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ANDRÉ VENTURA* Reflexão crítica em torno da teoria da causalidade em Direito das Obrigações. Incursões jurisprudenciais e análise crítica dos diversos paradigmas actuantes e da sua eficácia conformadora 1

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ANDRÉ VENTURA* Reflexão crítica em torno da teoria da causalidade em Direito das Obrigações. Incursões jurisprudenciais e análise crítica dos diversos paradigmas actuantes e da sua eficácia conformadora

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FDUNL

I 1Iniciamos esta empresa recorrendo à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que consideramos essencial quer no desenvolvimento doutrinário (enquanto materialidade actuante) do próprio princípio da causalidade, quer na vigência que, em termos gerais-normativos, se tem verificado na ordem jurídica portuguesa. Não se trata propriamente, como se verá, de um comentário de jurisprudência, pois não é esse o seu fim primordial nem a sua intenção vital, embora a análise da mesma se considere fundamental enquanto elemento destacado do objecto do trabalho. Entendemos que, em sede de princípios vagamente formulados ou materialmente complexos e densos, a actividade dos tribunais – especialmente dos tribunais superiores – revela-se um útil (eventualmente o mais útil) instrumento de compreensão dos efeitos reais desse mesmo princípio numa ordem jurídica concreta. Os tribunais portugueses têm dado ao princípio da causalidade – aos dados legais que o dispõem e às diversas formulações doutrinárias, portuguesas e estrangeiras, que têm sido feitas – considerável relevância. De resto, escusado será dizer que o mesmo tem sido a chave de resolução de significativa quantidade de litígios no âmbito da responsabilidade civil extra contratual e o ponto central (enquanto momento processual - material decisivo da direcção do processo com vista à declaração do direito aplicável e respectivas consequências jurídicas) de controvérsia no domínio do cálculo da indemnização nos mais diversos e variados casos da vida, especialmente, pelo número significativo que apresentam e pelo seu significativo crescimento nos últimos anos, no que se refere a acidentes de viação. Ora, sendo assim, não poderíamos empreender uma proposta de análise, entendimento e crítica do princípio da causalidade adequada (veremos que é este o que predomina e se revelou praticamente dominante absoluto, embora com algumas nuances, entre a doutrina e a jurisprudência portuguesas) sem uma abordagem jurisprudencial do mesmo, o que equivale semanticamente, neste plano de sistematização compreensiva, a uma verificação da sua efectiva vigência no nosso ordenamento jurídico.

* Aluno finalista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa 1 O autor deseja agradecer especialmente ao Prof. Vítor Neves, que incentivou a produção deste trabalho e por várias vezes debateu e comentou os resultados agora apresentados, quer em aulas na FDUNL, quer em inúmeras conversas informais. Agradece-se também os contributos dados pelo Prof. Doutor Carlos Ferreira de Almeida, pela Profª Doutora Maria Helena de Brito e pela Profª Doutora Mariana França Gouveia, bem como a disponibilidade imediata dos mesmos para a leitura e comentário do presente texto

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1) Significativo nesta sede é o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 – 04 – 2005 (Processo 03B4474), cuja matéria de facto é a que de seguida se apresenta. A Sociedade A, com sede em S. Paulo (Brasil), instaurou contra B (Agente de Transportes Internacionais), acção ordinária tendente a obter indemnização dos danos resultantes da completa deterioração, por facto da ré, de um lote de grandes vinhos portugueses, incluindo determinadas amostras, tudo importado pela autora para comercialização no mercado brasileiro, em ordem ao futuro desenvolvimento, nesse país, da sua actividade social de exploração económica do produto. Provou-se que a autora deu instruções precisas a B no sentido da necessidade de manter as garrafas que transportavam o produto a +12º centígrados, sendo por culpa da ré colocados a -20º centígrados, o que provocou a completa deterioração dos vinhos, bem como a consequente impossibilidade absoluta de prossecução dessa mesma actividade comercial prevista. Quanto à questão que directamente nos interessa, dentro da vasta complexidade dos problemas suscitados, ela assinala-se nos termos que de seguida se postam. O acervo de danos sofridos, em forma tópica e geral, constitui-se por:

a) a perda total dos vinhos, quantificada no valor de compra b) despesas de exportação, cambiais e de importação c) a perda de lucro de comercialização no Brasil, de 100% sobre o valor

de aquisição d) as despesas efectuadas para a comercialização dos vinhos e) os prejuízos de imagem da autora, do seu aviamento ou goodwill f) as despesas perdidas pela inviabilização e cessação da actividade da

empresa autora

A questão, que chegará até ao Supremo Tribunal de Justiça2, será a de saber se todos estes danos são efectivamente relevantes para a operação do cálculo de indemnização isto é, se referente a todos eles se verificam os pressupostos da responsabilidade civil3 (neste caso, extra –

2 Deve ter-se em conta a particularidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, instância que conhece apenas de matéria de direito e não da matéria de facto. Cfr., em processo civil, art. 678º, nº4 Código de Processo Civil 3 “O artigo 483º vem estabelecer uma cláusula geral de responsabilidade civil subjectiva, fazendo depender a constituição da obrigação de indemnizar da existência de uma conduta do agente (facto voluntário), a qual represente a violação de um dever imposta pela ordem jurídica (ilicitude), sendo o agente censurável (culpa), a qual tenha provocado danos (dano), que sejam consequência dessa conduta (nexo de causalidade entre o facto e o dano).” Cfr., Menezes Leitão, Luís Manuel, Direito das Obrigações I, Almedina, Coimbra (2000), p. 254

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contratual) e muito especialmente, porque sobre tal versa este trabalho, o nexo de causalidade4. É necessário saber – e aí encontraremos um ponto fracturante entre o Tribunal da Relação de Lisboa e o Supremo Tribunal de Justiça – quais destes danos enunciados pela Autora são efectivamente consequência do acto ilícito e culposo da Ré.

Foi proferida sentença em 6 de Novembro de 2002, a qual julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a indemnizar a autora pelos danos referidos supra nas alíneas a) e b) (…) e absolvendo-a no tocante aos danos referenciados nas alíneas c), e) e f), considerados no caso não indemnizáveis – omitindo-se o dano da alínea d). A autora apelou para a Relação de Lisboa, que revogou a sentença no referente aos danos das alíneas c), d) e e), e quanto ao dano constante da alínea f), revogou-a parcialmente, concedendo à autora apenas um montante equitativo, em Acórdão de 3 de Julho de 2003. Desta decisão da Relação de Lisboa, recorreu a ré, com o argumento essencial – e que deve ser notado com particular atenção, por ser o nosso foco central de atenção – de que “enquanto os danos pelos quais a ora recorrente foi condenada em 1ª instância, já tinham ocorrido, os restantes danos alegados pela autora ainda nem sequer se vislumbravam na data em que as diligências foram efectuadas”. Basicamente, a ré alega, como fundamento do seu recurso, a inexistência do pressuposto da responsabilidade civil aqui em estudo, como bem se nota pela conclusão avançada nas alegações: “Os Venerandos Desembargadores violaram, frontalmente, o disposto nos artigos 562º e 563º do Código Civil, já que não existe qualquer nexo de causalidade entre o facto da ré e os alegados danos da autora”.

Fica, pois, claro que não se discutem os danos pelos quais a ré foi condenada em 1ª instância, mas os demais em que a ré foi adicionalmente condenada pela Relação de Lisboa: o lucro cessante da comercialização de vinhos no Brasil a 100% [línea c)], as despesas visando a mesma comercialização [alínea d)], o dano de imagem e aviamento ou goodwill [alínea e)] e as despesas perdidas pela inviabilização da empresa [alínea f)]. No que a estes diz respeito, põe-se pois a questão do nexo causal relativamente aos factos praticados pela ré, podendo estar em causa a violação do disposto nos artigos 562º e 563º do Código Civil. Afirmam estes:

4 Impõe-se uma nota antes de qualquer avanço, para melhor integração do leitor na sistemática do texto: não entraremos ainda de forma densa na análise dos conceitos jurídicos em questão, nem na decantação rigorosa das teorias a que se referem os juízes do Supremo Tribunal. Tal será tarefa específica da segunda parte do mesmo. O presente percurso pela jurisprudência tem apenas como objectivo ilustrar ou, melhor, aproximar o leitor, do cerne da (s) questão (ões) controvertida (s), bem como do âmbito factual-social em que as mesmas se colocam em termos de aplicação do direito.

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Art. 562º - Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação

Art. 563º - A obrigação de indemnização só existe em relação aos

danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. O Tribunal da Relação de Lisboa concluiu, à luz da factualidade

assente e dada como provada, a existência deste nexo causal entre a actuação da ré e os danos produzidos que agora se submetem a exame. E considerou-o porque, como se sublinha, “não é necessária uma causalidade directa, basta uma indirecta – o autor da lesão é responsável por todos os factos posteriores que eram de esperar segundo o curso normal das coisas, ou foram especialmente favorecidos pela conduta do agente quer na sua própria verificação quer na sua actuação concreta em relação ao dano que se trata”.

O Supremo Tribunal de Justiça chegará à mesma conclusão, no que à

questão do nexo causal diz respeito, mas curiosamente recorrendo a instrumentos metodológicos e conceptuais diferentes dos utilizados pela Relação de Lisboa. De facto, para apurar a existência da causalidade entre os factos e os danos evocados, os juízes do Supremo procedem a uma análise em dois patamares consecutivos: primeiramente a causalidade enquanto fenómeno naturalístico-concreto e posteriormente a causalidade enquanto formulação jurídico-doutrinária. São dois momentos, eventualmente reconduzidos, em termos substanciais – funcionais, ao binómio verificação-interpretação, se bem que lato sensu.

Vimos como a Relação de Lisboa recorre à denominada causalidade indirecta para fundamentar e vincar o nexo causal entre os factos e os danos em causa. É, podemos avançá-lo com segurança, a formulação positiva da teoria da causalidade adequada, que adiante se destrinçará. Ora, o Supremo Tribunal começa por verificar se estão reunidos os elementos que permitam preencher a “causalidade naturalística”, isto é a relação concreta de factos – danos na situação material subjacente. Mas, ao analisar a causalidade adequada enquanto formulação jurídico- interpretativa, distancia-se de certa forma da sentença recorrida, revendo-se numa formulação negativa da causalidade adequada (que também adiante estudaremos), ao afirmar que “para os casos em que a obrigação de indemnização procede de facto ilícito, culposo, quer se trate de responsabilidade extracontratual quer contratual, o facto que actuou como condição da dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente (gleichgültig) para a verificação da dano, tendo-o provocado

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só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto”. Seria apenas nos casos – pedindo de empréstimo uma forte expressão do Prof. Pessoa Jorge – de “desvios fortuitos”.

Mas o Supremo Tribunal avança ainda um pouco mais no aprofundamento do princípio, incidindo particularmente sobre a questão da previsibilidade, conceito chave em sede de causalidade adequada. E fá-lo para esclarecer a extensão do âmbito da subjectividade actuante neste domínio, salientando que “um dano, para ser considerado efeito adequado de certo facto, em corolário da teoria sumariada (a formulação negativa da casualidade adequada), não tem que se tornar previsível para o seu autor(…) A previsibilidade [subjectiva] é exigível, decerto, relativamente ao requisito da culpa, visto constituir um elemento (intelectual) desta em qualquer das suas modalidades; mas não em relação aos danos”.

