Reescrevendo espaços: VRBS e natureza nas Silvae

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Reescrevendo espaços: VRBS e natureza nas Silvae Rewriting Spaces: VRBS and nature in the Silvae Leni Ribeiro Leite * Resumo: Nas suas Siluae, Estácio trabalha com elementos da tradição literária sua predecessora, retrabalhando-os e ressignificando-os em sua poética. Neste trabalho, pretendemos analisar algumas das Siluae em que a dicotomia entre o espaço urbano e o espaço natural se faz presente, com atenção às continuidades e rupturas entre Estácio e os seus modelos genéricos. Palavras chave: Espaço urbano; Espaço natural; Estácio; Siluae. Abstract: In his Siluae, Statius works with elements of the preceding literary tradition, reworking them and ressignifying them in his own poetics. In this paper, we aim at analyzing some of the poems in the Siluae in which the dichotomy urban space vs. natural space is present, with special attention the continuities and fractures between Statius and his generic models. Keywords: Urban space; Natural space; Statius; Siluae. * Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. Membro do Programa de Altos Estudos em Representações da Antiguidade; membro do Laboratório de Estudos do Império Romano. Endereço eletrônico: [email protected] . Endereço postal: R. Eugenílio Ramos, 196, Ap. 201. Jardim da Penha. Vitória ES. CEP: 29060-030.

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Artigo de Leni Leita sobre conceitos de Urbs e Silvae

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  • Reescrevendo espaos: VRBS e natureza nas Silvae

    Rewriting Spaces: VRBS and nature in the Silvae

    Leni Ribeiro Leite*

    Resumo:

    Nas suas Siluae, Estcio trabalha com elementos da tradio literria sua predecessora,

    retrabalhando-os e ressignificando-os em sua potica. Neste trabalho, pretendemos analisar

    algumas das Siluae em que a dicotomia entre o espao urbano e o espao natural se faz presente,

    com ateno s continuidades e rupturas entre Estcio e os seus modelos genricos.

    Palavras chave: Espao urbano; Espao natural; Estcio; Siluae.

    Abstract:

    In his Siluae, Statius works with elements of the preceding literary tradition, reworking them

    and ressignifying them in his own poetics. In this paper, we aim at analyzing some of the poems

    in the Siluae in which the dichotomy urban space vs. natural space is present, with special

    attention the continuities and fractures between Statius and his generic models.

    Keywords: Urban space; Natural space; Statius; Siluae.

    * Professora do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Esprito Santo.

    Membro do Programa de Altos Estudos em Representaes da Antiguidade; membro do Laboratrio de

    Estudos do Imprio Romano. Endereo eletrnico: [email protected]. Endereo postal: R. Eugenlio

    Ramos, 196, Ap. 201. Jardim da Penha. Vitria ES. CEP: 29060-030.

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    A percepo de que profundas mudanas marcaram os primeiros sculos do

    imprio romano no uma novidade. O perodo dos imperadores flavianos, a ascenso

    de uma dinastia que no podia reclamar para si a legitimao dos jlio-cludios, pode

    ser apontado como aquele em que essas mudanas, desenvolvendo-se a partir da morte

    de Augusto, alcanam um novo patamar: alteraes tambm de cunho cultural, e que

    com frequncia tm sido observadas nas obras de Plnio, o Velho, Plnio, o Jovem e

    Estcio, testemunhos contemporneos das novas atitudes sociais, morais, culturais e

    artsticas que marcam o perodo flaviano.

    As Siluae, de Estcio, so uma coleo de poemas de curta e mdia extenso,

    escritos como poesia de ocasio, que frequentemente exemplificam o que foi chamado

    por Carole Newlands (2002) de potica do imprio e por Eleanor Leach (2003) de

    cultura do elogio. As Siluae de Estcio assim como os mais famosos Epigrammata

    de Marcial apresentam como personagens frequentes indivduos de diferentes estratos

    sociais, do imperador aos libertos; nas duas obras, misturam-se os espaos privados e

    pblicos, e as referncias ao luxo e riqueza, das uillae aristocrticas ao palcio imperial,

    chamam a ateno pela atitude.

    Plnio, o Velho, atravs da Historia Naturalis, oferece um modelo do

    pensamento romano tradicional acerca do luxo e da riqueza: seus livros sobre arte so

    uma histria de progresso tcnico e decadncia moral, a segunda sempre produto

    inescapvel do primeiro. A arte feita de materiais naturais, e por isso, essencialmente

    bons; esses materiais, porm, podem ser pervertidos pela ganncia humana para atender

    a desejos frvolos. Para Plnio, o luxo uma corrupo do mundo natural. A frugalitas

    era uma caracterstica essencial do mos Maiorum, e os excessos da riqueza

    necessariamente levavam ao relaxamento das virtudes uma ideia no de todo

    inexistente em nossos tempos modernos. No entanto, como os romanos do perodo

    imperial, em especial do perodo flaviano, poderiam reconciliar seu cotidiano repleto de

    objetos de luxo, oriundos das mais diversas partes do mundo, ao ideal de virtude e

    moralidade representado especialmente pelas lendas das origens e pelos modelos

    gravados na histria romana?

