REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA SOCIAL DAS MULHERES NA ANTIGUIDADE TARDIA: O CASO DAS DEVOTAS CRISTÃS
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Cadernos de Clio, Curitiba, n. 4, 2013
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REFLEXES SOBRE A HISTRIA SOCIAL DAS MULHERES NA ANTIGUIDADE TARDIA:
O CASO DAS DEVOTAS CRISTS
Joo Carlos Furlani1
Resumo: Neste artigo, temos por objetivo refletir sobre a representao e as condies sociais em que se encontravam as mulheres entre o final do sculo III ao incio do sculo V no Imprio Romano. Para tanto, discuti-remos, num primeiro momento, o conceito de Antiguidade Tardia, bem como o contexto histrico da poca; para, num segundo momento, anali-sarmos o papel desempenhado pelas mulheres crists na sociedade roma-na. Nesse sentido, acreditamos ser possvel situar personagens femininas, que mesmo diante da repreenso atribuda s suas figuras, de certo modo, destacaram-se e tiveram voz em seu tempo. Palavras-chave: Antiguidade Tardia; Imprio Romano; Mulheres; Cristi-anismo; Condio social.
Introduo
A segunda metade do sculo III , tradicionalmente, considerada
como um momento de agudas transformaes do Imprio Romano, pro-
duzindo-se com rapidez alteraes de natureza econmica, religiosa e
poltica, o que proporcionou o surgimento de conflitos sociais que termi-
1 Graduando do curso de Histria da Universidade Federal do Esprito Santo. Membro do Laboratrio de Estudos sobre o Imprio Romano (LEIR) e do grupo de pesquisa em Histria de Roma da UFES. Atua na linha de pesquisa: Histria social do Baixo Imprio Romano, e no projeto Cidade, corpo e poder no Imp-rio Romano, sob orientao do prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva. Atualmente, desenvolve o subprojeto intitulado: Pobreza, caridade e liderana feminina na Antiguidade Tardia: o diaconato de Olmpia em Constantinopla. Contato: [email protected].
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naram por desestabilizar o Estado. Tal mutao, alm de gerar inquieta-
es, acarretou diversas alteraes na estrutura social do Imprio. Do pon-
to de vista religioso, intensificaram-se movimentos de desvalorizao do
mundo, com a irrupo de discusses cada vez mais acirradas. Por outro
lado, novas vises de Estado, sociedade e religio emergiram, ao passo
que papis sociais tenderam a se modificar de modo mais ou menos rpido
(Siqueira, 2010: 149-150). Esse perodo amide identificado como o
incio da Antiguidade Tardia. Entretanto, as diversas mudanas supracita-
das no ocorreram em um curto espao de tempo como se costuma afir-
mar, pois h pelo menos um sculo j detectamos indcios de transforma-
es que abrangem tanto a poltica quanto a religio, embora estas trans-
formaes tenham se tornado mais profundas nos sculos IV e V.
Inmeros seriam os aspectos do sculo III a IV a serem estudados.
No entanto, nos interessa destacar aqui questes relativas ao panorama
social tardo-antigo. Desse modo, nosso objetivo principal, neste artigo,
refletir sobre a representao e as condies sociais em que se encontra-
vam as mulheres entre o final do sculo III ao incio do sculo V, no Im-
prio Romano, analisando o papel que desempenhavam na sociedade.
Propomos-nos assim a analisar personagens que, mesmo diante da repres-
so que sofreram em virtude de serem mulheres, destacaram-se e tiveram
voz em seu tempo. Nesse sentido, alguns conceitos acerca da Histria das
Mulheres, como aqueles propostos por Michelle Perrot (1993), serviram
de apoio nossa pesquisa.
Perrot (1993) declara que as mulheres foram reprimidas por scu-
los, mas ressalta que sua histria no feita de violncias e submisses.
