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Thiago Bottino Coordenador REFLEXOS PENAIS DA REGULAÇÃO Colaboradores: Bernardo Kruel de Souza Lima Gabriela Reis Paiva Monteiro Bernardo Secchin Leonardo Augusto Marinho Marque Daniela Villani Bonaccorsi Leonardo Guimarães Salles Davi de Paiva Costa Tangerino Lucas Ahmad Magalhães Diogo Alencar de Azevedo Rodrigues Paulo Wunder de Alencar Felipe Herdem Lima Thiago Bottino Flaviane de Magalhães Barros Vinicius Gomes de Vasconcellos Gabriel de Almeida Domingues Vládia Viana Regis Curitiba Juruá Editora 2016 A PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO , PUBLICO NO ACORDO DE LENIENCIA FIRMADO COM O CADE THE PARTICIPATION OF THE PUBLIC PROSECUTOR'S OFFICE IN THE LENIENCY AGREEMENT ENTERED INTO WITH CADE Gabriela Reis Paiva Monteiro 1 Sumário: 1. Introdução; 2. Breve Panorama sobre o Programa de Leniência Con- correncial Brasileiro; 3. Reflexos Penais do Acordo de Leniência Anti- truste e a sua Importância na Persecução de Cartéis; 4. Ausência de Pre- visão Lef!al sobre a Participação do Ministério Público na Assinatura do Acordo de Leniência Antitruste com Reflexos Penais; 4.1. Pela participa- ção necessária do Ministério Público no acordo de leniência firmado com o CADE com reflexos venais; 4.2. Pela desnecessidade da participa- ção do Ministério Público no acordo de leniência com reflexos venais firmado com o CADE; 4.3. A participação do Ministério Público como · interveniente-anuente no acordo de leniência com reflexos penais firmado com o CADE; 5. Conclusão; 6. Reforências. 1 INTRODUÇÃO Conquanto o Estado não seja uma forma de organização política ultrapassada, diversos novos dados que pressionam, desafiam e alte- Mestranda em Direito da Regulação da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Funda- ção Getúlio Vargas. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela PUC-Rio (2015). Graduada em Direito pela FGV Direito Rio (2012), com bolsa da Fundação Faz Dife- rença (20 10-20 12). Advogada, com experiência nas áreas de Antitruste/Concorrencial, Anticorrupção e Compliance e Direito Regulatório. E-mail: [email protected].

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Thiago Bottino Coordenador

REFLEXOS PENAIS DA REGULAÇÃO

Colaboradores:

Bernardo Kruel de Souza Lima Gabriela Reis Paiva Monteiro Bernardo Secchin Leonardo Augusto Marinho Marque

Daniela Villani Bonaccorsi Leonardo Guimarães Salles Davi de Paiva Costa Tangerino Lucas Ahmad Magalhães

Diogo Alencar de Azevedo Rodrigues Paulo Wunder de Alencar Felipe Herdem Lima Thiago Bottino

Flaviane de Magalhães Barros Vinicius Gomes de Vasconcellos Gabriel de Almeida Domingues Vládia Viana Regis

Curitiba J uruá Editora

2016

A PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO , ~

PUBLICO NO ACORDO DE LENIENCIA FIRMADO COM O CADE

THE PARTICIPATION OF THE PUBLIC PROSECUTOR'S OFFICE IN THE

LENIENCY AGREEMENT ENTERED INTO WITH CADE

Gabriela Reis Paiva Monteiro 1

Sumário: 1. Introdução; 2. Breve Panorama sobre o Programa de Leniência Con­correncial Brasileiro; 3. Reflexos Penais do Acordo de Leniência Anti­truste e a sua Importância na Persecução de Cartéis; 4. Ausência de Pre­visão Lef!al sobre a Participação do Ministério Público na Assinatura do Acordo de Leniência Antitruste com Reflexos Penais; 4.1. Pela participa­ção necessária do Ministério Público no acordo de leniência firmado com o CADE com reflexos venais; 4.2. Pela desnecessidade da participa­ção do Ministério Público no acordo de leniência com reflexos venais firmado com o CADE; 4.3. A participação do Ministério Público como

· interveniente-anuente no acordo de leniência com reflexos penais firmado com o CADE; 5. Conclusão; 6. Reforências.

