REFLEXÕES 17 30 de Agosto de...

8
REFLEXÕES 17 Domingo 30 de Agosto de 2020 Luís Kandjimbo |* Num texto de opinião escrito há cerca de dois anos considerei que alguns equívocos têm estado na origem da inconsistência de muitas políticas públicas no nosso país, em virtude de não se admitir que o recurso às ciências sociais e hu- manas seja útil, quando se torna necessário evitar efeitos deletérios das políticas públicas. Um desses equívocos dizia respeito à mal su- cedida iniciativa de construção do “Mercado do Peixe da Mabunda” e às dinâmicas da rede de distri- buição do pescado na província de Luanda. Chega-se a esta conclusão, quando se lê a tese de doutoramento do poeta e antropólogo Ruy Duarte de Carvalho cuja pesquisa foi de- senvolvida em 1984 na Kamuxiba, actual distrito da Samba, de que resultou o livro “Ana a Manda. Os Filhos da Rede”. Com o referido edifício as au- toridades municipais traduziam a bondade da sua decisão que visava apenas dar uma boa imagem ao distrito urbano e garantir uma me- lhor higiene na comercialização do peixe. De acordo com Ruy Duarte de Carvalho foram ignorados o papel das mulheres dos pescadores e as lógicas tradicionais antigas que modelam comportamentos no escoamento do peixe fresco, trans- formação do peixe fresco e o escoa- mento do peixe seco no principal centro de transacção: a praia do bair- ro, onde é desembarcada a produção dos pescadores de linha. Foi igual- mente ignorado o papel das mulheres dos pescadores na fixação de preços, tendo em conta a classificação do peixe enquanto mercadoria: peixe fresco para consumo; peixe fresco para secagem; e peixe seco. Ora, para o presente tópico vêem à colação a antropologia e a filosofia. São dois domínios do saber que não deviam ser negligenciados, tendo em conta a sua própria vo- cação: questionar a existência do homem integralmente, problema- tizar a realidade em todas as suas dimensões e examinar de modo crítico os conceitos utilizados para compreender as mulheres e os ho- mens que habitam um determinado território e respectivos comporta- mentos. Apesar de uma história associada ao colonialismo de que, no continente africano, resultou o seu banimento em 1973, por ocasião da conferência de investigadores e intelectuais africanos realizada em Argel, a antropologia recuperou o fôlego, em 1989, na cidade de Yaoundé, quando se constituiu a Associação Panafricana de Antro- pologia que passou a publicar a re- vista “The African Anthropologist”, (O Antropólogo Africano). Antropólogos e filósofos Existem hoje em Angola comuni- dades de especialistas dos dois re- feridos ramos do saber. A formação em ensino da filosofia teve início há mais de trinta anos no Instituto Superior de Ciências da Educação da Huíla e conta actualmente comum outro curso integrado na oferta formativa na Faculdade de Letras da Universidade Agos- tinho Neto. O curso de antropo- logia é oferecido pela Faculdade de Ciências Sociais da Universi- dade Agostinho Neto há duas dé- cadas. Apesar do número reduzido de especialistas, essas comuni- dades não são desprezíveis. A conversa para a qual convido o leitor, tal como se enuncia no tí- tulo, tem a ver com um sentimento de profunda desolação. Observo com frequência que as narrativas noticiosas dos órgãos de comuni- cação social e alguns eventos dis- cursivos atribuídos a profissionais de saúde e concidadãos que exercem funções públicas, veiculam ex- pressões depreciativas e pejorativas acerca das pessoas que, por força da sua condição social, não cum- prem as recomendações de pre- venção contra a pandemia. Mas essa atitude repreensiva também não contribui para o sucesso da luta contra a Covid-19. Por que razão ocorrem tais juízos depre- ciativos e de repugnância? Quanto a mim, o problema reside no seguinte. Em primeiro lugar, a concepção de saúde pública parece obedecer aos dogmas paradigmá- ticos do chamado “Norte Global”. Em segundo lugar, o conceito de doença com que se opera não tem em conta a cultura das populações. Em terceiro lugar, a abordagem epidemiológica da doença está an- corada à perspectiva estrita das ciências médicas e outras mais próximas ou conexas. Isto significa dizer que a pandemia da Covid- 19 declarada pela Organização Mundial da Saúde suscita uma outra abordagem. Pode dizer-se que o combate à Covid-19 solicita a in- tervenção de uma antropologia fi- losófica. Aliás, enquanto escrevia este artigo, ocorreu um acaso feliz. O Governo angolano acabou de consagrar o pluralismo de sistemas de saúde com a integração da me- dicina tradicional. Diálogo interdisciplinar As teorias epidemiológicas do século XX já incorporavam experiências que traduziam o diálogo interdis- ciplinar com os referidos domínios do conhecimento para a determi- nação da rede de causas das doen- ças, eficácia da sua prevenção e erradicação. O combate de doenças infecciosas no período colonial, a título ilustrativo, contava com alguns médicos especializados em medi- cina tropical, apesar dos precon- ceitos então predominantes da “racialização” da doença praticada pela antropologia física colonial. Em meados da década de 60 do sé- culo passado, fui testemunha do esforço a que foram forçadas as autoridades sanitárias coloniais, no que diz respeito à implantação de uma saúde pública assente no co- nhecimento das realidades idios- sincráticas das famílias angolanas, nomeadamente, as relações de pa- rentesco. Trata-se do caso de uma prima minha, residente no Cubai, que tinha contraído a doença causada pelo bacilo de Koch. Em conse- quência disso, os meus tios envia- ram-na para a cidade de Benguela. Por recomendações dos médicos do dispensário anti-tuberculose, ela foi viver em nossa casa, num bairro situado a quarenta minutos do referido dispensário. Após a con- clusão do tratamento ambulatório, a prima Kasinda teve alta, regressou ao Cubal. Mas em nossa casa reinava saúde plena. Percebia-se que a vi- gilância epidemiológica integrava uma componente “etnográfica”, num reconhecimento tácito de que as doenças têm sempre uma di- mensão cultural. A antropologia da saúde cujo objecto são as interacções que se estabelecem entre a biologia e a cultura adquiriu autonomia cien- tífica na década de 70 do século XX. Enquanto disciplina da for- mação especializada é ministrada como antropologia médica, por exemplo, no mestrado em saúde pública da Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto. Por essa razão, não se compreende que seja marginal a importância atribuída às populações e respec- tivas culturas, enquanto detentoras do direito à saúde e destinatários últimos das políticas de saúde pú- blica. Em todo o caso, os epide- miologistas angolanos ou estrangeiros têm a obrigação ética de conhecer o mundo cultural em que vivem as comunidades titulares do direito à saúde. No caso dos angolanos e angolanas isto assume a forma de autoconhecimento. A sua ausência dá origem à repro- dução de modelos que não se ade- quam às necessidades de assistência médica das populações. A indiferença das comunidades perante a alarmante e devastadora pandemia não pode ser comparada àquela que se observa em outras partes do mundo. O comportamento negligente dos nossos concidadãos requer in- terpretações pertinentes e articu- ladas. Existe alguma razão para explicar e compreender a aparente resistência perante as recomen- dações de prevenção da Covid-19, doença que pode causar a morte. Tudo indica que a mensagem das autoridades sanitárias e dos pro- fissionais de saúde não está a ser inteligível, isto é, não está a chegar aos destinatários porque perde de vista a pessoa humana, a sua con- dição biológica e cultural. Por isso, é conveniente saber quais são as lógicas subjacentes, por exemplo, aos conceitos de saú- de, doença e morte como ferra- mentas analíticas com que se pensa os problemas desta pandemia. Pa- rece evidente que se opera com os esquemas conceptuais da Organi- zação Mundial da Saúde, de inves- tigadores e instituições de pesquisa do “Norte Global” cujos resultados são publicados em revistas espe- cializadas e com autoridade cien- títica, tais como a “The Lancet”. Ora, em que medida pode a dis- cussão de conceitos ser importante? Debater os conceitos de doença A necessidade de dar uma boa res- posta a esta pergunta e a outras que lhe estão associadas vai justificando a importância da interdisciplina- ridade na operacionalização das teorias epidemiológicas. Situa-se aí a origem do desenvolvimento da filosofia da medicina, contempo- rânea da antropologia da saúde, de igual modo, negligenciada. A filo- sofia analítica da medicina é uma das suas emergentes derivações. Numa operação de dedução, chega-se ao conceito de doença consagrado pela Organização Mun- dial da Saúde, através da definição de saúde que é entendida como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfer- midade”.Nas circunstâncias ac- tuais em que paira no ar o medo da Covid-19, a morte parece ser definida como o efeito final do patógeno SARS-Cov-2 de que resulta uma doença clinicamente compatível, num caso provável ou confirmado, em que não haja uma outra causa de morte. A partir daí procede-se à combi- nação de uma família de unidades lexemáticas, tais como “pande- mia”, nova doença que vertigi- nosamente se espalha pelo mundo e para a qual não se tem imunidade; “epidemia”, surto de doença que se espalha num território circunscrito; “endemia”, em que o agente infeccioso é constante em determinada área geográfica ou grupo populacional; e “sindemia” que é a coexistência perniciosa de várias doenças e das condições de saúde de uma determinada população, em contexto de injustiça social e cultural. Todos estes conceitos de um modo geral trazem as marcas do discurso científico paradigmático para o qual contribui o prestígio das instituições ocidentais. Na filosofia ocidental da medicina eles constituem o resultado dos debates entre correntes como o naturalismo e o normativismo ou o realismo e o anti-realismo. O conceito de doença e o seu campo de aplicação resume-se a três perspectivas da enfermidade humana, designadamente, a pro- fissional, a pessoal e a social. Cultura, doença e sindemia Nas filosofias da medicina tra- dicional africana, elaboram-se esquemas conceptuais diferentes de doença a que subjazem de- terminadas visões do mundo. Por exemplo, na filosofia da me- dicina tradicional Umbundu, o conceito de doença analisa-se em quatro perspectivas etioló- gicas: “uveyi wasuku”, doenças naturais; “uveyi wolondele”, doenças causadas por espíritos; “uveyi wokulowa”, doenças cau- sadas por maldade de outras pes- soas; “uveyi wepata”, doenças genéticas ou resultantes da vio- lação de preceitos sagrados por parte da família. É possível des- cortinar aí uma antropologia fi- losófica que qualquer profissional de saúde deve conhecer. Desde logo, uma das suas manifestações é o carácter antropocêntrico do mundo, compreensível à luz do conceito de pessoa, “Omunu”.É exigível o seu domínio para su- cesso de qualquer política de saúde pública. Portanto, torna-se evidente que as dinâmicas globais da Co- vid-19 fazem apelo a uma larga perspectiva da antropologia filo- sófica, inspirando estudos inter- disciplinares em cujo centro das atenções esteja o homem biológico, social e cultural de tal modo que se possa transitar da visão pan- démica para uma nova visão sin- démica. É que as estatísticas vão demonstrando que a Covid-19 não é apenas uma doença que se dissemina vertiginosamente a nível planetário. Manifesta-se igualmente através de uma cons- telação de doenças que devasta a população já vulnerável devido a consequências de outras pato- logias, causa a morte quando ocor- rem situações silenciosas de injustiça social, económica e cul- tural, além do exercício injusto do poder ou biopoder que ataca o direito à saúde. . * Ensaísta e professor universitário DIMENSÃO CULTURAL DA DOENÇA Covid-19: pandemia ou sindemia? DR

Transcript of REFLEXÕES 17 30 de Agosto de...