    A poesia de Estcio, em especial nas Siluae, mas sem esquecer a poro pica de

    sua obra, compreendida por ns como a resposta a alguns desafios impostos pela nova

    conjuntura poltica, social e cultural tradio literria grega e latina desafios em

    vrios nveis e de natureza diversa, que foram, porm, uma atualizao da

    representao dos valores tradicionais, para que sejam compatveis com as mudanas

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    sociais. Assim, a virtude, e no a origem de uma famlia tradicional, o motivo de

    proteo dos deuses, ou de uma posio de prestgio; a riqueza, quando bem utilizada,

    marca de bom gosto e merecimento. A poesia de Estcio mostra uma atitude muito

    diferente da tradicional em relao ao luxo e ao uso do dinheiro para fins particulares; a

    riqueza apresentada como uma virtude, ou ao menos um elemento que pe em

    evidncia a virtude de seu possuidor.

    Um dos temas de maior relevo nas Siluae o da obra de arte, incluindo a a obra

    arquitetnica. O objeto artstico, ou a construo artstica, so temas frequentes o

    bastante em Estcio e infrequentes o bastante na poesia para serem considerados no

    renascimento como marca individual deste poeta e a cfrase como recurso tpico da

    poesia flaviana.

    Ruth Webb (2009) e James Francis (2009), entre tantos outros, escreveram

    satisfatoriamente sobre este tema. Francis cita, a ttulo de exemplo, mas como

    representativa da definio de ekphrasis no mundo antigo, a de Ton: Ekphrasis

    linguagem descritiva, trazendo o que retratado claramente diante dos olhos. H

    ekphrasis de pessoas e eventos e lugares e perodos de tempo. (FRANCIS, 2009, p.4).

    Segundo Webb, o termo ekphrasis desenvolveu-se tardiamente e definia, na

    antiguidade, apenas uma descrio evocativa, que punha o objeto diante dos olhos, sub

    oculos subiectio, como diz Quintiliano.

    O prprio Quintiliano fala mais especificamente de descries ficcionais de

    eventos ou situaes: Consequemur autem, ut manifesta sint, si fuerint uerisimilia; et

    licebit etiam falso adfingere quidquid fieri solet. Obteremos, porm, se forem

    verossmeis, que sejam claros; e sera permitido tambm inventar elementos falsos,

    quando costumam ocorrer. (Inst. 8.3.70) e Nec solum quae facta sint aut fiant sed

    etiam quae futura sint aut futura fuerint imaginamur. Mire tractat hoc Cicero pro

    Milone, quae facturus fuerit Clodius si praeturam inuasisset; No representamos s o

    que aconteceu ou est acontecendo, mas tambm o que poder ou poderia acontecer.

    Ccero o fez admiravelmente no Pro Milone, quando descreveu o que Cldio teria feito

    se tivesse se tornado pretor. (Inst. 9.2.41)

    Carole Newlands (2002, p.39) afirma que: obras de arte ou de arquitetura so

    sinais complexos que expressam mitos sociais e polticos poderosos em linguagem

    visual. A cfrase, portanto, oferece uma estratgia significativa para o poeta do elogio,

    pois a explorao de um signo complexo pode convidar interpretao e interrogao

    de sua mitologia subjacente. Sabemos que tanto Estcio como Marcial foram vtimas

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    de um descaso quase completo nos sculos XIX e XX justamente por causa da j

    referida cultura do elogio, pelo muito de laudatrio e encomistico que h na poesia

    desses autores, um trao antittico em relao ao gosto moderno. A cfrase em Estcio

    parte da construo dessa potica imperial que precisa transmitir os sinais da nova

    cultura imperial e, por isso, est profundamente ligada ao aspecto encomistico da obra

    de ambos os autores.

    McNelis, em artigo de 2008, analisa dois epigramas de Marcial, IX.43 e IX.44, e

    um poema de Estcio, Siluae 4.6, que tratam de um tema comum o de uma obra de

    arte, a esttua do Hrcules Epitrapzios pertencente a Novius Vindex. McNelis d

    nfase mais s diferenas do que s semelhanas no tratamento dado por Marcial e

    Estcio esttua de Hrcules, mas enfatiza que, em ambos os casos, h a mudana do

    pblico para o privado: Assim como o poema de Estcio, o epigrama de Marcial cita a

    impressionante lista de antigos possuidores [da esttua] e indica uma bem vinda

    mudana de um contexto pblico ou mesmo autocrtico para um privado.

    (McNELIS, 2008, p.268). Alm disso, essa mesma linhagem de donos por que a

    pequena esttua de Hrcules passa de Alexandre para Anbal, de Anbal para Sila, de

    Sila para Vindex , tanto em Estcio como em Marcial uma passagem da guerra para a

    paz, dos grandes generais para um campeo das artes e da literatura, dos dios e do

    derramamento de sangue para a amizade entre os homens. Esse pensamento

    igualmente representativo da homogenia do poder de Roma, de um novo estado de

    coisas estabelecido pelo imprio, em que possvel viver a paz e os seus benefcios

    graas ao imperador. Todas essas obras de arte, esses elementos arquitetnicos, esses

    objetos de luxo tm, alm de sua funo dentro dos limites do prprio construto potico,

    uma face encomistica, uma face que interpreta uma atitude cultural. Afinal, mais do

    que nos dizer da aparncia de um objeto, a cfrase nos fala de como aquele objeto

    percebido naquela sociedade. Os objetos descritos por Estcio e por Marcial so formas

    culturais que expressam visualmente uma linguagem de poder, de autoridade, de

    riqueza, de otium. A cfrase, enquanto expediente retrico e potico, vem auxiliar o

    estabelecimento, no perodo flaviano, de uma nova poesia cotidiana que dialoga

    diretamente com as mudanas culturais e polticas do perodo.

