. 128)
A repetio da ao de encostada e a escrita dosrelatos de deriva me fazem identificar personagensna rua e, mais recentemente, ser identificadatambm como personagem. Minha proximidadecom eles imaginada no texto, que me deixa com asensao de ausncia, saudade, espera, reencontro,alegria, mesmo em relao queles com quemnunca troquei palavra ou olhar, muitos talvez nuncatenham me visto. H uma eminncia de relao,
um quase, e at mesmo uma aproximao que nofizeram diluir o anonimato. uma aproximao depersonagens.
At hoje ningum me perguntou o que eu faona rua, nem mesmo a esttua quando formulou essaquesto sem nenhum interesse pela resposta. Minharesposta foi evasiva, eu no sei exatamente o queestou fazendo l. Mas essa no uma experinciaexata, uma aventura,4dentro e fora da vida,
uma ilha de indeterminaes num espao banal,cotidiano, central, que se materializa em pequenostextos dos quais extra alguns fragmentos colocadosa seguir.
DERIVA PARADA NA ANDRADAS
Imaginava car parada na Andradas,olhando os passantes. Imaginava tambm
que sentiria certo incmodo de estarparada onde tudo sugere andar. Ento
vi a esttua de anjo e senti certacoragem.
Eu, ento, me encostei na parede emfrente, ao lado de um homem que
tambm estava encostado. Lembrei que
estar encostado a condio para quemno trabalha, vive custa de algum.
Formamos uma estranha srie quecomeava por ele e terminava nos
trs amigos. Talvez por no quererparticipar dela, ele se afastou e
parou ainda um tempo antes de ir-sedenitivamente.
Um garoto vinha rente parede. Umamo riscava invisvel com a ponta dodedo e a outra mo enlaava a me.
Quando cheguei, busquei identicar osmesmos personagens. Senti falta daesttua, do homem de bon, dos trs
amigos.
Continuei um tempo ainda desviando deseu olhar que, ao longe, insistia.
Logo em seguida, uma reprter da RdioGuaba pediu que respondesse a uma
enquete. Aceitei. Era sobre o dia dosnamorados. Eu respondi no sei a
todas as perguntas, sem a inteno deser antiptica.
Fiquei com vontade de escrevermanchetes.
Foi quando um beijo na esquina seguroumeu olhar, quase como descanso, para
no sucumbir tontura do espaoque caiu, do abismo que se fez. Um
demorado beijo, outro demorado beijoe a separao, cada um para um lado
da rua. Pensei que eu esperava semencontrar.
Hoje no encontrei os mesmospersonagens da rua. Talvez pela chuva,
parecia no haver ningum vendendonada, tambm no havia ningum
encostado ao meu lado. Na parede dafrente da cortina de ferro, senti
falta dos senhores de encontro. Aquelavertigem de no encontrar onde xar o
olhar novamente.
Me atropelou um senhor com as duaspernas enfaixadas e me pareceu
que tinha tambm os braos tambmenfaixados. Seus olhos pareciam
ncados em uma tela abstrata, como se
-
7/23/2019 Redobra_10_8
4/8
59
o rosto fosse um mapa, uma inscrio,
um sto de Beckett. Atropelada,minhas pernas falsearam, quiseramdeix-lo passar, mas ele, to prximo,
no sei se me via, vinha na minhadireo, passaria pelo meu cho.
Fiquei parada, ele seguiu, olhei paraele, que dobrou a esquina da Borges.
Do outro lado vinha um homem segurandoum trofu embaixo do brao. Pude ler,quando ele j me dava as costas: IND.
Vencedor.
O telefone tocou e dessa vez resolviatender. Sa da minha parede e
caminhei at l. Peguei-o do ganchoe disse: Ol! A pessoa respondeu:
Quem fala? Aqui da Rua dosAndradas, voc ligou para c.
O passo acelerado me fez ver odescompasso de alguns, lentos parao dia: um homem de suter amarelo,uma criana que pulava a cada dois
passos, o homem elegante do outro dia,que evolua na passagem com graa debailarino, um casal que corria, uma
criana guarani que segurava no ar seuarco e lanava echas para o alto.
O mesmo homem enfaixado andavanovamente em minha direo e mais umavez eu no soube se cava ou se saa,
se olhava ou se baixava os olhos.Dessa vez, ele me olhou profundamente
e pareceu ver em mim o estranho que vinele, mais uma vez hoje, menos hoje do
que no outro dia.
Um homem vestiu um casaco verde,uma gravata vermelha de cetim e, na
lapela do casaco, um leno oreado devermelho. Agenda na mo, parecia que
vendia imveis, a gravata e os cabelospareciam de bailarino.
Passou por mim uma mulher negra compasso tambm vacilante. Prxima, nos
olhamos nos olhos. Ela deixou cair umaluva preta e eu z meno de avisarquando um homem o fez, antes de mim.