Page 1: REFLEXÕES 17 30 de Agosto de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1499646593_fim-de-semana...2020/08/30  · 18 VIDA Domingo 30 de Agosto de 2020 Tinha apenas 17 anos mas já não

REFLEXÕES 17Domingo30 de Agosto de 2020

Luís Kandjimbo |*

Num texto de opinião escrito hácerca de dois anos considerei quealguns equívocos têm estado naorigem da inconsistência de muitaspolíticas públicas no nosso país,em virtude de não se admitir queo recurso às ciências sociais e hu-manas seja útil, quando se tornanecessário evitar efeitos deletériosdas políticas públicas. Um dessesequívocos dizia respeito à mal su-cedida iniciativa de construção do“Mercado do Peixe da Mabunda”e às dinâmicas da rede de distri-buição do pescado na província deLuanda. Chega-se a esta conclusão,quando se lê a tese de doutoramentodo poeta e antropólogo Ruy Duartede Carvalho cuja pesquisa foi de-senvolvida em 1984 na Kamuxiba,actual distrito da Samba, de queresultou o livro “Ana a Manda. OsFilhos da Rede”.

Com o referido edifício as au-toridades municipais traduziam abondade da sua decisão que visavaapenas dar uma boa imagem aodistrito urbano e garantir uma me-lhor higiene na comercializaçãodo peixe. De acordo com Ruy Duartede Carvalho foram ignorados opapel das mulheres dos pescadorese as lógicas tradicionais antigasque modelam comportamentos noescoamento do peixe fresco, trans-formação do peixe fresco e o escoa-mento do peixe seco no principalcentro de transacção: a praia do bair-ro, onde é desembarcada a produçãodos pescadores de linha. Foi igual-mente ignorado o papel das mulheresdos pescadores na fixação de preços,tendo em conta a classificação dopeixe enquanto mercadoria: peixefresco para consumo; peixe frescopara secagem; e peixe seco.

Ora, para o presente tópico vêemà colação a antropologia e a filosofia.São dois domínios do saber quenão deviam ser negligenciados,tendo em conta a sua própria vo-cação: questionar a existência dohomem integralmente, problema-tizar a realidade em todas as suasdimensões e examinar de modocrítico os conceitos utilizados paracompreender as mulheres e os ho-mens que habitam um determinadoterritório e respectivos comporta-mentos. Apesar de uma históriaassociada ao colonialismo de que,no continente africano, resultou oseu banimento em 1973, por ocasiãoda conferência de investigadorese intelectuais africanos realizadaem Argel, a antropologia recuperouo fôlego, em 1989, na cidade deYaoundé, quando se constituiu aAssociação Panafricana de Antro-pologia que passou a publicar a re-vista “The African Anthropologist”,(O Antropólogo Africano).

Antropólogos e filósofosExistem hoje em Angola comuni-dades de especialistas dos dois re-feridos ramos do saber. A formaçãoem ensino da filosofia teve iníciohá mais de trinta anos no InstitutoSuperior de Ciências da Educaçãoda Huíla e conta actualmentecomum outro curso integrado naoferta formativa na Faculdadede Letras da Universidade Agos-tinho Neto. O curso de antropo-logia é oferecido pela Faculdadede Ciências Sociais da Universi-dade Agostinho Neto há duas dé-cadas. Apesar do número reduzidode especialistas, essas comuni-dades não são desprezíveis.

A conversa para a qual convidoo leitor, tal como se enuncia no tí-tulo, tem a ver com um sentimentode profunda desolação. Observocom frequência que as narrativasnoticiosas dos órgãos de comuni-

cação social e alguns eventos dis-cursivos atribuídos a profissionaisde saúde e concidadãos que exercemfunções públicas, veiculam ex-pressões depreciativas e pejorativasacerca das pessoas que, por forçada sua condição social, não cum-prem as recomendações de pre-venção contra a pandemia. Masessa atitude repreensiva tambémnão contribui para o sucesso daluta contra a Covid-19. Por querazão ocorrem tais juízos depre-ciativos e de repugnância?

Quanto a mim, o problema resideno seguinte. Em primeiro lugar, aconcepção de saúde pública pareceobedecer aos dogmas paradigmá-ticos do chamado “Norte Global”.Em segundo lugar, o conceito dedoença com que se opera não temem conta a cultura das populações.Em terceiro lugar, a abordagemepidemiológica da doença está an-corada à perspectiva estrita dasciências médicas e outras maispróximas ou conexas. Isto significadizer que a pandemia da Covid-19 declarada pela OrganizaçãoMundial da Saúde suscita uma outraabordagem. Pode dizer-se que ocombate à Covid-19 solicita a in-tervenção de uma antropologia fi-losófica. Aliás, enquanto escreviaeste artigo, ocorreu um acaso feliz.O Governo angolano acabou deconsagrar o pluralismo de sistemasde saúde com a integração da me-dicina tradicional.

Diálogo interdisciplinarAs teorias epidemiológicas do séculoXX já incorporavam experiênciasque traduziam o diálogo interdis-ciplinar com os referidos domíniosdo conhecimento para a determi-nação da rede de causas das doen-ças, eficácia da sua prevenção eerradicação. O combate de doençasinfecciosas no período colonial, atítulo ilustrativo, contava com algunsmédicos especializados em medi-cina tropical, apesar dos precon-ceitos então predominantes da“racialização” da doença praticadapela antropologia física colonial.Em meados da década de 60 do sé-

culo passado, fui testemunha doesforço a que foram forçadas asautoridades sanitárias coloniais, noque diz respeito à implantação deuma saúde pública assente no co-nhecimento das realidades idios-sincráticas das famílias angolanas,nomeadamente, as relações de pa-rentesco. Trata-se do caso de umaprima minha, residente no Cubai,que tinha contraído a doença causadapelo bacilo de Koch. Em conse-quência disso, os meus tios envia-ram-na para a cidade de Benguela.Por recomendações dos médicosdo dispensário anti-tuberculose,ela foi viver em nossa casa, numbairro situado a quarenta minutosdo referido dispensário. Após a con-clusão do tratamento ambulatório,a prima Kasinda teve alta, regressouao Cubal. Mas em nossa casa reinavasaúde plena. Percebia-se que a vi-gilância epidemiológica integravauma componente “etnográfica”,num reconhecimento tácito de queas doenças têm sempre uma di-mensão cultural.

A antropologia da saúde cujoobjecto são as interacções que seestabelecem entre a biologia e acultura adquiriu autonomia cien-tífica na década de 70 do séculoXX. Enquanto disciplina da for-mação especializada é ministradacomo antropologia médica, porexemplo, no mestrado em saúdepública da Faculdade de Medicinada Universidade Agostinho Neto.Por essa razão, não se compreendeque seja marginal a importânciaatribuída às populações e respec-tivas culturas, enquanto detentorasdo direito à saúde e destinatáriosúltimos das políticas de saúde pú-blica. Em todo o caso, os epide-m i o l o g i s t a s a ng o l a n o s o uestrangeiros têm a obrigação éticade conhecer o mundo cultural emque vivem as comunidades titularesdo direito à saúde. No caso dosangolanos e angolanas isto assumea forma de autoconhecimento. Asua ausência dá origem à repro-dução de modelos que não se ade-qu am à s n e c e s s i d ad e s d eassistência médica das populações.

A indiferença das comunidadesperante a alarmante e devastadorapandemia não pode ser comparadaàquela que se observa em outraspartes do mundo.

O comportamento negligentedos nossos concidadãos requer in-terpretações pertinentes e articu-ladas. Existe alguma razão paraexplicar e compreender a aparenteresistência perante as recomen-dações de prevenção da Covid-19,doença que pode causar a morte.Tudo indica que a mensagem dasautoridades sanitárias e dos pro-fissionais de saúde não está a serinteligível, isto é, não está a chegaraos destinatários porque perde devista a pessoa humana, a sua con-dição biológica e cultural.

Por isso, é conveniente saberquais são as lógicas subjacentes,por exemplo, aos conceitos de saú-de, doença e morte como ferra-mentas analíticas com que se pensaos problemas desta pandemia. Pa-rece evidente que se opera com osesquemas conceptuais da Organi-zação Mundial da Saúde, de inves-tigadores e instituições de pesquisado “Norte Global” cujos resultadossão publicados em revistas espe-cializadas e com autoridade cien-títica, tais como a “The Lancet”.

Ora, em que medida pode a dis-cussão de conceitos ser importante?

Debater os conceitos de doençaA necessidade de dar uma boa res-posta a esta pergunta e a outras quelhe estão associadas vai justificandoa importância da interdisciplina-ridade na operacionalização dasteorias epidemiológicas. Situa-seaí a origem do desenvolvimento dafilosofia da medicina, contempo-rânea da antropologia da saúde, deigual modo, negligenciada. A filo-sofia analítica da medicina é umadas suas emergentes derivações.