1 INTRODUÇÃO

Conquanto o Estado não seja uma forma de organização política ultrapassada, há diversos novos dados que pressionam, desafiam e alte-

Mestranda em Direito da Regulação da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Funda­ção Getúlio Vargas. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela PUC-Rio (2015). Graduada em Direito pela FGV Direito Rio (2012), com bolsa da Fundação Faz Dife­rença (20 10-20 12). Advogada, com experiência nas áreas de Antitruste/Concorrencial, Anticorrupção e Compliance e Direito Regulatório. E-mail: [email protected].

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ram sua forma de atuação (CHEV ALLIER, 2009). A crise do Estado­-social a partir dos anos 1970, por fatores econômicos, políticos e sociais abriu espaço para a reavaliação da relação entre o Estado e a sociedade: Além disso, o avanço tecnológico-científico (sobretudo dos meios de comunicação), o fenômeno da globalização (intimamente associado à expansão de empresas multinacionais e grandes grupos industriais), a interpenetração crescente das economias nacionais, a proliferação de riscos cosmopolitas de toda ordem (tecnológica, cibernética, ecológica, sanitária, etc.) e a emergência de novos tipos de delinquência e criminali­dade2 demandam novas respostas do Estado.

Por um lado, as transformações estruturais progressivamente vivenciadas pelo Estado e pela sociedade pós-industrial, marcada pelo sentimento de risco e insegurança, contribuíram para a crise do Direito Penal clássico, que culminou com a expansão desse ramo _iurídico3.

Quanto a esse aspecto, como observa Jesús-María Silva Sanchez, é possí­vel verificar, de forma geral, uma tendência nas legislações pátrias de recrudescimento dos tipos penais, de inserção de novos tipos e, ainda, de flexibilização de re?"as e relativização de princípios penais (SÁNCHEZ, 2002,p.21,41,61).

Em função da revalorização ou proteção de novos bens jurídicos (e.g, ambiental, econômica, financeira) ou mesmo pelo surgimento de novas formas de organização criminosa (e.g., crime organizado, terrorismo, etc.). Nesse sentido, conferir Flávia G. Pereira (PEREIRA, 2004, p. 113-115). "(..) realmente não é nada difícil constatar a existência de uma tendência claramente dominante em todas as le[{islações no sentido da introdução de novos tipos penais, assim como um dos já existentes, que se pode encaixar no marco [{era! da restrição, ou a "reinterpretação" das [{arantias clássicas do Direito Penal Substantivo e do Di­reito Processual Penal. Criação de novos "bens jurídico-penais", ampliação doses­paços de riscos jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das re[{ras de imputa­ção e relativização dos princípios político-criminais de [{arantia, não seriam mais do QU€f aspectos dessa tendência geral, à qual cabe referir-se com o termo 'expansão" (SANCHEZ, 2002, p. 21, 41, 61). Nesse contexto, o autor elenca como possíveis cau­sas dessa expansão do Direito Penal os seguintes fatores: 1 o - A aparição e/ou revalo­rização, por diversos motivos, de "novos interesses" elegíveis à tutela penal, que se destina àqueles bens jurídicos especialmente importantes; 2° - O aparecimento de no­vos riscos na sociedade pós-industrial, que se caracteriza por avanços tecnológicos e espaços econômicos rapidamente variantes; 3°- A institucionalização da insegurança por meio da distribuição de riscos tecnológicos e não tecnológicos (e.g., "criminalida­de_de mass~s")- e não mais apenas prevenção de riscos-, com a criação de tipos pe­nats de pengo e sua configuração abstrata; 4°- O crescimento da sensação I percep­ção social de insegurança, sobretudo em razão da revolução das comunicações; 5o - A configuração de uma sociedade de "sujeitos passivos" (i.e. de beneficiários de pro­gramas de transferência); 6°- A identificação da maioria com aquele que foi vítima do delito; 7° - O descrédito em outras instâncias protetivas distintas da jurídico-penal,

