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Percepções Docentes Sobre o Ensino Religioso na Escola Pública Ana dos Anjos Santos Costa 1 A análise da alteridade tem sido um tema mais frequentemente explorado nos dias atuais. A pluralização de conceitos sobre culturas, sociedades e os discursos que esta diversidade gera estão na pauta dos pesquisadores e dos leigos. Grande parte da sociedade afirma ser favorável a esta multiplicidade em todos os aspectos. Nas escolas, por exemplo, os professores visam construir com os alunos uma visão de mundo e de sociedade mais liberal, multicultural e tolerante. Procura-se, quase sempre, o discurso da compreensão para com o “outro”. Mas, na prática, o que acontece? A resposta se constitui em várias atitudes preconceituosas e intolerantes que se manifestam no cotidiano, como guerras, separações, discussões e, nas escolas, o agora famoso bulling. O discurso dos indivíduos muitas vezes não corresponde à sua prática. O pensar e o falar sobre o outro, muitas vezes, é difícil e complexo; torna-se até doloroso emocionalmente. Como veremos mais à frente, sempre temos que lidar com o diferente, com o “outro”. Mas, como lidar com ele? Diante deste panorama, o presente trabalho se propõe, em primeiro plano, a analisar como se dá essa aproximação com o diferente no ambiente escolar em relação as religiosidades dos indivíduos, usando para tal empreendimento experiências vividas em sala de aula além de analisarmos questionários produzidos sobre o assunto e respondidos por professores de História. Em segundo plano, pretendemos problematizar o papel da disciplina de História e de que forma esta pode contribuir nesta questão. Segundo Paulo Freire: Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir- 1 Bachael e Licenciada em História pela UFRJ. Professora de História do Município de Seropédica. Mestranda em Relações Étnico-raciais no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Rio de Janeiro, RJ, Br).

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Percepções Docentes Sobre o Ensino Religioso na Escola Pública

Ana dos Anjos Santos Costa1

A análise da alteridade tem sido um tema mais frequentemente explorado nos

dias atuais. A pluralização de conceitos sobre culturas, sociedades e os discursos que

esta diversidade gera estão na pauta dos pesquisadores e dos leigos. Grande parte da

sociedade afirma ser favorável a esta multiplicidade em todos os aspectos. Nas escolas,

por exemplo, os professores visam construir com os alunos uma visão de mundo e de

sociedade mais liberal, multicultural e tolerante. Procura-se, quase sempre, o discurso

da compreensão para com o “outro”.

Mas, na prática, o que acontece? A resposta se constitui em várias atitudes

preconceituosas e intolerantes que se manifestam no cotidiano, como guerras,

separações, discussões e, nas escolas, o agora famoso bulling. O discurso dos indivíduos

muitas vezes não corresponde à sua prática. O pensar e o falar sobre o outro, muitas

vezes, é difícil e complexo; torna-se até doloroso emocionalmente.

Como veremos mais à frente, sempre temos que lidar com o diferente, com o

“outro”. Mas, como lidar com ele? Diante deste panorama, o presente trabalho se

propõe, em primeiro plano, a analisar como se dá essa aproximação com o diferente no

ambiente escolar em relação as religiosidades dos indivíduos, usando para tal

empreendimento experiências vividas em sala de aula além de analisarmos

questionários produzidos sobre o assunto e respondidos por professores de História. Em

segundo plano, pretendemos problematizar o papel da disciplina de História e de que

forma esta pode contribuir nesta questão.

Segundo Paulo Freire:

Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as

condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos

com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-

1 Bachael e Licenciada em História pela UFRJ. Professora de História do Município de

Seropédica. Mestranda em Relações Étnico-raciais no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Rio de Janeiro, RJ, Br).

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se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante,

transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque

capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se

como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros.

É a ‘outredade’ do ‘não eu’ ou do tu, que me faz assumir a radicalidade do

meu eu.2

A grande questão que nos interessa é justamente como o discente se assume

sem que para isso exclua o que é diferente. Como um aluno experimenta se auto

conhecer e se auto definir de forma positiva sem negar ou inferiorizar o outro?