Numa operação de dedução,chega-se ao conceito de doençaconsagrado pela Organização Mun-dial da Saúde, através da definiçãode saúde que é entendida como“um estado de completo bem-estarfísico, mental e social e não apenas

a ausência de doença ou enfer-midade”.Nas circunstâncias ac-tuais em que paira no ar o medoda Covid-19, a morte parece serdefinida como o efeito final dopatógeno SARS-Cov-2 de queresulta uma doença clinicamentecompatível, num caso provávelou confirmado, em que não hajauma outra causa de morte. Apartir daí procede-se à combi-nação de uma família de unidadeslexemáticas, tais como “pande-mia”, nova doença que vertigi-nosamente se espalha pelomundo e para a qual não se temimunidade; “epidemia”, surtode doença que se espalha numterritório circunscrito; “endemia”,em que o agente infeccioso éconstante em determinada áreageográfica ou grupo populacional;e “sindemia” que é a coexistênciaperniciosa de várias doençase das condições de saúde deuma determinada população,em contexto de injustiça sociale cultural.

Todos estes conceitos de ummodo geral trazem as marcas dodiscurso científico paradigmáticopara o qual contribui o prestígiodas instituições ocidentais. Nafilosofia ocidental da medicinaeles constituem o resultado dosdebates entre correntes como onaturalismo e o normativismoou o realismo e o anti-realismo.O conceito de doença e o seucampo de aplicação resume-sea três perspectivas da enfermidadehumana, designadamente, a pro-fissional, a pessoal e a social.

Cultura, doença e sindemia Nas filosofias da medicina tra-dicional africana, elaboram-seesquemas conceptuais diferentesde doença a que subjazem de-terminadas visões do mundo.Por exemplo, na filosofia da me-dicina tradicional Umbundu, oconceito de doença analisa-seem quatro perspectivas etioló-gicas: “uveyi wasuku”, doençasnaturais; “uveyi wolondele”,doenças causadas por espíritos;“uveyi wokulowa”, doenças cau-sadas por maldade de outras pes-soas; “uveyi wepata”, doençasgenéticas ou resultantes da vio-lação de preceitos sagrados porparte da família. É possível des-cortinar aí uma antropologia fi-losófica que qualquer profissionalde saúde deve conhecer. Desdelogo, uma das suas manifestaçõesé o carácter antropocêntrico domundo, compreensível à luz doconceito de pessoa, “Omunu”.Éexigível o seu domínio para su-cesso de qualquer política desaúde pública.

Portanto, torna-se evidenteque as dinâmicas globais da Co-vid-19 fazem apelo a uma largaperspectiva da antropologia filo-sófica, inspirando estudos inter-disciplinares em cujo centro dasatenções esteja o homem biológico,social e cultural de tal modo quese possa transitar da visão pan-démica para uma nova visão sin-démica. É que as estatísticas vãodemonstrando que a Covid-19não é apenas uma doença que sedissemina vertiginosamente anível planetário. Manifesta-seigualmente através de uma cons-telação de doenças que devastaa população já vulnerável devidoa consequências de outras pato-logias, causa a morte quando ocor-rem situações silenciosas deinjustiça social, económica e cul-tural, além do exercício injustodo poder ou biopoder que atacao direito à saúde..

* Ensaísta e professor universitário

DIMENSÃO CULTURAL DA DOENÇA

Covid-19: pandemia ou sindemia?

DR

Page 2: REFLEXÕES 17 30 de Agosto de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1499646593_fim-de-semana...2020/08/30  · 18 VIDA Domingo 30 de Agosto de 2020 Tinha apenas 17 anos mas já não

VIDA18 Domingo30 de Agosto de 2020

Tinha apenas 17 anos mas já não queriaouvir ninguém, incluindo a sua própriamãe. Saiu de casa para deambular pelasruas com os amigos, desistiu da escola,apenas queria beber, fumar, frequentarfestas onde tudo de mal acontecia e criar

desmandos durante a noite no bairroPrenda, na zona dos Lotes, onde nasceu ecresceu. Quem diria, são as voltas que o

destino dá, hoje Walter Ramos é mestre de“Dry Wall” e empresário bem sucedido

Alexa Sonhi

Um dia destes o tio de Walter Ramos, irmão mais velho desua mãe, que trabalhava por conta própria como técnico de“Dry Wall” - acabamentos decorativos de interiores comestuque e gesso - na esperança de resgatar o querido sobrinhoque sempre teve gosto por desenho, aproveitou a boa disposiçãodo rapaz e lhe pediu para o acompanhar. E este, sem saberpara onde iria, aceitou o convite.Convite este que lhe valeu uma profissão e o seu ganha-

pão efectivo. Porque mal entrou no apartamento onde otio estava a trabalhar apaixonou-se completamente pelaarte estampada nas paredes e pelas “ledes” azuis queofereciam luminosidade ao tecto da sala e “escorriam” pelocorredor da casa.“Walter, dá-me o martelo e a lixa, ajuda a puxar o fio,

agora dá-me a sanefa. Ajuda-me a montar... E prontos, otrabalho está concluído!”. A obra foi entregue ao cliente. Quando viu a satisfação

do dono da casa, Walter já sabia o que queria ser. Mestrede Dry Wall. “Também queria ser um técnico como omeu tio, e quem sabe, um dia ter a minha própriaempresa”, recordou.

Walter Ramos tem, actualmente, 28 anos de idade e éproprietário da empresa “Desilar- Designer interior”, cons-tituída há cinco anos. Mas quando começou, com 17 anos,era um simples ajudante do tio.“Como me apaixonei pela profissão, apostei seriamente

no trabalho. Queria aprender rápido. Passei a acompanharo meu tio em todos os trabalhos, por mais pequenos quefossem”, acentuou.Segundo Walter Ramos para beber, curtir com os amigos

ou fazer desmandos no bairro já não tinha tempo. Saía demanhã muito cedo e voltava ao final do dia. Algumas vezestinha de dormir na obra para cumprir o prazo de entrega.No dia em que completou um ano como ajudante principal

do seu tio, receberam uma grande obra, mas depois decomprarem e deixarem ficar o material no local, o tio passoumal e acabou por ficar internado no hospital.“Mas como precisávamos de cumprir o prazo de entrega,

porque o cliente já tinha pago tudo, então o meu tio olhoupara mim e disse: ‘Walter, eu sei que tu consegues, por isso,arranja dois miúdos ali no bairro e começa a fazer o trabalho,o que estiver mal, quando sair do hospital vou rectificar, jánão tenho como devolver o dinheiro do cliente’”.Com medo, porque nunca tinha feito sozinho um trabalho

de “Dry Wall”, Walter Ramos chamou dois amigos e, re-

cordando-se dos ensinamentos do tio, começaram adecorar com pladur a casa T7 de três andares. Ao fim dedois meses o trabalho estava concluído e bem melhor doque se esperava. Nessa fase Walter acabava de completar18 anos e os amigos tinham 19.“A previsão do término da obra era de um mês. O meu

tio além de habilidoso era muito rápido. Mas eu e os meusamigos, com medo de fazermos mal alguma coisa, reali-závamos os trabalhos com muito cuidado. Por isso demorámosdois meses para terminar, mas no final os donos gostarame aumentaram no cachet como forma de agradecimento”,lembrou Walter Ramos, sorrindo.

“Sou autodidacta”Walter trabalhou com o tio mais seis meses. Como queriamelhorar as suas técnicas, decidiu trabalhar sozinho parater mais tempo para investigar. Fez um curso intensivo de“Dry Wall” pela internet no Youtube e noutras páginas.“Fiz os possíveis para fazer amizade com cidadãos

chineses e turcos, porque na altura eram eles que maisfaziam trabalhos de Dry Wall. Fui aprendendo as suastécnicas, que agora tenho implementando nos meustrabalhos. Passo muito tempo na internet a ver páginas es-pecializadas, assisto programas que falam de decoraçãode interiores e procuro imitar. Posso dizer que me torneinum autodidacta em Dry Wall”, realçou o profissional. De acordo com Walter Ramos, a profissão de “Dry Wall”

exige muita criatividade. As coisas estão sempre a mudar eos clientes que viajam muito tendem a ser os mais exigentes,“por isso temos de acompanhar o passo para não cair namesma coisa, não basta apenas saber fazer, é preciso fazercom algum requinte”.Walter Ramos explicou que a sua arte exige muita cria-

tividade, é cansativa mas muito rentável. Os preços variamde 300 mil a 550 mil kwanzas, quando se trata de decoraçãode sala e corredor, e 700 mil kwanzas se incluir os quartos.Em média, os trabalhos duram de uma a três semanas, de-pendendo da dimensão da casa.Os clientes que mais solicitam os seus trabalhos estão

nas centralidades do Kilamba, Vida Pacífica e Sequele, bemcomo na Urbanização Nova Vida, Patriota, Benfica, Jardimdo Éden, Residencial Austin e nalgumas zonas do centroda cidade de Luanda.Por ter começado muito cedo, Walter conta que antes

as pessoas não acreditavam nos seus trabalhos. Quandomostrava alguma foto de um trabalho feito, diziam queforam os chineses que fizeram. Alguns o contratavam commuitas dúvidas. Mas hoje são os próprios clientes que orecomendam aos amigos. “Por isso, para mim, cada clienteé especial”, confessou.

Curso superiorWalter Ramos sempre foi apaixonado por desenho. Na ado-lescência bastava-lhe um papel e lápis que se punha logoa fazer rabiscos. Quando descobriu a paixão pelo “DryWall”, é assim que começou a ganhar dinheiro, decidiudar continuidade aos seus estudos, formando-se em En-genharia Civil.“Apesar da decoração com pladur ser o meu maior foco,

hoje eu também recebo dos clientes terrenos baldios para,no prazo de oito meses ou mais, dependendo do valor,entregar uma casa construída e devidamente decorada se-gundo as regras de Dry Wall”.

DR

“Dei trabalho a dez jovens

ex-marginais”

WALTER RAMOS, MESTRE DE “DRY WALL”

Page 3: REFLEXÕES 17 30 de Agosto de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1499646593_fim-de-semana...2020/08/30  · 18 VIDA Domingo 30 de Agosto de 2020 Tinha apenas 17 anos mas já não

VIDA 19Domingo30 de Agosto de 2020

Tirar a juventude do mundo do crime Na visão de Walter Ramos,muitas vezes o que falta navida de muitos jovens, prin-cipalmente aqueles de fa-mílias muito necessitadas,são as oportunidades. “Omeu tio me deu oportuni-dade de aprender, eu apro-veitei e aprendi bem. Hojefaço disso o meu ganha-pão”, explicou.