Ao assumir esta formulação da causalidade adequada, considerando-a aliás dominante na jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça promove um conceito bastante amplo – em termos de consideração de âmbito material ou de efeito irradiante – de nexo causal, enquanto pressuposto da responsabilidade civil, alargando, consequentemente, o próprio espaço axiológico – normativo de influência desta última. Repare-se, pois, que uma formulação negativa da causalidade opera sempre em exclusão. Quase podemos dizer, uma exclusão excepcional, conectada com os supostos materiais em que intervenções estranhas, exteriores e alheias ao facto desvirtuaram por completo os resultados por ele produzidos, ou quando tais resultados apenas ocorrem por circunstâncias totalmente anómalas e invulgares segundo as regras da experiência.

2) Igualmente significativo é o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-04-1999 (Processo 99B218), sendo mais directamente ligado à matéria sensível do cálculo de indemnização que, como veremos, terá uma importância decisiva na segunda parte deste trabalho, em sede do estudo teorético – científico da causalidade adequada. Relativamente à matéria de facto, há a dizer que se trata de um acidente de viação entre o veículo RJ-82-80, propriedade de A e por ele conduzido, e o veículo FZ-84-13, pertencente a D e conduzido, no seu interesse e sob as suas ordens e direcção efectiva, por E, motorista ao seu serviço. A causa principal do ocorrido, assim se deu como provado, foi a condução ilícita e culposa de E.

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Como consequência, A e a mulher, B, por si e em representação do seu filho menor, C, demandaram a Companhia de Seguros Mundial Confiança SA, pedindo a condenação desta numa determinada quantia (neste âmbito reputada irrelevante), a título de indemnização por danos patrimoniais e extra-patrimoniais por todos sofridos em acidente de viação, alegando, para tal, os diversos factos constitutivos dos pressupostos da responsabilidade civil normativamente consagrados. No final, foi a acção julgada apenas parcialmente procedente, condenando-se a ré a uma quantia significativamente inferior à reclamada pelos autores. Importa sublinhar, para o nosso objecto de estudo, que ficaram sobretudo de fora da consideração de danos relevantes em sede de responsabilidade civil, os denominados danos futuros. Em causa, uma vez mais – entre outros problemas – a problemática do nexo causal entre os factos culposamente produzidos pela ré e os danos sofridos pelos autores. Os danos elencados e dados como provados são variados e de cariz diverso. O Supremo Tribunal divide-os em cinco espécies: 1) danos emergentes, que incluem os prejuízos directos e as despesas imediatas ou necessárias; 2) ganhos cessantes; 3) lucros cessantes; 4) custos de reconstituição ou reparação; 5) danos futuros. Entre estes, avultam concretamente os seguintes danos: as sequelas apresentadas por A determinaram-lhe uma incapacidade parcial permanente (IPP) de cerca de 25%, tendo igualmente ficado com a face deformada e a cara desfigurada, sendo esta situação, para além de economicamente adversa, moralmente penosa. Para além disso, há a registar que A ficou impossibilitado para o trabalho durante 3 meses. Também em função do acidente, C sofreu escoriações várias na cara e fractura do fémur esquerdo, tendo ficado internado durante cerca de trinta dias e submetido a uma operação [ao fémur esquerdo]. Note-se sobretudo que os danos descritos não se reportam apenas a situações/desvantagens patrimoniais. Pelo contrário, ao mesmo tempo que se destaca a tristeza causada em A pelas deformações físicas resultantes do acidente, não se esquece o câmbio na atitude de C face à vida, registando-se que “durante 90 dias esteve doente, impedido de estudar e brincar com os amigos” e ainda que “à data do acidente C era uma criança alegre”. A questão centra-se, como dissemos, nos denominados “danos futuros” e no seu nexo causal com os factos ocorridos, em virtude da actuação ilícita e culposa de E, motorista do veículo FZ-84-13 ao tempo do acidente. Depois de analisar e comprovar os prejuízos directos, os ganhos cessantes e os lucros cessantes, o Supremo Tribunal recorre mais uma vez à causalidade adequada para a integração dos danos futuros nos pressupostos normativos da responsabilidade civil. Consideram os juízes que “os danos futuros compreendem os prejuízos que, em termos de causalidade adequada, resultaram para o lesado (ou resultarão de acordo com os dados

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previsíveis da experiência comum) em consequência do acto ilícito que foi obrigado a sofrer, ou, para os chamados lesados em segundo grau, da ocorrência da morte do ofendido, em resultado de tal acto ilícito, e ainda os que poderiam resultar da hipotética manutenção de uma situação produtora de ganhos durante um tempo mais ou menos prolongado e que poderá corresponder, nalguns casos, ao tempo de vida laboral útil do lesado, e compreendem ainda, determinadas despesas certas, mas que só se concretizarão em tempo incerto (como o são, por exemplo, substituições de uma prótese ou futuras operações cirúrgicas) ”. Repare-se que, em certo sentido, embora não de forma intensa e aturada, é utilizada a teoria da causalidade já não numa perspectiva negativa (como vimos no Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 07 – 04 – 2005) mas numa óptica de afirmação. Ao esclarecer que estão em causa “os dados previsíveis da experiência comum”, os juízes optam por apenas integrar no âmbito da responsabilidade civil os danos que seriam de prever como consequência dos factos ocorridos, segundo as regras da experiência comum ou também designadas consensuais, ou seja, para além da causalidade concreta – naturalística (que obviamente se pressupõe desde logo pelo artigo 563º CC) é necessário um juízo de prognose objectiva (distinguindo-se assim da previsibilidade em relação ao sujeito), assente metodologicamente nas regras derivadas quer da experiência do homem no mundo, quer dos encadeamentos factuais habituais – regulares. Neste binómio se estrutura e se concretiza a causalidade adequada, o que é significativamente distinto da formulação negativa, muito mais (excessivamente?) abrangente e construída com base numa operação de exclusão excepcional. Este acórdão centra-se igualmente, porém, na questão do cálculo de indemnização, visto estar intimamente conexionado com a matéria em causa. Mas, neste domínio, já não se fala de causalidade adequada. No fundo, separam-se radicalmente as matérias: uma coisa é a determinação dos danos que, em concreto, integram o escopo da responsabilidade civil e coisa diversa o raciocínio argumentativo utilizado para fundar e calcular a indemnização em causa, numa operação que é, portanto, consequente e posterior à aplicação da causalidade adequada. Com respeito a esta segunda operação [cálculo de indemnização] avança o Supremo Tribunal que “ a lei, para além, da consagração da teoria da diferença e da equidade, não fixa critérios para o cálculo de indemnização. Mas os tribunais, cada vez com mais frequência. Vão lançando mão de critérios, radicados uns em tabelas financeiras, outros em arrevesadas fórmulas matemáticas, outros em simples regras de três, etc. Todos eles, afinal, como já em outro local escreveu o actual relator, com o objectivo de tornar o mais possível justas, actuais e minimamente discrepantes as indemnizações”.

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A isso mesmo recorrerá então o STJ, aplicando uma série de fórmulas matemático – contabilísticas para apurar o montante exacto da indemnização a efectuar por parte da ré. Lançarão mão de instrumentos como o rendimento médio mensal de A, rendimento anual e ainda questões relacionadas com o rendimento de capital. As operações levadas a cabo excedem manifestamente o objecto desta análise e dos fins a que a mesma se propõe, pelo que as deixaremos de lado. Apenas dois aspectos deverão ser realçados no que ao Acórdão presente respeita: por um lado, a consideração dos diversos danos não patrimoniais para efeitos de responsabilidade civil (a que a lei manda atender, pela conjugação dos arts. 496º e 494º Código Civil), embora neste âmbito sem nenhuma referência ao nexo causal. Neste sentido, os referidos IPP, o quantum doloris, o prejuízo estético e o prejuízo de afirmação pessoal não são apurados segundo o mesmo raciocínio metodológico – procedimental que os restantes danos [patrimoniais]. Isto poderá dever-se ou à evidência dos mesmos como consequência (normativamente valorada, nos termos anteriormente explicitados) dos factos (pelo que os juízes se abstêm de qualquer reflexão adicional) ou à pré – compreensão de que os danos não patrimoniais não devem ser submetidos ao mesmo grau de avaliação nem ao mesmo procedimento, eventualmente por a lei cominar, nestes casos, uma indemnização “segundo a equidade” (art. 496º, nº3); por outro lado, registar que a questão da indemnização é nitidamente separada da questão da causalidade adequada, o que nos impele a concluir pela consideração desta última como inútil ou ineficaz no âmbito do cálculo de indemnização. Este último aspecto é particularmente relevante e reveste uma importância decisiva no seio da análise critica que levaremos a cabo na segunda parte deste estudo. 3) Outra decisão, também do Supremo Tribunal de Justiça, bastante relevante nesta matéria, está compreendida no Acórdão de 17-06-2003 (Processo 03A1564). Compreende a seguinte matéria de facto, já assente nas instâncias judiciais anteriores: no dia 13 de Dezembro de 1989, cerca das 19 horas e 15 minutos, J seguia pela Rua 5 de Outubro, Cantanhede, no sentido sul/norte, com o seu veículo automóvel de matrícula JT. No mesmo momento, seguia L pela nova variante, no sentido poente/nascente, conduzindo o automóvel de matrícula JI, onde seguiam ainda o filho D e a testemunha M. Regista-se igualmente a existência de um sinal STOP no acesso dessa mesma rua ao cruzamento onde se deu a colisão entre os veículos de matrícula JT e JI. O local onde se deu a colisão [bastante violenta] foi dentro de uma localidade, onde aliás já se haviam verificado

