Reflexoes Sobre Homo Sociologicus

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Decidindo o preo

Reflexes sobre o Homo Sociologicus

As reflexes que se seguem tiveram uma primeira formulao deliberadamente esquemtica e coloquial (1). Preferi resguardar, em parte, ambos esses aspectos, j que, dada a ambio do tema tratado, convert-las forma cannica de artigo envolveria tratamento muito mais extenso e cuidadoso que, por diversas razes, se me afigura impossvel. Decidi manter o tom rpido e, por que no dizer, simplificador do texto, consciente dos riscos dessa opo.

Devo confessar, porm, que ao incorrer nesses riscos, cedo tambm tentao de preservar o aspecto provocador do tratamento esquemtico que dou a Weber e a Durkheim, aqui invocados como representantes tpicos de uma dualidade inerente sociologia. Deliberadamente fao tbula rasa de questes que, tanto em um autor como no outro, aparecem muito mais matizadas e, por vezes, mais ambguas ou contraditrias. Essa escolha reflete, por um lado, o propsito de dramatizar a questo da fragmentao analtica do ator social, de forma a relativizar o homo economicus que aos olhos do mundo contemporneo pretende universalidade e que, com freqncia, a logra no raciocnio dos economistas e mesmo de cientistas sociais. Por outro lado, meu esforo simplificador visa tambm provocar tanto "weberianos" como "durkheimianos", na esperana de que o tom polmico possa vir a potencializar a funo "discursiva" da teoria social, tornando mais estimulante e frutfero o dilogo no interior da sociologia (2).

Outra observao de carter preliminar diz respeito escolha de Durkheim e Weber como os "exemplares" de uma dualidade inerente teoria social. Por que privilegi-los dentre o seleto grupo dos fundadores da sociologia? Ou, para confrontar diretamente a figura paterna que paira sobre toda a cincia social, por que deixar de lado Marx? Devo esclarecer que a prpria difuso das grandes questes propostas por Marx, o fato mesmo de que tais questes permeiem tanto o trabalho de marxistas como o de no-marxistas, faria muito menos contrastantes as cores do quadro que quero pintar aqui.

Alm disso, a polmica no interior do prprio marxismo , a meu ver, demasiado rotinizada e fluida, ao percorrer tantos e to variados marxismos. Quero crer que a discusso em torno de Weber e Durkheim presta-se melhora meu propsito de ilustrar a vigncia de dois prottipos sociolgicos paralelos. Devo reconhecer, tambm, que me sinto desafiada a pensar o dilogo entre Durkheim e Weber, cuja desconcertante inexistncia excita a imaginao de todos os que se interessam pelos clssicos da teoria social (3).

O problema da parcialidade das diversas abordagens disciplinares nas cincias humanas objeto freqente de discusso. Assim, as abstraes especficas do humano postuladas pela economia, a psicologia, a sociologia etc. so escrutinadas e suas limitaes denunciadas. De fato, crticas fragmentao do sujeito em "fatias" analticas vm de longa data e h muito a defesa do empenho interdisciplinar motiva crculos acadmicos.

Contudo, devo observar que, nesse final de sculo - fim de milnio, alis -, a insatisfao frente s especializaes, frente tirania da racionalizao progressiva do mundo, tornou-se muito mais visvel. No bojo dessa insatisfao, multiplicam-se os projetos mais e menos felizes de investigao transdisciplinar, ao mesmo tempo que ganha corpo um movimento de revalorizao do ensasmo e mesmo do generalismo que, em nosso contexto particular, encontra solo frtil no caldo de cultura de nossa tradio intelectual bacharelesca.

E inegvel que toda especializao simplificadora, restritiva, sendo por isso mesmo fonte de frustrao e insatisfao. Mas, igualmente ineludvel que sem simplificao no h conhecimento possvel. No h conhecimento cientfico possvel, seja ele natural ou cultural, sem que a realidade complexa e inesgotvel seja reduzida a um conjunto mnimo de observaes e proposies. Qualquer proposio cientfica, ao formular um enunciado genrico, segmenta, simplifica e abstrai detalhes do real.

preciso ter em mente que, neste contexto, estamos falando das cincias sociais ou cincias da cultura e no das cincias naturais. Trata-se, aqui, de comentar os efeitos da especializao disciplinar entre ramos de uma cincia cujo status sui generis, de uma cincia da realidade scio-cultural. As cincias sociais dizem respeito ao mundo da cultura, lidam com os significados que os homens e mulheres atribuem a suas aes e, portanto, so cincias condenadas perptua "imaturidade", ao "dom da eterna juventude" para usar a expresso de Weber (4).

necessrio lembrar, porm, que, para alguns, a idia de considerar a cincia social como peculiar e substancialmente diferente da cincia natural no procede. Para esses, existiria um modelo unitrio de cincia e os problemas tpicos da cincia social seriam, em ltima anlise, decorrentes de seu atraso relativo. Sua imaturidade atual, argumentam, seria naturalmente superada no futuro, quando, ento, ela alcanaria o mesmo status das cincias naturais.