Por isso, faz parte do seuprojecto de vida recrutar jo-vens do mundo da delin-quência, que tenham vontadede aprender, para os instruire empregar, mudando assimas suas perspectivas de vida.E prova disso é o jovem Lou-renço Gomes, 30 anos, queusava droga e fazia e des-fazia no bairro Prenda e ar-redores. Hoje ele é um dosmelhores pintores e estu-cadores que Walter Ramostem na empresa.

Loló, como Lourenço Go-mes é carinhosamente tra-tado, é sempre o último aaparecer nas obras, exacta-mente para dar o toque final.Depois do técnico de pladure do electricista fazerem oseu trabalho, Loló entra emacção com a sua talocha,lixa e massa de acabamentopara estucar e lixar querseja a parede, quer seja otecto, deixando tudo bemmacio para que os rolos epincéis deslizem nas pare-des com as tintas Decor ouBarbote, dependendo dapreferência do cliente.

“Antes ficava frustradopor não saber onde tirar osustento da família. Semqualquer orientação, entreipara o mundo da delinquên-cia para conseguir o sustento,mas, graças a ajuda e con-fiança do meu amigo Walter,a vida ganhou outro ritmo.Agora tenho sempre traba-lhos para fazer”, contou.

Loló tem três filhos, tendoum deles necessidades es-peciais. Vive em casa arren-dada e é com o salário queganha mensalmente na em-presa “Desilar- Designer de

Interior” que consegue sus-tentar a sua família e cuidarda saúde do filho.

Walter Ramos empregana sua empresa mais 10 jo-vens, que também foramtirados do mundo da delin-quência. Estes trabalham co-mo electricistas, técnicos de“Dry Wall”, pedreiros, ladri-lhadores e simples ajudantesde obras, que, com as suashabilidades, conseguemtransformar uma simplescasa num lugar confortávelpara estar. Tudo por causada beleza da arte, feita compladur, que eles empregamnas paredes e tectos.

O jovem empresár ioaconselha os mais jovens,sobretudo aqueles que já es-tudaram e estão a espera deemprego no Estado, a seremmais criativos, a se reinven-tarem para ajudarem o pró-prio país a se desenvolver,“porque o Estado não podedar tudo, é importante quecada um de nós faça a suaparte, e acima de tudo, sejahumilde. Só com humildadeconseguimos aprender al-guma coisa”.

De acordo com WalterRamos, a época de confi-namento devido a pande-mia da Covid-19 trouxe-lhemais clientes. O facto daspessoas estarem confinadaspermitia-lhes observar me-lhor as necessidades da ca-sa, planear melhor as coisase acompanhar as obras.Walter garante que tem sidomuito contactado nos úl-timos meses.

“Mas os meses em que,geralmente, temos maisclientes vai de Outubro a Fe-vereiro. É nesta fase que ostrabalhadores começam areceber o décimo terceirosalário e outros bonos definal de ano. E gostam entãode investir esse dinheiro emobras na casa ou na comprade algum móvel. Nós sim-plesmente trabalhamos paraproporcionar o conforto aosnossos clientes”, sustentou.

DR

Page 4: REFLEXÕES 17 30 de Agosto de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1499646593_fim-de-semana...2020/08/30  · 18 VIDA Domingo 30 de Agosto de 2020 Tinha apenas 17 anos mas já não

ARTES20 Domingo30 de Agosto de 2020

VENDAS ONLINE E ENTREGAS AO DOMICÍLIO

Artesã adapta-se à nova realidadeA artesã Verónica Pedro vive um “novo normal”. A pandemia da Covid-19 levou-a a buscar alternativas criativaspara manter e expandir o seu negócio. Criou uma página no Instagram onde expõe e vende as suas criações. Atéum certo montante de compras, ela faz a entrega ao domicílio do cliente. É um caso de resiliência e de adaptação

às contingências impostas pelo novo coronavírus

Arcângela Rodrigues

Artesã há 10 anos, Verónica Pedroconfessou ao Jornal de Angola queneste período de restrições por causada Covid-19 muita coisa mudou.Ela teve de se adaptar para nãoperder os clientes. Tem se pautadopor aprimorar os seus conhecimen-tos. Recentemente, através de umcurso online, aprendeu a fazer laçosde cabeça para crianças.

“A arte parece algo simples, masnão é. Daí eu estar em constante ac-tualização para aprender bem os de-talhes”, afirmou, salientando queos detalhes é que diferenciam umaartesã de outra.

Com 42 anos, Verónica Pedrorevelou que se o seu trabalho formostrado por outra pessoa, atravésde um pequeno detalhe conseguiriaidentificá-lo. Para a artesã cadadia é um aprendizado e a criaçãouma terapia.

“Estar parada não faz parte demim. Em cada canto da casa ondeestiver, e até mesmo fora de casa,levo comigo o meu material paratrabalhar”, confidenciou, explicandoque desde pequena sempre gostoude fazer roupas para bonecas. “Qual-quer pedaço de tecido ou trapo ser-via-me para inventar alguma peça”.

Tempos difíceisApesar de se adaptar à nova rea-lidade, Verónica Pedro contou que,com o surgimento da pandemia daCovid-19 a aquisição de materiaispara o seu ofício tornou-se difícil.

Além de estarem escassos, quan-do aparecem os preços são cadavez mais altos.

A artesã faz de tudo um pouco:confecção de colares, brincos elaços de cabeça para criança, per-sonalização e bordados em rou-pas, entre outros serviços. Paravender os seus produtos teve decriar uma conta no Instagram.Os clientes, segundo disse, têm-lhe sido fiéis e, actualmente, oque mais vende são os laços decabeça para crianças.

Para fazer os laços Verónica Pedrousa ganchos do tipo “boca de pato”,punhos e fitas de gorgorão com es-tampa, pérolas, cola quente e ban-doletas. Mas as circunstâncias aobrigaram a adaptar os laços comfitas de cetim.

O preço das pérolas vai de mil adois mil kwanzas, o metro da fita degorgorão custa quinhentos kwanzas,um metro de organiza 3500, a em-balagem de punhos 1500, o conjuntode 12 bandoletas varia de 1500 a2000 kwanzas.

A artesã deu a conhecer que asentregas ao domicílio são feitas aosclientes que fazem compras até 10mil kwanzas, não sendo cobrada ataxa de deslocação.

Verónica Pedro é professora dePsicologia no segundo ciclo há 20anos. Antes de criar a sua página noInstagram comercializava os seusprodutos na escola onde lecciona,em creches e na igreja onde cultua.As suas irmãs e o esposo, disse, “têmapoiado na comercialização e di-vulgação dos produtos”.

O “pescador”, a isca e o peixe digital Tânia J. A. Costa |*

O aumento significativo do usoda Internet, do trabalho remoto ede aplicativos bancários contribuiupara um aumento do risco de ata-ques cibernéticos protagonizadospelos famosos criminosos virtuaisou hackers. Uma das diversas ma-neiras de o criminoso virtual agiré com a prática do método de“phishing” - o termo deriva dapalavra em inglês “fishing” quesignifica “pesca”- sendo o pes-cador o invasor e o peixe as in-formações que pretende obter.O pescador pesca informaçõesde extrema confidencialidade,usurpa os dados e age de formaincorrecta: essa analogia é a razãodo título deste texto.

Entretanto, lamentavelmente,assim como o vírus do novo coro-na- vírus que está sempre em cons-tante mutação ou a gripe que mudae transforma-se em cada ser hu-

mano, a “pesca” digital criminosanão tem ainda um método de pre-venção infalível. Os cibercriminososusam inúmeras iscas, algumas vezesdireccionadas a funcionários deuma empresa específica ou até mes-mo a pessoas singulares com acti-vidades online constantes.

Usando campanhas de emails,solicitando os dados pessoais; ouos aplicativos de Covid-19; ou a ins-talação de um software com ofertasde carros; ou a criação de ligações(links) com descontos fantásticosdurante o Natal ou, ainda, em qual-quer época festiva: é impossívelenumerar as infinitas técnicas usadaspelos hackerspara atrair o “peixinho”e fazer com que ele morda a isca.

Seguramente, por esta razão,diversas empresas apostaram naimplementação de políticas e regrasde conduta de cibersegurança paraconsciencializar e diminuir os riscosdos ataques virtuais, bem como in-formar os funcionários sobre asconsequências de um ataque.

Basta recordar o ataque infor-mático ocorrido na empresa pe-trolífera Sonangol, que deixou ossistemas informáticos paralisados.O que aconteceu foi que: “Desdea página observador.pt os “hac-kers” acederam a 700 computa-dores e privaram dos serviços deemail cerca de 500 funcionáriosda petrolífera, dos quais extraíraminformação privilegiada” (Obser-vador.pt 25/01/2020).

O ataque de pirataria terá deixadoa gestão da empresa desnorteada.A prática de roubo digital mostraque o mercado é malévolo. Noentanto, existem recomendaçõesindispensáveis para evitar dissa-bores e prevenir a nossa confi-dencialidade, mesmo que hajaquem diga que no mundo digitaljá não existe confidencialidade.Uma vez que entramos para essemar somos alvos de “pescadores”criminosos, que andam atrás dasnossas informações.

Neste sentido, trabalhar em te-

le-trabalho requer redobrar asnossas atenções e triplicar as me-didas de cibersegurança com vistaa mitigar as vulnerabilidades. Vistoque, muitas vezes, não nos en-contramos em escritórios bemequipados, que possuam protecçãocom aplicativos e ferramentasfundamentais que bloqueiam, ras-treiam e denunciam automatica-mente actividades suspeitas de“hacker”, a vigilância deve sermaior, porque estamos expostos.

É preciso considerar a ciberse-gurança como uma componentechave para o sucesso profissional emelhor desempenho nas organiza-ções. O apelo constante a uma culturade cibersegurança diminui os riscoscontra os novos golpes de “pishings”.

Embora já frisado que a segurançaonline não se consegue garantir a100 por cento, deve-se, ainda assim,seguir escrupulosamente as inú-meras medidas de prevenção re-comendadas pelas empresasadoptando comportamentos e prá-

ticas de segurança adicionais, comoforma de evitar ataques, nomea-damente: actualizações constantesdo software do computador, o usode um antivírus eficaz e com grandedesempenho, a alteração da pala-vra-chave de forma regular, optarpela autenticação em dois passose fazer “backups” diários.