Inicialmente discutiremos o conceito de laicidade. Esse debate se faz necessário

quando pensamos em como falar de religião em um Estado laico. A laicidade como

conceito carrega vários significados, sendo um princípio do Estado Moderno, no qual o

Brasil se inclui. Além disso, o conceito é entendido como uma “invenção francesa”, uma

construção histórica difundida em várias nações e que é debatido no campo educacional

na França e em outros países.

Nossa proposta de pesquisa visa problematizar um campo que já recebeu

atenção de pesquisadores: a relação entre a religiosidade e a laicidade inseridas no

ambiente escolar. Entretanto, nossa abordagem se destaca por fugir de uma perspectiva

que analisa principalmente as questões gerais do ambiente escolar. Antes,

evidenciamos que essas relações também podem ser analisadas pela perspectiva da

história antropológica, que estuda as questões de representação, da identidade e da

alteridade. Diante disso, nossa pretensão nessa pesquisa analisar de que forma o

ensino de História pode contribuir no aprendizado sobre si mesmo e o outro dos

discentes e também dos docentes.

Chegamos a essa problemática através de nossa própria experiência docente. Em

pouco tempo de trabalho, cerca de um ano e meio, vários fatos ocorreram que

chamaram nossa atenção para essa problemática. Em vários momentos, alunos

buscavam um confronto com seus colegas de classe, usando termos religiosos e dando-

2 FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31ª Ed. São Paulo: Paz e

Terra, 1996, p.41.

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os conotação pejorativa. Apesar de explicarmos exaustivamente os conceitos de

algumas religiões, os discentes insistiam em termos provenientes de alguma religião

para diminuírem seus colegas. O termo “macumba” foi muito usado pelos alunos.

Mesmo explicando que a palavra se refere a um instrumento musical usado em religiões

afro, eles insistiam no uso depreciativo. Os alunos que estavam sendo instigados,

acabavam se achando ofendidos.

Desejamos, nesse trabalho, verificar como o ensino de História é afetado pelas

concepções de religiosidade e laicidade que emergem no ambiente escolar. Além disso,

desejamos observar como diferentes versões para essas concepções aplicadas a espaços

públicos de laicidade favorecem ou não ao perpetuamento de concepções racistas e

preconceituosas.

Nesta direção, pretendemos analisar questionários respondidos por professores

de História com vistas a reconhecer suas concepções à luz da relação entre religião e

escola laica.

Nesta pesquisa procuraremos refletir sobre como o professor de História pode

enfrentar este contexto de preconceito e exclusão e como podemos lutar para

transformar positivamente a escola pública. Pretendemos, nesse projeto, refletir sobre

potenciais caminhos para que nós, professores de História, possamos interferir na nossa

realidade, trazendo à tona a diversidade cultural presente na sociedade, estimulando a

compreensão mútua entre todos os atores escolares, ensinando a respeitar o outro:

Em vez de preservar uma tradição monocultural, a escola está sendo

chamada a lidar com a pluralidade de culturas, reconhecer os diferentes

sujeitos socioculturais presentes em seu contexto, abrir espaços para a

manifestação e valorização das diferenças. É essa, a nosso ver, a questão hoje

posta. (...) abrir espaços para a diversidade, a diferença, e para o cruzamento

de culturas constitui o grande desafio que [a escola] está chamada a

enfrentar.3

3 MOREIRA, F. B. e CANDAU, V. M. Educação escolar e cultura(s): construindo caminhos. Revista

Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 23, 2003, p. 161.

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Na tentativa de entender a concepção do indivíduo cristão sobre si mesmo e

sobre os outros, utilizaremos alguns autores dentre os quais se destaca Tomaz Tadeu, o

qual defende que a identificação de uma pessoa ou um grupo representaria uma

extensa cadeia de negações do que não são. Além disso, o autor afirma que identidade

e diferença estão em estreita relação de dependência, argumentando que uma não faz

sentido sem a outra.

Usaremos ainda o conceito, também retirado dos escritos de Tomaz Tadeu, de

que a identidade e a diferença são resultados de uma produção simbólica e discursiva.

Isso significa que estão sujeitas às relações de poder, as quais são impostas mas ao

mesmo tempo são disputadas. A diferenciação significa a classificação de grupos sociais,

e essa classificação e divisão implica em uma hierarquização.

A hierarquização das identidades e das diferenças pode ser feita através da

fixação de uma identidade como norma, como é o caso da identidade cristã ocidental

medieval que serve de parâmetro em relação aos usos e costumes de outras sociedades.