    A cfrase em Estcio, porm, ocorre menos frequentemente como descrio de

    obra de arte e mais como descrio de espaos: temos poemas sobre templos (III.1),

    sobre jardins (II.3), sobre uma estrada (IV.3), sobre banhos (I.5), sobre uillae (I.3, II.2),

    e mesmo em poemas cujos temas principais no so descries de espaos, a cfrase

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    elemento importante, como no epitalmio I.2, em que a casa da noiva descrita em

    detalhes, ou no jantar de Domiciano (IV.2), em que o detalhamento do salo onde

    ocorre o jantar se estende dos versos 18 a 37.

    Descrever um espao fsico, um prdio ou um jardim, muito diverso de

    descrever uma obra de arte. Enquanto a descrio da obra de arte guia o olhar para os

    diversos aspectos de um objeto apreensveis pelo olhar de forma concomitante, a

    descrio da uilla, do templo, do jardim, significa mover-se pelo espao. Quintiliano

    reconhecia espao, ou lugar (locus) e topographia como estratgias particularmente

    persuasivas (Inst. 4.2.36; 9.2.43-44) uma vez que a construo de espao atravs do

    discurso no apenas situa a audincia, mas define a perspectiva atravs da qual a

    audincia v o tema. Os lugares criados na literatura oferecem aos leitores mapas

    mentais, em que significado, memria e imaginao so organizados. Eleanor Leach

    (1998) sugere que as paisagens literrias romanas tinham a capacidade de persuadir, de

    oferecer sentido e de organizar conhecimento para os receptores, construindo um

    sistema coeso de significado e de tica.

    A construo de mapas mentais, e portanto de descries de espaos, era parte

    da arte do orador na Roma antiga. Uma das tcnicas de organizao das ideias para o

    discurso era justamente a elaborao de um mapa mental em que cada ideia estava

    associada a um cmodo (ou uma srie de cmodos) em uma casa, ou em outras

    organizaes espaciais semelhantes. Essa organizao espacial das ideias era tambm

    um artifcio mnemnico, pois auxiliava o orador a lembrar o discurso: associava-se um

    lugar a um conceito. (PENNY-SMALL: 1997) Observamos, ento, que o hbito da

    descrio de espaos, e da conexo entre espao literrio e transmisso de

    conhecimento, ou mesmo persuaso, era suficiente para se considerar a possibilidade de

    que as descries de lugares na poesia ocupem uma funo semelhante. A significncia

    das metforas espaciais em Estcio, assim, ganha em importncia, e pode ser lida como

    uma tentativa de remodelar a identidade romana no a identidade cvica, do homem

    pblico e de negcios, mas do homem em um espao privado.

    O paradoxo um tema caro s Siluae, ou ao menos a anttese e os contrastes.

    Seria possvel fazer uma leitura desta obra a partir dos eixos antitticos em que ela toca

    e que muitas vezes une de formas inesperadas. O contraste entre o espao pblico e o

    privado muito forte, como comentamos, por exemplo, em relao ao poema 3.1, e

    tambm em outros, como no poema 2.3. Uma anttese de tal forma plantada na tradio

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    literria, como a do campo vs. cidade, ou espao natural vs. espao urbano, era de se

    esperar que estivesse presente.

    O autor em que a tenso entre campo e cidade marcadamente famosa

    Horcio, como todos sabemos, tanto nas Odes como nas Epistulae. Em Horcio, porm,

    segundo Diana Spencer (2008:70-71), a tenso entre a paisagem potica helenstica,

    rural, e a sua latinizao, urbana, transforma-se em uma interrogao: possvel habitar

    uma cena potica que exclua o urbano, e a Roma Augustana? A paisagstica lrica

    helenstica parece no se resolver bem em Horcio ao se complicar com a contraparte

    urbana, de forma, que pelo menos ao fim do livro III das Odes, o porto do campo

    sabino se fecha, at que o porto da paisagem Albana de Estcio se abra para novas

    tentativas e indagaes. Tentativas, porque uma das caractersticas mais proeminentes

    das Siluae seu carter experimental. As Siluae so poemas ostensivamente casuais,

    escritos no calor do momento, como diz o prprio autor no prefcio ao primeiro livro.

    No entanto, no se enganam os leitores com os pedidos de desculpas por uma obra

    pouco trabalhada, como no se enganaram com as nugae de Catulo, Marcial e tantos

    outros. Estcio est em profundo dilogo com a tradio, no s romana, mas

    especialmente com a grega, como mostrou Alex Hardie em monografia de 1983.

    Talvez a principal caracterstica de Estcio seja justamente este dilogo com a

    tradio que, ao mesmo tempo, a confirma e a refuta, transmutando elementos

    tradicionais em algo novo, jamais ouvido, mas que soa como algo j conhecido. Um

    excelente exemplo dessa fora mantenedora-mas-transformadora talvez seja a prpria

    questo do gnero das Siluae. Os poemas destes cinco livros sui generis no podem ser

    classificados em conjunto como pertencentes ao gnero elegaco, lrico, epigramtico ou

    qualquer outro dos gneros tradicionais. No difcil, porm, classificar alguns dos

    poemas isoladamente, seja dentro dos gneros tradicionais, seja dentro de gneros

    retricos, como Francis Cairns. O conjunto, porm, desafia a classificao. Esta questo

    genrica especfica em Estcio ser abordada por mim em outro momento, mas aqui,

    gostaramos de mostrar como ele se refere a e incorpora elementos tradicionais de certos

    gneros, em especial do lrico, recuperando Horcio, no que diz respeito s questes do

    espao e da relao entre espao urbano e espao natural.