Tambm importante lembrar que, contrariamente a meu parti pris, a defesa de um modelo nico de cincia e, portanto, a negao da eterna juventude das cincias sociais predominante na economia, embora tambm encontremos defensores dessa viso em vrias vertentes da sociologia (como, alis, na prpria sociologia de Durkheim), sendo a sociobiologia, provavelmente, a verso mais extremada delas (5).

Uma vez feitas essas necessrias divagaes iniciais, passemos agora a questionar qual seria a "abstrao tpica" da sociologia na abordagem do real. Ou, mais especificamente, quem o sujeito - o agente contemplado pela sociologia? Assim como o homo economicus , por excelncia, maximizador de utilidades, e o homo psychologicus portador de "volies", resta saber se seria possvel definir, tambm um homo sociologicus. Isso foi tentado, por exemplo, por Dahrendorf (1973 ), cuja soluo um tanto frustrante porque fragmenta o homo sociologicus no interior da prpria sociologia; ele seria o ator de papis sociais mltiplos: pai/me; patro (oa) ; empregado (a) ; eleitor (a) etc. Ora, tal caracterizao demasiado inespecfica, a menos que aceitssemos que o ser humano tpico da imagem sociolgica apenas um conjunto de representaes, um ser desprovido de "cara" por trs das mltiplas mscaras dos papis sociais.

Seria, ento, possvel enunciar de forma clara e inequvoca quem a abstrao tpica da sociologia? Quem o homem/a mulher que a sociologia estiliza? No exatamente, como sabemos todos. Terei de forosamente referir-me a dois modelos humanos que, de forma mais ou menos tensa, convivem no interior da teoria social: homem - portador de "compaixo" versus homem "egosta"; se tomarmos Rousseau e Hobbes como balizas dessa dualidade constitutiva do pensamento social. Mas, os referenciais mais especificamente sociolgicos da disputa so: homem durkheimiano versus homem weberiano (6).

Claro est que, na medida em que o predomnio da lgica econmica como ideologia, como valor, crena socialmente difundida, torna-se incontestvel, toda essa questo de "imagens do homem" artificialmente criadas pelas diversas cincias sociais tambm se torna problemtica (7). Na medida mesmo em que a lgica econmica se faz "patrona da razo", tudo se passa como se os diversos homines tipificados pelas diferentes cincias sociais se comportassem de forma analgica ou reflexa ao homo economicus. Nesse sentido, por exemplo, fala-se de "economia das emoes" na psicanlise.

Em outras palavras, o economicismo que impregna todo o nosso raciocnio impe a abstrao do homo economicus como referencial para as mais diversas disciplinas. Todas elas teriam indivduos maximizantes, variando apenas a natureza do objetivo maximizado. Ou seja, o homem arquetpico seria o mesmo: o indivduo possessivo e egosta que, no af de realizar suas paixes, age de forma utilitria. Mesmo quando a ao aparece disciplinada e regulamentada por clusulas contratuais, o contrato aparece apenas como instrumento da vontade calculista e soberana do indivduo.

De fato, a sociologia que nasce no sculo XIX , de certa forma, uma reao ao "imperialismo" do pensamento econmico que se consolidava. Na verdade, ela surge tambm como uma reao s grandes transformaes dos sculos XVIII e XIX, como uma reflexo crtica sobre as condies, o ambiente em que vive o homo economicus. Contra a lgica frrea do comportamento individual maximizante, ela afirma a existncia de um referente coletivo que inseparvel do prprio indivduo. A idia bsica a existncia de algo alm das puras motivaes individuais, algo que conforma e d sentido a essas motivaes.