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Por outro lado, as transformações por que passou o Estado fize­ram com que entrasse em crise o Direito Administrativo clássico e a pró­pria atuação da Administração Pública nesse âmbito. Marcado pela unila­teralidade e imperatividade de seus atos, pelo culto à supremacia e indis­ponibilidade do interesse público e por estruturar uma relação verticaliza­da entre a Administração Pública e o administrado, o Direito Administra­tivo tradicional e seus institutos _já não atendiam à realidade tecnológica, globalizada e acelerada em que esse direito era aplicado e aos anseios dos particulares por eficiência, transparência, participação e liberdade nos anos que seguiram o abandono do modelo de Estado de providência.

A emergência da consensualidade, enquanto função da Admi­nistração Pública, ocorreu a partir da flexibilização de elementos do Di­reitp Administrativo clássico, em resposta às demandas sociais por parti­cipação, diálogo e eficiência, inclusive na própria satisfação do interesse púb)ico (MOREIRA NETO, 2006, p. 236-237). A consensualidade (ou conf;ensualismo ), uma nova categoria do Direito Administrativo, consiste em ~tividade da administração pública, formalizada por meio de acordo administrativo, que privilegia uma relação de cooperação e diálogo entre aquela e seus administrados, em substituição à "tradicional estrutura verlicalizada, decorrente do princípio da legalidade e amparada na ideia de supremacia do interesse público sobre os particulares e de sua respec­tivd indisponibilidade" (BERMAN, 2015, p. 1)516•

çomo o Direito Administrativo; 8° - A mudança de posição de defensores de uma ériminologia de esquerda e a assunção, pela socialdemocracia europeia, de um discur­so de segurança; e 9° - Movimentos de privatização e desformalização do Direito Pe­nal, marcados pela emergência da ideia de "gerencialismo", paradoxalmente manifes­tada nesse ramo jurídico pelo surgimento de "modelos de justiça negociada", mas em que a preocupação com verdade e justiça é delegada para um segundo plano, passando o Direito Penal a ser visto como um mecanismo eficiente para a gestão e combate de determinados tipos de criminalidade, como aquela praticada pelos "poderosos" (SÁNCHEZ, 2002, p. 27/74). Para outras definições sobre a atividade consensual da Administração Pública, confe­rir as obras de Juliana Palma (PALMA, 2013) e Patrícia Batista (BATISTA, 2003). A consensualidade é, portanto, mais uma categoria do direito administrativo, tal como são os atos e contratos administrativos e não se confunde com contratualidade. Se­gundo Patrícia Batista, "noção vizinha à de consensualidade é a de contratualidade, surgida em decorrência do substancial aumento da atividade contratual da Adminis­tração Pública nas últimas décadas. Entre ambas, consensualidade e contratualidade existe uma certa confusão, já que as suas são reflexos de um processo mais amplo de busca da Administração por parcerias na sociedade, com vistas à realização de tare­fas públicas. Não obstante essa zona comum, para fins de tratamento dogmático, con­sensualidade e contratualidade não devem ser tidos como sinônimos" (BATISTA, 2003, p. 274).