O status de vtima no resume o papel das mulheres na histria, que sa-
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bem resistir, existir, construir seus poderes (Perrot, 1993: 166). De acor-
do com a autora, no podemos generalizar o status feminino, devemos
compreend-lo em suas variadas facetas e identidades. No entanto, com-
preender a identidade feminina como uma multiplicidade dinmica de
papis sociais exige da anlise historiogrfica a visibilidade dos diversos
contextos que possibilitaram a construo do lugar feminino ao longo do
tempo (Caixeta, 2004).
Podemos perceber, ao analisarmos a Histria Social das Mulheres e
a produo terica sobre os estudos de gnero, que no existe um tipo
nico, mas representaes variadas das mulheres em cada espao-tempo.
Muitas vezes essas distintas representaes se articulam, assinalando uma
identidade feminina contraditria, complexa e dinmica, como a mulher
no lar, no trabalho, nos contextos de sociabilidade, no exerccio de sua
sexualidade e de atividades religiosas (Condilo, 2009). No nos prenden-
do aos diversos conceitos de identidade existentes, partimos do pressupos-
to de que a identidade feminina pode ser aquilo o que se diz e aquilo que
se reconhece como caractersticas pertencentes s mulheres de determina-
do perodo.
A Antiguidade Tardia, um momento de mudanas
Compreender a condio social das mulheres na Antiguidade Tar-
dia exige antes compreender o perodo a ser analisado, embora no pos-
samos nos aprofundar aqui nesse assunto. No entanto, faz-se necessrio
dizer algumas palavras acerca do contexto histrico no qual viviam as
mulheres que trataremos neste artigo.
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Apoiando-nos no conceito proposto por Marrou (1979: 15), segun-
do o qual a Antiguidade Tardia no somente a ltima fase de um de-
senvolvimento contnuo: [mas] uma outra Antiguidade, uma outra civili-
zao, que temos de reconhecer na sua originalidade e julgar por si pr-
pria e no atravs de cnones de pocas anteriores. Podemos assim pen-
sar em acontecimentos singulares que a distinguem bastante dos sculos
anteriores ou posteriores, diferentemente da viso de decadncia que ainda
vigora nos manuais escolares. Na verdade, se nos prendermos a reflexes
que envolvam o conceito de decadncia do Imprio Romano, compre-
ender as transformaes, as condies sociais, polticas e culturais dessa
poca se tornar um processo complicado ou at mesmo impraticvel,
pois, inconscientemente, nosso olhar ser condicionado pela ideia de um
Imprio em runas, o que um equvoco. Todavia, se analisarmos a fase
final do Imprio livre dessas premissas, refletindo sobre, por exemplo, a
cultura, a sociedade e a religiosidade que se esboam de maneira original
nesse perodo, ser possvel encontrarmos, na Antiguidade Tardia, not-
veis realizaes que marcaram tanto o Ocidente quanto o Oriente.
Como exemplo da originalidade da Antiguidade Tardia, podemos
citar os argumentos de Marrou (1979), ao analisar a diferena entre os
primeiros sculos do Imprio e os sculos IV e V. O autor evoca, entre os
quatro sculos e meio que os separam, dois homens bem representativos
do seu tempo, Ccero e Agostinho. No plano da cultura, recorda que as
obras de Ccero eram transcritas, coluna a coluna, em longos retngulos
de papiro ou de pergaminho, enrolados em cilindro, que se iam desenro-
lando medida da necessidade da leitura, para em seguida os enrolar de
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novo.2
De acordo com Marrou (1979: 17-23), houve tambm uma revolu-
o do vesturio durante a Antiguidade Tardia. A veste principal por
dentro da toga, a tnica, passou a ter costuras continuadas e ser solida-
mente fixada ao corpo, sendo assim muito menos ampla que a antiga rou-
pa. Em contrapartida, no perodo clssico, utilizava-se uma grande pea
de tecido flexvel, presa por um colchete ou fbula e sem mangas. Busta-
mante (2007: 5) declara que tais mudanas no se limitaram ordem pls-
tica, mas ecoaram profundamente na atitude psicolgica e at moral. Im-
ps-se ento uma diferente definio do pudor, acompanhada de uma
sublimao do erotismo.