Seria, contudo, equivocado pensar a sociologia apenas como uma reao conservadora s grandes transformaes dos sculos XVIII e XIX. Ela tambm fruto dessas transformaes, pois aposta, ela mesma, no progresso, filha que do Iluminismo. Mas importante ter em conta que a sociologia, enquanto disciplina, surge como uma alternativa estilizao do homo economicus. assim, por exemplo, que a revalorizao da comunidade, percebida como dicotmica sociedade, confere nfase a valores solidrios, s motivaes coletivas que transcendem clculos egostas etc. (8).

Na verdade, pareceria ser essa duplicidade mesma de orientao, esse dilema original da sociologia entre a idealizao de um solidarismo ameaado pela individualizao do mercado, por um lado, e a idealizao das prprias potencialidades progressistas da emancipao do indivduo, por outro, a raiz da duplicidade de representaes do prottipo sociolgico. Nesse sentido, o "homem durkheimiano" e o "homem weberiano" poderiam ser vistos como irmos gmeos nascidos do difcil casamento entre a paixo e a com-paixo, cujas identidades se afirmam por oposies recprocas.

Passemos, finalmente, ao exame de cada um dos modelos bsicos de homo sociologicus, aqui caracterizados como o durkheimiano e o weberiano. Na perspectiva de Durkheim, a sociedade tem precedncia lgica sobre o indivduo. A prpria autopercepo do indivduo enquanto tal uma resultante histrica da evoluo da sociedade. O individualismo, para ele, corresponderia religio da sociedade moderna (9). E a religio, por sua vez, corresponderia a uma representao sacralizada da prpria sociedade. A anlise durkheimiana das formas elementares de religio salienta como as tribos primitivas, ao se representarem como animais ou como plantas, erigem uma identidade totmica que simbolfiza o grupo, a coletividade (Durkheim, 1968b).

A princpio, pareceria que o homem sociolgico de Durkheim um ser reflexo, um ator que se conformaria inteiramente s determinaes do social. E, na verdade, essa tem sido uma das leituras recorrentes de sua obra. Durkheim seria um determinista estreito que veria os atores sociais como exclusivamente conformados elo todo de que fazem parte (10). Como tem sido lembrado com freqncia, o estilo polmico e contundente de Durkheim, sua preocupao em demarcar rigidamente as fronteiras da sociologia, prestam-se com facilidade a esse tipo de interpretao.

Contudo, se Durkheim insiste em distinguir fatores individuais e coletivos para preservar a identidade da sociologia, ele est atento estreita relao que guardam entre si tais fatores, ainda que seu "fervor sociolgico" o leve a confuses e ambigidades na caracterizao do "homem sociolgico". Nesse sentido, conforme observa Lukes (1975, p. 35, traduo minha), ao se concentrar exclusivamente "no impacto das condies sociais sobre os indivduos, ao invs de focalizar as maneiras como os indivduos percebem, interpretam e respondem s condies sociais, [Durkheim] deixa sem explicitao e exame os pressupostos psicolgicos em que se assentam suas teorias".

Contudo, leituras mais minuciosas e compreensivas da obra de Durkheim, como a do prprio Lukes, permitem tanto mapear supostos de anlise que informam a definio de seu ator sociolgico, quanto identificar os impasses e eventuais contradies de sua construo terica. Assim, possvel observar que se Durkheim se recusa veementemente a aceitar premissas individualistas de anlise, ele identifica no indivduo uma dimenso intrinsecamente coletiva. Sua discusso sobre a natureza humana ressalta o dualismo constitutivo dessa: ela ao mesmo tempo sensual e moral; sensorial e conceitual, egosta e solidria (Durkheim, 1973a). Fiel a seu modelo dicotmico de raciocnio, Durkheim identifica os segundos termos de cada plo sociedade inscrita nas conscincias individuais.

Seu problema no negar a dimenso egosta e utilitria do indivduo, mas demonstrar a precedncia lgica e moral da dimenso coletiva e solidria. A sociedade um universo moral, uma realidade distinta e superior ao mero somatrio dos indivduos que a compem. Uma das questes bsicas que Durkheim formula a de como se resolve o problema da ordem social. Ou seja, precisamente, como possvel o contrato entre agentes egostas e possessivos? Na sua viso, o contrato, o estabelecimento da ordem s possvel porque os indivduos compartilham desde sempre um repositrio de crenas e sentimentos comuns que possibilita a concordncia sobre as regras do jogo.