A classificação e a hierarquização favorecem que a identidade normativa seja vista como

natural e única, isenta de questionamentos.

Diante do exposto, entendemos o importante papel do ensino de História na

contemporaneidade. Na sala de aula, o professor de História pode desempenhar o papel

de mediador de conflitos relacionados as religiosidades dos alunos e também pode

contribuir para a reflexão sobre quem somos e como olhamos para os outros que estão

a nossa volta. Apesar da secularização e laicização que têm avançado sobre as

sociedades na atualidade, o que observamos é a permanência dos fenômenos religiosos.

Geertz aponta que:

...foi a atenção das ciências sociais que se desviou a outros campos, enquanto

estiveram dominadas por uma série de pressupostos evolutivos que

consideravam o compromisso com a religião uma força em declínio na

sociedade, um resíduo de tradições passadas inexoravelmente erodido pelos

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quatro cavaleiros da modernidade: secularismo, nacionalismo,

racionalização e globalização.4

O autor Alberto da Silva Moreira observa que na contemporaneidade ocorre um

deslocamento da experiência religiosa. Par o autor a religião permanece “com suas

funções no nível micro-social, onde ela provê as pessoas com complexos de significados

e símbolos suficientes para que elas orientem suas vidas num mundo confundido pela

complexidade e a mudança”.5 Moreira também observa as mudanças pelas quais passa

a religião, seja como sistema organizado ou como prática cultural. O significado que

damos ao mundo passa a ser um campo de disputa entre os sistemas religiosos e os

outros concorrentes de sentido, como as ciências; e mesmo na explicação do além, com

a criação de um mercado mundial de bens religiosos possibilitado pela globalização e

pelo desenvolvimento dos meios de comunicação de massa a nível mundial.6 Essa

pluralização religiosa, que atesta sua persistência e força, nem sempre caminha no

sentido da tolerância e da compreensão, mas por vezes gera conflitos armados ou

contendas simbólica.

No ensino, e no aqui especificado ensino de História, consideramos ser relevante

o protagonismo do aluno durante a aula. A visão de mundo que o discente carrega com

ele não pode ser ignorada pelo professor, deve ser levada em consideração. Muitas

vezes essa percepção sobre o mundo passa por perspectivas religiosas, as quais tendem

a ser intolerantes com a diferença.

Entendemos também que uma grande questão a ser debatida no ensino de

História é centralidade e o privilégio que muitas vezes damos aos acontecimentos

europeus, o eurocentrismo. Segundo a professora Cinthia Monteiro de Araújo:

A predominância de uma perspectiva eurocêntrica de abordagem e

organização dos conteúdos na maior parte dos currículos praticados no

4 GEERTZ, C. O futuro das religiões. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 14 de maio de 2006, p. 10.

Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1405200614.htm 5 MOREIRA, Alberto da Silva. O deslocamento do religioso na sociedade contemporânea. Artigo ainda

não publicado socializado no Colóquio Ressignificação do Religioso do Doutorado em Ciências da

Religião da Universidade Católica de Goiás, em setembro de, 2008 p. 22 6 Ibdem., p. 26-30.

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ensino de História chama a atenção por se colocar diretamente em oposição

aos objetivos defendidos pelas proposições político-pedagógicas para essa

disciplina, sejam elas oficiais, as disputas entre os estudiosos do tema, ou

ainda aquelas que podem ser percebidas através das concepções docentes.7

Para a professora existe, apesar dos discursos contrários, uma prática do ensino

de História eurocêntrica, a qual desfavorece outros lugares e visões de mundo, deixando

o aprendizado menos rico e menos diversificado. Entendemos que essa perspectiva

eurocêntrica é sustentada por uma tradição disciplinar moderna no ensino de História.

E é essa perspectiva tradicional que desfavorece a construção de um ensino

multicultural, o qual pode conduzir às questões como respeito, tolerância,

conhecimento de identidades e alteridades.