J na Antiguidade Tardia, o volumen cedeu lugar ao codex, isto ,
ao livro que ainda hoje utilizamos, formado de cadernos cosidos, e que
permite edies de tamanhos considerveis, como a Cidade de Deus, de
Agostinho, em um tempo no qual cada vez mais se difundia a leitura em
silncio, o que contribuiu para a suplantao do primado, por tanto tempo
incontestado, da oratria.
com base em elementos como esses que pouco a pouco percebe-
mos a originalidade e riqueza do mundo tardo-antigo. Contudo, no po-
demos deixar de caracterizar esse perodo em suas variadas facetas.
De forma concisa, aceitando-se que as elites romanas dos sculos
III a V no viveram aterradas ante uma perspectiva de calamidade, pode-
mos reconhecer sua prosperidade e a confiana que tinham em si mesmas,
pois acreditavam na eternidade do Imprio, mesmo ante a ameaa dos
povos vizinhos. Do mesmo modo, como afirma Peter Brown (1972), no
2 A este modo rolo de papiro se dava o nome de volumem.
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Imprio do Ocidente a sociedade e a cultura eram dominadas por uma
aristocracia senatorial cinco vezes mais rica, em mdia, do que os senado-
res do sculo I. As cidades do Imprio conheceram, na Antiguidade Tar-
dia, uma fase de grande desenvolvimento, como vemos no caso de Antio-
quia e Constantinopla.3
A aristocracia da fase final do Imprio, contudo, j no era constitu-
da de modo idntico dos sculos anteriores. Seus integrantes eram bem
distintos dos antigos senadores da poca do Principado. Dela participavam
provinciais e membros provenientes das foras armadas. Dessa forma,
uma das principais conquistas do sculo III manteve-se no sculo IV, isto
, a atribuio dos postos e a promoo baseadas apenas no mrito.
As alteraes na estrutura social verificadas na Antiguidade Tardia
tambm afetaram a religio oficial e as sensibilidades espirituais da socie-
dade romana, acontecimento tido como uma das principais transformaes
do perodo.
Entramos aqui num terreno que j tinha seus precedentes: a relao
entre o paganismo e o cristianismo. Sabemos que j nos trs primeiros
sculos da Era Crist, o paganismo vinha sofrendo modificaes em seus
rituais, mas no IV sculo que a situao se agrava para os pagos devido
aos confiscos, interdies de sacrifcios, proibio de consulta a orculos e
visitao a templos, ao lado da promulgao de leis restritivas aos seus
cultos, como a de 356, na qual era proibido, sob pena de morte, celebrar
3 Sobre a cidade de Constantinopla, seu contexto, bem como a sua reforma e a da Igreja, mediante as crticas de Joo Crisstomo, consultar os trabalhos de Gilvan Ventura da Silva: Um bispo para alm da crise: Joo Crisstomo e a reforma da Igreja de Constantinopla (2010) e O sentido poltico da prdica cristo no Imp-rio Romano: Joo Crisstomo e a reforma da Cidade Antiga (2010a).
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sacrifcios, adorar os dolos ou mesmo entrar em seus templos. No entan-
to, em 392, pelas mos de Teodsio, responsvel por promulgar uma lei
que, aplicada com rigor, proibia qualquer ato do culto pago, mesmo o
executado no interior das residncias, que o paganismo sofrer um duro
golpe. No entanto, devemos estar atentos para no acreditar acriticamente
na eficcia da legislao, pois possumos sculos de experincia de no
cumprimento das leis imperiais, o que no significa que a legislao impe-
rial fosse de todo incua, mas sim que as crenas e prticas religiosas no
se transformaram subitamente.