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outros acidentes. Ficou igualmente provado que o acidente se deveu ao desrespeito de J (veículo de matrícula JT) perante o sinal de STOP (que impunha a paragem obrigatória, facto que não se verificou) e, em alguma medida, à circulação em velocidade superior à permitida por parte de L (veículo de matrícula JI), que circulava a cerca de 90 kms/hora. Como consequência da colisão, verificou-se o falecimento de ambos os condutores, J e L (ainda que em momentos cronologicamente distintos). Os danos alegados pelos autores são de vária ordem e situam-se quer no âmbito patrimonial quer não patrimonial. Assim, alude-se ao “Peugeot” que ficou inutilizado, tendo sido considerado irreparável; o desgosto sofrido pela mulher e filhos; os ganhos e os lucros cessantes na actividade económica familiar que desenvolviam; os vários tormentos ocasionados em D, filho do falecido J: ficou diminuído física, intelectual e psicologicamente infantilizado, ficou praticamente destituído de capacidade vocal (incapaz de pronunciar qualquer palavra que não o seu próprio nome, e mesmo este com dificuldades), vive na cama e sentado numa cadeira de rodas, incapaz de andar mais de dois ou três metros de vez em quando, e apoiado em bengalas – pirâmide, ao que se acresce o natural e intensíssimo sofrimento psicológico e emocional. Tudo somado, ficou assente sofrer D sequelas que implicam uma incapacidade parcial permanente de 90%. No objecto parcial do Acórdão que nos diz respeito, há que frisar que considerou o Tribunal da Relação de Coimbra que a circulação em velocidade superior à permitida por parte de J contribuiu igualmente para a produção dos danos que se verificaram, pois “a colisão não teria tão fatídicos resultados se o condutor do JI circulasse dentro do legalmente permitido ou tivesse tomado o mínimo de precaução antes de entrar no cruzamento”. Neste sentido, concluiu aquele Tribunal pela imputação repartida da culpa de forma graduada: 20% no tocante à actuação de L e os restantes 80% à de J. Interessa-nos pois a resolução da questão da imputação e quantificação das indemnizações devidas a “A”e a seu filho D, porque implicará, uma vez mais, um juízo causal a propósito dos factos ocorridos, na relação com os danos supra aduzidos. Avançamos uma vez mais, apenas como nota breve, que não se pretende dissecar a fundo a sentença, nem desenvolver um raciocínio critico a propósito das soluções finais encontradas pela aplicação do direito material vigente, como seria próprio de um case-note. Importa sobretudo verificar e apresentar a interpretação jurisprudencial dos preceitos normativos referidos ao nexo causal e os postulados metodológico – operativos em que se baseia o juízo a propósito do nexo causal entre os factos e os danos. Claro que estes dois objectivos analíticos não podem ser completamente concretizados sem a integração sistemática do próprio juízo causalístico [normativo] no âmbito da própria sentença judicial (neste caso,

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nos vários Acórdãos do STJ) e dos problemas cuja solução a causalidade adequada procura encontrar, o que permitirá uma delimitação da sua potencialidade aplicativa e do seu escopo normativo. Assim sendo, devemos seguir procurando o juízo da causalidade adequada no seio do fio condutor da argumentação jurídica. Este é, sem dúvida, o acórdão onde se expressa de forma mais clara e compreensível a causalidade adequada no pensamento dos juízes e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Começam os julgadores por recordar a fórmula normativa do art. 563º do CC: «a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão». Continuam que, na esteira dos Profs. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “o facto, lícito ou ilícito, causador da obrigação de indemnizar deve ser a causa do dano, tomada esta expressão agora no sentido preciso de dano real e não de mero dano de cálculo”. Finalmente, os juízes amparam-se na formulação do Prof. GALVÃO TELLES para enunciar a fórmula da causalidade adequada que deve entender-se constar do mesmo art. 563º CC: «determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar». Opta-se mais uma vez pela formulação positiva da causalidade adequada (ao contrário do sucedido no Acórdão STJ de 07-04-2005), com o recurso às máximas da experiência e à regularidade de certos fenómenos causa – efeito, empiricamente verificáveis. Desta forma, concluem os Magistrados, “parece razoável que o agente só responda pelos resultados para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária”.

Há que notar aqui aquilo que parece ser uma certa confusão por parte dos juízes a propósito desta matéria, e que consiste na aparente equivalência substancial – operativa que interpõem entre a formulação positiva da causalidade adequada e a negativa. Como se a aplicação de uma ou de outra fosse indiferente – no tocante à solução material aplicável – e se tivessem o mesmo âmbito e potencialidade irradiante. Mais adiante este raciocínio tornar-se-á ainda mais patente, como se nota nas palavras a seguir transcritas:

Deste modo, para que um dano seja reparável pelo autor do facto, é

necessário que o acto tenha actuado como condição do dano. Mas não basta a relação de condicionalidade concreta entre o facto e o dano. É

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preciso ainda que, em abstracto, o facto seja uma causa adequada (hoc sensu) desse dano. Pode-se assim afirmar que a causa juridicamente relevante será a causa em abstracto adequada ou apropriada à produção desse dano segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do lesante e que pode ainda ser vista, numa formulação positiva, como condição apropriada à produção do efeito segundo um critério de normalidade, ou, numa formulação negativa, que apenas exclui a condição inadequada, pela sua indiferença ou irrelevância, verificando-se então o efeito por força das circunstâncias excepcionais ou extraordinárias.

Ora, este raciocínio de equivalência material não pode ser feito, pelo

menos nestes termos. Tentaremos demonstrar na segunda parte deste estudo as diferenças substanciais [e fundamentais] entre a formulação positiva e negativa da teoria da causalidade adequada, as suas diferentes raízes histórico – doutrinais e os resultados diferentes que delas se obtém.

Porém, em nosso entender, tem o Supremo Tribunal razão quando afirma que “a fórmula adoptada [o art. 563º CC] não é inteiramente feliz para exprimir o pensamento do legislador”, na medida em que “tomado ao pé da letra, o texto do art. 563º dir-se-ia consagrar a tese da pura condicionalidade, assente na teoria da equivalência das condições”, ideia que não pode proceder exactamente porque na ratio do preceito, “colhida principalmente através dos trabalhos preparatórios, a disposição quer sem dúvida consagrar o recurso ao prognóstico objectivo, nos termos em que o recomenda a doutrina da causalidade adequada”.

Ora, com base nestes pressupostos, considerou este tribunal que “a causa em abstracto adequada ou apropriada à produção do infausto evento foi o desrespeito do falecido marido e pai dos recorrentes pelo sinal de paragem obrigatória que se lhe deparou à entrada do cruzamento”, sendo que “a velocidade (excessiva) a que seguia o marido e pai dos autores em nada contribuiu para a colisão”. Neste sentido, afasta-se o Supremo Tribunal das conclusões e dos fundamentos do Tribunal da Relação de Coimbra e reitera as conclusões da 1º Instância.

Repare-se, uma vez mais, que a divergência de conclusões entre a Relação de Coimbra e o Supremo se enraíza não na diferença de critérios de determinação do nexo causal (ambos recorreram a uma formulação positiva da causalidade adequada) mas da sua diferente irradiação aos factos. Na verdade, ao admitir uma parte (20%) de culpa de L, o que os juízes da Relação concluíram foi a existência de um nexo causal entre a excessiva velocidade deste e os danos nefastos que se vieram a suceder, embora um nexo não tão forte como o existente na actuação de J. Daí as diferentes graduações da culpa, que em grande medida se baseiam na intensidade do nexo causal.

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Uma última nota impõe-se: mais uma vez, o problema da indemnização, seu cálculo ou quantificação, é tratado de forma completamente independente a esta matéria. Uma vez mais, revela-se um segundo momento de operação, após a determinação da integração das condutas nos pressupostos normativos da responsabilidade civil, particularmente o nexo causal. Desenvolvem-se ideias e apuram-se instrumentos prático-metodológicos que tendem a flexibilizar esses critérios de quantificação, a dar entrada ao bom senso e à particularidade de cada situação (o particular relevo da equidade nesta matéria) permitindo uma “criteriosa ponderação das realidades da vida”. Mas não deixa de ser como dissemos: uma segunda operação, independente daquela outra que verifica a existência dos pressupostos da responsabilidade civil. E, pelo menos numa primeira apreciação, parece ser lógico que assim seja. Veremos, de seguida, em que medida pode esta divisão estanque ser posta em causa após uma reflexão crítica da teoria da causalidade adequada.

II Eis-nos, pois, face a um dos mais fascinantes temas da civilística moderna, cujo interesse no pólo da reflexão teórica não excede a importância prático – metodológica que tão controverso tema revela. Geralmente entendido como o último pressuposto da responsabilidade civil extra – contratual, especialmente nos manuais de Direito das Obrigações, a causalidade tem merecido a atenção e a reflexão de parte importante da doutrina, o que tem conduzido a soluções contraditórias. Recentemente, alguma doutrina, onde releva o nome de TRIMARCHI, tem afirmado a impossibilidade de estabelecer uma fórmula unitária completa para a teoria da causalidade, de tal forma que consiga ser potencialmente utilizada nos variados casos da vida real. Independentemente da validade que possa merecer tal linha de raciocínio, continuamos a presumir a possibilidade de uma fórmula teórica que permita à teoria da causalidade afirmar-se como verdadeiro critério objectivo e normativo de imputação de responsabilidade, o que naturalmente consiste na sua principal função.5

Importará, antes de mais, aproximarmo-nos do conceito de causalidade, nos moldes em que ele se coloca no âmbito da responsabilidade civil. Ao fazê-lo estamos desde logo a presumir a existência autónoma de um conceito de causa jurídica, diverso do conceito

5 Assim, Ribeiro de Faria, Jorge, Direito das Obrigações (reimpressão), Vol. I, Almedina, Coimbra (2003), p. 496

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de causa entendido em termos naturalísticos. É certo que algumas teorias, que adiante estudaremos detalhadamente, aproximam grandemente a noção de causa jurídica da ideia naturalista de causa. Porém, tal não significa, de forma alguma, subtrair ao conceito de causa uma dimensão jurídica, mas antes a construção deste com base em elementos de outra ordem (a causa entendida como processo natural ou como consequência mecânica). Consensual na doutrina é a imperiosa necessidade de «definir um critério para o estabelecimento do nexo de causalidade, que permita que ele seja entendido não em termos naturalísticos, mas em termos jurídicos.»6

Donde resulta, porém, esta exigência de uma causa ou de um nexo de causalidade entre o facto e o dano, para efeitos de imputação ao agente no âmbito da responsabilidade civil? Tal parece resultar, desde logo, do art. 483º do Código Civil que, ao estabelecer a indemnização por facto ilícito e culposo, a limita aos “danos resultantes da violação”. Serão portanto indemnizáveis aqueles danos que, reunindo os demais pressupostos da responsabilidade civil (cuja análise não cabe neste estudo) resultem do facto praticado por um determinado agente ou, de outra forma, serão imputados a este agente os danos cuja causa seja o facto por si praticado.7 O problema, aparentemente simples, parecia então resumir-se à delimitação do que seja causa de um determinado dano ou resultado de um determinado facto. Desde cedo, porém, a doutrina se foi apercebendo das dificuldades que a questão suscitava e do empenho que a mesma exigia, pelo que várias teorias foram surgindo para resolver aquele que ficou definido como o “problema da causalidade”.8

Não obstante este ter sido um problema que desde cedo mereceu a atenção dos juristas e dos filósofos do Direito – e portanto, várias ideias foram sendo ensaiadas muito antes de terem sido acabadas construções teóricas mais completas, nos séculos XVIII e XIX – a primeira grande teoria da causalidade ficou identificada como a teoria da equivalência das condições ou teoria da conditio sine qua non, cuja origem remonta ao século XIX. Antes dela, ainda que estivessem já algumas ideias embrionárias, funcionavam critérios mais ou menos empíricos, como o post hoc propter hoc. Começando pelos progressos que originou, poder-se-á dizer que forneceu o primeiro grande critério geral de delimitação dos factos relevantes em termos de responsabilidade civil, afirmando que «são efeito do acto ilícito todos os prejuízos que não se teriam verificado, se aquele

6 Menezes Leitão, Luís, Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, Coimbra (2000), pp. 302-303 7 Ainda Menezes Leitão, Luís, Direito…, cit., p. 302 8 Ver Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 7ª edição, Almedina, Coimbra (1991), p. 879