Quando apontamos para o fato do ensino de História ser majoritariamente

eurocêntrico, relacionamos ao aspecto racista que possa aparecer nos discursos

contrários a inclusão de outros conteúdos. Nas aulas de história, uma sociedade

construída por agentes sociais brancos cristãos europeus. Aos negros, o que sobra é um

papel subalterno e sem interferência nos rumos da história:

A população negra, em geral, não foi apresentada nas escolas como sujeitos

de sua história, como homens e mulheres ativos na luta por liberdade ou por

melhores condições de vida para si e seus familiares.8

É nesse sentido que percebemos o ensino de História se entrelaçando com a

construção de identidade. Como um aluno negro, que vive na Baixada Fluminense, se

relaciona com os conhecimentos e fatos expostos em sala de aula sobre o feudalismo

francês do século VIII? Como esse mesmo aluno percebe a sua ligação com os reinos

africanos constituídos no mesmo período que o feudalismo europeu?

Chimamanda Adichie afirma que “ é impossível falar sobre história única sem

falar sobre poder, (...) Como são contadas, quem as conta, quanto e quantas histórias

7ARAÚJO, Cinthia Monteiro de. De onde se ensina a história? O pensamento decolonial no ensino de

história. Fóruns Contemporâneos de Ensino de História no Brasil on-line, 2013. p. 2. 8 PEREIRA, A. A. Por uma autêntica democracia racial! Os movimentos negros nas escolas e nos

currículos de história. Revista História Hoje, v. 1, p. 111-128, 2012.

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são contadas, tudo realmente depende de poder”.9 Nesse sentido estão atreladas as

relações de poder as construções de uma História racista, onde o que vem dos povos

africanos em geral é colocado como menor e inferior ao que vem da Europa.

Entendendo também que a religião cristã tem como berço de seu

desenvolvimento, o espaço que se dá a essa religiosidade em detrimento de outras

como as de matriz africana pode ser entendido como parte de um processo racista que

hierarquiza as relações dos homens com suas divindades, onde as religiões nascidas na

África são demonizadas e colocadas em última escala de purificação. Em seu texto

intitulado “A crítica da razão negra”, Achile Mbembe escreve que:

Na sua ávida necessidade de mitos destinados a fundamentar o seu poder, o

hemisfério ocidental considerava-se o centro do globo, o país natal da razão,

da vida universal e da verdade da Humanidade. Sendo o bairro mais civilizado

do mundo, só o Ocidente inventou um “direito das gentes”. Só ele conseguiu

edificar uma sociedade civil das nações comprometida com um espaço

público de reciprocidade do direito. Só ele deu origem a uma ideia de ser

humano com direitos civis e políticos (...).10

Mbembe expõe de forma direta o pensamento de superioridade que os

representantes das sociedades ocidentais compactuavam e que, em muitos momentos,

o ensino de História reproduz. Quanto ao que seria colonizado, Mbembe escreve:

O resto – figura, se o for dissemelhante, da diferença e do poder puro do

negativo(...). A África, de um modo geral, e o Negro, em particular, eram

apresentados como os símbolos acabados desta vida vegetal e limitada.(...)

fundamentalmente não figurável, o Negro, em particular, era o exemplo total

deste ser-outro, fortemente trabalhado pelo vazio, e cujo negativo acabava

por penetrar todos os momentos da existência – a morte do dia, a destruição

e o perigo, a inominável noite do mundo.11

9 Trecho retirado de sua palestra intitulada “Os perigos de uma história única” que pode ser assistida em

https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-br. 10 MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa, 2014. Antígona. p. 27-28. 11 Ibdem., p. 28.

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Para o historiador nascido nos Camarões, a África e o Negro passam a ser objetos

de discursos que, desde a época moderna, foram mergulhados numa crise de

representação. Para o autor:

Hoje, ainda, e quando se trata dessas duas marcas, a palavra não representa

necessariamente a coisa, o verdadeiro e o falso tornam-se inextricáveis, e a

significação do signo não é mais adequada à coisa significada. O signo não é

apenas substituído pela coisa. A palavra ou a imagem, muitas vezes, dizem

pouco acerca do mundo objetivo.12

Qual a representação que o ensino de História faz sobre a África e o Negro? Como

a cultura que possui heranças africanas é apresentada nas salas de aula? O debate

entorno da laicidade no ensino de História também passa por essas questões, já que

muitas vezes professores perpetuam os conceitos da modernidade ocidental como os

mais elevados e de maior valor histórico.