Parece, portanto, bastante claro que a sociologia de inspirao durkheimiana inscreve-se na tradio metodolgica coletivista. O ator sociolgico algum cuja conscincia no apenas informada, mas conformada, gerada pela sociedade. Assim, a prpria gnese terica e histrica do indivduo maximizador de utilidades um produto da evoluo da sociedade. Nessa perspectiva, o que se observa que os homens/mulheres chegaram a desenvolver uma conscincia de sua individualidade e capacidade de livre arbtrio porque a sociedade, ao se tornar progressivamente mais complexa e diversificada, permitiu-lhes o desenvolvimento desse tipo de percepo, estimulando, assim, a especializao de funes e, concomitantemente, o desenvolvimento de novas formas de solidariedade (Durkheim, 1973b).

Como quer que seja, uma vez que a sociedade erige o indivduo como seu valor mximo, a defesa do individualismo torna-se um imperativo moral. nesse ponto que Durkheim pretende encontrar a justificativa para sua opo por conciliar coletivismo metodolgico e individualismo tico. Se verdade que suas regras metodolgicas exacerbam o realismo coletivo (Durkheim, 1968a), tambm verdade que, em uma das poucas defesas que ele ensaia frente aos crticos de seu realismo social, Durkheim salienta com sua usual contundncia:

"Em termos gerais, sustentamos que a sociologia no atingiu plenamente seus objetivos enquanto ela no tiver penetrado no foro interior dos indivduos, de forma a relacionar as instituies que ela busca explicar a suas condies psicolgicas. Na verdade - e aqui reside sem dvida o ponto que tem dado origem a tanto mal-entendido - o homem para ns menos um ponto de partida que um ponto de chegada. Ns no partimos de certas postulaes sobre a natureza humana para da deduzir uma sociologia: ao contrrio, a partir da sociologia que buscamos uma compreenso da humanidade" (Durkheim, 1909, apud Lukes, 1975, pp. 498-9, traduo minha).

igualmente contundente a defesa que Durkheim faz da moral individualista que caracteriza a moderna conscincia coletiva, tal como ilustrado, por exemplo, na seguinte passagem relativa solidariedade orgnica:

"(...) se nos lembrarmos que a conscincia coletiva se reduz mais e mais ao culto do indivduo, veremos que o que caracteriza a moralidade das sociedades avanadas, comparada quela das sociedades segmentais, que ela tem qualquer coisa de mais humana e, portanto, de mais racional. Ela no condiciona nossas atividades a fins que no nos dizem respeito diretamente; ela no nos faz servos de poderes imaginrios de natureza distinta da nossa que seguem seus prprios desgnios sem considerar os interesses humanos. Ela apenas requer de ns que sejamos afveis uns com os outros e justos, que desempenhemos bem nossas tarefas, e que trabalhemos para atingir uma situao onde cada um ser chamado a desempenhar a funo que possa melhor realizar e receber pelo seu esforo um pagamento justo". (Durkheim, 1973b, pp. 403-4, traduo minha).

Na perspectiva de Durkheim, o fenmeno da especializao de funes produtivas apresenta interesse para a sociologia no como diviso econmica de funes, mas sim como diviso social do trabalho, como fenmeno socialmente gerado que prov uma forma especfica de sociabilidade. Ressalte-se tambm que, enquanto na economia clssica o bem-estar de cada um assegura o bem-estar de todos, na sociologia de Durkheim as coisas se passam diferentemente: porque a sociedade como um todo pressupe a especializao crescente - em funo do incremento de volume e densidade demogrfica e moral - que os homens tendem especializao progressiva. E a partir da diviso social do trabalho que os homens descobrem as vantagens da especializao para - todos e, portanto, para cada um. Assim, a prpria idia do desenvolvimento da personalidade atravs da atividade criativa do indivduo que pode realizar sus vocao especializada uma conseqncia de transformaes nas formas bsicas de sociabilidade.

Recapitulando, a questo de Durkheim provar que existe uma realidade sui generis, o social, que no pode ser reduzida a fundamentos psicolgicos sociais ou individuais. a sociedade que cria os indivduos, os "homens econmicos", os quais nem sempre existiram mas so o resultado do prprio desenvolvimento da vida em sociedade.