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não houvesse sido praticado»9 . Não são já relevantes todas as condições que originaram determinado dano, nem a análise se cinge a uma espécie de casuísmo, pois temos agora uma verdadeira norma geral que cinge os factos relevantes àqueles cuja não verificação implicaria a não verificação do dano. Trata-se, no fundo, como refere ANTUNES VARELA, de «distinguir, no acervo de circunstâncias que concorrem para a produção do dano, entre aquelas sem cujo concurso o dano se não teria verificado e as outras, que também contribuíram para o mesmo evento, mas cuja falta não teria obstado à sua verificação.»10

Uma vez aferidas quais as condições que cumprem este requisito inicial de relevância, todas são colocadas em rigoroso patamar de igualdade, com equivalente relevância no âmbito da imputação ao agente. Neste sentido, a causa jurídica de um dano seria formada por todas as condições existentes sem as quais o dano, a lesão não se teria produzido tal qual se efectivou. Recorramos aqui a um célebre exemplo, fornecido por POTHIER: um comerciante vendeu, conscientemente, uma vaca doente a um lavrador, tendo dissimulado esse facto, desejoso de se livrar do animal. O lavrador, visto ignorar essa vicissitude, coloca o animal adquirido junto de todos os outros, vindo todos os outros a ficar infectados com a doença contagiosa daquele animal, o que acabou por originar a morte de todos os animais. Desta forma, o homem viu-se impedido de lavrar a terra, não produzindo qualquer tipo de rendimentos e não podendo depois cumprir as suas obrigações para com os credores, que decidem executar o seu património, que depois é vendido judicialmente. Imaginemos ainda, como completa o Prof. MANUEL DE ANDRADE, que o homem, desesperado com aquela situação, decide pôr termo à sua vida.11

Segundo a teoria da conditio o facto ilícito praticado pelo comerciante (venda de um animal doente, dissimulando a doença) constitui causa jurídica da situação patrimonial em que ficou o lavrador e mesmo da sua morte. Aplicando os seus cânones, o resultado não poderá ser outro: por um lado, é certo que a venda do animal doente deu origem a todo o processo causal (doença dos outros animais, morte, anulação do património do lavrador, execução judicial, suicídio); por outro, é indiscutível que, se não tivesse ocorrido aquela venda enganosa, a morte do lavrador não teria ocorrido, visto não se ter desencadeado o processo que culminou no seu suicídio.

9 Pessoa Jorge, Fernando, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Almedina, Coimbra (1999), p. 389 10 Antunes Varela, Das Obrigações…, cit., p. 881 11 Citado por Menezes Leitão, Luís, Direito…, cit., p. 302

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Logo, o comerciante seria juridicamente responsável por todos os danos sofridos pelo lavrador, visto terem estes sido, nesta perspectiva, resultantes do facto ilícito e culposo praticado pelo comerciante. Este conceito de causa tem como grande suporte teórico, a filosofia de STUART MILL, assente na ideia de que constitui causa de um determinado dano/facto/fenómeno tudo o que se revelar imprescindível (sine qua non) para a sua ocorrência.12 Obviamente que tal teoria conduz a resultados práticos manifestamente perversos e injustos, o que talvez se justifique pela sua clara filiação na escola positivista, onde bebeu o seu método e fundamentos, mais especificamente na velha mística positivista de equiparar as ciências sociais com as ciências naturais.13

Outro exemplo, dado por BROX, ilustra bem esta possibilidade: suponhamos que, por culpa do motorista de táxi, que não comparece a horas no local previsto, A perde o comboio e, por via disso, não celebra um negócio que lhe traria um lucro de 1500 euros. Porém, sem transporte, A teve de tomar um comboio, que teve um acidente, que lhe causou ferimentos. Tendo sido internado, roubaram-lhe a sua carteira e documentação no hospital, o que o colocou num intenso estado de nervosismo. De tal forma ficou afectado que teve de ser internado numa clínica psiquiátrica, onde um doente mental o agrediu mortalmente.14

Ora, segundo a teoria da equivalência das condições, o taxista poderá ser responsabilizado pela morte de A, visto que o seu atraso foi imprescindível para o desencadeamento do processo causal e, sem tal facto, a morte de A não teria ocorrido. A teoria da equivalência das condições conduz, evidentemente, a resultados absurdos, até do ponto de vista simples do senso comum. A sua principal fragilidade revela-se, em nosso entender, no facto de recorrer a um conceito de causa estranho ao Direito, puramente mecanicista (o que, de certa forma, se articula com a sua origem naturalista), o que leva a «abdicar-se de efectuar uma selecção das condições relevantes juridicamente».15

Daí poder-se dizer, acompanhando LARENZ, que a teoria da conditio sine qua non não fornece uma exacta definição de causalidade, mas antes uma regra geral descritiva.16. Ora, é precisamente enquanto

12 Sobre Stuart Mill, em particular relativamente aos pontos abordados, podem ser consultados as seguintes obras: John Stuart Mill, A System of Logic, Collected Works, Routledge, London (1973), J. Stuart Mill, On Liberty, Bobbs-Merrill Educational Publishing, Indianapolis (1977) e (vários autores) John Stuart Mill and Jeremy Bentham – Utilitarism and Other essays, Penguin Books (1987) 13 Cfr. Angel Latorre, Introdução ao Direito, trad. de Manuel de Alarcão, Almedina, Coimbra (1978), pp. 46 e segs.; Bigotte Chorão, Mário, Introdução ao Direito (O conceito de Direito), Almedina, Coimbra (1994), pp. 167 e segs.; por último, Franz Wiecker, História do Direito Privado Moderno, tradução de António Hespanha, 2º ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa (1967), pp. 491 e segs. 14 Citado em Ribeiro de Faria, Jorge, Direito…, cit., pp. 496-497 15 Menezes Leitão, Direito…, cit., p. 303 16 Larenz, Karl, Schuldrecht, I- Allgemeiner Teil, 1º ed., Munique, Beck (1953), p. 433

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formulação geral, que não poderemos ignorar certos aspectos vantajosos que nos trouxe a teoria da conditio. Por um lado, é a primeira formulação completa que procede à descrição de um critério delimitador (ainda que com os defeitos apontados) dos danos indemnizáveis, ao afirmar que apenas serão condição do dano os factos sem cuja ocorrência o mesmo não se verificaria. Por outro lado, ainda que de forma algo ténue, - como notou o Prof. PESSOA JORGE - «esta teoria chama a atenção para a responsabilidade do homem quando desencadeia forças naturais, que determinam prejuízos muito superiores aos que a acção humana, por si só, poderia produzir.»17

Após a teoria da conditio sine qua non, e com o acumular de críticas à mesma por parte da doutrina dos mais diversos países18, o grande desafio era precisamente encontrar um critério de índole jurídica que possibilitasse uma mais rigorosa e justa selecção das condições relevantes no processo causal para efeitos de apuramento de responsabilidade civil. A ideia de imprescindibilidade, útil num primeiro momento de análise, mostra-se insuficiente para a selecção das condições relevantes no processo conducente ao dano que se efectivou. Era pois necessário encontrar outros critérios adicionais. Foi neste cenário que se propiciou o desenvolvimento das denominadas teorias selectivas, na medida em que o seu principal – quase único – objectivo foi encontrar esse critério adicional de delimitação das condições relevantes, para alem do critério geral da imprescindibilidade. Como grande ponto de partida tinham [as teorias selectivas], então, a ideia assente de que haveria que «que distinguir conceitualmente a causa das meras condições do evento danoso», sendo certo, desde logo, que, «a causa seria uma condição com situação ou relevo especial no processo concreto formativo do dano».19

Desde logo, a teoria da última condição, que procurou proceder a esta delimitação atribuindo especial relevo à última condição ocorrida antes do dano se efectivar, ou, por outras palavras, aquela que causou, directamente, o dano. Doutrina de inspiração anglo-saxónica (e com importantes fundamentos filosóficos em FRANCIS BACON), conheceu algumas variantes, em função do entendimento do que seria mais razoável

17 Pessoa Jorge, Fernando, Ensaio…, cit., p. 390 18 Entre nós ver Almeida Costa, Mário Júlio, Direito das Obrigações, 7º ed., Almedina, Coimbra (1998), pp. 696 e segs.; Antunes Varela, Das Obrigações..., pp. 885 e segs. Para uma boa panorâmica geral das críticas à teoria da conditio nos variados países europeus ver Philipp Heck, Grundriss des Schuldrechts, Scientia Verlag Aalen, Tübingen (1994), pp. 41 e segs. (§12, nº3). Tal crítica não é apenas feita no ambito do direito civil mas também no direito penal. Assim, ver Eduardo Correia, Direito Criminal I, Almedina, Coimbra (1993), pp. 255-257 19 Antunes Varela, Das obrigações…, cit., p. 884

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considerar a “última” condição. Enquanto alguns autores insistiam na causa directa, visto que «se o efeito resulta do conjunto das condições necessárias, estas só têm força causal quando estiverem reunidas, e isso só sucede quando às outras se juntar a última condição»20, outros, onde têm especial destaque os trabalhos de BINDING, referiram-se especialmente à condição decisiva do dano, como contraposição às meras condições impulsivas ou obstativas.21

Apesar de rejeitada pela generalidade da doutrina jurídica europeia actual, a teoria da última condição, especialmente na primeira vertente apresentada (a condição última enquanto condição directa do dano) influenciou alguns ordenamentos jurídicos, nomeadamente o francês e o italiano, cujos respectivos códigos civis «apenas admitem a indemnização de um dano quando ele seja consequência directa e imediata da inexecução».22 Porém, enquanto critério de imputação de responsabilidade, tal doutrina afigura-se não apenas insuficiente, como mesmo inadequada e injusta. Vejamos: Se A empurra B violentamente para a estrada, onde este é atropelado por um veículo pesado que lhe provoca a morte, não é o empurrão de A que causa directamente a morte de B (será o atropelamento), sendo certo que ninguém duvidará de que deverá ser imputada responsabilidade ao A. Outro exemplo: se C se atravessa repentinamente numa auto-estrada, sem sequer olhar para qualquer dos lados e se, para se desviar dele, D, condutor de um veículo ligeiro, guina o carro, vindo a embater frontalmente em E, que circulava na faixa contrária, a acção de C não é causa directa dos danos causados a E (foi o embate do D) nem a causa última dos mesmos. Porém, ninguém duvidará de que a sua acção é a causa dos danos produzidos, devendo estes ser-lhe imputados. Também a formulação de BINDING, ao apelar à condição decisiva, não oferece nenhum critério seguro de delimitação dos danos indemnizáveis, pois o que seja condição decisiva, só por si, não é susceptível de um preenchimento objectivo, podendo traduzir-se não apenas numa evidente insegurança jurídica – contrária ao próprio Estado de Direito – mas no reino do subjectivismo do julgador, no âmbito dos seus quadros mentais próprios. Para além disso, falar-se em condição decisiva aproxima-se grandemente da causalidade eficiente, cujos defeitos são também consideráveis, como veremos de seguida. Acompanhamos aqui as palavras de RIBEIRO DE FARIA, que conclui: «Ou nos movemos no mero plano naturalístico, e aí, a cegueira ao mundo dos valores, ou a tudo o que seja valoração, não traz ou oferece 20 Pessoa Jorge, Fernando, Ensaio…, cit., p. 391 21 Antunes Varela, Das obrigações…, cit., p.884 22 Menezes Leitão, Direito…, cit., p. 304