1.1 – O Questionário

O questionário pode ser definido como “um conjunto de perguntas sobre um

determinado tópico que não testa a habilidade do respondente, mas mede sua opinião,

seus interesses, aspectos de personalidade e informação biográfica” 13. A apresentação

do conjunto de perguntas ou premissas não define a qualidade do resultado. Isso

significa que o questionário pode ser administrado em interação pessoal, por meio de

telefone ou entrevista individual, como também pode ser autoaplicável, por envio pelos

correios ou internet ou em grupos. A aplicabilidade de questionários está implícita às

mais diversas áreas do conhecimento das ciências sociais.14

Partindo desses pressupostos, o questionário foi elaborado de forma a entender

a visão que os docentes possuem sobre a laicidade e sobre a religiosidade no ambiente

escolar. Foram então elaboradas vinte frases sobre o tema. Nossa tentativa foi de uma

12 MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa, 2014. Antígona. p. 30. 13 YAREMKO, R. K., HARARI H., HARISON, R.C. & LYNN, E. Handbook of research and

quantitative methods in psychology. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum; 1986. 14 GÜNTHER, Hartmut. Como elaborar um questionário. Instrumentos psicológicos: manual prático de

elaboração, p. 231-258, 1999.

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aproximação com o cotidiano social e escolar, procurando questões que se inserissem

na realidade vivida pelos professores. As frases seguiram um padrão de múltipla escolha,

onde existiam quatro opções para marcação. Cada opção revelava o grau de aceitação

da ideia apresentada onde o número um representava a aceitação total da premissa e o

número quatro a discordância completa.

As vinte frases elaboradas para o questionário foram divididas em categorias. As

nove primeiras afirmações corroboram com o pensamento de que o público e o privado

podem se misturar e a laicidade não necessariamente é fundamental no espaço público.

Já as nove questões em sequência seguem a linha de pensamento oposta, onde o ensino

público deve ter como uma característica a laicidade e o respeito às diferenças

religiosas. Na penúltima afirmativa é novamente colocada a ideia de que para se

respeitar a todos, a escola não deve abordar os assuntos religiosos. Por fim, a última

questão proposta é sobre a religiosidade do próprio docente.

Para o acesso dos professores ao questionário, foi utilizado o recurso digital. Por

entendermos que muitos dos docentes analisados não possuem muito tempo disponível

para encontros percebemos que a melhor forma de encaminhar nossa pesquisa seria o

envio do questionário pela internet. Tanto a elaboração quanto a distribuição do

questionário foram realizadas no aplicativo “Google Formulários”15. Neste aplicativo é

possível o envio do questionário tanto por correio eletrônico como por instrumentos

mais modernos como as plataformas do Facebook ou WhatsApp. Fica aqui registrado

que o número de docentes que utilizaram o e-mail para responder as questões foi muito

mais baixo do que o número dos que optaram pelos novos meios de comunicação. Mais

uma vez, isso evidencia a inclusão de novas tecnologias no nosso cotidiano e também

revela a instantaneidade na vida dos docentes.

O questionário foi enviado a todo o corpo docente de história da Escola

Municipal José Alexandre assim como a todos os professores de história que estavam

concluindo a Especialização em Ensino de História pela UFRJ. Foram enviados, no total,

15 https://www.google.com/intl/pt-BR/forms/about . Acessado em 20/03/2016.

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vinte e um questionários. Dos dois grupos reunidos, obtivemos um total de doze

questionários preenchidos e enviados.

As respostas, em sua maioria, seguiram um padrão. Majoritariamente as

respostas foram a favor da laicidade e da tolerância religiosa dentro do ambiente

escolar. Porém, como é possível observar no anexo dois, alguns professores

responderam num viés mais religioso, demostrando uma heterogeneidade na formação

e nas percepções dos historiadores.

Seguindo a ideia de Bakhtin, o diálogo se constitui em todos os discursos e

enunciados. Sendo assim, as afirmações encaminhadas aos professores de História já

estavam sendo perpassadas por vários discursos e sua elaboração levava em conta o

discurso do “outro”, que estava ali presente. O dialogismo entendido por Bakhtin são as

relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados. 16

Nesse sentido, podemos entender que as respostas dos professores as

afirmativas do questionário também dialogaram com o mesmo. Isso significa que

enquanto as respostas eram assinaladas havia uma preocupação com o que se pensaria

do professor e qual a melhor resposta ele poderia dar para construir sua identidade

naquele momento. Ora, José Luiz Fiorin aponta que para Bakhtin o sujeito age em função

dos outros, ou seja, seu discurso está pautado no que está a sua volta, no seu contexto.