    Alessandro Barchiesi mostrou como o gnero um fator-chave para se ler as

    Odes de Horcio, compreendendo a coleo de poemas como uma sofisticada meditao

    acerca da interrelao complexa entre gnero, voz e identidade poltica na Roma

    augustana. Diana Spencer sugere que o interesse de Horcio em localizar a lrica do

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    lado de fora, ou seja, em um hortus, um jardim faz com que os trs primeiros livros

    de Odes toquem no mago da auto-imagem cultural da elite augustana. Esta organizao

    paisagstica do espao conceitual e intelectual ao mesmo tempo em que fsica, e se

    reflete nas prprias uillae e nas artes plsticas do perodo.

    Aqui se faz necessrio um breve excurso sobre as artes plsticas em Roma, em

    especial no que tange s pinturas de paisagens no perodo Augustano. Estudos recentes

    acerca das pinturas de paisagens na Roma antiga tendem a se focar no mais nos estilos,

    j bastante debatidos e delimitados, mas na retrica do espao. Assim como estilos

    anteriores de pintura mural brincavam com perspectiva e com a iluso arquitetnica

    criando janelas em paredes slidas, as pinturas de paisagens que se tornaram comuns na

    Roma de Augusto representavam, a princpio, imagens realistas de elementos naturais.

    A verossimilhana, porm, deve-se acomodar a regras bastante rgidas de organizao

    de elementos e de representao de significados.

    As pinturas de paisagens naturais nas paredes romanas so representaes do

    locus amoenus potico, o lugar comum que serviu, tanto na poesia como nas paredes,

    como complemento pictrico do saeculum aureum, seus valores e seus ideais. As

    pinturas da natureza nessas paisagens eram uma forma de ostentar e popularizar um

    conjunto de ideias que afirmavam o poder de Augusto e seus ideais para a sociedade.

    Ainda que esse tipo de pintura se origine no perodo augustano, os principais

    exemplares que ainda possumos dele datam do primeiro sculo, mas do segundo ao

    quarto sculo as paisagens nas paredes so parte de um repertrio fixo de gneros

    artsticos, repetidos, portanto, em frisos, mosaicos e outros objetos artsticos, alm das

    prprias paredes. Assim como as paisagens de tinta se espalharam por tantos lugares e

    chegaram aos olhos tambm dos escravos, libertos e outros elementos da populao

    romana, na poesia a paisagem buclica, o locus amoenus lrico, a natureza agreste

    vergiliana e horaciana esto prontos a serem reutilizados e remanejados pelos poetas das

    geraes posteriores.

    No poema V.3, um lamento pela morte de seu pai, Estcio compara a sua vida

    de Horcio, mas no poema IV.5 que os ecos horacianos se ouvem com mais fora. Ao

    escrever o elogio de Septmio Severo, av do imperador, Estcio j comea com

    elementos reconhecidamente lricos e agrestes:

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    Parui beatus ruris honoribus

    qua prisca Teucros Alba colit lares

    fortem atque facundum Seuerum

    non solitis fisibus saluto.

    Feliz junto s honras de um pequeno campo,

    onde a antiga Alba cultua os deuses teucros,

    eu sado o bravo e eloquente Severo

    com uma lira no costumeira.

    O poema o nico que temos de Estcio em estrofe alcaica, o que por si s j

    remeteria sua audincia ao mundo de Horcio. importante observar tambm a escolha

    do termo rus, no primeiro verso, em lugar de hortus, o termo que ser o preferido do

    poeta para se referir natureza. significativo, uma vez que hortus aquele jardim

    esteticamente organizado, o jardim das uillae, quase um pastiche de natureza. Em

    Horcio, a natureza rus, que sustm os poemas deste gnero, que inspira este tipo de

    dico, a natureza mais agreste, mais rstica ainda que saibamos que, claro, os poetas

    augustanos tambm no buscavam pintar uma natureza real. A natureza de Horcio,

    porm, sempre em contraponto urbanidade, til para o homem, mas plasmada na

    figura do pastor: til, digno, trabalhador, mas agreste e avesso cidade. Esta no a

    natureza que encontraremos normalmente nos poemas de Estcio, que ressignifica o

    campo, no mais em contraponto, mas como parte da cidade.

    A mescla de naturalidade e artifcio uma caracterstica j apontada das Siluae

    (NEWLANDS, 2011, p.7) e que, segundo considero, no vale apenas como observao

    da construo potica, mas se v refletida nos prprios temas abordados. Ou seja,

    Estcio abraa a temtica do rus in urbe, topos de caracterizao da fundao de Roma,

    prospectiva e retrospectivamente, cujo primeiro exemplo est no canto 8 da Eneida, mas

    transforma-o tambm em um topos de urbs ruri, uma vez que a natureza no mais um

    elemento agreste til ao homem mas contrrio elegncia; a natureza se dobra,

    voluntaria ou involuntariamente, aos caprichos do homem que a faz adequada s suas

    necessidades, urbanizando a natureza. A mo do homem tem, portanto, o poder para

    conter e domar a natureza.