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nada que possa apontar para uma cronologia significativamente diferenciada de factos ou para uma relatividade de eficácia de condições em um condicionalismo dado, ou então, entramos em linha de conta com um critério valorativo, mas, nesse caso, não podemos evitar a insegurança do subjectivismo ou do ponto de vista particular do observador».23

De insuficiências semelhantes padece a teoria da causalidade eficiente, formulada por BIRKMEYER, que selecciona entre todas as condições do facto, aquela(s) que se mostrem mais eficientes a produzir aquele resultado. Trata-se, efectivamente, de «efectuar uma avaliação quantitativa da eficiência das diversas condições»24. Como dissemos já, causa eficiente aproxima-se, fortemente, de causa decisiva, sendo que talvez esta se afigure mais restritiva na selecção. Porém, ambas encerram um grande âmbito de valoração, podendo mesmo dar origem a juízos completamente diferentes, consoante os diversos operadores jurídicos. Por um lado, o critério da eficiência tem a vantagem de afastar o critério da last condition, altamente naturalista e completamente alheio aos esquemas jurídicos. Por outro, a ideia de eficiência, ainda mais do que a ideia de decisividade, apresenta-se como altamente relativa, sendo certo que «a distinção [entre condição e causa] daria lugar, na prática, pela sua imprecisão, às maiores dúvidas e hesitações dos tribunais».25 MANUEL DE ANDRADE ilustrava particularmente bem esta realidade, através de um exemplo que se tornou célebre e constituiu escola: um homem cujo relacionamento com a mulher é difícil e tortuoso, sem que todavia as suas desinteligências com ela o autorizem a pedir o divórcio, vem para casa bastante alcoolizado. A mulher critica-o fortemente pelo estado em que se encontra. O homem, por sua vez, exalta-se, puxa de um revólver e dispara sobre ela, ferindo-a. A mulher faz-se tratar por um curandeiro e morre, quando se teria salvo se fosse tratada por um médico competente. Qual a causa da morte? Um reformador social dirá: a causa foi a falta de uma boa lei do divórcio; um apóstolo do anti-alcoolismo: foram as bebidas alcoólicas; um pacifista: foi o não estar eficazmente proibido o uso de armas de fogo; um representante dos interesses da classe médica: foi o curandeirismo.26

De facto, é manifesto o subjectivismo inerente ao preenchimento do nexo causal com base no conceito de eficiência, ele próprio susceptível de uma multiplicidade de entendimentos. Mais uma vez, se poderá dizer o mesmo: se bem que possa, em certos casos, fazer-se uso do conceito de eficiência para averiguação do nexo causal entre o facto e o dano, tal não 23 Ribeiro de Faria, Jorge, Direito…, cit., p. 500 24 Menezes Leitão, Direito…, cit., p. 304 25 Antunes Varela, Das obrigações…, cit., p. 885 26 Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, colaboração de Rui de Alarcão, 3º ed., Almedina, Coimbra (1966), p. 358

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poderá ser elevado a critério geral, muito menos a critério exclusivo de determinação, como pretendem os adeptos da causalidade eficiente. É certo que a eficiência do facto para provocar determinado dano é central – ou poderá sê-lo face à situação real-concreta –, mas tal noção reveste-se fundamentalmente de importância social (e política), sendo que dificilmente se poderá assumir como critério normativo, nomeadamente em termos de resolução de litígios jurídicos altamente complexos. Com as críticas que foram alvo estas teorias, bem como algumas derivações que a partir delas se construíram, levaram os juristas a perceber que o que era imprescindível era a construção de um conceito de causa eminentemente jurídico, com base efectiva nos quadros normativos e nos conceitos jurídicos já elaborados. Só a construção de um tal conceito poderia suprir as insuficiências de todos os outros critérios que, sendo emprestados quer das ciências naturais, quer de outras ciências sociais, se adaptavam dificilmente aos canônes jurídicos e às imperiosas necessidades próprias do mundo do Direito. De facto, os vários critérios propostos tinham sobretudo como base a realidade natural (caso da condição sine qua non) ou a pura realidade social (caso da condição eficiente), o que dificultava a resolução concreta de problemas jurídicos, que muitas vezes envolviam ambas as realidades, como bem demonstrou MANUEL DE ANDRADE. O grande desafio era, a partir de então, a definição de um conceito normativo de causa. Daí, avança RIBEIRO DE FARIA, «que o critério a usar, além de ser um critério lógico, tenha de ser também um critério teleológico – em que se olhe, pois, à especificidade do direito como disciplina normativa: aos seus valores, às suas preocupações e aos seus fins».27

Procurará cumprir estas finalidades a Teoria da causalidade adequada, formulada para o direito civil por TRÄGER e RÜMELIN, já no século XX, mas cujas origens teóricas se podem remeter para von KRIES, no final do século XIX. Poder-se-á dizer, com alguma segurança, que a causalidade adequada aproveita os conceitos já expostos pelas anteriores teorias do nexo de causalidade, configurando-os juridicamente e adicionando-lhe uma dose significativa de segurança, objectividade e um grau superior de justiça na aplicação concreta. Da teoria da equivalência das condições, aceita a ideia de que o facto terá sempre de ser imprescindível para a ocorrência do dano, isto é, terá sempre de ser sine qua non. Utilizando as palavras de PESSOA JORGE, «a condicionalidade seria pressuposto da adequação».28

27 Ribeiro de Faria, Jorge, Direito…, cit., p. 501 28 Pessoa Jorge, Ensaio…, cit., p. 393

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Porém, se aceita este requisito como necessário, não o aceita já como suficiente, acrescentando-lhe um outro. Para ser considerado causa jurídica do dano, o facto terá não apenas de ser condição imprescindível do mesmo, mas terá também de ser adequado a produzi-lo, isto é, em abstracto, segundo juízos de probabilidade (assente na experiência comum dos factos), um qualquer facto é idóneo, ou tem aptidão lesiva, para gerar um determinado dano. Por outras palavras, se o dano ocorrido se encontrar entre aqueles que, segundo esse juízo de prognose póstuma ou prognose objectiva, são adequadamente produzidos pelo facto praticado pelo agente, aquele poderá ser imputado a este último. O acréscimo deste critério supõe, no entanto, um processo de determinação do que seja idoneidade ou aptidão lesiva, ou melhor, uma medida tanto quanto possível objectiva capaz de filtrar os factos susceptíveis de produzir o dano verificado. Em última análise, que dados serão relevantes para proceder a essa avaliação? O critério fundamental, descobre-o a causalidade adequada em juízos de probabilidade, com um substrato essencialmente empírico, ou, nas sábias palavras de TIRCIER «d’après le cours ordinaire des choses et l’expérience courante de la vie».29 A avaliação da idoneidade de um facto para produzir um determinado dano terá de ter como base juízos probabilísticos que, por sua vez, deverão assentar sobretudo na experiência dos acontecimentos e nos seus processos normais, típicos de desenvolvimento. Recorrendo a um dos exemplos dados anteriormente, se A empurra B para a estrada (vindo este depois a ser mortalmente colhido por um veículo pesado), este acto é não apenas condição da sua morte (de acordo com a teoria da conditio) mas também causa adequada da mesma, visto que, se empurrarmos alguém para a estrada, com violência, é previsível (segundo regras empíricas comuns) que o indivíduo possa ser atropelado por um qualquer veículo, sendo comum estes circularem naquela estrada. Já o condutor do pesado, admitindo que não foi violada nenhuma norma de cuidado, – que foi a causa última da morte de B – não pode ser responsabilizado por este resultado, visto exactamente não ser previsível que surja repentinamente vergado, numa via de circulação, um indivíduo. Ainda assim, os adeptos da teoria da causalidade adequada foram corrigindo progressivamente a sua formulação inicial, de forma a aceitar que «essa avaliação tome por base não apenas as circunstâncias normais que levariam um observador externo a efectuar um juízo de previsibilidade, mas também circunstâncias anormais, desde que recognoscíveis ou conhecidas do agente».30

29 Cit. em Antunes Varela, Das obrigações…, cit., p. 889 30 Menezes Leitão, Direito…, cit., p. 305

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Assim, se A provoca um mero corte a um terceiro (B), que vem a falecer em virtude da sua condição de hemofílico, em princípio não poderemos imputar a sua morte a A, visto que, não obstante a sua actuação ter sido condição da morte de B, não era previsível, segundo as regras normais da experiência, que tal resultado se viesse a produzir. No entanto – e é essa a possibilidade que esta correcção nos traz – se A conhecia a situação clínica de B, então tal resultado já lhe poderá ser imputado, uma vez que, tendo conhecimento da situação específica, aquele lhe era, ou devia ser, previsível. Repare-se que não é imprescindível que se prove que A avistava o resultado (morte de B) como previsível. Tendo conhecimento do estado clínico de B, A devia prever como possível um resultado muito mais desfavorável do que seria de esperar num indivíduo saudável. Se não o fez, violou um dever de cuidado e tal não lhe poderá aproveitar para se eximir de responsabilidade civil extra – obrigacional. Nem por isso deixaram de surgir diferentes e contraditórias posições sobre a medida a utilizar para a avaliação da idoneidade do facto para produzir o dano ou, então, da causa adequada do mesmo. A causalidade adequada conheceu então uma formulação positiva, mais restrita, e uma formulação negativa, bastante mais abrangente, mas que tem tido também alguma adesão, sobretudo numa certa doutrina e jurisprudência alemãs. A primeira, onde tem especial relevo LARENZ e BROX, consiste basicamente nos traços já expostos: será causa adequada de um determinado dano a idoneidade de um facto para, em abstracto, segundo juízos de probabilidade ou circunstâncias especiais conhecidas pelo agente, o produzir. A segunda, onde sobressaem os nomes de ENNECERUS-LEHMANN, apenas exclui a responsabilidade do agente quando o facto praticado se revelar totalmente indiferente (segundo uma base normativa e não puramente fáctica) para a produção do dano, que só ocorreu fruto de circunstâncias anómalas.31

Desde já uma nota, que nos parece pertinente: tem sido afirmado, por alguns autores, que a formulação negativa da causalidade adequada não constitui sequer uma verdadeira teoria da causalidade, visto que, se o facto for de todo em todo indiferente (gleichgültig) ao dano ocorrido, então não está cumprido, desde logo, o primeiro patamar de análise que deveremos percorrer, na medida em que o facto não é sequer condição do dano. Não é exactamente assim. Por um lado, a total indiferença do facto deve ser avaliada numa base normativa e não meramente factual. Por outro, deverá ser sublinhado que não estamos a trabalhar com um qualquer conceito de