As mulheres romanas e suas conquistas
Como mencionamos em nossa breve descrio acerca da Antigui-
dade Tardia, as mudanas de cunho poltico, religioso, econmico e so-
ciocultural ocorridas a partir do sculo III alteraram bastante o modo de
vida da sociedade romana, incluindo o papel das mulheres.
Durante o perodo republicano, e mesmo posteriormente, Roma se
caracterizava por seu sistema patriarcal, no qual os homens concentravam
o poder, a propriedade, as decises polticas e econmicas, escreviam as
leis, ditavam normas e pregavam a moral. A mulher, por sua vez, era
submetida a tais ordenaes, movimentando-se dentro de casa, onde edu-
cava a prole e servia como agente de reproduo (Ciribelli, 2002: 263).
Em funo de tal caracterizao, comum pesquisadores generalizarem a
condio social da mulher, atribuindo a elas um papel subalterno. No en-
tanto, acreditamos que generalizar o status feminino na Antiguidade no
a forma mais correta de o estudarmos, pois assim estaramos negligenci-
ando fatos histricos, muitas vezes em prol de uma simplificao que
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facilitaria resultados em uma dada pesquisa ou que reforaria discursos
absolutos de dominao masculina.
Mesmo na fase final da Repblica, essa passividade atribuda s
mulheres no ocorria em todos os casos. Alguns autores ressaltam que as
mulheres se opuseram de variadas formas opresso e ao poder masculi-
no mesmo, na maior parte do tempo, estando confinadas ao espao do-
mstico (Ciribelli, 2002: 263-264). Em determinado momento, Cato
(Tito Lvio, Histria Romana. v. I.), acerca das atitudes das mulheres,
alerta os polticos romanos: Se elas tornarem-se iguais a vocs, elas o
dominaro. Achard (1995: 58) ressalta que apesar de no gozarem de
direitos polticos, as romanas chegaram a conseguir a supresso de leis
que as prejudicavam, como a Lei pia,4 a Lei Vocnia,5
A supresso da Lei pia, que proibia o luxo nas vestimentas utili-
zadas pelas mulheres, foi justificada por meio da tradicional diviso entre
os gneros, que consistia em relacionar o homem poltica e guerra; e a
mulher ao adorno e beleza, sendo, portanto, habituais os enfeites utiliza-
das pelas mulheres. J a posio contrria defendia que as mulheres devi-
am se submeter aos seus maridos, no se manifestar, se restringir ao ambi-
ente domstico, manter o decoro, a discrio e a simplicidade (Bustaman-
te, 2007: 3). Todavia, mediante a posio contrria de alguns homens,
entre outras.
4 A Lei pia, adotada durante a II Guerra Pnica (218 - 201 a.C.), impunha uma srie de restries s mulheres romanas, dentre as quais se encontram: o limite posse de quantidade de ouro pela e a proibio do luxo no vestir (Bustamante, 2007: 3). 5 A Lei Vocnia proibia a instituio de uma mulher como herdeira, embora fosse filha nica, casada ou no. Proibia tambm legar as mulheres mais da metade do patrimnio.
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bem como as manifestaes pblicas das aristocratas, ao final a lei pia
foi revogada.
No somente a supresso de leis contribuiu para as alteraes na
condio social das mulheres romanas, mas tambm mudanas no que
concerne ao matrimnio. O casamento, ao longo da Roma Antiga, foi
adquirindo novas concepes e modelos. Evocamos, como exemplo, o
surgimento de uma nova modalidade de casamento jurdico, o sine manus,
j que o cum manus caiu em desuso no final da Repblica, como ressalta
Gaio (I. 111). Esta modalidade era baseada na ideia de que a mulher,
mesmo casando-se, permanecia sob a tutela de seu pai ou tutor.
Diferentemente do cum manus, ela poderia dispor dos seus bens e at
receber herana. Dessa forma, em caso de divrcio, a esposa receberia
parte do dote, que antes era retido integralmente pelo marido, sendo tam-
bm capaz de tomar decises que antes no lhes eram permitidas devido
sua condio de dependncia.