Pensando dessa maneira, podemos entender que não necessariamente a prática

pedagógica desses professores estará de acordo com as respostas dadas ao

questionário. O exterior, no caso as perguntas propostas pelo questionário, interferem

e perpassam na produção de sentidos e de subjetividade, ou seja, a eterna construção

do “eu”, da identidade, foi de alguma forma influenciada pela leitura e reflexão gerada

pela pesquisa.

É importante também destacar algumas características dos participantes da

pesquisa. Com relação aos professores que estavam se especializando pelo CESPEB, a

maioria era de docentes formados em instituições públicas. Além disso, estarem

16 FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. Ática, 2006.

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cursando uma especialização focada no ensino de História é um fator importante na

construção da análise de perfil que podemos fazer.

Já os entrevistados que fazem parte do grupo de professores da escola da

Baixada Fluminense não são muito diferentes. Em sua totalidade, os que participaram

da pesquisa são professores recentemente ingressados no concurso do município em

questão. A grande maioria dos concursados tem o perfil de jovens formados em

universidades públicas, além disso, a quantidade de professores que participaram da

pesquisa e que são moradores do município é nula, todos são moradores da cidade do

Rio de Janeiro, diferindo apenas nos bairros em que residem.

Apenas uma afirmativa, dessa primeira parte, teve a concordância da maioria dos

professores e por isso achamos necessário analisarmos um pouco mais a fundo essa

questão. A frase de número seis dizia que “alunos e professores podem usar adereços

religiosos no ambiente escolar a exemplo do crucifixo ou de lenço na cabeça”. A questão

do limite entre o público e o privado novamente é levantada. Exemplos de países como

a França, que foi o berço das ideias laicas, defendem que no ambiente público não pode

existir nenhuma manifestação individual de religiosidade.17

Entendemos que cada cultura e cada país deve se organizar respeitando suas

particularidades. No caso brasileiro, o uso pessoal de adereços que contenham

simbologia religiosa em ambientes públicos como a escola, não contradizem a ideia da

laicidade. Para muitos aqui no Brasil é o Estado e suas instituições que devem ser laicas

e não devem possuir objetos religiosos, as pessoas que frequentam os espaços públicos

tem o direito de exercer sua liberdade e expressar suas ideias religiosas em seus corpos

ou vestimentas.

Já nas afirmativas que colocavam a laicidade como um princípio a ser seguido

dentro do espaço público, das oito frases, apenas uma teve a maioria dos professores

se posicionando contra a ideia proposta. As sete afirmativas aceitas pela maioria dos

17 Em 2004 os deputados franceses aprovaram no Parlamento a lei que proíbe o uso de "símbolos religiosos ostensivos", tais como o véu islâmico, a "kippa" judaica ou cruzes cristãs, nas escolas públicas. https://www.publico.pt/sociedade/noticia/franca-adopta-lei-que-proibe-simbolos-religiosos-ostensivos-nas-escolas-publicas-1185764 Visto em 22/02/2016.

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pesquisados incluem as noções de tolerância, respeito e liberdade religiosa no ambiente

escolar. Além disso, é trabalhada a Lei 10.639, que foi criada com o objetivo de levar

para as salas de aula mais sobre a cultura afro-brasileira e africana. A grande maioria

dos entrevistados partilha da ideia de que é necessário um esforço por parte da escola

e dos professores em se trabalhar questões sobre história da África e história Afro-

brasileira.

As respostas dadas a afirmativa de número dez do questionário foi a que

se distanciou das outras respostas desse conjunto. Ela faz menção ao ensino religioso

dentro das escolas públicas afirmando ser inconstitucional tal atividade. Metade dos

professores se mostraram contrários a afirmativa. Aqui se colocam algumas dúvidas

sobre que tipo de ensino religioso os educadores tinham em suas mentes quando

questionados. Sabemos de instituições públicas, como o Governo do estado do Rio de

Janeiro, que oferece o ensino religioso em suas escolas, mas que o mesmo é separado

por crenças. Existe um amplo debate sobre essa questão já que em cada escola existe

apenas um professor de ensino religioso, o que caracterizaria a valorização de uma certa

religião em detrimento de outra.