31 Ver, sobre esta formulação negativa, Ennecerus-Lehmann, Recht der Schuldverhältnisse (1954), p. 63; Antunes Varela, Das obrigações…, cit., p. 889; Ribeiro de Faria, Direito…, cit., p. 502

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condição, mas com a noção derivada sobretudo da teoria da conditio, sendo condição do dano todo o facto sem o qual este não se verificaria. É nesta base conceptual que faz sentido a formulação negativa da causalidade adequada e que se afigura defensável. Repare-se, aliás, que a jurisprudência alemã tem aderido significativamente a esta formulação, considerando, por exemplo, «causa adequada em relação à morte de uma pessoa o ferimento por via do qual ela foi internada no hospital, onde apanhou uma gripe que redundou na infecção pulmonar que a vitimou.»32

Trata-se, sim, como já dissemos, de uma fórmula bastante mais abrangente, onde a noção de risco joga um papel fundamental, sendo a criação ou o aumento deste, para além do socialmente tolerável, um critério chave para averiguar se o facto se revelou ou não totalmente indiferente em relação ao dano. Adaptando esta lógica ao caso apresentado, poder-se-á dizer (foi certamente esta a linha condutora do raciocínio dos juízes) que, ao ferir determinada pessoa com alguma gravidade, se aumentam os riscos de infecções subsequentes, fruto da situação imunológica débil em que a mesma pessoa foi colocada como consequência da agressão ilícita. Não se prescinde, em bom rigor, da causalidade adequada, nem de conceitos como o de aptidão lesiva ou idoneidade, procedendo-se antes a um alargamento do seu âmbito material de significação. A formulação negativa da teoria da causalidade não tem tido, porém, o nível de aceitação que a formulação positiva, por ocasião do seu aparecimento histórico, suscitou imediatamente. Só na Alemanha, o que tem sido feito sobretudo pela jurisprudência, esta formulação tem tido aplicação frequente e constitui mesmo critério chave para a resolução de muitos litígios específicos. Entre nós não tem sido feita grande distinção entre ambas as formulações. A doutrina não tem suscitado grandemente o tema e a jurisprudência não tem enveredado pela discussão de qual das duas formulações se deve adoptar face a um caso concreto. Porém, alguma doutrina, onde tem especial destaque o nome de ANTUNES VARELA, propõe uma solução que, a nosso ver, faz pleno sentido. Perguntando-se qual das formulações adoptar e admitindo que «não há nenhuns elementos seguros, nem na letra nem no espírito do art. 563º, que indiquem uma opção firme por parte da lei», conclui que «o intérprete goza da liberdade de movimentos necessária para optar por aquela solução que, em tese geral, se mostre a mais defensável, dentro do espírito do sistema (art. 10, nº3 CC)». Ora, afirmado o critério metodológico a seguir, conclui VARELA que, se estivermos perante lesão que proceda de facto ilícito (contratual ou extracontratual), deverá ser adoptada a formulação negativa da causalidade (bastante mais ampla quanto aos danos

32 Ribeiro de Faria, Direito…, cit., p. 503

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abrangentes, como vimos). Em todos os outros casos teria aplicação a formulação positiva, nos termos em que já a caracterizámos.33

Recuperando alguns exemplos já referidos: se A, através de uma facada (ilícita e culposa) provoca no braço de B um grave ferimento e este é internado, sendo que uma infecção derivada de um vírus hospitalar acentua os seus ferimentos e leva a que o braço tenha de ser amputado, A é responsável não apenas pelas lesões iniciais e tratamentos subsequentes, mas também pela amputação do braço. Para que tal não ocorresse, seria necessário que a acção de A fosse de todo em todo indiferente ao dano verificado, o que não acontece manifestamente, uma vez que o ferimento grave provocado em B potencia grandemente o risco de infecções subsequentes com consequências bastante danosas. Já, porém, se B recupera através dos tratamentos que lhe são efectuados e vem a morrer atropelado à saída do Hospital, após ter tido alta, o dano morte não será imputado a A, visto que a sua acção não potenciou de forma alguma os riscos do que veio a acontecer. Ou melhor, o risco de B morrer atropelado não foi aumentado por A, visto que tal poderia acontecer em qualquer local. Como tal, diremos que a conduta de A revelou-se de todo em todo indiferente relativamente ao resultado danoso. Nos restantes casos, como nos casos de responsabilidade por facto lícito, exigir-se-á a fórmula positiva, mais exigente, da causalidade. Imaginemos um caso geralmente considerado de responsabilidade pelo sacrifício ou de «ingerência lícita»34: uma apanha de frutos em prédio contíguo, no âmbito normativo do art. 1367º CC. A, proprietário do prédio X, contíguo ao prédio Y, apanha os frutos de algumas das suas árvores neste último. Subitamente, o escadote onde se sustentava balança e A cai. Desesperado, agarra-se a um tronco numa árvore próxima, que lhe pareceu seguro. Só que, como B (o proprietário do terreno) tinha no dia anterior estado a cortar o tronco daquela árvore, tendo depois desistido, esta encontrava-se bastante fragilizada, pelo que, com o peso de A, todo o tronco principal tombou a inutilizou-se definitivamente. Como tal, todos os frutos da árvore se perderam. Como determinaremos se o comportamento de A foi a causa de todos os danos verificados (porque o art. 1367º refere-se à responsabilidade “pelo prejuízo que com a apanha vier a causar”)? Não poderíamos certamente dizer que foi de todo em todo indiferente, mas, servindo-nos da formulação positiva da causalidade, poderemos afirmar que, se em concreto foi condição dos danos, não era, segundo as regras da experiência comum, provável que o comportamento de A provocasse o derrube de toda a árvore, visto que tal só aconteceu porque o próprio B a debilitou no dia anterior. Desta forma, a acção de A não foi causa dos danos verificados, devendo 33 Antunes Varela, Das obrigações…, cit., pp. 898-899 34 Menezes Leitão, Direito…, cit., p. 351

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apenas indemnizar aqueles que seria previsível que ocorressem, segundo o juízo de prognose póstuma, o que parece fazer sentido. Parece-nos, pois, não só possível como louvável esta distinção de aplicação das respectivas fórmulas da causalidade consoante se trate de facto lícito ou ilícito. Efectivamente, se o agente pratica uma agressão ilícita na esfera de outrem, justifica-se que a imputação esteja sujeita a um regime mais penalizador (de âmbito mais amplo, portanto) do que se a agressão resultar de facto lícito. De facto, a ilicitude – enquanto desvalor/contrariedade da acção à ordem jurídica – não deve deixar de ter um papel central na atribuição de responsabilidade civil, não obstante o carácter primacialmente ressarcitório do instituto.35

Recentemente, chegou-nos da Alemanha uma nova construção em torno da causalidade, que foi baptizada como a teoria do fim tutelado pelo contrato ou pela norma legal infringida. Proposta inicialmente por RABEL, tem merecido significativa aceitação por parte da doutrina alemã, mas por agora não tem tido grande sucesso na exportação para os restantes países europeus.36

Segundo esta formulação, a delimitação dos danos indemnizáveis deve ser feita com base na finalidade jurídica da norma (legal ou contratual) violada, isto é, serão apenas indemnizáveis os danos que se reportem à lesão de bens jurídicos incluídos no âmbito de protecção normativa [da norma violada]. Desta forma, conclui MENEZES LEITÃO (partidário desta orientação), «a questão da determinação do nexo de causalidade acaba por se reconduzir a um problema de interpretação do conteúdo e fim específico da norma que serviu de base à imputação de danos». ANTUNES VARELA cita, para ilustrar esta teoria, o famoso exemplo de HERMANN LANGE: «um comerciante pesa determinada carga de mercadoria na estação do caminho-de-ferro. A balança estava avariada e, em consequência disso, acusou um peso muito inferior ao real, o que levou o dono da carga a vendê-la com enorme prejuízo no local de destino, tomando como base do preço que pediu o peso constante da guia de transporte. Num caso desta natureza, o caminho-de-ferro não é responsável pelo prejuízo que o vendedor sofreu. Por força do contrato celebrado entre o expedidor e o caminho-de-ferro, este obriga-se, quando muito a determinar o peso exacto da mercadoria para a fixação do frete devido, mas não para servir de base aos negócios de disposição da mercadoria que o dono venha a efectuar posteriormente».37

35 A generalidade da doutrina reconhece, porém, ainda que subsidiariamente, uma função punitiva da responsabilidade civil. Cfr. Almeida Costa, Direito..., cit., pp. 479 (nota 1); Menezes Leitão, Direito..., cit., pp. 251-252 36 Antunes Varela, Das obrigações…, cit., pp. 899-900 37 Antunes Varela, Das obrigações…, cit., p. 900

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Se se compreende a importância de determinar o âmbito de protecção da norma para efeitos de responsabilidade civil, já não se compreende como poderá este simples critério substituir a causalidade. Poder-se-á mesmo afirmar que, em certos casos, será relevante como critério adicional ou correctivo à fórmula da causalidade, mas nunca que tenha potencialidades para simplesmente a substituir, prescindindo dela. Por um lado [sublinhe-se que estamos apenas no âmbito da responsabilidade civil extra-contratual], quanto à primeira modalidade da ilicitude contida no art. 483º do Código Civil, a violação de direitos subjectivos alheios, jamais se poderiam delimitar os danos ocorridos, com razoabilidade, a partir deste único critério. Para o demonstrar, o simples exemplo clássico serve: se A é alvejado culposamente por B, que se encontra a alguns metros de distância, provocando-lhe graves lesões corporais, que se convertem na sua morte após a ambulância onde seguia se ter despistado, o recurso ao fim tutelado pela norma violada não nos permite rigorosamente isentar B do dano morte de A. Veja-se que no âmbito de protecção da referida norma encontram-se o bem jurídico integridade física e também, como toda a certeza, o bem vida. Como tal, só o recurso à causalidade adequada o permitiria fazer, com base no juízo de prognose póstuma. Quanto à “disposição legal destinada a proteger interesses alheios”, a questão é até mais simples. É que, como bem tem notado grande parte da doutrina portuguesa, a exigência do âmbito de protecção da norma (ou a sua finalidade) incluir os interesses agredidos é um problema de ilicitude e não de causalidade. De facto, para haver rigorosamente violação das denominadas “normas de protecção” (Shutznormen) é fundamental que os bens jurídicos violados se encontrem naquele catálogo que a norma tem como finalidade defender e proteger.38 A generalidade da doutrina, inclusivamente em Portugal, tem defendido esta posição. Incompreensível parece ser, em nosso entender, a posição de MENEZES LEITÃO, adepto desta formulação como critério fundamental de delimitação dos danos indemnizáveis. Refere o mesmo autor que «efectivamente a obrigação de reparar os danos causados constitui uma consequência jurídica de uma norma relativa à imputação de danos, o que implica que a averiguação do nexo de causalidade apenas se possa fazer a partir da determinação do fim específico e do âmbito de protecção da norma que determina essa consequência jurídica»39. Porém, ele próprio refere que, relativamente à ilicitude, «não basta qualquer norma jurídica seja violada, exigindo-se que o fim da norma consista especificamente na tutela de interesses particulares e não do interesse geral. Se a norma for 38 Assim Almeida Costa, Mário Júlio, Direito das Obrigações, 7º ed., Almedina, Coimbra (1998), pp. 488 e segs. Também Ribeiro de Faria, Direito…, cit., pp. 418 e segs. 39 Menezes Leitão, Direito…, cit., p. 306