Como vlvula de escape diante do poder masculino, muitas mulhe-
res romanas no se dedicavam ao lar, fugiam ao dever da maternidade,
opinavam em questes polticas e literrias, rompiam laos com seus fa-
miliares, tornavam-se prostitutas e apreciavam cultos estrangeiros, como o
de Dionsios, Cibele, sis e Srapis. Sua preferncia por estes ltimos de-
viam-se acolhida e iniciao que lhes eram oferecidas (Ciribelli, 2002:
265-269).6
6 O culto de sis pregava a igualdade dos sexos e a liberao para o amor. O que justifica as relaes amorosas entre mulheres e poetas, como Cntia e Propercio e Dlia e Tibullo, que tinham se tornado adeptas ao culto (Achard, 1995: 62).
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A condio social das devotas crists na Antiguidade Tardia
Como observamos acima, na fase final da Repblica, as mulheres
romanas obtiveram mudanas em sua condio social, por meio de con-
cesses legais, por enfrentarem a situao que lhes era imposta e por alte-
raes nas tradies. Ao chegarmos na Antiguidade Tardia, verificamos
diversas outras transformaes.
As mulheres tardo-antigas no podiam, como de costume, exercer
participao na vida poltica, a menos que fossem membros da casa impe-
rial. Tradicionalmente, se esperava das mulheres romanas que cultuassem
as virtudes tradicionais da modstia, castidade e devoo aos deuses e
famlia, devendo ser protegidas da explorao de sua fraqueza por tutores
indignos (Siqueira, 2001: 4). Entretanto, elas no viviam isoladas em suas
residncias, estavam sempre fisicamente presentes, tanto na vida domsti-
ca, como na vida pblica.
As mulheres romanas, mesmo em finais da Repblica, participavam
de banquetes e reunies sociais importantes. De modo diverso das gregas,
tinham o direito de propriedade e podiam at mesmo fundar negcios e,
futuramente mosteiros. Embora, como dito anteriormente, no pudessem
votar ou ser eleitas, algumas inscries encontradas na cidade de Pompeia
mostram que as mulheres no se continham em apoiar seus candidatos aos
cargos pblicos, o que demonstra, em algum grau, sua notabilidade e in-
fluncia social. Segundo Funari (2001: 104-107) h mesmo indcios de
que havia mulheres de posses que pagavam pelos servios de prostbulos.
Tais reflexes, consequentemente, nos levam a ponderar sobre a viso
tradicional e estereotipada da figura feminina presa ao lar em Roma.
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Apesar do esforo em constituir temas referentes s mulheres na
Antiguidade Tardia, ainda sofremos com a limitao da documentao, j
que poucas so as fontes escritas por mulheres s quais temos acesso. Por
outro lado, existe uma abundncia de fontes documentais que trazem um
olhar dos homens sobre elas. E com base nesse olhar masculino sobre as
mulheres que podemos ter ideia tambm de seus defeitos, ou ao menos
ponderar sobre o que os romanos consideravam como defeitos.
Muitos so os depoimentos que qualificam as mulheres como seres
que falam muito e se preocupam demasiadamente com sua aparncia,
necessitando de auxlio para conter seus impulsos. Por outro lado, quando
so cabveis elogios a elas, mencionam que h mulheres boas, que so
fiis, modestas e competentes em sua vida domstica e conseguem agir
conforme os princpios morais (Siqueira, 2001: 4). Talvez, devido a esses
elogios que se costuma apontar um papel genrico para as mulheres
romanas.
Siqueira (2001: 5) ressalta que algumas dessas questes foram con-
frontadas pelos cristos. No entanto:
[...] o cristianismo, assim como outras religies da mentalidade predominante, mantm a mesma postura com relao mulher. A reivindicao Crist que os homens e mulheres so espiritualmente iguais no teve nenhuma conseqncia mais prtica, assim como a reivindicao filosfica que as mulheres podem manifestar as mesmas virtudes como os homens.