Essas medidas embaraçam arede do “pescador”criminoso quese vê encurralado e impossibilitadode “pescar”. Todavia, no que con-cerne a cada um de nós, na suaexistência no mar digital, colaborare proteger-se contra as iscas docibercriminoso, identificando,corrigindo e denunciado atem-padamente todas as actividadessuspeitas de ciberespionagem,fraude e outras ameaças, garantemaior segurança de informaçãoe um singelo contributo para aconsolidação de um mundo di-gital saudável.

*Consultora de carreira e negócios

ALBERTO PEDRO | | EDIÇÕES NOVEMBRO

TELE-TRABALHO E AMEAÇA DIGITAL

Page 5: REFLEXÕES 17 30 de Agosto de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1499646593_fim-de-semana...2020/08/30  · 18 VIDA Domingo 30 de Agosto de 2020 Tinha apenas 17 anos mas já não

PROJECTO GRANDE REPORTAGEM 21Domingo30 de Agosto de 2020

| EDIÇÕES NOVEMBRO

Um grupo de cerca de trinta jornalistas angolanos inicia, em Setembro, umadigressão por dez províncias, ao encontro de projectos agro-industriais,

empresários e outros agentes do sector, num projecto da Rádio LAC denominado“Andar o País pelos caminhos da agricultura e desenvolvimento”

Leonel Kassana

Num momento de forteaposta na diversificaçãoeconómica em Angola, ospromotores do projectojornalístico, que já vai nasua terceira edição, pre-tendem a redução do “abis-mo comunicacional” comos agricultores, para me-lhorar o conhecimento dasua actividade, dificulda-des e expectativas. O desafio que é lançado

aos jornalistas é constatar“in situ” o potencial de cres-cimento e de desenvolvi-mento do sector agrícolaem Angola, olhando para adimensão de terras aráveis,diversidade climática e dis-ponibilidade de água, algoque resulta numa vastaoferta de produtos para omercado interno e com po-tencial de penetração nosmercados internacionais.“O projecto surge da ne-

cessidade e do interessepúblico de se produzir umainformação cada vez maispróxima da realidade”, re-feriu o coordenador, JoséRodrigues, em declaraçõesao Jornal de Angola.Na perspectiva dos or-

ganizadores dessa expedi-ção, de cerca de trinta dias,mesmo não sendo a pana-ceia para os actuais factoresde estrangulamento do sec-tor agrícola, o projecto jor-nalístico é, também, vistocomo um espaço adequadopara a visibilidade dos vá-rios projectos agrícolas“bem sucedidos”.Reconhecem, aliás, que

o desconhecimento, a fal-ta de uma apurada infor-mação jornalística sobrea “problemática agrícola”,resulta no descomprome-timento com as suas cau-sas, algo que pode afectar,

negativamente, os pres-supostos da diversifica-ção económica.A iniciativa tem, assim,

o mérito de conferir um es-paço importante à agricul-tura, na generalidade daimprensa e ajudar na defi-nição de agendas de cober-tura jornalística.

Projectos agro-industriaisComo se diz noutro espaçodesta peça, o projecto jor-nalístico “Andar o País”pretende passar por, pelomenos, dez províncias. Umas com forte tradi-

ção agrícola, traduzida naimplantação de projectosagro-industriais e outrascom grandes fazendas deprodução de cereais e hor-tofrutícolas, além de es-c o l a s q u e f o rm amtécnicos, a diversos níveis,para o sector.Em Luanda, a “Grande

Reportagem” começa peloProjecto Integrado de De-senvolvimento Agrícolade Quiminha, municípiodo Icolo Bengo, hoje res-ponsável por uma signi-ficativa parte dos cereais,tubérculos, frutas e ovosq u e a p o p u l a ç ã o d eLuanda consome. Esseprojecto fo i cr iado em2012, para a reintegraçãode 300 famílias campo-nesas que trabalhavamem condições difíceis.Depois, segue para a No-

vagrolíder, que se dedica àprodução de hortofrutícolas,as fazendas “Horta Verde”,Kwanza/Bengo, agropecuá-ria “Aurora” e outras uni-dades privadas, na rota desteprojecto, quando passarpela província do Bengo.Ainda no Norte de Angola

a rota da “Grande Repor-tagem” contempla os pro-jectos de DesenvolvimentoAgrícola do Negage e SanzaPombo, bem como as fa-

zendas Kimuanza e CaféCanjongo e o Grupo Mitrelli,na província do Uíge.Parte do planalto de Ca-

mabatela, no Cuanza-Norte,onde o Governo está a pro-mover um programa de re-p ovo amen t o d e g a d obovino, maximizando ascondições propícias para odesenvolvimento agrope-cuário, também será visi-tado pelos profissionais daimprensa. Oportunidadepara os jornalistas verem,também, a adaptação dogado, recentemente che-gado do Chade, numa alturaem que há registo de mortede alguns animais.O projecto de avicultura

familiar e as fazendas doMucozo, Pamado, Crisgun-za, Joana Helena, Juale eMário Marú, constam, tam-bém, do projecto.As fazendas agrícolas

Santo António, Nuviagro,Matogrosso, Vissolela, Agro-líder, Pérola da Cela, Amé-rica, Cleomas, Cambau,Mulundo e o projecto AldeiaNova serão “radiografados”nessa “Grande Reportagem”durante a passagem peloCuanza-Sul, província quenos últimos anos vem seafirmando, sobretudo, naprodução de cereais.Já em Malanje, a atracção

jornalística será os pólosindustriais de Quizenga,Capanda, fazendas Monte-negro, Horta Angola, PungoAndongo, Pedras Negras eCangandala, projectos agrí-colas Lucy Man, PIPE, Uni-canda e Castel, Biocom,entre outros.

Fazenda VinevalaNo Centro de Angola umdos “casos de sucesso” co-nhecido é o Projecto Vine-vala, que, no Bié, se dedicaà produção, em alta escala,de milho e batata. Será umdos principais atractivos e

está na rota da “Grande Re-portagem”, com as fazen-das Gaia Chilesso, Catenga,agro-industrial da Cama-cupa, Avipal Caluapanda eos projectos Terra do Futuroe de produção de arroz daCamacupa.No Huambo, o Instituto

de Investigação Agronó-mica e Veterinária, umainstituição de excelência,vai ser alvo do trabalho dosjornalistas, que se vão in-teirar do seu potencial, di-ficuldades e desafios. Osrepórteres deverão visitar,ainda, a Fazenda AgrícolaLoma e um projecto deagricultura familiar dese-nhado pela ADRA (Acçãopara o DesenvolvimentoRural e Ambiente).No Sul do país a “Gran-

de Reportagem” deverádeter-se na Huíla, paraconhecer o pólo agro-in-dustrial da Humpata e asfazendas Jamba, Falcope,Crescente, Fernando Bor-ges e NNN-Produção pe-cuár ia e c inegé t i ca . ACCGSA (Cooperativa deCriadores de Gado do Sulde Angola), os projectosagrícolas do Tchivinguiroe hortofrutícola de Cacon-da, bem como o complexoagro-industrial Laranji-nha, no Lubango, e as es-colas de regentes agrícolase de agricultura e desen-volvimento rural, cons-tam, igualmente, destaincursão jornalística pelosprojectos agrícolas.Uma amostra do que é

feito em Benguela no do-mínio agro-pecuário serávista nas fazendas agrícolasdo Dombe Grande, BomPastor, Utalala, “fazendamodelo” da Ganda, projectoHanja, pólo industrial doCubal, CCG (Cooperativade Criadores de Gado) enoutros empreendimentosda região.

“Andar o País” leva jornalistasa radiografar estado da agricultura

Segundo José Rodrigues, oobjectivo do projecto é levaros jornalistas à produção dematérias mais alinhadas coma realidade do campo. O coor-denador recordou que a pri-meira edição do projecto, em2007, esteve mais virada paraa “avaliação” do estado dasestradas, pontes, barragens,fábricas e outras infra-estru-turas vitais para os desafiosque o país teria pela frente.

“Este ano, elegemos a agri-cultura pelo simples e fun-damentado facto de ser umfactor determinante para odesenvolvimento do país forada ‘caixa’ do petróleo”, referiu.Acrescentou que, numa al-tura em que há incertezas àvolta do preço do petróleo,a produção de uma infor-mação que espelhe as po-tencialidades do sectoragrícola é mais do que sim-ples trabalho jornalístico.

“É quase uma obrigaçãodizer e mostrar que há vidafora do petróleo e das grandescidades, este é o objectivomaior”, sublinhou José Ro-drigues, indicando que, noessencial, o que “o jornalistaespera são respostas das pes-soas que trabalham na agri-cultura e que fazem dela oseu negócio”.

Disse esperar que osempresários, camponesese os responsáveis nas re-giões a visitar falem dosdesafios e, sobretudo, dacapacidade de resiliênciapara ultrapassar eventuaisconstrangimentos.

“Sabemos já que há mui-tas dificuldades no campo,mas também há assinaláveiscasos de sucesso, que podemser replicados noutras re-giões”, notou o coordenadorda excursão.

José Rodrigues explicouque o projecto conta comapoio institucional, sobretudo,dos ministérios das Teleco-municações e Tecnologiasde Informação e ComunicaçãoSocial e da Agricultura e Pes-cas, cujo titular instruiu os

representantes provinciaisa disponibilizarem os dadossobre os projectos relevantesnas diversas regiões.

Referindo tratar-se de uma“oportunidade ímpar”, paraser partilhada por outros ór-gãos, o jornalista adiantouque, além da agricultura, oprojecto vai permitir ver oactual estado das vias de es-coamento dos produtos doscampos para os grandes cen-tros de consumo nas cidadese vilas e os sistemas de água.“Dependendo da sua pers-pectiva editorial, os jornalistasterão um amplo manancialde exploração, a partir daspopulações rurais, das opor-tunidades de investimentoe outros ângulos”, adiantouJosé Rodrigues.

À pergunta sobre a opor-tunidade desse projecto jor-nalístico, numa altura dapandemia da Covid-19, ocoordenador mostrou-se tran-quilo, referindo que “estamospermanentemente atentosà evolução da situação, ten-tando adequar a reportagemàs condições que tivermos”.

“Partimos do princípio deque há-de chegar o momentoem que os homens vão terque ‘fazer’ a agenda do víruse não o contrário”, disse comoptimismo, reiterando quena concepção do projecto fo-ram ponderadas “todas aspossibilidades, através devários cenários”, destacan-do-se a Comissão Multis-sectorial de Combate àCovid-19, a quem foi solici-tada o apoio para a testagemde todos os integrantes dacaravana antes da partida.