    Os principais modelos de natureza e espao humano em Estcio so,

    respectivamente, o jardim e a uilla. No poema II.3, Estcio descreve um jardim

    localizado no corao de Roma, na casa de Attedius Melior, como um mundo

    idealizado, remoto, distante da poltica romana. H um forte contraste entre este poema

    e o que o precede imediatamente na coleo, o poema II. 2, que descreve uma uilla. A

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    natureza no poema II.3 quase agreste, descrita em linguagem ovidiana. A casa no

    descrita, mas apenas o seu jardim; em contraste com os jardins de Plnio o jovem, com

    topiaria sofisticada, esttuas e fontes, o jardim de Melior mais rstico, com apenas

    rvores e um lago com aparncia natural. As palavras do poeta criam no poema II.3 um

    mito que explica o pequeno lago e a rvore que sobre ele pende ao estilo ovidiano: uma

    ninfa, perseguida por Pan, teria se escondido no lago, com o auxlio de Diana. O brilho

    dado pelas palavras de Estcio, que cria um mito romano para celebrar no as

    tradicionais virtudes cvicas, esperadas no cenrio urbano romano, mas a vida parte do

    espetculo pblico. Segundo o poeta, neste jardim com origens mitolgicas e morais

    prprias, cria-se um espao no urbano, mas parte do urbano, um nicho encravado em

    Roma onde se pode cultivar poesia, amizade e virtude, mesmo no espao da capital:

    cui nec pigra quies nec iniqua potentia nec spes 66

    improba, sed medius per honesta et dulcia limes,

    incorrupte fidem nullosque experte tumultus

    et secrete, palam quod digeris ordine uitam,

    idem auri facilis contemptor et optimus idem 70

    promere diuitias opibusque immittere lucem:

    No so para ti o repouso preguioso nem o poder injusto,

    nem a ambio desonesta, mas sim o caminho do meio, entre o bem e

    o prazer.

    De f incorruptvel e desconhecedor de paixes,

    ordenando a vida em privado mas na frente de todos,

    ao mesmo tempo desprezando a riqueza fcil

    e o melhor em exibir sua riqueza e lanar luz sobre sua fortuna

    Temos aqui um excelente exemplo do uso dos paradoxos e das antteses em

    Estcio; alm disso, o jardim de Melior reflete aquelas caractersticas de seu dono to

    incomumente louvadas na literatura latina: o fato de que ele no se dedica vida pblica

    e que dono de grande fortuna, que exibe em sua propriedade.

    A natureza est em consonncia com as necessidades humanas, no caso de

    Attedius Melior, oferece a ele um espao natural potico, com ressonncias horacianas e

    ovidianas, dentro da capital do imprio, realando a sua dignidade como dono de uma

    propriedade em um lugar privilegiado, mas mantendo a separao, como uma

    alternativa Roma, lugar da ambio e da incerteza. No poema I.2, o epitalmio de

    Stella e Violentilla, a natureza tambm rus in urbe, ao ser representada como parte

    integrante da casa da noiva. A casa de Violentilla descrita, em um processo ecfrstico

    que invoca o usado por Catulo no poema 64,

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    Digna deae sedes, nitidis nec sordet ab astris. 147

    hic Libycus Phrygiusque silex, hic dura Laconum

    saxa uirent, hic flexus onyx et concolor alto

    uena mari, rupesque nitent quis purpura saepe

    Oebalis et Tyrii moderator liuet aeni.

    pendent innumeris fastigia nixa columnis,

    robora Dalmatico lucent satiata metallo.

    excludunt radios siluis demissa uetustis

    frigora, perspicui uiuunt in marmore fontes.

    nec seruat natura uices: hic Sirius alget,

    bruma tepet, uersumque domus sibi temperat annum.

    Exsultat uisu tectisque potentis alumnae

    non secus alma Venus quam si Paphon aequore ab alto

    Idaliasque domos Erycinaque templa subiret. 160

    A morada digna da deusa, e nem esmaece frente aos astros

    brilhantes.

    Aqui, pedra Lbia e Frgia; l a dura rocha Espartana verdeja,

    Adiante, variegado nix e o veio da cor do mar profundo,

    E brilham as pedras que a prpura de Eblia

    E o que mistura o caldeiro trio muito invejam.

    Elegantes telhados apoiam-se em inmeras colunas,

    As traves luzem, cobertas de metal Dalmtico.

    Um frescor, descido de rvores vetustas, expulsa os raios do sol,

    Fontes translcidas ganham vida no mrmore.

    Nem segue a natureza sua ordem: aqui Sirius resfria-se

    o inverno morno, a casa modela o ano a seu gosto.

    Vnus graciosa exulta com a viso dos tetos de sua poderosa

    protegida

    no menos do que se entrasse em Pafos, do alto mar, e sua casa Idlia

    ou os templos de rix.

    A cfrase da casa de Violentilla particularmente complexa porque est posta

    entre a realidade e o mito. Ela parte de uma narrativa mitolgica, como a colcha de

    Peleu e Ttis, mas a casa pertence a uma pessoa, a noiva de Stella, e est situada no

    corao de Roma. Alm disso, a descrio feita a partir do ponto de vista de Vnus,

    quando ela chega casa para combinar o casamento entre Violentilla e Stella.