Ela respondeu como quem se esconde,isto no meu. E me olhou, testemunha
desse ato de se livrar do objetoincmodo, na annima calada onde a
testemunha vale menos, suspeita que
de estar no lugar errado, encostada em
uma annima e branca parede.
Uma mulher ia passando e foi possudade ternura, depois de paixo, acelerou
o passo, parecia falar com ningumquando abraou demoradamente o rapazmoreno que ia logo adiante. Eu e amulher Guarani acompanhamos os dois
at sumirem na multido.
Me perdi no passeio e encontrei: umhomem carregando uma mala; uma mulher
com o casaco suspenso nas costas,com braos e mangas balanando de
cada lado; um casal de cegos; o homemenfaixado, que hoje estava paradono meio da passagem. Fiquei feliz
por encontr-lo l. Me assustei pelapresena dele, no meio do passeio,
parado como eu, sem nada fazer.
Passaram por mim:- dois senhores de chapu, elegantes;- uma senhora de casaco verde-alface;
uma mulher negra com esvoaanteor no cabelo;
- uma senhora curvada, segurando-seem uma bengala, torcida para o lado
esquerdo, com a mo nas costas;- um casal de chapu e culos escuros.
A esttua de anjo chegava. Fiqueifeliz em v-la. O moo da Tim a
cumprimentou feliz, perguntou seestava viajando. Ela respondeu que
sim. Senti que o tempo que quei forapode ter sido o mesmo da esttua senti
aliviado o sentimento de perda.
Hoje o homem enfaixado passou do outrolado da rua. Mais uma vez, senti quetalvez no fosse ele, que, em outro,
houvesse alguma semelhana enganadora,uma certa diferena no modo de andar,
na postura.
Passou por mim uma mulher usandobotas de salto to alto que faziam ocorpo se dividir ao meio, como se otronco no se ligasse s pernas, que
estavam excessivamente autnomas,
andando sozinhas. A outra metadeestava tambm dividida por uma
cintura excessivamente apertada,que fazia o tronco ser dois e, o
conjunto, uma escala de guras
-
7/23/2019 Redobra_10_8
5/8
60
desencontradas, rgos avulsos,
montados aleatoriamente. A impressode unidade quem lhe dava era o moo aolado, com a mo em seus ombros, quea sim juntava tudo aquilo em um s
corpo: quase um ttere.
Um homem fumando cachimbo e usando umaboina parou ao lado da esttua. Tivea impresso de j t-lo visto antesali na Andradas. Ficou assim por umtempo, olhando para ela, at ganhou
sua sorte sem contribuir com moedas. Aesttua chupou uma bala, um momento de
intervalo.
A esttua hoje estava menos atraente,ao menos para mim, mas a senti
particularmente bonita. Quando chegueiao ponto de fotograf-la, a vi imensa,
ncada no horizonte, quase voando.
O homem que estava ao meu lado quislimpar o campo de viso da cmera.
Saiam da frente, no vem que a moaquer fotografar, gritou para um grupoque conversava rente aos meus ps. Eu
agradeci, mas disse que no precisavamsair dali, eles, claro, saram um
pouco constrangidos.
Logo que cheguei, a esttua sentou-separa descansar. Atendeu o celular.
Minha parede estava cheia. Ao meulado, um grupo de senhores animados,um deles cantava Dolores Duran comsotaque castelhano. Cantava muitobem. Outro senhor chamava todos os
mais velhos que andavam na passagem.Conhecia muita gente. Eles faziamaquilo que eu fazia, olhavam os
passantes, e conversavam uma conversa toa, brincando com a prpria
velhice, com a velhice dos outros, comuns que nem estavam ali, com uns que
nem eles sabiam.
Hoje a esttua me chamou. Cheguei naAndradas e fui fotografar. Dessa vez
espacei mais o ato fotogrco, olhei.Ela me olhou e me chamou. Disse quefaz tempo que me v, ca intrigada
sobre o que eu fao.
Hoje a rua estava diferente. O uxo
difcil, desordenado.
Hoje vi o homem enfaixado atrs de umaglomero, nunca mais vou esquecer seu
rosto.
Um homem gritava com uma bblia abertanas mos. Atrs dele, um profeta de
ocasio sugeria o prximo texto. Eramas coisas da rua que entravam no textosagrado: a maconha do menino, o jogoclandestino, o patro endinheirado.
Alm deles, outros da rua que novejo: a pomba-gira, o capeta. O homemque era profeta-ventrloco parou aomeu lado, estava feliz por ouvir seutexto gritado rua afora. Nem ao menosse mostrava, feliz, ele dizia: essea maluco, ele repete tudo que eudigo. Ria do outro, gritando as suas
palavras com a bblia aberta.