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dirigida a proteger o interesse público e só reflexamente atingir interesses particulares, estará naturalmente excluída a possibilidade de um particular exigir indemnização. Exige-se ainda que o dano se verifique no círculo de interesses que a norma visa tutelar, sendo excluída a indemnização relativamente a outros danos, ainda que verificados em consequência do desrespeito da norma»40. Desta forma, mal se compreende como considera o autor o fim específico da norma um critério suficiente de causalidade, antes que um critério essencial de verificação de ilicitude. Posto isto, releva desde logo a questão de saber qual das teorias apresentadas condensa em si mais virtualidades e potencialidades para a resolução de litígios na vida real? Depois, importará verificar qual das teorias o direito português acolhe, se é que o faz directamente. Quanto à primeira questão, não nos parecem surgir grandes dúvidas. A teoria da causalidade adequada parece ser, neste momento, a que melhor responde às exigências da questão da causa jurídica dos danos. Por um lado, apresenta-se como um verdadeiro critério jurídico, superando em grande medida as soluções absurdas a que conduzia a teoria da equivalência das condições, apoiada sobretudo numa noção naturalística de causa. Por outro lado, não só procura efectivamente a causa eficiente ou decisiva (como as teorias de BIRKEMEYER ou de BINDING) como fornece uma metodologia específica para determinar esses conceitos e chegar a soluções concretas, que não exclusivamente dependentes do juízo arbitrário do julgador ou de tendências sócio-políticas. Nisto reside a sua principal virtude, bem como na flexibilidade que apresenta na efectiva busca de soluções justas e equilibradas, dentro do “espírito do sistema”. Tal equilíbrio é desde logo alcançado com as correcções que a previsibilidade abstracta (o juízo de prognose póstuma ou objectiva) e a específica cognoscibilidade do agente introduzem na mera verificação da condicionalidade concreta num processo causal, impossibilitando assim que determinados danos se possam imputar para lá de um âmbito razoável de causalidade e de condicionalidade. Quanto à fórmula adoptada pelo legislador português, será útil recorrer ao disposto nos art. 563º do Código Civil que dispõe que “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. Que retirar daqui? Poderemos, numa análise superficial, constatar aqui uma consagração legal da teria da conditio, na medida em que raciocina aproximadamente nos mesmos termos desta: existirá obrigação de

40 Id., Ibid., p. 264

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indemnizar se, retirada a lesão provocada pelo agente, o dano não se verificaria. Se tal ocorrer, então a lesão é condição do dano ocorrido. Uma análise mais aturada do artigo demonstrar-nos-á que consagra, na verdade, a teoria da causalidade adequada. Por um lado, a palavra “só” remete para a ideia (da qual a teoria da causalidade parte também) de que só serão susceptíveis de indemnização os danos consequentes de uma conduta que se revele verdadeiramente como condição da sua produção, não se podendo retirar daí que todos os que cumpram estes requisitos serão obrigatoriamente indemnizáveis, como pretende a teoria da equivalência das condições. Por outro lado, o recurso a um juízo de probabilidade afasta a pura condicionalidade, tendo a condição no plano fáctico de se revelar como tal num plano abstracto. A própria história deste preceito legal é bem reveladora da manifesta intenção do legislador em consagrar a causalidade adequada, sobretudo tendo em conta os elementos à disposição relativamente aos trabalhos preparatórios do Código e às discussões concretas e torno deste preceito. Desde logo, foi clara a intenção do legislador de consagrar a fórmula defendida por PEREIRA COELHO, segundo a qual a causalidade tem sempre como requisito mínimo a pura condicionalidade, à qual a prognose objectiva só acrescentará uma nova delimitação de âmbito. Trata-se, para recorrer às suas próprias palavras, de um «mais que acresce à pura condicionalidade».41Isto mesmo decorre dos Acórdãos de 29-04-99 e de 07-04-2005, ambos do Supremo Tribunal de Justiça, já anteriormente analisados. Em todo o caso, tal não poderá ser ignorado, a redacção do art. 563º é bastante infeliz, dando a entender a opção por uma formulação que não estava manifestamente no espírito do legislador. Ou, no mínimo, consagrando uma fórmula dúbia, que pode suscitar as maiores dúvidas na resolução de casos concretos.42 De facto, apenas recorrendo a estes elementos e procurando assim “reconstruir a parir dos textos o pensamento legislativo” poderemos interpretar o sentido da norma como consagrando a causalidade adequada. Tomando em conta este mesmo preceito, PESSOA JORGE elabora um raciocínio muitíssimo interessante, que subscrevemos na íntegra. Por um lado, comenta este ilustre Professor, «os danos que provavelmente o lesado não teria tido se não houvesse a lesão, eram…todos, como excepção apenas daqueles que, mesmo sem a lesão, se teriam produzido. Mas isto é a teoria da equivalência das condições. Por outro lado, refere que importa, «para salvar o art. 563º, reconhecer que nele se consagrou a teoria da causalidade adequada, pois, ao empregar a palavra “provavelmente”, o 41 Sobre este ponto ver Pereira Coelho, Francisco, O problema da causa virtual na responsabilidade civil, Coimbra editora, Coimbra (1955), nota 19 da Introdução 42 Antunes Varela, Das Obrigações…, cit., pp. 897-898

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legislador quis afirmar uma ligação positiva, em termos de juízo de probabilidade, entre o facto lesivo e o dano». Em todo o caso, fica bem patente a infelicidade deste artigo, pois «não se trata de dizer a mesma coisa sob a forma negativa, mas sim de dizer o contrário, procurando todavia consagrar a teoria da causalidade adequada em sentido igual ao que o legislador veio a dar-lhe».43

Não obstante perfilharmos, no essencial, a teoria da causalidade adequada, pensamos ser necessário acrescentar-lhe duas correcções fundamentais, sem as quais não poderá funcionar adequadamente. Uma, que tem sido aceite pela generalidade da doutrina, prende-se com a referência ao processo causal. Mais especificamente, queremos com isto significar que a adequação da causa, em termos de previsibilidade abstracta, não se reporta exclusivamente aos dois «pólos do processo causal», isto é, «não abrange apenas a causa e o efeito isoladamente considerados, mas todo o processo causal».44

De facto, nos termos puros em que surgiu, a teoria da causalidade adequada parecia surgir que o segundo patamar de análise da causalidade, isto é a previsibilidade abstracta dos danos ocorridos, tinha como únicas variáveis o facto lesivo e os danos ocorridos. Previsível seria que, do ponto de vista de um juízo de probabilidade, determinado facto fosse idóneo para produzir aquele dano. Recorrendo mais uma vez ao exemplo de escola. Se A dispara sobre B, a curta distância e em órgão vital, tendo este que ser transportado para o Hospital, quando a ambulância em que segue se despista violentamente e lhe provoca a morte, então não será imputável a A o dano morte de B. Porém, repare-se que, não só o facto é em concreto condição do dano, como seria previsível, segundo as regras da experiência comuns, que aquele facto originasse aquele resultado. Porém, este requisito alerta-nos para o facto de não bastar que se concretize o dano previsível, sendo exigível (para efeitos de imputação de responsabilidade) que tal ocorra segundo o processo previsível e tipicamente adequado para tal. Deve-se, no entanto, ter em conta o seguinte: quando se postula a exigibilidade de o dano ocorrer segundo o processo previsível ou típico, não se exige que ocorra pelo mais provável de todos, produzindo-se automaticamente um efeito de exclusão sobre todos os outros. O que se exige é que o dano se produza segundo uma das vias «razoavelmente prováveis», segundo um processo previsível (embora o possa ser em menor grau do que outro), que possibilite a exclusão de circunstâncias completamente anómalas e extraordinárias.

43 Pessoa Jorge, Ensaio…, cit., pp. 410 e segs. e nota 374 44 Id., Ibid., pp. 394-395

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Se A atira B de uma ponte, com muitos metros de altura, e ele vem a morrer não por afogamento ou no embate com a água, mas porque embate num dos pilares da mesma ponte, não poderemos excluir a responsabilidade de A pelo resultado morte de B. Embora B não tenha falecido pelo processo mais frequente, não se pode dizer que o processo pelo qual a sua morte se produziu foi anómalo ou completamente imprevisível. Em rigor, esse era um dos processos possíveis (e previsíveis, em abstracto) de causar esse dano, embora não fosse o mais provável ou típico. Outra correcção que nos parece relevante fazer à teoria da causalidade adequada prende-se com a clássica distinção entre dano real e dano patrimonial, bem como a relevância desta distinção para efeitos de aplicação da causalidade. Ao contrário da anotação anterior, não acompanhamos aqui a totalidade da doutrina que sobre a matéria se tem debruçado. Consistirá nisto, porventura, a originalidade deste nosso estudo. Atentemos sobretudo nos termos: tem-se considerado dano real o prejuízo material, in natura, aqueles danos analisados numa óptica puramente naturalista, mesmo física. Não há aqui nenhuma relação com as consequências económicas, com os danos pessoais, enfim, com o processo causal que a partir de então se desenrolou. Danos reais são, podemos dizê-lo, os puros factos verificados. São as amolgadelas provocadas pela colisão de um veículo, a destruição do vidro de uma loja comercial, o corte provocado por uma agressão de faca. O dano patrimonial, por sua vez, é a expressão económica (susceptível de avaliação pecuniária) do dano real ou, por outras palavras é a influência que o dano real exerceu no património do lesado. Assim, nos denominados danos patrimoniais integram-se os custos da reparação do veículo, a compra de bilhetes de transportes públicos para substituição do carro, a impossibilidade de transportar o familiar doente ao hospital e que, na falta, determinou o aluguer de um táxi. Trata-se, no fundo, de duas faces da mesma moeda, de olhar para uma mesma realidade de duas ópticas distintas: uma de cariz naturalista e outra de índole económica. 45

Não é esta a altura de apresentar as dúvidas que temos relativamente à relevância e mesmo à legitimidade desta distinção. É, sim, de criticar a utilização que dela tem sido feita para efeitos de aplicação da teoria da causalidade adequada. Tem-se dito que, para averiguar se um determinado dano é ou não consequência de um facto – recorrendo à causalidade adequada – deverá ter-se em conta o dano real e apenas este. O dano patrimonial serviria apenas para efeitos de cálculo de indemnização.