    O tratamento do tema pouco convencional; a jovem nubente apresentada no

    atravs do corpo feminino, mas atravs da casa. A casa o objeto atravs do qual a

    identidade feminina de Violentilla construda e explorada. A descrio que Estcio faz

    da casa de Violentilla articula as virtudes convencionalmente femininas da beleza e

    castidade com o status social e econmico da noiva e suas origens culturais, o que traz

    uma nova vitalidade ao conceito de tradio e famlia romanas. O fato de que a casa

    pertence a uma mulher quando, em Marcial VI.47 sabemos que Stella tambm possua

    uma magnfica casa, repleta de obras de arte e no de um homem da elite uma

    reinterpretao de cdigos culturais.

  • Leni Ribeiro Leite _____________________________________________________________________________

    112 Revista Rua | Campinas | Nmero 18 Volume 1 | Junho 2012

    Vnus e seus cisnes se aproximam da casa, e so capazes de v-la ao longe,

    porque ela alta (v. 145). Tradicionalmente, no discurso moralstico romano, a altura da

    construo era um paradigma de luxo, e consequentemente de decadncia moral. Na

    cfrase de Estcio, um valor positivo dado altura da casa, que se pode ver mesmo em

    meio grande quantidade de construes da cidade. A altura da casa frequentemente

    usada como um sinal de poder masculino; aqui, no entanto, correlacionado altura do

    corpo feminino de sua possuidora, que j havia sido descrita por Vnus como mais alta

    do que a maioria das matronas romanas (114-116). Mas a altura , certamente, mais do

    que uma marca fsica. Tambm representa status, em relao posio social superior

    de Violentilla, um smbolo de superioridade econmica e moral.

    A casa de Violentilla luxuosa nas propores e nos materiais que a adornam

    mrmore e ouro. O luxo aqui valorizado atravs da aproximao entre valor material e

    moral. A importncia social e econmica de Violentilla ainda reforada pela grande

    quantidade de materiais nobres em sua casa. As muitas colunas que suportam o telhado

    (v. 152) eram um elemento da arquitetura pblica aplicado arquitetura privada para

    dar-lhe grandiosidade, e era usado especialmente nos trios e sales prprios para

    receber os clientes. Os mrmores em profuso falam de riqueza enquanto o mrmore

    branco podia ser encontrado na prpria Itlia, os mrmores coloridos da casa de

    Violentilla eram necessariamente importados. Os mrmores coloridos estavam na moda

    durante o imprio, e a casa descrita no poema no s rica, mas decorada ao gosto da

    poca. Desde o primeiro sculo d.C., a extrao de mrmore era um privilgio imperial

    logo, o mrmore mostrava associaes com a casa imperial.

    A casa digna de uma deusa. (v. 147). Os mrmores de sua casa, no entanto,

    no so brancos como a pele desejvel: eles so de tonalidades purpreas e esverdeadas,

    as cores da violeta (uiola). A violeta era, na literatura, um smbolo da juventude, bela,

    mas fugaz. Ao transmutar as flores em pedras, Estcio altera esta associao, e

    representa no mais a fragilidade da mulher, mas seu poder. Uma das formas que

    Estcio usa para se afastar das imagens tradicionais do epitalmio seu tratamento do

    tema da castidade em substituio ao da virgindade. Ao invs da imagtica tradicional

    das flores e frutos, ele apresenta a imagem da casa, muito mais substancial e duradoura.

    No entanto, a natureza est presente na casa, nos versos 154-155, em que surgem

    o bosque e a fonte, que recuperam imagens igualmente ligadas feminilidade e

    virgindade, mas aplicando-as castidade de Violentilla. A descrio remete ao locus

    amoenus que vemos proeminentemente associado virgindade, como nas

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    113 Revista Rua | Campinas | Nmero 18 Volume 1 | Junho 2012

    Metamorfoses de Ovdio, nos episdios do rapto de Persfone (em que ela colhia

    violetas e lrios em um lugar semelhante antes de sua abduo por Pluto) e de Narciso,

    entre outros: as rvores vetustas deixam de fora os raios solares e preservam o frescor

    de fontes puras. No entanto, de forma geral esses cenrios no protegem as personagens,

    mas so o local de atos violentos de paixo, sendo particularmente perigosos para

    mulheres ou homens feminilizados. Em nio, lia estuprada por Marte em meio a um

    salgueiral ameno; o lago de Narciso tem gua transparente como vidro, mas

    totalmente protegido dos raios solares, um cenrio fatal para a eterna virgindade.

    Na casa de Violentilla, porm, as fontes vivem no mrmore. Suas guas claras

    representam a sua pureza, mas tambm sua vivacidade, sugerindo poder procriativo; o

    mrmore, porm, o sinal do ambiente controlado pela mo humana. Enquanto em

    Ovdio o mrmore a perfeio da pele de Narciso (este descrito como uma esttua de

    mrmore 3.419 e com mos marmreas 3.481), na casa de Violentilla o brilho

    do mrmore transferido de volta da pele para a rocha, onde reflete no a beleza da

    dona, mas seu controle, seu poder de construir ou seja, no sua virgindade, que um

    dom natural, mas sua castidade, que uma virtude da independncia e do autocontrole.

    A poesia de Estcio oferece, portanto um novo locus amoenus, um espao

    seguro em que a natureza est sob o controle humano, e os deuses vm visitar para

    auxiliar os homens, e no para destru-los. A paisagem ideal de Estcio est localizada

    dentro de uma manso, reformulando os ideais de beleza e castidade, onde eles se

    tornam no uma representao da fugacidade e fragilidade, mas de poder e autoridade

    femininos.