Eu lembrei que no conheo nada darua, ela me escapa toda vez que me
aproximo.
Me encanta olhar a esttua, acompanharseus olhos sionomistas. Hoje o homem
enfaixado me olhou.
Hoje eu no consegui estar s. Aomeu lado o senhor cantor de tango,
Uruguaio, conversava comigo. Contavasua vida de artista e tambm seu
hbito da rua Praia. Est l para sedistrair. Os outros conversavam entre
si, ele me achava simptica. Eu noconsegui olhar a rua como queria.
Me despedi dele, fui cumprimentar aesttua, que me respondeu:
Ests conhecendo os personagens docentro? Bem vinda aos personagens do
centro!
Ela falou do alto do seu pedestal e medeu a seguinte mensagem:
todos os dias Deus nos d um momentoem que possvel mudar tudo o que nosdeixa infelizes. O instante mgico
o momento em que um sim ou um nopode mudar toda a nossa existncia.(annimo)
-
7/23/2019 Redobra_10_8
6/8
61Annimo era a palavra-chave.
Senti o vazio da rua. Mais uma vez.Seus buracos. Fiquei tonta.Vertigem de estar sem foco.
Dois meninos guaranis brincavam nosmeus ps e pareciam no me ver.
Simulavam uma cama, cada um dormindovirado para um lado e cada um
abraando amorosamente uma lata derefrigerante. Pensei que o amor no o mesmo. A lata derramava um pouco doresto do refrigerante na laje, como
tinta.
Eu estava doente, sentia a fumaa darua cortando a garganta e o peito,
a materialidade da fumaa, suaespacialidade. Passaram por mim os
fumantes:- uma senhora com blusa rosa-antigo,
fumava com a mo carregada de sacolas,o brao pesado segurava o cigarro naextremidade do dedo e fazia o corpo
pender por cima dele;- um homem de camisa vermelha e chapu
preto, fumava uma fumaa densa,charmosa, impetuosa;
- ao meu lado, uma moa conversava efumava com um homem tambm fumante,
no escutei o que diziam.
A esttua hoje me chamou logo depoisda fotograa. Me perguntou sobre aminha semana, contou a sua em um
ato. Aconteceu, na semana passada.
-
7/23/2019 Redobra_10_8
7/8
62
impossvel esquecer a antiguidade da
ao do Anjo, h 16 anos parado namesma rua, todos os dias da semana.Olho a Andradas por seus olhos quandoestou ao seu lado, difcil prestar
ateno ao que ele diz.
Hoje encontrei duas pessoas de Santongelo enquanto falava com a esttua.Senti uma estranha lentido nas minhas
respostas, senti que no tinha o quedizer. H um esvaziamento do que sou
eu quando estou ali.
Pensei que levar a minha cama para arua no seria de todo estranho. Ali,
de alguma forma, tudo natural. Tudo articial, tudo natural.
Vi a rua particularmente carnavalesca.Os ps andando em ritmo harmnico,
levantando e pisando com exatapreciso. incrvel como, por algunsminutos, a rua parece ensaiada, como
se todos ouvissem a mesma msica.
Eu fui para a parede depois disso,imaginando que aquele homem poderiame perguntar o que eu estava fazendo
ali. Mas logo depois tive a impressode que isso no aconteceria. E no
aconteceu. Ele esqueceu, eu esqueci.
Vi o homem enfaixado na multido,passando o cruzamento. Caminhava umpasso lento, parava muitas vezes,
olhava para os lados. Tenho aimpresso de que me olhava. Ele meolhava. Veio at a minha frente, no
centro da passagem. Parou, olhou paraos lados. Fotografei-o assim. Olheipara trs e ele se foi. Perdi-o de
sada.
Olhei para a passagem interessada emencontrar algum que me fotografasse.Dessa vez, resolvi chamar o primeiro
passante: no era nem homem, nemmulher, nem jovem, nem velho, nembonito, nem feio. Era o primeiro.
Pareceu feliz quando parei seumovimento. Falei o que precisava,
e ele cou mais uma vez feliz eme chamou de querida. Depois disseque sou muito simptica. Parabns,querida, voc muito simptica,
passei por aqui antes, te olhei e
pensei: que moa romntica! Eu sorri romntica! Depois de feita a imagem,me perguntou de onde eu era, e depois
disso, qual era a minha prosso.Ficou surpreso duas vezes e, mais uma
vez, me parabenizou pela simpatia.E mais uma vez, no perguntou o queeu fazia ali, apesar do seu rosto
denunciar uma hesitao, uma latncia.Eu pensei, ele pensou. Se despediu
deixando seu carto de visitas, paraqualquer coisa que eu precisasse.
Cabur Seguros, Eduardo.