45 Menezes Leitão, Direito…, cit., pp. 294-295; Ribeiro de Faria, Direito…, cit., pp. 481-482; Antunes Varela, Das Obrigações…, cit., pp. 591-592

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Atentemos então nas palavras da mais considerada doutrina portuguesa na matéria. PEREIRA COELHO, que estudou aturadamente a matéria da causalidade para efeitos de responsabilidade civil, pronuncia-se da seguinte forma: «Cremos que o problema da causalidade que se nos põe aqui é o problema da relação de condicionalidade entre o facto constitutivo de responsabilidade e o dano real verificado.»46

ANTUNES VARELA é também bastante explícito ao considerar que «é a noção de dano patrimonial que interessa ao problema do cálculo de indemnização por equivalente. Mas já é o dano real, como prejuízo in natura, que interessa ao problema da causalidade (…)».47

Também ALMEIDA COSTA parece não ter dúvidas nesta matéria, considerando que «ambas [as modalidades de dano] interessam ao regime da responsabilidade civil: é o conceito de dano real que se utiliza no problema da causalidade, mas, ao invés, para a determinação da indemnização, parte-se do dano de cálculo (ou patrimonial)».48

Sem se pronunciar directamente sobre a matéria em causa, GALVÃO TELLES parece ter presente a mesma ideia, ao ensinar que, no que toca aos danos patrimoniais, «é a avaliação subjectiva que importa, pois é ela que corresponde aos prejuízos efectivamente sofridos pelo lesado e são esses prejuízos que cumpre reparar.»49 Desta forma dificilmente se poderia considerar os danos patrimoniais em sede de causalidade, como será facilmente compreensível. Contestamos, no entanto, esta posição, não obstante colher o apoio de respeitadíssimos nomes da doutrina jurídica portuguesa. Parece-nos a nós que também o dano patrimonial deve ser tido em conta em sede de causalidade, e não apenas o dano real. Por outras palavras, o dano patrimonial não deve servir apenas como critério exterior e posterior ao processo de causalidade, devendo antes ser parte nesse mesmo processo. Em suma, dano real e dano patrimonial devem ser ambos tidos em conta na delimitação dos danos indemnizáveis, pelo processo da causalidade adequada. Ilustramos a nossa posição, como superior clareza, através de dois exemplos.

Imaginemos que A, de 14 anos, convida o seu amigo B, mais novo um ano, para um jogo de futebol nas traseiras do prédio onde ambos residem. Ambos são entusiastas do futebol, para além de jogarem frequentemente um contra o outro, pelo que a disputa é, como sempre,

46 Pereira Coelho, Francisco, O problema.., cit., p. 224 47 Antunes Varela, Das Obrigações…, cit., p. 593 48 Almeida Costa, Direito…, cit., p. 518 49 Galvão Telles, Inocêncio, Direito das Obrigações, 7º ed., Coimbra editora (1997), p. 389

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aguerrida, até com alguma agressividade, como é própria de dois verdadeiros atletas. Quando já se começava a fazer tarde, B, irritado com o desenrolar de todo o jogo – sofria golos de forma inacreditável e, apesar da sua superioridade técnica, a bola não quis entrar nem uma vez na baliza de A – deu um potente chuto na bola em direcção a uma movimentada estrada que passava mesmo em frente. A bola, como seria de esperar, foi colhida por um carro em grande velocidade, que a deixou completamente destruída. A veio então dizer que a bola que B destruiu foi a bola onde PÉLE deu o primeiro chuto e que era portanto estimada num valor elevadíssimo, até pelo seu valor histórico e museológico. Quid juris? Recorrendo à teoria da causalidade adequada, não parecem restar dúvidas quanto à solução. Por um lado, o chuto dado por B na bola foi condição concreta da destruição da bola (se o B não tivesse chutado a bola para a estrada ela não teria, com toda a probabilidade, sido destruída). Por outro lado, e tendo em conta apenas o dano real (como advoga a doutrina), era também, em abstracto, previsível que um chuto numa bola para um estrada movimentada produzisse a sua destruição (dano real). Logo, B teria que indemnizar A do valor da bola, qualquer que ele fosse, se a reconstituição natural não for possível (art. 566º CC), o que certamente ocorreria neste caso. Não cremos, porém, que seja esta a melhor solução, nem a solução mais justa, ainda que se possa considerar estar consagrada na lei. A correcção que aqui fazemos prende-se com o seguinte: a previsibilidade abstracta, o juízo de prognose póstuma ou o «prognóstico objectivo retrospectivo» – pedindo emprestadas as palavras do ilustre RAMELIN50 – não deve incidir apenas sobre o dano real, mas também sobre a sua patrimonialidade, logo sobre o dano patrimonial. Para que um facto seja causa adequada de um dano não deverá bastar que seja idóneo, em abstracto, a provocar as consequências que, no plano naturalístico, ocorreram, devendo exigir-se que o seja também quanto às consequências patrimoniais, dentro das mesmas regras do juízo de prognose póstuma. No nosso caso, se era previsível que o chuto de B provocasse aquele dano real (destruição da bola), já não o eram as consequências patrimoniais que para o A advieram daquele acto, pelas características especiais e particulares da bola. Logo, A apenas teria de indemnizar o B na medida da previsibilidade patrimonial do seu acto, que consistiria, aqui, no valor de uma bola comum de futebol.

50 Citado em Sidónio Pereira Rito, Elementos da responsabilidade civil delitual, Tipografia Freitas Brito, Lisboa (1946), p. 111

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Repare-se que este não é apenas, como pretende a doutrina maioritária, um problema de cálculo de indemnização, onde muitas outras circunstâncias – como sabemos – serão relevantes. Trata-se efectivamente de um problema de causalidade: o acto de B não é causa adequada do dano provocado a A, pelo que a indemnização deve fazer-se apenas na medida dessa previsibilidade, como já dissemos. Peguemos num outro exemplo. A, colega de Faculdade de B, solicita a este que lhe empreste o relógio porque vai ter um exame e, se não tiver com ele um relógio, descontrola-se com o tempo e não consegue sequer realizar o exame completo. B, compreendendo as razões do colega, empresta-lhe o relógio. Encarregar-se-á de pedir a C, colega de ambos, que entregue o relógio a A no intervalo antes do exame, visto agora o relógio também lhe fazer falta. Ao terminar o exame, A esquece-se do relógio de B sobre a secretária onde realizou o exame e, quando lá voltou, já havia sido furtado. B pede a A uma altíssima indemnização, visto aquele ser um relógio muito raro, que já nem se fabrica, tendo ainda alguns contornos a ouro bastante valiosos. Quid juris? Seguimos aqui a mesma lógica do exemplo anterior. Segundo a fórmula da generalidade da doutrina, a aplicação da causalidade adequada levará a que o dano seja indemnizável na totalidade. Repare-se: por um lado, a distracção de A foi condição do desaparecimento do relógio. Por outro lado, será em abstracto previsível que, se nos esquecermos de um relógio sobre a mesa abandonado, alguém aproveite para o levar. Logo, o esquecimento de A foi causa adequada do dano sofrido por B. Segundo o método que temos por justo, diremos: é certo que a omissão de A foi condição do dano; é certo que o dano real seria, em abstracto, previsível; porém, não seria previsível que, naquelas circunstâncias, B utilizasse um relógio de tal forma valioso. A própria acção de B, ao fazer passar o relógio por um colega, não indicia o valor que o relógio na verdade tem. Desta forma, não era previsível para A que o relógio tivesse tal valor, segundo um juízo de probabilidade objectivo, pelo que a indemnização apenas deverá incidir sobre a previsibilidade patrimonial ou, em suma, a previsibilidade do dano patrimonial. Temos, então, o dano patrimonial como verdadeiro problema de causalidade e não como um mero problema de cálculo. A principal razão que sustenta a inclusão do dano patrimonial no raciocínio da causalidade adequada é uma razão de justiça: se não é justo constituir-se uma obrigação de indemnização quando o dano resulta de

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«desvios fortuitos» e surge como «resultado de uma evolução extraordinária, imprevisível e improvável do facto»51, será justo que tal aconteça quando, fruto das circunstâncias, o valor do dano causado era altamente improvável, não obstante ser o próprio dano [real] previsível? É certo que alguma doutrina, onde figuram os nomes de PESSOA JORGE e MANUEL DE ANDRADE, chegou a falar da exclusão da «frustração de utilidades extraordinárias» do âmbito dos danos indemnizáveis. Seria o caso «de o prejuízo anómalo resultar, não de um desvio excepcional no processo causal, mas da utilização extraordinária de um bem, de que a lesão privou o respectivo titular».52

Duas notas, porém, serão suficientes para perceber a insuficiência deste critério. Por um lado, fica por preencher o conceito de “prejuízo anómalo” que, ou fica reservado à arbitrariedade do julgador e à sua sensibilidade económica (o que se afigura inadmissível com o princípio da segurança jurídica), ou é preenchido de acordo com as regras do juízo de prognose póstuma e então estamos já no domínio da causalidade. Por outro lado (estando este critério pensado sobretudo para os casos de responsabilidade contratual), pressupõe-se uma frustração de uma utilidade que aquele bem jurídico (danificado) só extraordinariamente facultaria ao seu titular. Trata-se de um gozo que o seu titular só a título excepcional teria. Seria o caso de ganhar um aposta de quinhentos euros se aparecesse com o carro para um grupo de amigos, o que não aconteceu porque o Stand, apesar de estar obrigado a entregar o automóvel naquele dia, se atrasou no procedimento. Repare-se: só excepcionalmente o automóvel renderia aqueles quinhentos euros, visto existir uma aposta nesse sentido. É isto a “utilidade extraordinária”. Porém, no caso, que apresentámos, da bola de futebol, não se trata de uma utilidade extraordinária que aquela bola facultaria ao seu proprietário, fruto de acontecimentos/circunstâncias exteriores. É o próprio valor da bola que está em causa, o que não pode ser considerado, de forma alguma, uma faculdade extraordinária. Por todas estas razões, consideramos indispensável proceder a esta correcção à teoria da causalidade adequada. Trata-se disto mesmo, uma correcção e não uma reformulação, pois no essencial o esquema da causalidade adequada permanece, a nosso ver, como o mais defensável. Por um lado, porque teoricamente se afigura tão coerente como todos os outros critérios. Por outro, e esta é sem dúvida a razão mais decisiva, porque é a única com a dosagem suficiente de complexidade e maleabilidade para conduzir a soluções concretas equilibradas e razoáveis. Este terá sido, de 51 Pessoa Jorge, Ensaio…, cit., p. 394 52 Id., Ibid., pp. 401 e segs.

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resto, o motivo principal que levou a jurisprudência a aderir, de forma espantosamente célere, a esta teoria, que da Alemanha se exportou com igual facilidade para toda a Europa.

André Ventura Sintra, 5 de Outubro de 2005

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Gil, Francisco Xavier Garcia, La Responsabilidad Extracontratual en la Jurisprudencia, Diles, Madrid (1997)

53 Somente se elenca a bibliografia citada e a principal bibliografia consultada

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Matielo, Fabrício Zamprogna, Dano Material, Dano Moral e Reparações, Ed. Sagra, DC, Luzzato, Porto Alegre (1995)

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Pereira Coelho, Francisco, O problema da causa virtual na responsabilidade civil, Coimbra editora (1955)

Pessoa Jorge, Fernando, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Almedina, Coimbra (1999)

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Von Savigny, Friedrich Karl, Obligationenrecht, Scientia Verlag Aalen, Berlim (1987)

Vários Autores, John Stuart Mill and Jeremy Bentham – Utilitarism and Other essays, Penguin Books (1987)

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