    A natureza deixa de representar a paixo, o perigo, o indomado ou o

    incontrolvel para representar justamente o poder, o autocontrole: a casa controla o

    clima e cria uma temperatura amena o ano todo (v.157). Em um conjunto de paradoxos,

    somos informados de que a casa brilha, mas no deixa entrar os raios solares; que o

    calor intenso do vero (Srius) resfriado dentro da casa; e que o inverno mais rigoroso

    ali confortavelmente morno.

    A natureza moldada pela mo do homem, em algumas situaes deve ser

    combatida ou domada, de forma a se adequar aos desgnios humanos, o que ela sempre

    acaba por fazer. Um exemplo o poema III.1, a dedicao de um templo a Hrcules na

    propriedade de seu amigo, Plio Felix. No incio do poema, Plio um novo pauper

    Molorchus: apesar das riquezas no entorno, a regio onde se encontra o templo de

    Hrcules pobre, o templo em si, risvel. No entanto, Estcio no se entretm cantando

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    114 Revista Rua | Campinas | Nmero 18 Volume 1 | Junho 2012

    a dignidade da pobreza, como fariam os poetas helensticos, e mesmo Verglio, autores

    de poemas em que personagens humildes so dignificados. Ao contrrio, em uma

    inverso dos valores tradicionais que j no cabem em pleno fausto imperial um

    Hrcules bem-humorado observa a riqueza da propriedade ao redor e repreende Plio

    pela situao de abandono e pobreza de seu templo perguntando: mihi pauper et

    indignus uni Pollius?

    (...)quid enim ista domus, qui terra, priusquam 96

    te gauderet erum? Longo tu tramite nudos

    texisti scopulos, fueratque ubi semita tantum

    nunc tibi distinctis stat porticus alta columnis

    ne sorderet iter. Curui tu litoris ora 100

    clausisti calidas gemina testudine Nymphas.

    Vix opera enumerem: mihi pauper et indignus uni

    Pollius? Et tales hilaris tamen intro penates

    et litus quod pandis amo. Sed proxima sedem

    despicit et tacite ridet mea limina Iuno. 105

    O que eram ento esta casa, esta terra,

    antes que se alegrassem contigo? Tu cobriste

    os picos desnudos com uma longa estrada, e onde antes havia s uma

    trilha,

    agora ergue-se teu alto prtico com colunas separadas,

    para que tenha elegncia o caminho. Na margem do curvo litoral,

    tu aprisionaste as guas termais com dois domos.

    Mal enumero todas as melhorias; s para mim Plio

    um pobre indigente? E mesmo um tal lar eu ocupo com alegria

    e amo as praias que tu me abres. Mas Juno, por perto, despreza a

    morada

    e ri para si mesma de meus umbrais.

    Nos versos de 91 a 103 do poema, Hrcules apresenta Plio no s como

    generoso, mas como o benfeitor de uma regio de outra forma rude e inspita.

    Observamos aqui como, no novo esquema de relaes, a natureza no mais desejvel,

    pura, mas selvagem e rude faz-se mister que a mo do homem venha domestic-la,

    como no momento da construo do templo. A transformao do espao, perpetratada

    pelo homem, agora um aprimoramento do que a natureza fizera, e no uma

    deturpao.

    Macte animis opibusque meos imitate labores, 166 qui rigidas rupes infecundaeque pudenda

    naturae deserta domas et uertis in usum

    lustra habitata feris, foedeque latentia profers

    numina! Quae tibi nunc meritorum praemia soluam? 170

    Honrado por seu esprito e por sua riqueza, imitador dos meus trabalhos,

    domador das pedras rudes e dos ermos, vergonhas da natureza

  • Reescrevendo espaos: VRBS e natureza nas Silvae

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    115 Revista Rua | Campinas | Nmero 18 Volume 1 | Junho 2012

    infecunda, e que transforma antros habitados por feras

    em locais teis, e traz luz as deidades escondidas

    pela vergonha. Que prmios agora te oferecerei pelo seu mrito?

    Ao fim do poema, Hrcules visita o templo durante os jogos, e homenageia

    Plio e sua esposa, Polla. Nas palavras de Hrcules, o esprito de Plio homenageado

    em paralelo s suas riquezas, como duas virtudes iguais e mutuamente determinantes.

    Essas duas caractersticas elogiadas pelo deus so a razo de ser Plio o responsvel por

    uma mudana para melhor na natureza deserta e infecunda do lugar; ele o homem que,

    com suas qualidades, fecunda, embeleza, aprimora a natureza.

    Neste poema, a natureza domada para dar lugar a uma uilla. A uilla, uma

    novidade arquitetnica romana, sem precedentes gregos, e que, portanto oferecia um

    desafio ao poeta, era o local do otium, um modo poderoso de se auto-definir para a elite

    imperial. A uilla pode ser definida como a contraparte concreta e visual do otium. Nos

    poemas I.3, II.2 e III.1, a uilla no s uma maravilha da arquitetura e tecnologia, mas

    representa tambm as virtudes de seus moradores. Em Estcio, a riqueza e o luxo,

    quando usadas de maneira sbia, so a marca da virtude. (NEWLANDS, 2002, p.127-

    138).

    No poema I.3, o primeiro a cantar uma uilla, natureza e arte humana esto

    essencialmente em harmonia; j no poema II.2, sobre a construo da uilla de Plio, o

    que h uma luta pica contra a natureza, rude e pertinaz. (NEWLANDS, 2011, p.13).