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Essa atividade administrativa consensual pode se desenvolver por diversas formas, citando-se, como exemplo, os acordos substitutivos de sanção administrativa, de que são espécies, no Direito Antitruste, os termos de cessação de conduta e os acordos de leniência7

A nova Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011) esta­belece um programa de leniência que prevê beneficios para o signatário desse acordo nas searas administrativa e penal em troca de sua colabora­ção efetiva com as autoridades concorrenciais brasileiras em processos administrativos para a investigação de condutas anticompetitivas. Esse programa vem se mostrando um importante instrumento de política pú­blica para a detecção e punição de condutas anticompetitivas no Brasil, sobretudo cartéis. Apesar disso, algumas questões importantes sobre a sua estruturação ainda têm suscitado debates doutrinários. Uma dessas críti­cas se refere à ausência de previsão expressa, na legislação concorrencial, da participação do Ministério Público na negociação, assinatura e verifi­cação do cumprimento do acordo de leniência antitruste com reflexos penais. Mas será que é realmente necessária a participação do Parque!?

Esse debate muitas vezes é apresentado apenas de forma super­ficial pela doutrina, sem aprofundamento teórico do tema à luz dos insti­tutos do Direito Penal, especialmente o da punibilidade. Também não há ainda decisões judiciais sobre essa questão. Dito isto, o objetivo do pre­sente trabalho é apresentar e aprofundar a discussão doutrinária existente acerca da necessidade de participação, ou não, do Ministério Público no acordo de leniência firmado com a autoridade concorrencial brasileira.

Além desta introdução, este artigo apresenta um breve panora­ma do programa de leniência concorrencial brasileiro na seção 1, discor­rendo sobre a definição e lógica de acordos de leniência, bem como sobre as principais regras previstas na legislação brasileira de defesa da concor­rência. Na seção 2, são tecidos comentários sobre os reflexos penais dos acordos de leniência firmados com a autoridade concorrencial brasileira

' que ocorrem no caso de crime de cartel e demais crimes relacionados. Finalmente, na seção 3, será apresentada e aprofundada a discussão dou­trinária acerca da ausência de previsão legal sobre a participação do Mi­nistério Público na negociação, assinatura e verificação do cumprimento do acordo de leniência antitruste com reflexos penais.

Como será visto ao final deste trabalho, a crítica acerca da au­sência de previsão legal que estabeleça e regre a participação do Ministé-

Outros gêneros de acordo também são utilizados no Direito Antitruste, como os acor­dos em controle de atos de concentração (ACCs), previstos na Lei 12.529/2011 e os acordos de preservação da reversibilidade da operação (APROs), previstos na Resolu­ção 13/2015 do CADE.

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rio Público no acordo de leniência firmado com o CADE não merece prosperar. Ainda que haja indícios de autoria e prova de materialidade de crime, dentre outros motivos, o poder-dever do Parque! de promover a ação penal pública incondicionada (art. 129, I, CF) só deve ocorrer na­queles casos em que haja conduta punível, o que não ocorre quando a conduta é objeto de acordo de leniência cumprido pelo seu beneficiário, na forma do art. 87 da Lei 12.529/2011. Não obstante esse posicionamen­to, entende-se aqui que a questão merece guarida expressa na legislação concorrencial, com o intuito de proporcionar maior segurança jurídica aos interessados na celebração do acordo de leniência, impulsionando a utili­zação desse instituto. Assim, é relevante que se positive em lei a desne­cessidade de participação do Ministério Público na negociação, assinatura e verificação do cumprimento do acordo de leniência firmado pelo CA­DE~ bem como que haja a manifestação expressa, nesse sentido, dos ór­gão$ envolvidos na questão.

2 BREVE PANORAMA SOBRE O PROGRAMA DE LENIÊNCIA CONCORRENCIAL BRASILEIRO

O termo leniência, oriundo do latim lenitate, significa brandura ou &uavidade (GABAN, 2012, p. 257). De forma geral, acordos de leniên­cia podem ser definidos como um instrumento contratual por meio do qual a autoridade pública garante imunidade (total ou parcial) e/ou redu­ção das penalidades aplicáveis a determinadas práticas infrativas, em troda da colaboração do agente in:frator8

O instituto da leniência se fundamenta na teoria dos jogos, so­bretudo no famoso exemplo do "dilema dos prisioneiros"9, aproveitando-