Em relao psicologia, ele sustenta que, ao identificar invarianas mentais, essa disciplina no poderia dar conta de configuraes sociais particulares. O problema da sociologia identificar como a sociedade atua sobre nossas conscincias de forma a coloc-las em consonncia com as instituies que as expressam (Lukes, 1975, p. 499). Em relao economia, a posio de Durkhim freqentemente ressaltada com base na crtica ao utilitarismo que ele empreende nas pginas de A Diviso do trabalho socialDurkheim seria mais especfico na definio da natureza dos fenmenos econmicos ao discutir o tema em reunio da Sociedade de Economia Poltica, em 1908. Nessa ocasio, ele salientou que

"a nica primazia corretamente atribuda aos fatores econmicos, diz respeito queles fatores que afetam profundamente a maneira como a populao se distribui, sua densidade, as formas dos grupamentos humanos, fatores que muitas vezes exercem uma profunda influncia sobre estados variveis de opinio" (apud Lukes, 1975, p. 500).

No mais, dizia Durkheim, o estatuto da economia poltica no seria diferente daquele de outras cincias sociais; tambm ela seria uma cincia da cultura ou, nos seus prprios termos, a economia tambm lidaria com "idias" e "opinies". Seu argumento era que "o valor das coisas dependeria no apenas de suas propriedades objetivas, mas tambm de opinies relativas a elas. Por exemplo, a opinio religiosa ou mudanas de gosto poderiam afetar o valor de troca de certos bens" (11). Assim, tanto como os fatos sociais, os fatos econmicos poderiam ser considerados questo de opinio, o que no implicava que no se prestassem formulao de generalidades e leis (Lukes, 1975, p. 499)

interessante observar que, mais recentemente, a problemtica durkheimiana encontra pontos de contato na tese de Polanyi (1957) sobre o carter utpico da sociedade de mercado. Segundo este autor, a utopia do mercado soberano, a construo ideolgica do homo oeconomicus, constitui uma ameaa concreta preservao do tecido social. Assim, toda a discusso empreendida em A Grande Transformao defende o argumento de que a sociedade, o todo social, tem mecanismos autoprotetores. Tais mecanismos funcionam como antdotos ao mpeto destrutivo da utopia de mercado, utopia essa que desnaturaliza a terra (natureza por excelncia) e o trabalho (atividade natural do homem) para convert-los tambm em mercadorias.

Na viso de Polanyi, como se existisse uma "mo invisvel da sociedade" que, em ltima anlise, garantiria a continuidade de um todo orgnico, o tecido social, expresso de um amlgama de interesses. Em suma, o natural seria a sociedade auto-regulada, enquanto o mercado auto-regulado, o paraso do indivduo egosta maximizador de utilidades, seria uma fico, uma utopia deletria que colocaria em risco a vida em sociedade.

Nesse sentido, Polanyi, como Durkheirn, tm "indivduos sociolgicos" e no "indivduo" no singular - de qualquer forma, um constructo lgico to ortodoxo como o homo economicus. Ou seja, o estatuto terico de um sujeito coletivo em Durkheim e Polanyi to fundamental e irredutvel quanto o do indivduo movido pelos apetites egostas da economia. Se, em ltima anlise, o homem econmico guia-se por um conjunto de motivaes psicolgicas bastante simples e elementares, o homem sociolgico da sociologia de inspirao organicista a rigor no se guia, mas guiado por uma realidade coletiva que transcende volies e paixes individuais.

Contra o imperialismo do economicismo, ou mesmo do psicologismo, essa orientao terica afirma o primado da explicao social. assim que a prpria constituio dessa abstrao que o homem econmico e sua penetrao no imaginrio coletivo moderno passam a ser explicados como um produto social.

Tal orientao terica encontra tambm terreno bastante fecundo na antropologia contmpornea, o que, afinal, parece bastante natural: trata-se de ver o homem/a mulher de cada uma das disciplinas sociais como um produto de transformaes scio-culturais. Relativizar a palavra de ordem aqui: todos os homines das diversas cincias sociais so produzidos socialmente.

Como mencionado anteriormente, o primado lgico o do todo social orgnico que evolutivamente "gera" especializaes de tarefas, de conhecimentos, de modelos humanos disciplinares, como se fosse possvel abstrair o sujeito, que sempre um compsito, ou melhor, um ser indivisvel entre o que econmico, social, poltico ou psicolgico. A rigor, a "sociabilidade" que daria unidade e coerncia a esse todo, ditando inclusive as divises artificiais e abstratas que se acentuam com a marcha da histria. Os homens/mulheres primitivos no se fragmentavam ao longo de dimenses analticas, como tambm no se separavam a religio, a filosofia e a cincia (12).