Concordando com o trecho acima e numa tentativa de explicar os
motivos para a permanncia da postura masculina frente s mulheres,
mesmo com o advento do cristianismo, Silva (2006: 306-307) declara que
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h uma distino entre o plano mstico e o plano terreno. Portanto, se no
plano mstico se pode pretender uma igualdade entre todos os homens, no
plano terreno, hodierno, as mulheres, como herdeiras de Eva que so,
devem se conformar com a sua posio secundria diante do homem. Tal
hiptese explica, em grande parte, a rgida atuao eclesistica crist, que
dificultava a concesso de maior participao e visibilidade das mulheres
nas cerimnias litrgicas. No entanto, a partir desse momento de redefi-
nio do lugar ocupado pelas mulheres no mbito eclesistico que ocorre
a ascenso das vivas, virgens e diaconisas, dentro da ekklesia.
Nesse sentido, podemos dizer que, se o cristianismo no props, em
absoluto, a igualdade entre os gneros, ele porm abriu as portas para
novas atividades, ou simplesmente modificou e utilizou as existentes,
possibilitando s mulheres diferentes formas de prestar devoo suas
crenas, como, por exemplo, o movimento monstico.
Silva (2007: 63-64) ressalta que o monacato, que comeou a se es-
boar por volta de 270, porm expandindo-se mais fortemente nos sculos
IV e V, concedeu mais oportunidades para certas mulheres exercerem a
sua devoo fora do mbito familiar, tendo como ponto de convergncia
os mosteiros, onde se encontravam virgens, devotas, vivas e diaconisas,
que deixavam seus lares a fim de viver reclusas. Essas mulheres tinham
maior oportunidade de se diferenciar das tradicionais matronas romanas,
pois se libertariam, parcialmente, do jugo masculino.
Siqueira (2001: 5), da mesma forma, declara que o cristianismo in-
troduziu uma prtica que, ao unir homem e mulher em um compromisso
com Deus, podia suscitar o abandono dos deveres com a famlia e o Esta-
do:
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Pela primeira vez, algumas mulheres podiam rejeitar o casamento e a gravidez, e viver em casa com suas mes, ou em solido, ou em uma comunidade de mulheres. A orao e estudo de Bblia podiam deslocar os afazeres da vida domstica, as mulheres sempre pude-ram participar em cultos religiosos e fazer oferecimentos aos deu-ses, podiam alcanar fama duradoura dedicando Igreja e ao servi-o de Deus.
Podemos dizer ento que, por meio do cristianismo, algumas mu-
lheres passaram de uma situao opaca para uma de emergente visibilida-
de, na qual o reconhecimento no era adquirido somente por seguir as
virtudes propostas para uma vida domstica, mas tambm por sua devoo
ao culto cristo e por prticas do asceticismo. Essas mulheres, reconheci-
das pela sua atuao em prol do cristianismo, tambm foram mencionadas
nas fontes gregas e latinas, constantemente elogiadas por darem comida e
vestirem os pobres, os salvarem da morte e nutrir profunda admirao por
importantes figuras, como os bispos e os ascetas.
Em meio ao cenrio de crists devotas e piedosas inseriam-se as vi-
vas. Consideradas modelos de devoo, formavam uma associao em
suas comunidades, geralmente reunidas sob o comando de uma delas.
Existiam ainda as virgens, que ocupavam um lugar privilegiado na ekkle-
sia, pois apareciam aps o clero, os monges e as crianas durante as pro-
cisses. Assim como as vivas, as virgens no constituam uma ordem, j
que no ofereciam oblao e nem servios litrgicos (Berardino, 2002).