José Rodrigues disse quea organização precisava de,pelo menos, mais duas via-turas e assegurou, para breve,a produção de eventos parao anúncio dos patrocina-dores. “É com eles que nosvamos ajustando à logística(alojamento, alimentação,transporte, combustíveis,comunicações e outros)”,concluiu.

Por que foi escolhida a temática agrícola

Page 6: REFLEXÕES 17 30 de Agosto de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1499646593_fim-de-semana...2020/08/30  · 18 VIDA Domingo 30 de Agosto de 2020 Tinha apenas 17 anos mas já não

LITERATURA22 Domingo30 de Agosto de 2020

David Capelenguela |*

Preservando em suas en-tranhas sensações, repre-sentações, conotações, mitosou realidades que o enfor-mam, a expressão das ondasdo mar, a tal água em buri-lação, dependendo do estadode alma de cada trabalhadorda palavra, é uma orquestracomposta por vários instru-mentos, de timbres diferentese particulares, mas revestidade harmonia e beleza cujaessência assenta num ex-traordinário compasso, po-lifonia essa que conforma aliteratura como inesgotávelidiolecto com páginas dignasde nota, feita e interpretadapor várias épocas e gerações.Ainda assim, entre buscarno mar mitos ou feitiços,cujo intervalo entre ambosse revela exíguo, quiçá, so-bretudo no imaginário con-c ep tu a l d o s a n c i ão s ,guardiões da memória, cren-tes na mitologia criada emtorno desse imenso espelhoaquático, o melhor, acon-selha-se, para quem querprezar-se como ferreiro afundir o seu ferro com o em-penho que o fole lhe pro-porc iona audaz , é nãoenveredar por esse caminho,mas, enquanto acção quelhe perpetua o discurso lírico,

engajar-se dele e sobre ele,indiciar o polir, labor oficinalda palavra, sobre as ondasque muralham de lá para cáe vice-versa, tecendo-lhereminiscências e, restau-rando o tanger sobre suasespumas, onde a celebraçãofestiva e ininterrupta do vire do ir pode equiparar-se àvinda à terra, enquanto lugardeterminado e cativo para onosso exercício de estar vivos,e do ir como expressão re-presentativa do retorno àterra, a morte:“Com o suor do teu rosto co-merás o pão, até que voltesao solo, pois da terra fosteformado; porque tu és pó eao pó da terra retornarás!”(Gênesis 3:19).

Africanidade literáriaSob o signo do anticolonia-lismo, movimento político-literário de valorização dasliteraturas africanas, ondeos ecos da negritude francesa,o negrismo afro-americano,o neo-realismo português eo modernismo brasileiro jo-garam um papel preponde-rante para o despertar deconsciências, os estudantesafricanos, entre eles os an-golanos Agostinho Neto, Má-rio Pinto de Andrade, AntónioJacinto e outros poucos, reu-nidos na Casa dos Estudantesdo Império de Lisboa (CEI),

tomaram como determinantea defesa da africanidade nocampo literário, servindo-se dessa actuação para a fun-dação do nacionalismonessas literaturas.Nos anos 60 e início de

70, face à intensa e crescenterepressão da PIDE (PolíciaInternacional de Defesa doEstado), para driblar a suacensura, em Angola, e nãosó, a literatura vai socorrer-se do labor de cariz meta-fórico, e, em muitos casos,com maior aprofundamentodo recurso à concisão, so-bretudo quanto aos recursosestético-formais e ao hibri-dismo linguístico, inaugu-rando a inserção de versos,nalguns casos inteiros, comreferentes culturais escritosem línguas africanas, afi-nando assim a dicção do hu-mor, sobretudo, para fazercrítica da realidade. Macu-lando e introduzindo ao por-tuguês interferências eexpressões do kimbundu,umbundu, kikongo e de ou-tras línguas de Angola, demodo a perpetuar os odorese saberes de identidade afri-canos na língua portuguesa,a poética de pendor acusa-tório celebrou-se como ogrito negro da rebeldia, e embusca das suas raízes. Aquelaliteratura, contundente, cla-mou contra a opressão e de-

nunciou a exploração colo-nial, afastando-se da correntedos cânones portugueses eda civilização europeia. Nasobras de Luandino Vieira ede Jofre Rocha, a título deexemplo, desde os anos 60e passando pelas décadassubsequentes, vamos en-contrar certa “petulância”,em que ao enveredar poresta forma de escrita, emboracada um afirmando-se porestilo próprio, a recriaçãoda língua portuguesa convivecom um cariz kimbundu sobforma de transcrição da falados habitantes dos musse-ques. Em iguais circunstân-cias, Pepetela, com o seuromance “Mayombe”, ele-va-se e alcança outras di-mensões, onde, para alémda perspectiva ideológicadas narrativas comprome-tidas com a utopia da Revo-lução, introduz o debate sobrea valorização universal dadimensão humana, critican-do o tribalismo e pontuandoo amor, o sexo e a amizade.Por sua vez, na poesia,

com os poetas Arlindo Bar-beitos, Ruy Duarte de Car-valho e David Mestre, paracitar apenas alguns, a ree-laboração estética é versadacom o aprofundamento dosentido hermético, rebelde,que vai introduzir o mar co-mo catarse da memória, on-

de, pela imensidão e carac-terística das suas águas, re-voltas, quando sob a formade gigantescas ondas, osolhos, na tentativa da buscada linha limítrofe, lacrimejame não alcançam o horizonte.Esse labor de concisão e eco-nomia da palavra é apresen-tado por Arlindo Barbeitoscomo fio condutor do reser-vatório mítico que os tira daterra natal e natureza afri-cana, passando pelo mesmotrágico Oceano Atlântico,que os levara às terras detrabalho forçado:“Olhos de peixe são teus

dedos / oh meu barco ohmeu barco / à busca de con-tinentes / ainda por descobrir/ se afundou o meu barco nomar de teu ventre / oh meubarco oh meu barco / olhosde peixe são teus dedos”(Barbeitos, p.53)Já para Ruy Duarte de Car-

valho, o mar, sagrado e con-sagrado, é perseguido poruma linguagem autónoma,que, dialecticamente, apelaàs derivações estilísticas quese ajustam entre o ético e oestético, recorrendo, per-manentemente, à inspiraçãoe reelaboração de expressõesque, ele próprio, Ruy Duartede Carvalho, designou por“expressão poética da tra-dição oral”. Desse ponto devista, o poeta desafia-se a

caminhar em frente, enfren-tando todas as peripéciaspara atingir o mar:“Vou caminhar em frente

até que atinja o mar. Não estemar que vejo à retaguarda,donde nos vem a brisa la-minar das tardes de Setem-bro, mentor do céu de brumaque nos maninha o chão.Eu vou seguir em frente e

ultrapassar o paredão das ser-ras, a cortina das águas quena distância acende a redobraangústia de uma possível es-perança”... (In A Decisão daIdade, Carvalho, p.55-56)Para David Mestre, este

mar, configurado como bus-ca de identidade própria, é,muitas vezes, eleito e cele-brado como espaço erótico,cujo labor estético se abrigaà sensualidade da mulherpara lhe atribuir, instadono exercício da meta poesia,a expressão dimensionaldo envolvimento amorosoe da fertilidade:

“Quiseste perder-te / emmeus braços / rompeste ocordame / e seguiste as es-trelas / pelo mastro // Co-roaste-me de sal / e conchasdo mar / namorado das se-reias / e noivo / da rebentação// Isto recordo / fora a cicatriz/ tatuada por tua / navalha/ de água.(In Subscrito a Giz,Mestre, p.62)

“WANGA WA MENYA”

O feitiço da água ou a poética do marConfigurando-se imenso espelho aquático, metáfora e signo de feitiços e mistérios, pela sua incalculável infinitude, omar, cujas águas são revoltas, algumas vezes, e calmas, em outras, quando, pelos rituais da tradição oral, se lhesfricciona a alma imaginária da essência que lhes caracteriza, traz, na sua linguagem interpretativa, aconchegos e

razão de exuberantes instantes de inspiração poética

Page 7: REFLEXÕES 17 30 de Agosto de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1499646593_fim-de-semana...2020/08/30  · 18 VIDA Domingo 30 de Agosto de 2020 Tinha apenas 17 anos mas já não

LITERATURA 23Domingo30 de Agosto de 2020

Mar da DipandaCom a chegada da Indepen-dência de Angola em 1975, omar, agora mar novo, a décadade 80 e o princípio da de 90,vieram trazer um olhar maisexigente e equacional, im-pondo-se com rigor ao per-petuar correntes como asimbolista-concretista, ondea subjectividade, com sensi-bilidade fina e requintada, as-senta na concisão e no formatodo verso fluído, em que asutopias voltam à ribalta, ini-cialmente para celebrarem aliberdade conquistada, e de-pois para marcarem o desen-canto na realidade económicae social, caracterizando, destemodo, a poesia desse períodopela superação do labor es-tético de cariz “cantalutista”e pelo desaparecimento dasreferências circunstanciaispresentes na poesia revolu-cionária.Radicaliza-se o pan-fletarismo ideológico e oprojecto de recuperação dalíngua literária, aproveitandoas suas virtudes intrínsecase universais, sem os regiona-lismos característicos da lite-ratura dos anos anteriores.Alcançada a metaconsciência,é aguçado o traço crítico, e apoesia, sobretudo, toma a as-censão e vigor na denúnciada corrupção e os atalhadosque enfermam a luta pelaso-brevivência para alcançar oslugares cimeiros nos círculosdo poder, ultrapassar a vul-nerabilidade e reforçar as ca-pacidades de resiliência.Rompendo, quase que de

forma contundente, com poe-tas das gerações anteriores,essa lírica aponta para a crisedas utopias e funda um novolirismo que procura cantaros sentimentos existenciais,revestindo-se de intensificaçãopoética, através da depuraçãoda linguagem literária em al-guns poetas.Ciosa de seu ofício, e sendo

que o poeta é um cisne quefoge da sensibilidade redu-cionista do fenómeno lírico,essa nova dicção faz recursoà emergente vida rural, numapoética liricamente orques-trada e revestida de sentidosantropológicos. Ana PaulaTavares escreve e inscreve-se contra os tabus, onde aabordagem desabrida domundo afectivo do amor, davida sexual, incluindo a suaexpressão erótica, é abordadocom grande subtileza e ta-lento que devem exorcizar aexploração da matéria e domaterial poético:

“Quando inventas o mar /sou eu que estou sentada / nacurva da baía / colhendo dosilêncio / a lágrima comprida/ que te desce pelas tranças// lavo o corpo / inaugura orio / enche com o eco da tristeza/ a lavra da vida / que se des-conta / morrendo // ... deixaque o fruto / De maduro / Tecaia no regaço.(In “Poesia An-golana de Amor dos Anos 80”,pp.32-33)

Kandjimbo e MaimonaExímio percursor do traçarestético-literário com rigor,Luís Kandjimbo faz parte, com

Lopito Feijóo K. e outros pou-cos, da Brigada Jovem de Li-teratura de Luanda, que sefraccionou em 1994, e cria o“Colectivo de trabalhos lite-rários Ohandanji”, uma ex-p r e s s ã o r e s u l t a n t e d acomposição por aglutinaçãodas palavras Ohanda, doum-bundu e Danji, dokimbundu,fi-g u rando - s e como umarepresentação figurativa dapedra onde se moe/tritura omilho, massango, massam-bala ou mandioca(caracte-r í s t i c a c omum n a scomunidades do interior deAngola), como forma de des-pertar para o afinamento nolabor da palavra poética, coma introdução de novos ele-mentos e tendências estéticas,discordando da mediocridadeque a escrita brigadista veioa adquirir, anos depois dafundação da BJL.Destacando-se, e toman-

do permanentemente a li-nha dianteira, sobretudodo ponto de vista do critériotemático e norteador, emque os aspectos da filosofiaafricana são acentuados eassentam no melhor da suarelevância, a poesia de LuísKandjimbo permeia a es-sência e substância do seuengajamento,alargando-sena sua triagem contextual,com elementos da busca ealcance em que os signosmetafóricos, e outros recur-sos estilísticos, marcam oseu lugar cativo e, por isso,são permanentemente con-vocados para dar robusteze recheio no instante de darvoz à vez do parto poético:

“O mar simboliza dor quan-do / estaciona nas trepidações/ da muralha // Ó Mar convertaângulos destilados aqui / nãohá sismos, nem estuários, nemdeltas / as praias dialogamamigáveis com frequência /das cantigas e traineiras depescado”...(In “Estrada da Se-cura”, Kandjimbo, p.18)É nessa ordem de ideias

que, enveredando pela pro-cura e afirmação de um rigorformal, uma escrita caracte-rística e própria, a poesia deJoão Maimona, desprendidae/ou des(continuada) com apercussão estética das geraçõesque o antecedem, ou até mes-mo aos da sua própria geração,nalguns casos, evidencia-sede forma fascinante, trazendoa lume uma espécie de evasãosemântica, conformando o ser,o estar e o sentido com o seuofício de poeta, como se domédico veterinário abstraís-semos a matéria surrealizante,que, por sua vez, vai abrir diá-logo entre o tema e a escrita,conferindo-lhe, assim, a novi-dade de uma reflexão intuitivae mágica, aliada a uma forçaelemental vitalizante:“deixarei a semana forjar

/ Raparigas de Natal / o Natalque se une às rochas. // dei-xarei amontoar em minhas /mãos dóceis / esqueletos domar. // deixarei a torre danoite / chorar e esperar / o arenchendo a morte do mar /pelos brinquedos do céu / atéque os dias se unam às noites.

// e deixarei a folha escutar /à porta fechada / a luz sombriada fornalha.”(In “As Abelhasdo Dia”, Maimona, p.21)

João Melo e AméliaDalombaA lírica desse tempo traduziufielmente os esforços de todauma geração de escritoresque primaram por exprimir-se com a arte, sobretudo nasua dimensão estético-sub-jectiva. A palavra, para estespoetas inovadores, foi ummero símbolo que, no entanto,encerrava uma pluralidadeinesgotável de sentidos aoponto de o seu significadocontextual afigurar-se ambí-guo. Logo, para apreendê-los,no instante da palavra poéticae, por extensão,a própria poe-sia produzida por essa geração,era preciso vencer a tentaçãoda adesão imediata e ultra-passar o sentido literal da pa-lavra para dela recriar a criaçãodo poeta. Esta quase reco-mendação tacitamente pa-tente na obra de João Melopode-se aferir de forma as-cendente desde a sua primeiraobra aos nossos dias, e, sendo,sobretudo, de pendor narra-tivo, revigora-se inovadora,tanto ao nível do aperfeiçoa-mento estético como na ur-didura figurativa da línguagem,onde o resgate e a recodifica-ção de signos de cariz angolanoinstaura e dinamiza a sua con-figuração verbal. Porque oexercício profissional, quasesempre, induz e acentua anossa veia artística, ou vice-versa, João Melo, enquantoprofissional da comunicaçãosocial, socorre-se da sua altura,no domínio profissional, paracom a sua pena abrigar-se ealbergar em si as mais diver-sificadas alegorias de lingua-g em e , p o r e x t e n s ã o ,introduzir, habilmente, mu-tações no próprio modelo desituação comunicativa:

“Navego à vontade no teudongo / aliso-lhe como sefosse uma mulher / primeiroo dorso as curvas / perfeitasda embarcação / por fim aspernas balançando / nervosascomo palmeiras / ah amada

o azul terrível do mar / estátodo nos teus olhos negros /eu ouço o grito da kianda / ex imb i co s em pa ra r s emparar.(In “O Caçador de Nu-vens”, Melo, p.46)Por sua vez, a poesia de

Amélia Dalomba, cuja carac-terística de elaboração estéticaé fortemente revestida de en-canto, fluidez e exuberância,carregada de vigor gradual eexpande a sensação de sen-tidos, sem tidos nem achadosna contra mão, mas, pela ac-ção da arte, ela faz e traz ofiocondutor em cada parto poé-tico,apartando e alcançandonovas conquistas e formatosde voo livre e aberto ao en-contro do leitor. A sua deli-cadeza estética, captada nolabor sonoro, frescura dopólen e linguagem silenciosado dizer, faz incidir, em cadaadejar, a dimensão da sua fée religiosidade cristãs, quasesempre vertida no sentido doapelo ao perdão, à reconci-liação e ao amor ao próximo,como queo pulsar do sangueem suas veias irrigasse emcada manhã, metaforizandode forma sintáctica, rítmicae sábia os significantes quese constituem em seu pano-rama de escrita:“Regresso / Regresso com sede/ das carícias / sede / das ca-rícias / subtilmente negadas/ regresso / regresso / conti-nuamente / sedenta / sedentaa olhar / olhar o mar / o hori-zonte / ignoto / a olhar / aolhar. (In “Sacrossanto Refúgio”,Dalomba, p.61)

Lopito FeijóPara muitos, o mar escondeperigos, ameaças, perdições,mas também é, sobretudo,um espaço de maravilhas ima-ginadas, do amor e, quiçá, deoutras espécies humanas ede outras galáxias, como estábem patente na poesia de Lo-pito Feijóo K., cuja característicade elaboração estética é pu-jante, carregada de vitalidadee arquitectada de significaçõese contornos ambivalentes. Va-lendo-se da sua irreverência,em seu “áspero ofício”, de vo-cação experimental,incidente

na paródia discursiva, de sig-nificação, humor e descons-trutividade, ou ludismo dossignos, nalguns casos, podeindiciar alguma perplexidadeao leitor, pois o resultado ine-quívoco, do riso ou da carica-tura, exigirá, no fim do confortode leitura, alguma “almofada”para quem o pavimento es-corregadio se possa vir assentarna acentuação da alma.De vocação experimental,

é muitas vezes referenciadocomo “rebelde”, dada a suaforma telúrica, irreverênciae boemia. Trajando a seu jeito,e, de preferência, de roupasde identidade africana, é destaque se adiciona a “pereline”,veste de reconhecimento co-mo membro internacionalnúmero 1 de uma das acade-mias do Brasil, fruto da suadedicação, internacionaliza-ção e persistência no labordiferenciado da palavra. E,bem dizia o poeta, “PambaN'zambinasceu um dia e nãomorreu mais”. “Nome importante da ge-

ração de 80, a chamada ‘Ge-ração das Incertezas’, assumea ruptura com os cânones se-mânticos e estéticos tradicio-nais, propondo uma estéticaassente numa linguagem dis-sonantemente metafórica eno experimentalismo visual.Com um estilo simultanea-mente satírico e irreverente,a sua “poeísis” é caracterizadapor um profundo teor lírico.Lopito Feijóo K, trabalhadorda palavra, atento e de sen-sibilidade apurada para por-menores culturais, é um artistade grande alcance e signifi-cado no contexto do percursoliterário angolano, se buscado,alcançado e percebido na suamais íntegra expressividadehermético-poética. Ao con-trário da dicção mais discur-siva, retórica, de conteúdopolítico directo, que esteveem evidência nos anos 60 e70, João André da Silva Feijó,de sua graça, move-se em váriossentidos, buscando uma rein-venção da sintaxe e a forçamântica das palavras. A lin-guagem poética, arrojada, masassente e bem alojada, trans-formou-se em leitura críticaou expoente descritiva da rea-lidade cultural angolana e nãosó, onde a transmissão oralganhou espaço e coexiste comoutras formas de realizaçãopoética, já que, morando juntoao mar, ama-o do seu jeito:“Amor à mar / Encostar-se amargem / de língua molhada/ calor. Ar / dor / consinta comsiso / / que eu beijei / noslábios da tua / outra(cando-rosa) boca!”(In “Cartas deAmor”, Feijóo K., p.37)