Sintetizando essa vertente da tradio sociolgica, o homem natural seria o social. Contra o imperialismo do economicismo, prope-se um imperialismo da sociabilidade. H, aqui, uma bvia idealizao da sociedade e uma minimizao da volio e do arbtrio individual que, historicamente, chegam at a se tornar predominantes, mas como resultado inequvoco da evoluo da prpria sociabilidade.

Cabe questionar se vale a pena levar a srio uma proposta terica que no encontra respaldo na forma como percebemos a vida organizada de que somos parte. Qual a importncia de uma viso desse tipo em um mundo organizado segundo a primazia do mercado? A meu ver, trata-se de uma perspectiva de observao extremamente estimulante, na medida mesma em que nos prmite transceder a lgica frrea do status quo, possibilitando uma, percepo crtica da viso de mundo economicista em que estamos todos imersos. Essa a fonte de criatividade e riqueza de uma perspectiva sociolgica. orgnica e coletivista.

curioso notar que essa perspectiva, que, originalmente, na constituio da sociologia co rizo cincia, teve uma embocadura de cunho "cionservador" - reativa ideologia individualista / economicista que preside a afirmao do mercado como o princpio organizador da vida social -, passa a ter conotaes crtico-emancipatrias no mundo do presente, quando a "naturalidade" do mercado e a primazia dos interesses materiais parecem incontestveis.

ento que a velha defesa do primado do social sobre as motivaes individuais torna-se revolucionria, chamando ateno para o carter histrico-cultural das prprias generalizaes estabelecids pelas cincias sociais, trazendo-nios, assim, de volta para o reconhecimento da especificidade dessas cincias, seu contnuo autoquestionamento e a aceitao, simultaneamente herica e humilde, de sua perene renovao e inevitvel caducidade.

Mas, essa questo j nos transporta para o territrio da outra perspectiva terico-sociolgica anteriormente mencionada, aquela de inspirao weberiana. De fato, a tradio durkheimiana diria que s avano o argumento acima, porque vivo nesse contexto histrico especfico, minha conscincia foi socialmente informada, de modo a desenvolver um entendimento particular sobre a diviso social do trabalho, a individualizao dos agentes sociais, a especializao do conhecimento cientfico em disciplinas prticulares etc. Em suma, em consonncia com o observado anteriormente, na perspectiva durkheimiana, minha prpria interpretao seria vista como um fato social, uma "coisa" produzida pela sociedade em que vivo.

Que horizontes nos prope, por sua vez, a sociologia de inspirao weberiana? Que imagem do homem ela nos oferece? De incio, a meu ver, o curioso e atraente em Weber que ele consegue refletir criticamente sobre o "imperialismo" do economicismo sem renunciar viso atomizada, individualizada e egosta dos agentes sociais. Com uma lgica extremamente rigorosa e um raciocnio criativo, Weber generaliza a psicologia rudimentar do homo economicus e, nesse mesmo movimento, condena a motivao econmica ao territrio limitado de uma das muitas dimenses analticas em que podemos decompor a ao dos indivduos (13).

O homo sociologicus weberiano , na verdade, anlogo ao homo economicus. Ele um dos recortes analticos possveis do indivduo atomizado, gerado pelo mesmo movimento de racionalizao que d origem cincia moderna, ao capitalismo, tipificao do indivduo racional etc. O que o singulariza o fato de que suas aes e decises se pautam pelo sentido que ele atribui a elas e tambm s aes dos outros, por sua capacidade mesma de empatia e atribuio de sentido. O homem social dotado de comportamento significativo. Como define Weber (1978, p. 4):

"A Sociologia (no sentido em que essa palavra altamente ambgua usada aqui) uma cincia que busca a compreenso interpretativa da ao social e, dessa forma, a explicao de seu curso e conseqncias. Falaremos de 'ao' na medida em que o indivduo atuante atribui um sentido subjetivo a seu comportamento - seja esse explcito ou oculto, omisso ou aquiescncia. A ao social na medida em que seu sentido subjetivo leva em conta o comportamento dos outros e se orienta nesse sentido."

Nesse sentido a sociologia visa explicaes causais, visa o estabelecimento de relaes entre conceitos e a formulao de generalizaes. Mas a noo de causalidade nas cincias histrico-culturais sempre parcial e probabilstica. As explicaes logradas so sempre relativas a uma simplificao particular tal como informada por dada tica disciplinar e pelos supostos de anlise adotados pelo investigador. Mais ainda, a explicao sociolgica funda-se na possibilidade de identificar probabilidades de aes individuais com base na interpretao compreensiva.