Passou por mim o homem elegante dooutro dia, vestia branco-linho, dochapu ao sapato. Roupa impecvel,passada, engomada. Depois dele, um
papeleiro e eu pensei na moda: estilofeito com o que h disponvel. Vestia
duas calas, trs blusas, cada umadeixando aparente as outras camadas em
locais estratgicos, como histriasque se contam atravs das cortinas
das casas desconhecidas. Na orelha, umpndulo equilibrado.
Senti o vazio da rua. Mais uma vez.Seus buracos. Fiquei tonta.
Vertigem de estar sem foco.
As crianas guaranis no foram.Sinto falta delas, sinto falta de noentender a sua lngua e olhar os seusgestos. E entender pouco seus gestos
O que fazer com tanto lugar
desabitado?
A Andradas nunca mais foi a mesmadesde que o sol se moveu e lavoua rua toda com sua luz. Ela cou
grande, muito maior. Meu olhar quaseno encontra apoio. Os vendedores
se aglomeram nas pequenas faixas desombra, as pessoas fogem do centro,buscam tambm caminhar na sombra das
marquises. Hoje eu quei feliz por quetive onde me encostar, minha paredevoltou a ter uma pequena faixa de
sombra. L estavam a mulher guarani eseu lho alm de um rapaz encostado,que parecia descansar. Parei ao seu
lado.
-
7/23/2019 Redobra_10_8
8/8
63
A mulher fumava um mesmo cigarro,
em etapas. A cada vez que queriareacend-lo, chamava algum napassagem para lhe emprestar a brasa.Acompanhei seu gesto, ela no trocava
nenhuma palavra: levantava o braomostrando o cigarro apagado e o outro
lhe cedia o aceso. Uma vez o homemlhe estendeu o cigarro sem lhe olhar,ela tambm no olhava. Dessa vez, jestava perto do ltro, pouco havia
para tragar.
Sento falta do homem enfaixado, no
o vi mais. Hoje o procurei algumasvezes. Tenho a sensao de que no oestou reconhecendo.
Notas
1O primeiro plano no duplica um indivduo, assim como no
rene dois indivduos ele suspende a individuao. Ento o rosto
nico e devastado une uma parte de um a uma parte de outro.
[...] Ele absorve dois seres e os absorve no vazio. [...] primeiro
plano-rosto ao mesmo tempo a face e seu apagar. (DELEUZE,1983, p. 177)
2Essa imagem pode ser vista no documentrio Janela da Alma, de
Joo Jardim e Walter Carvalho, de 2001.
3No sentido de G. Simmel (1989).
DELEUZE, G. Cinma 1 LImage Mouvement. Paris:Les ditions de Minuit, 1983.
PROUST, Marcel.Em busca do tempo perdido, o temporedescoberto.So Paulo: Ed. Globo, 1998.
SIMMEL, Georg. A Aventura. In: Philosophie de lamodernit. Laventure.ditions Payot, 1989.
Um homem deitou-se prximo dos
meus ps, exalava um cheiro forte,quase insuportvel. Tira do bolsouma pequena garrafa de cachaa e,ao contrrio do que imaginei, ele
no bebeu, mas passou o lquido noscabelos, no rosto, vagarosamente,
como quem se lava. Ele ria, eu ria.O cheiro do lcool intensicava ooutro, da falta de banho, ele no
parecia sentir. A mulher vendedora daTim tambm parecia no sentir. Logoela foi ao encontro de algum. Logoeu tambm atravessei a passagem indoembora e lhe acenei com a mo. Eu no
sou mais annima. Eu continuo sendoannima.
Passaram por mim duas crianas guaranicaminhando abraadas. Era um desaocaminharem assim, ela riam muito.Seguravam-se uma na outra alm desegurarem uma cinta. Acompanhei os
dois at virarem a esquina.
Um grupo de guaranis ocupava um pedaoda minha parede. Sorri ao ver aquela
la de encostados, uns sentados,outros em p, as crianas em tornodali. Era um espao de apresentao eeu parei ao lado deles, na sequncia
da la. Logo comearam a tocar,cantar, danar. Por algum tempo
deixei de ouvir aquela msica e logoentendi que ela se cola facilmentequele lugar. A repetio hipntica necessria para olhar esse lugar.Tambm necessria para estar ali,uma companhia perfeita. Ganhei um
sorriso de um dos meninos, logo que meencostei l. Ser que j o vi antes?
Hoje passaram por mim:- um homem hesitante;
- um homem lento;- uma mulher ausente;
- um homem recolhendo seu guarda-chuvas;
- um homem olhando para trs, comoquem sabe o que aconteceu;
- um homem que no conseguiu acender ocigarro e guardou o mao no bolso.
O Anjo me disse que aprendeu com osmeninos da rua que a rua maltrata quem
est na rua.