Alm das vivas e virgens, existiam, no Oriente, mulheres que eram
ordenadas diaconisas. Em suma, eram elas responsveis pelo apoio s
catecmenas e s novas crists, bem como pelos servios litrgicos. Alm
disso, podiam ser mensageiras; deviam estar presentes quando uma mu-
lher vinha procurar um dicono ou o bispo; deveriam acolher mulheres
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nas assembleias; prestar ajuda aos pobres e necessitados e zelar, assim
como os diconos, pela boa ordem nas reunies. Contudo, a ao das dia-
conisas era limitada, pois no poderiam realizar as tarefas confiadas aos
presbteros e aos diconos, consideradas de maior importncia. Elas ape-
nas assistiam os presbteros na administrao do batismo, por uma questo
comportamental e de decncia.
As aristocratas crists e sua influncia social
Assim como descrito por Silva (2007: 86), em sua anlise da Hist-
ria Lausaca, Paldio menciona um conjunto de mulheres que, fazendo
parte da elite, se notabilizaram pela admirvel devoo causa crist. Um
caso bem conhecido o de Melnia, a Jovem, que, dentre suas aes cari-
tativas, teria distribudo no Egito, em Antioquia e na Palestina grande
quantidade de moedas de ouro. Teria ainda vendido suas posses na Espa-
nha, Aquitnia, Tarragona e Glia, retendo apenas aquelas da Siclia,
Campnia e frica, cujos rendimentos reservou manuteno dos con-
ventos. Alm disso, providenciou tambm a libertao de oito mil escra-
vos.
Outro caso notvel o de Olmpia. Pertencente a uma famlia aris-
tocrtica de Constantinopla recm-enobrecida, filha de Seleuco, um comi-
tes, e supostamente descendente de Ablbio, ela um excelente exemplo
de mulheres que, na Antiguidade Tardia, obtiveram uma posio de desta-
que. Olmpia, rf desde a infncia, recebeu uma educao crist, sob a
superviso da irm do bispo Anfilquio, Teodsia, integrante de um grupo
de mulheres crists piedosas. Olmpia tornou-se viva prematuramente, o
que favoreceu sua adeso ao ascetismo cristo. Ela tambm foi benfeitora
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do bispo Nectrio, que a ordenou diaconisa da igreja de Constantinopla,
como tambm partidria de Joo Crisstomo, de quem foi amiga intma.
Olmpia, em sua condio de patrocinadora de obras de caridade,
teria doado igreja dez mil quilos de ouro, vinte mil de prata, e todos os
seus bens imveis situados nas provncias da Trcia, Galcia, Capadcia
Prima e Bitnia, mais as casas pertencentes a ela na Capital, e uma situada
perto da catedral, chamada de a casa de Olmpia, juntamente com a casa
da tribuna, com banheiros, e todos os edifcios perto dele, um moinho e
uma casa localizada prximo aos banhos pblicos de Constantinopla, alm
de outra, que era chamada de a casa de Evandro, assim como tambm
todas as suas propriedades suburbanas (Vita Olympiadis).
Os casos de Melnia e Olmpia, evidentemente no so os nicos.
Como ressalta Silva (2007: 86):
Paula, responsvel pelo funcionamento de um mosteiro com 50 virgens na Palestina; Asela, uma virgem reconhecida como patrona de conventos e Melnia, a Antiga, fundadora de um mosteiro para mulheres em Jerusalm, cumprem, do mesmo modo, o papel de pa-tronas venerveis da Igreja.
Tais mulheres, frequentemente, estavam associadas a crculos aris-
tocrticos do Imprio Romano, na condio de esposas, filhas ou vivas
de destacados membros da elite. Venria, por exemplo, era esposa do
comites Valovico. Melnia, a Antiga, era filha do ex-cnsul Marcelino,
enquanto Olmpia filha do ex-comites Seleuco. Na qualidade de detento-
ras de vastos patrimnios, elas se tornaram clebres por consumir toda a
sua riqueza na conservao de igrejas, mosteiros e hospedarias e na assis-
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tncia prestada a monges, enfermos, prisioneiros, a bispos e nas celebra-
es do culto cristo (Silva, 2007: 86).