O universo do "homem sociolgico" dividido em fatias analticas: motivaes econmicas, polticas, religiosas ou ideais em geral so igualmente detectveis no comportamento dos indivduos, enquanto a questo disciplinar apenas um recurso estratgico da atividade cientfica, sem qualquer, foro de precedncia lgica ou ontolgica.

"Os campos de trabalho das cincias no esto baseados nas relaes 'materiais' dos 'objetos', mas sim nas relaes conceituais dos problemas. Ali onde se estuda um problema novo com ajuda de um mtodo novo, com o fim de descobrir verdades que nos abram horizontes novos e importantes, ali nasce uma nova cincia" ( W eber, 1971, p. 30).

Nesse sentido, o modelo weberiano , tambm, em alguma medida, como o homem sociolgico de Durkheim, uma viso crtica do homo economicus. Mas, enquanto para Durkheim o indivduo uma criao da sociedade, essa entidade que conforma as conscincias individuais, para Weber o prprio indivduo que responsabilizado perante a histria por seus atos. Os indivduos dotados de conscincia respondem pelas conseqncias de suas paixes, escolhas e aes (14).

A coletividade, para ele, no uma realidade em si. As estruturas e instituies so realidades produzidas pelos homens, que lhes conferem sentido, significao. Os conceitos coletivos s se tornam inteligveis a partir das relaes significativas entre comportamentos individuais (Weber; 1978, p. 13; Aron, 1967, pp. 500 11). Em uma forma contundente que faz lembrar o tom de Durkheim, Weber escreveria:

"(...) se eu me tornei um socilogo (...) foi principalmente para exorcizar o espectro de concepes coletivistas que ainda vingam entre ns. Em outras palavras, a sociologia s pode se basear nas aes de um ou mais indivduos separadamente e deve dessa forma adotar mtodos estritamente individualistas" (15).

Mas, o autor deixa claro que a adoo de uma perspectiva metodolgica centrada no indivduo no envolve qualquer compromisso com um sistema individualista de valores. Conforme esclarece,

mesmo uma economia socialista teria que ser entendida sociologicamente exatamente nos mesmos termos individualistas, isto , nos termos da ao dos indivduos, do tipo de funcionrios atuantes nela, da mesma forma que um sistema de livre troca seria analisado pela teoria da utilidade marginal, ou qualquer outra teoria 'melhor', mas similar a ela nesse aspecto (Weber, 1978, p. 18 ).

O suposto fundamental de Weber sempre o indivduo dotado de volio que escolhe entre alternativas de ao circunscritas por condies histrico-estruturais particulares. Em certo sentido, no importa que esse indivduo portador de conscincia, volio, liberdade de escolha e responsabilidade seja um produto histrico-social: Weber diria que a cincia tambm um produto histrico-social: se preciso da racionalidade para o desenvolvimento da cincia e se o processo de racionalizao que tornou possvel o advento do conhecimento cientfico, da se segue que tambm preciso do suposto do indivduo racional para exercer o pensamento cientfico. Tudo o que posso explicar, a irracionalidade inclusive, fao-o graas ao recurso de usar o racional como ponto de referncia. esse o suposto bsico que nos permite elaborar tipos ideais, instrumentos de anlise que podem ser vistos como racionalizaes utpicas do fenmeno a ser examinado (16).

Weber no subestima a afinidade entre o indivduo racional moderno e o esboo tipolgico do homo economicus. Entretanto, seu passo crtico aqui consiste em desmascarar a iluso de que racionalidade e comportamento econmico racional seriam perfeitamente sinnimos. O que se deduz de sua crtica ao economcismo (e de resto a toda e qualquer explicao unicausal) que a racionalidade de tipo econmico uma das possveis modalidades lgicas de racionalidade. Discutindo "o ponto de vista econmico" ele afirma:

"Pois bem, o direito anlise unilateral da realidade cultural a partir de 'perspectivas' especficas (aqui, no caso, a de sua condicionalidade econmica) resulta, em primeiro lugar, de forma puramente metodolgica, do fato de que o treinamento do olho para a observao do efeito de categorias causais qualitativamente semelhantes, assim como a constante utilizao de um mesmo aparato metodolgico-conceitual, oferece todas as vantagens da diviso do trabalho. Tal anlise, enquanto referendada pelo xito, no 'arbitrria'. Isto , enquanto oferea um conhecimento de relaes que se demonstrem valiosas para atribuies causais a acontecimentos histrico-concretos. De qualquer forma, a 'parcialidade' e irrealidade da interpretao puramente econmica do histrico, constitui um caso especial de um princpio que guarda validez muito geral para o conhecimento cientfico da realidade cultural" (Weber, 1971, pp. 35-6 ) .