1.2- Considerações Finais

Diante dos expostos neste trabalho percebemos que ainda existem algumas

lacunas na compreensão de sentido do conceito de laicidade. É de fundamental

importância o entendimento desse conceito pois a construção de uma escola pública

deve ter como pauta valores como tolerância, respeito ao diferente e entendimento de

que podemos e somos sempre influenciados por aqueles que são divergentes de nossas

identidades.

Nas questões de construções de identidades e o espaço escolar, inserimos no

debate deste trabalho o artigo de Jonathan Mollar sobre a construção das alteridades.

Segundo Mollar:

No campo educacional, mais especificamente, a escola é o lugar para o qual

convergem as tensões expostas pela sociedade, apresentando em sua

estrutura uma pluralidade que é sentida de modo amplificado, no contato

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permanente e diário entre alunos e funcionários. Nesse sentido, na escola as

diferenças apresentam maior sensibilidade.18

A perspectiva do autor é de que a escola é um espaço não só do conteúdo

curricular. A escola é entendida como um espaço de aprendizado muito mais amplo, um

espaço onde a sociedade pode ser observada como em uma lupa, pois é na escola que

o contato com o diferente é diário e inevitável.

Jonathan Mollar mostra que a sociedade enxerga duas grandes funções

para a escola. A primeira seria a de transmitir o conhecimento produzido pela

humanidade e a segunda a de mediar os conflitos que possam surgir no seu dia-a-dia.

Ele também coloca a relevância que tem se dado aos estudos sobre identidades e

alteridades no âmbito acadêmico voltado para a educação. E, assim como Hall, entende

que na contemporaneidade não há mais espaço para a construção de identidades nos

moldes tradicionais de caráter rígido e inegociável. Dentro da globalização, algumas

ideias têm chegado ao campo da educação como a interculturalidade, que seria a busca

pela construção da diversidade, a qual Tenta provocar uma leitura positiva do outro e

respeito à diferença.

Essas ideias de interculturalidade começaram a ser introduzidas, no

campo da educação brasileira, na década de 1950, ainda na época do governo de

Juscelino Kubitschek quando foi ampliado o olhar para uma educação que visava

trabalhar com as questões de identidade e alteridade. Molar também aborda a questão

da criação de novos valores éticos que tenham como base a noção de alteridade. A

educação intercultural seria um caminho para isso e ele cita Antonio Sidekum que diz:

“A globalização cria também uma nova consciência dos direitos as

diferenças. A filosofia intercultural é uma nova orientação no estudo da

filosofia e serve como resposta para os grandes desafios éticos na era da

globalização”19

18 MOLAR, Jonathan de Oliveira. Alteridade: uma noção em construção. Anais da V Semana de História.

História: Espaços Simbólicos.–Seminário de estudos étnico-raciais. Irati–PR. UNICENTRO–16 a, 2012.

p.2. 19 SIDEKUM, Antônio. Ética e alteridade: a subjetividade ferida. São Leopoldo: UNISINOS, 2002. p.

196.

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Neste assunto concordamos plenamente com Mollar mas ressaltamos aqui a

importância de não enxergamos o professor como o grande redentor ou articulador de

todas as demandas da sociedade. Reafirmamos que existe sim uma larga distância entre

o que é aprendido nas licenciaturas com o cotidiano escolar ao qual o recém-formado é

lançado. São várias as pesquisas que apontam essa falha na educação superior. Porém,

são poucas as tentativas de se reorganizar as licenciaturas, deixando a cargo do jovem

docente em buscar o aprimoramento individual.

A escola deve então passar a mediar os conflitos entre as identidades e mediar

o significado das mesmas, uma vez que a escola assuma a noção de identidades plurais

e fluidas. Entendemos, assim como Mollar que a escola deve ser um espaço de

construção de identidades, sabendo que essas mesmas identidades não são fixas, são

antes moldáveis e sempre mutáveis e que a interação com o outro é o que faz a

construção da nossa própria identidade. A escola então passa a pretender alcançar o

aprofundamento da alteridade.

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