Consideraes finais
Nossa tentativa, no momento, foi a de visualizar as mulheres roma-
nas como sujeito social, bem como sua atuao com percursos prprios,
agindo ou reagindo conforme os fatos histricos vo se construindo. No
entanto, como ressaltamos, a despeito das inmeras pesquisas, disserta-
es e teses, ainda sofremos com a escassez de fontes que nos dem aces-
so ao pensamento das mulheres e no ao pensamento dos homens sobre
elas. Sabemos da dificuldade em tratar de temas referentes ao feminino na
Antiguidade. Muitas lacunas ainda necessitam ser preenchidas, pois
mediante discursos masculinos que o feminino constantemente represen-
tado: nos mitos, na poesia, na histria, nos romances, nos tratados mdi-
cos e filosficos, na legislao, na iconografia, entre outros suportes (Si-
queira, 2001: 2). Nessa imensido documental destacam-se as imagens.
Contudo elas no nos proporcionam uma viso direta das mulheres, mas
sim a representao masculina sobre elas (Duby; Perrot, 1990: 8).
Desse modo, muitos historiadores, como Siqueira (2001: 2-3) e Fu-
nari (1995: 179-200) declaram que, para a construo de uma Histria das
Mulheres na Antiguidade, fundamental uma anlise holstica, interdisci-
plinar, que abarque os estudos sobre Literatura, Lngua, Antropologia,
Arqueologia, Histria da Arte, entre outras especialidades.
Analisando a relao das mulheres e a expanso do cristianismo,
percebemos que o Imprio Romano passou por graduais transformaes,
incluindo as de carter religioso. Nesse contexto, muitos romanos, busca-
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ram consolo em suas crenas msticas. No entanto, a religio oficial j no
lhes propiciava mais a paz de esprito que costumava oferecer, o que le-
vou a um crescimento no nmero de adeptos de outras crenas, como o
cristianismo (Funari, 2001: 131). Alm das camadas inferiorizadas, o cul-
to cristo comeou a angariar adeptos tambm entre membros da aristo-
cracia romana, a comear pelas mulheres da elite, marginalizadas nas
religies tradicionais, mas encontrando espao na nova religio, marcan-
do, ento, um processo de assimilao entre o cristianismo e as mulheres.
Acreditamos que as mudanas sociais que ocorriam na vida das mu-
lheres romanas algo a se ponderar, pois natural que, com o passar de
sculos, o contato com novos povos e culturas, assimilaes e tenses
produziram alteraes nos papis sociais e na representao da figura
feminina. Mesmo com a difuso do cristianismo, de modo geral, as mu-
lheres permaneceram em carter secundrio dentro da Igreja. Entretanto, o
cristianismo contribuiu para a redefinio do lugar feminino nas comuni-
dades crists e no Imprio Romano. Como mencionamos, colocando-se a
servio da Igreja, as mulheres tinham a chance de abnegar o casamento e
assim escapar do papel tradicional de me e de esposa; poderiam viver
reclusas em mosteiros, praticar cultos e dedicar-se ao ascetismo, como
diaconisas, virgens, viva, monjas ou devotas, o que lhes permitiria certo
reconhecimento.
Por fim, a representao e o papel feminino na Antiguidade Tardia
so variveis, pois se transformam dependendo das condies sociais em
que os analisamos. Das escravas que cuidavam e amamentavam os recm-
nascidos s matronas que desempenhavam seus papis domsticos e cum-
priam com as virtudes que se esperavam delas; das mulheres entregues
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prostituio s ascetas, todas essas mulheres tinham funes diferentes
dentro da sociedade, e eram tratadas e vistas de acordo tais funes. Seus
papis e condies sociais poderiam diferenciar-se, porm, havia algo em
comum entre elas: todas contriburam, ao seu modo, para dinmica da
sociedade romana.
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