A maximizao do poder poltico, ou do prestgio social, seria igualmente esclarecedora das motivaes dos indivduos: "interesses tanto materiais como ideais, e no as idias diretamente, controlam a ao. Mas as vises de mundo que so produto de idias com freqncia servem de canais ao longo dos quais a ao se move pela dinmica dos interesses" (Schluchter, 1979, especialmente pp. 15-8). Ainda que se deva reconhecer que historicamente assistimos primazia ordenadora dos interesses econmicos, essa primazia deve ser entendida como produto sciocultural do capitalismo que surgiu no Ocidente e se imps ao resto do mundo (Weber, 1967, pp. 1-15).

Assim, ao diferenciar a noo de interesse do mundo da escassez e das necessidades materiais, Weber rompe o vu racionalizante do mundo em que vivemos. Na sua perspectiva, os interesses ideais so igualmente esclarecedores (veja-se Bendix, 1962, caps. IV e VIII). Sua crtica a explicaes monocausais, seu reconhecimento de uma tenso constitutiva entre idealismo e materialismo, entre ao e determinao estrutural (17), atestam uma percepo antitotalizante das cincias histrico-culturais; ao mesmo tempo em que preservam o individualismo como perspectiva analtica fecunda no entendimento de indivduos e coletividades.

Concluindo, creio estar claro que tanto a viso de Durkheim como a weberiana so extremamente teis. A convivncia entre elas, ainda que tensa e problemtica, rica e estimulante, sem que com isso tenhamos que, necessariamente, postular a harmonizao de suas divergncias e contradies. Tanto o ator social weberiano como o homem sociolgico de Durkheim esto longe de esgotar sua fecundidade analtica e fcil evidenciar a relevncia e atualidade dessas duas tradies sociolgicas.

Como ilustrao, lembraria apenas que a postulao de um todo social, de um tecido social amalgamado, persiste nas propostas de tipo corporativo ou nas socialistas, bem como nas crticas neomarxistas ou progressistas do moderno welfare state (18). Da mesma forma, lembraria que a perspectiva individualista, fundada na questo da conduta significativa e intersubjetiva, fundamenta o pensamento social crtico do presente no que ele tem de mais afirmativo (19). Por outro lado, a tradio sociolgica pautada no individualismo inspira tambm uma das correntes mais fecundas da cincia social contempornea, qual seja, aquela que explora as potencialidades analticas de modelos de escolhas racionais em geral e da teoria dos jogos em particular (20).

Espero que estas notas para discusso cumpram de fato seu papel. Quero crer que, alm do carter de compilao mais ou menos idiossincrtica das tradies j quase seculares de Durkheim e Weber, algo de novo se insinue no dilogo aqui proposto. No por qualquer pretenso de inventividade de minha parte, mas simplesmente porque, discutindo aqui e agora as formulaes de Weber e Durkheim, engajamo-nos na aventura da contemporaneidade. Afinal, quem se atreveria a sustentar que possvel ler os clssicos da sociologia em sua "pureza" primitiva, como se fosse possvel restaurar suas formulaes para cingi-las ao universo dos interlocutores da poca, abstraindo, portanto, nossa prpria temporalidade? Quem negaria que a prpria historicidade que nos evidencia a impossibilidade de "depurar", tambm, a histria da teoria?

Assim, os desafios tericos e histricos seguem de mos dadas, e nessa trajetria a sociologia permanece fiel sua duplicidade: dentre as lies de Durkheim, ela guarda a idia de que h "uma forma elementar" de problematizao do social que detectvel em todas as formas de conhecimento sociolgico; e que, nesse sentido, a volta a formulaes passadas segue sendo esclarecedora. Dentre o amplo legado de Weber, ela guarda em mente a eterna juventude das cincias da cultura, seu incessante inacabamento. O dilema entre a conservao e a renovao do conhecimento sociolgico revela, assim, sua identidade puramente analtica, preservando, ao fim e ao cabo, a riqueza e a complexidade do ator sociolgico.

Fonte

REIS, Elisa P. Reflexes sobre o Homo Sociologicus. Disponvel em: . Acesso em: 10 jul. 2009.

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