    2.2.52-53

    his fauit Natura locis, his uicta colenti

    cessit et ignotos docilis mansueuit in usus.

    A natureza favoreceu alguns lugares; em outros, vencida,

    cedeu ao cultivador e amansou-sem em novas e grceis maneiras.

    No verso 56, a expresso usada domuit possessor, isto , o dono a domou a

    natureza. Apenas depois de domada pela mo humana a natureza entra em harmonia

    com as necessidades humanas. Estcio adapta para a uilla sua contempornea aquela

    mesma uma metfora pertencente retrica romana, de uma casa cujos cmodos so

    depositrios de memria, atravs dos quais o orador se movimenta nos diversos estgios

    de seu discurso. (Quintiliano, Inst. 11.2.11-22). Ao levar o leitor em um tour da uilla de

    Pollius, Estcio fixa na memria do ouvinte vrios pontos de interesse, honrando e

    memorializando seu anfitrio.

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    116 Revista Rua | Campinas | Nmero 18 Volume 1 | Junho 2012

    A descrio da uilla em II.2 se faz em estgios, gradualmente ascendendo do

    litoral, embaixo, at a construo localizada no topo de um penhasco, e ento, dentro da

    uilla, por diversos cmodos, at o mais belo deles, que se situa no ponto mais alto do

    terreno. (Siluae 2.2,1-94). Diferentemente de Plnio, que localiza o seu luxo e cio a cu

    aberto, no jardim, e cujas uillae so ao menos descritas como menos ornamentadas por

    dentro do que por fora, Estcio tambm enfatiza a beleza dentro da casa, como vimos no

    poema I.2 e aqui, no II.2. A natureza, j domada, agora aparece dentro do espao

    humano como o jardim de Melior, dentro do espao urbano de forma ordenada para

    servir ao homem. No poema sobre a uilla de Plio, a descrio culmina em um cmodo

    cuja profuso de mrmores das mais distantes provenincias so uma face imvel e

    dcil da natureza.

    2.2.90-91

    hic et Amyclaei caesum de monte Lycurgi

    quod uiret et molles imitatur rupibus herbas

    Aqui tambm h, extrado da montanha do Amicleu Licurgo,

    mrmore

    que, em tons de verde e embora pedra, imita a relva suave.

    O poema 5 do primeiro livro das Siluae uma descrio dos banhos construdos

    na propriedade de Cludio Etrusco. Nos primeiros versos, o poeta informa que o poema

    apenas um descanso de seu trabalho srio, ou seja, a composio da Tebaida. Mais

    adiante, a descrio da seleo de mrmores coloridos decorando os banhos elegantes

    de Cludio Etrusco, o prspero filho de um liberto imperial, no admite nada da pobreza

    (nil plebium est), transforma o espao privado em um bosque das Musas (non unquam

    aliis habitastis in antris / ditius) e no perde na comparao com o salo de banquetes

    de Domiciano, objeto de descrio no poema IV.2. Neste, cinco diferentes tipos de

    mrmore so nomeados, e mais de cem colunas competem com Atlas na habilidade de

    carregar tamanho peso sobre os ombros. Frequentemente os mrmores, as jias e outros

    objetos de luxo so nomeados atravs de referncias a sua origem: numdio, frgio,

    egpcio, mostrando que as suas descries so direcionadas a um pblico culto.

    Os banhos de Cludio Etrusco com seus mrmores retirados das pedreiras

    imperiais so um sinal do poder e opulncia de Roma, tanto quanto a esttua equestre de

    Domiciano, tema do primeiro poema das Siluae, em si uma extensa cfrase. Ao

    descrever uma mesa de ps de marfim, Marcial tambm se insere no esprito laudatrio

  • Reescrevendo espaos: VRBS e natureza nas Silvae

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    117 Revista Rua | Campinas | Nmero 18 Volume 1 | Junho 2012

    da poca, tambm o aproxima dos amici maiores, dentre os quais o mais importante

    sempre o imperador.

    As Siluae so e no so um elemento do espao urbanizado romano. Ao

    trabalhar a anttese campo x cidade o que, principalmente no perodo imperial uma

    rdua tarefa, uma vez que ecoa a perigosa anttese pblico x privado Estcio

    retrabalha e ressignifica gneros seus predecessores tais como a lrica horaciana, a

    elegia ovidiana e o epitalmio de origem grega mas de forma a estilhaar as diferenas

    claras entre rus e urbs. Seus poemas falam de um espao natural urbanizado, moldado

    pelo homem, em que as fontes manam gua tpida dentro das casas, para premiar a

    virtude de seus possuidores; e de um espao urbano naturalizado, em que as pedras so

    como relva e em que o deus do rio faz surgir espontaneamente das guas um trecho de

    estrada de mrmore (IV.3.95-96). Ao ressignificar esses elementos, Estcio anuncia a

    sua nova potica, apta a falar de e para uma sociedade profundamente modificada em

    relao ao sculo anterior.

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    Data de Recebimento: 04/10/11

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  • Para citar essa obra: LEITE, Leni Ribeiro. Reescrevendo espaos: VRBS e natureza nas Silvae. RUA

    [online]. 2012, no. 18. Volume 1 - ISSN 1413-2109

    Consultada no Portal Labeurb Revista do Laboratrio de Estudos Urbanos do Ncleo de Desenvolvimento da Criatividade

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