Poesia síntese do mundoA preocupação com o esta-belecimento ou (re)afirmaçãode uma identidade represen-tativa do “universo” angolanopassa, inevitavelmente, pelaconstrução de uma cenografiacapaz de relacionar as dimen-sões do discurso às questõessócioculturais que subjazemna literatura. É deste modo

que a literatura, sendo umexercício em que, para lherender a excelência, o escritor,no auge da sua criatividade,se deve revigorar com o pas-sado histórico, para com opresente convocar as deter-minantes sensíveis, descom-plexar o mundo, abstrair osentido e a essência da arte,usufruindo-se dela para lheinduzir a respiração e o mo-vimento, razão da vida. Estasensibilidade, complexa,no seu fluxo, explica a gran-de dimensão de ser ela, aescrita, a mais íntegra ex-pressão da linguagem cria-t iva, sendo que, sem taldoseado, se tornaria frouxaou quase que inútil. Assim, o mar, limitado por

um muro de desconhecimentopara lá do qual se instala aperpetuação dos medos e osmitos, à medida que nos va-mos afastando do nosso ce-nário original, a terra, só aescrita, sobretudo a poesia,nesse pormenor, lhe supera,por convocar em seus versosa substância real do encantoe da vibração, já que ela, apoesia, muitas vezes referen-ciada como síntese do mundo,em sua ambição maior, em-preende a concisão da amos-tra e simultaneamente umarealidade que sugere a sínteseexpressiva de toda a literatura.É daí que, se “o pintor con-vencional que se vale da corpara impressão simbólica”impregna equilíbrio nos tonse sons para demonstrar quea criatividade tem maior sig-nificação do que a intençãoe que toda arte pressupõe ha-bilidade, mas nem toda ha-b i l i d a d e p r o d u z a r t e ,obrigatoriamente, as barreiraslinguísticas que separam ospovos são valorizadas, e é apartir delas que se forma ojuízo valorativo do conceitode cultura, personalidade, va-lores e identidades, eviden-ciando-as de diversas formas. Só assim é que o poeta,

instado no seu mais elevadoestado de “fundir o ferro”,compondo o seu poema comsensibilidade, delicadeza erequinte que se impõem, nasua modelação textual, deveconvocar, no seu labor, a pre-dilecção e “ a virtude e o ta-lento devem exorcizar àcincizão e orientar-se à ex-ploração do material poéticoao mínimo detalhe.”“Se as formas lapidares

estão historicamente asso-ciadas ao resumo da vida edo carácter de uma pessoa(oude um acontecimento)”1, “es-tas pequenas manifestações,mas de grande alcance e sig-nificado estético e poético,quando reproduzidas comsubtileza, mestria e arte parao texto, realizam a solenidadeda poesia e o seu cultor sepode orgulhar de lhe ter ren-dido a excelência” 2.

Poeta *Consultas1-(In “Subscrito a Giz”, David Mestre, p.17)2-(In “Brilho de Bronze”,Lopito Feijóoo K, p.24)

Page 8: REFLEXÕES 17 30 de Agosto de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1499646593_fim-de-semana...2020/08/30  · 18 VIDA Domingo 30 de Agosto de 2020 Tinha apenas 17 anos mas já não

CRÓNICA24 Domingo30 de Agosto de 2020

Dias Neto

O Presidente da República,João Lourenço, a 25 de Maiodeste ano, fazendo jus à famade bom xadrezista que os-tenta, fez mexidas no séquitoque o auxilia na árdua missãode governar o país. Entre asmovimentações, que o povopassou a designar por “dançadas cadeiras” pela frequênciacom que ocorrem, a exone-ração de Sérgio Luther Res-cova, do cargo de governadorde Luanda, ao qual fora no-meado a 2 de Janeiro de 2019,e a nomeação de Joana Linapara o substituir suscitarammais debates.De um lado, estranhava-

se a exoneração do jovemgovernador da capital pelofacto de tudo indicar que oseu trabalho corria sem so-bressaltos. No seu curto rei-nado, Luanda não conheceuas montanhas de lixo, que,no passado, já foram respon-sáveis pela exoneração dealguns governadores, emboraprevalecessem, ainda, a gri-tante falta de água potávelem muitas zonas, a vendadesordenada, o elevado nú-mero de crianças fora do sis-tema de ensino, etc, etc. Do outro, a estranheza foi

enorme porque a capital es-tava sob cerca sanitária háquase 60 dias por culpa doEstado de Emergência quevigorava desde 27 de Março,que passaria a Situação de

Calamidade Pública a partirdas zero horas do dia 26 deMaio, devido à pandemia daCovid-19, que, nesse período,entre nós, contava já com 69casos positivos e quatro mor-tes. Este facto, por si só, in-dependentemente do quevenha a ser o seu reinado,já coloca nos anais da históriaa segunda mulher a ocuparo cargo de governadora deLuanda, sendo que a primeirafoi Francisca do Espírito San-to, inquilina do Palácio daMutamba de 2008 a 2010.Ainda sobre o mexer das

peças por parte do PresidenteJoão Lourenço, a exoneraçãodo jovem governador fez res-suscitar espectros do passado,aqueles que alegavam queera proibido trabalhar bemem Luanda. Como a exone-ração ocorreu depois da re-moção da famosa grua doPrenda, que se encontravanaquela zona desde 1973,nas redes sociais vieram àluz muitos dichotes para ogovernador Rescova. Houve,inclusive, recordação dotambém jovem governadorJosé Maria Ferraz dos Santos,que teve o reinado mais curtoà testa da capital.José Maria governou

Luanda por seis meses, entre2010 e 2011. A sua exonera-ção, na altura, criou muitopaleio porque era um gover-nador que demonstravagrande interesse em mudaros erróneos paradigmas rei-

nantes então, destacando-se pelas visitas-surpresa quefazia às instituições públicas.A mais célebre foi a que feza um hospital público, onde,pelo anormalismo consta-tado, pôs fim ao consuladodo então “dono” do sectorda saúde em Luanda, o dou-tor Vita Vemba.O ressurgir do espectro

do passado triste, como éóbvio, meteu também o bomnome de Aníbal Rocha naboca das pessoas. Aníbal Ro-cha é o governador que maistempo esteve à frente dosdestinos da capital, 1997 a2002, e o único de que o povoguarda boas recordações. Nofalar popular, a sua exone-ração deveu-se ao facto deque o respeito que granjeavacriara inveja no então Pre-sidente, que o transferira paraa província de Cabinda.No nosso modesto ver, os

fantasmas do passado nãotêm razão de aparecer: a me-xida do exímio xadrezista éuma mera estratégia políti-co-eleitoral, visto que nosaproximamos, a passos lar-gos, das próximas eleiçõesgerais de 2022 e, pela reacçãoque teve a população da pro-víncia do Huambo à nomeaçãode Lotti Nolika a governadora,em substituição de Joana Li-na, lá, a estratégia foi tirocerteiro. Funcionou.E podemos ainda acres-

centar que, pelo facto de oEstado de Emergência mos-

trar-nos grande bulício ge-rado por mulheres nos mer-cados, a nomeação de umamulher para governar a pro-víncia de Luanda tem comofito “angariar” o voto femi-nino, que, numericamente,continua a ser o maior, nestacapital em que o partido go-vernante ganhou por apenas3-2 nas eleições passadas.Luanda, que teve Kundi

Paihama como seu primeirogovernador, 1991-1993, vistoque antes teve comissáriosmunicipais e, mais tarde,provinciais, sendo o últimoLuís Gonzaga Wawuty, 1988-1991, sempre tirou o sonoaos governadores por causados seus problemas sociais,derivados do seu elevado eacelerado crescimento de-sordenado e, também, pelofacto de ser a sede do poderpolítico, situação que, às vezes,cria muitas interferências notrabalho dos governadores.A nova inquilina do Pa-

lácio da Mutamba - edifícioque teve o início da sua cons-trução em 1890 e términoem 1911, com inauguraçãoa 31 de Janeiro desse mesmoano - que tomou posse noPalácio Presidencial da Ci-dade Alta a 28 de Maio, en-controu uma capital, paraalém dos problemas ineren-tes à cerca sanitária, comum número grande de de-sempregados, o que faz subiros níveis de criminalidadee prostituição, elevada falta

de salas de aula e muitos es-trangeiros ilegais. Há tam-bém muita gente a ganharo pão no mercado informal,como são os casos das zun-gueiras, kupapateiros, kan-guleiros, lotadores e dosmuitos bofieiros.Para piorar, na tomada de

posse, o Presidente João Lou-renço pediu à governadorapara não se atolar no combateà Covid-19. Deverá trabalharpara aumentar os postos detrabalho e resolver os demaisproblemas que enfermam acapital, que já deve contarcom 10 milhões de habitan-tes. Deste modo, para queJoana Lina seja uma peça doxadrez movida acertada-mente, deverá ficar menostempo no Palácio da Mu-tamba. Terá de “colocar motonos pés” a fim de conheceros verdadeiros problemasde Luanda. Se assim fizer, a nova go-

vernadora de Luanda nãoconquistará apenas o “votofeminino”, o que a tornarianuma auxiliar de peso doTitular do Poder Executivo,como também pregará o seunome no coração dos luan-denses, tal como o fez JoanaJosé Neto Roque, a afamadaJoana Pernambuco, que fa-leceu em Luanda em De-zembro de 2011, aos 86 anos,mas de quem se fala até hoje.Joana Pernambuco ganhoufama no tempo colonial comobailarina que riscava, com

destreza, todos os salões, e,também, como vendedorade doces e quejandos da cu-linária de Luanda. O bom dançar de Joana

Pernambuco eternizou o seunome na célebre música“Som Angolano”, de DomCaetano. Assim, caso tenhasucesso nesta árdua missão,e porque o Semba está aperder terreno para o Ku-duro em Luanda, a gover-nadora Joana Lina pode tero seu nome eternizado nu-ma música de Nagrelha, quetambém é uma figura míticada capital.Entretanto, se Joana Lina

não conseguir vestir fato-macaco e trocar o luxo doseu gabinete no Palácio daMutamba pela poeira dasruas de Luanda, ficará apenascom a fama de ter sido a pri-meira inquilina daquele his-tórico lugar a receber aspastas do seu antecessor como rosto mascarado, no dia 1de Junho de 2020, num actoque também ficou marcadopelas assertivas palavras doministro da Administraçãodo Território e Reforma doEstado, Marcy Lopes, quedisse que quem estivessecansado deveria pedir de-missão para não estragar otrabalho, chamando aindaa atenção para que os ser-vidores públicos se con-centrassem apenas notrabalho, deixando de ladoas intrigas.

COISAS E LOISAS DA “NGUIMBY”

A famosa Joana de LuandaPara que Joana Lina seja uma peça do xadrez movida acertadamente, deverá ficar menos tempo

no Palácio da Mutamba e “colocar moto nos pés”para conhecer os verdadeiros problemas de Luanda.Se assim o fizer, pregará o seu nome no coração dos luandenses, tal como o fez Joana José Neto Roque,

a afamada Joana Pernambuco DR