Nesse sentido, Gesner Oliveira e João Rodas defmem a leniência como "a transação entre o Estado e o delator que, em troca de informações que viabilizem a instauração, a celeridade e a melhor fundamentação do processo, possibilita um abrandamento ou extinção da sanção em que este incorreria, em virtude de haver também participado na conduta ilegal denunciada" (OLIVEIRA; RODAS, 2004, p. 41-42). A teoria dos jogos analisa o comportamento estratégico de agentes tomadores de decisão que interagem entre si (os chamados "jogadores"), considerando que o resul­tado das ações de um agente racional também depende das ações dos demais. O "di­lema dos prisioneiros" é um jogo em que todos os jogadores têm estratégias dominan­tes (uma estratégia é dominante quando o seu payoff ou resultado esperado é maior do que os das estratégias alternativas, independentemente das escolhas dos demais joga­dores). Assim como as teorias microeconômicas, a teoria dos jogos tem sido crescen­temente utilizada na análise econômica do direito, na medida em que fornece uma es­trutura útil à análise do impacto de leis (enquanto restrições comportamentais) na so­ciedade e pode auxiliar no desenho institucional de sistemas legais para que seus obje-

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-se da desconfiança naturalmente existente entre as pessoas (fisicas e/ou jurídicas) envolvidas na prática ilícita e sua consequente instabilidade (MARTINEZ, 2014, p. 27).

De acordo com Ana Paula Martinez, enquanto espécie de dela­ção premiada, o instituto da leniência é marcado pela lógica "da cenoura e do porrete" (stick-and-carrot approach), segundo a qual se oferece um tratamento leniente (a "cenoura") para o agente infrator que decide cessar sua participação na conduta e delatá-la com o propósito de não se expor às severas penalidades previstas na lei (o "porrete") (MARTINEZ, 2014, p. 27). Em outras palavras, diante do receio de denúncia da conduta por algum coautor e de imposição de altas sanções, havendo a possibilidade de ter a sua penalidade reduzida ou extinta (i.e., a premiação), o agente infrator é incentivado a aderir ao programa de leniência, denunciando o ilícito e trazendo elementos de prova para a condenação das demais pes­soas envolvidas.

Especificamente na seara concorrencial, os programas de leniên­cia antitruste buscam criar incentivos para que integrantes de uma práti­ca anticompetitiva, sobretudo cartéis, reportem às autoridades concor­renciais a existência dessa prática, por meio do oferecimento de imuni­dade (total ou parcial) com relação a penalidades que possam vir a ser aplicadas. Permite-se, assim, que as autoridades de defesa da concor­rência tenham conhecimento dessas práticas e acesso a informações e documentos que de outra forma não teriam, aumentando a sua capaci­dade de detectar, investigar e condenar tais condutas. Isso aumenta as chances de descoberta, persecução e punição dessas práticas anticompe­titivas, reduzindo os custos da investigação e do processo administrati­vo, em prol da eficiência da Administração Pública e da preservação de recursos públicos e privados10•

Essas eficiências do acordo de leniência podem, ainda, ser aproveitadas para o processo penal, em que, cada vez mais, se cobra por celeridade, efetividade e simplicidade. Afinal, com base na apuração rea-

tivos sejam alcançados. Para uma introdução à teoria dos jogos e sua aplicabilidade ao Direito, ver obra de Ronald Hilbrecht (HILBRECHT, 2012, p. 115-138).

10 Nesse sentido, Rafael Oliveira e Daniel Amorim Neves destacam que: "não se pode perder de vista que a sanção não é um fim em si mesmo, mas um instrumento de res­tauração ou compensação dos danos ocasionados pelo ilícito praticado. Ao lado da sanção, existem outros instrumentos que possuem o condão de atingir o interesse pú­blico de forma mais eficiente e econômica, tal como ocorre com o acordo que substi­tui processos sancionatórios por medidas preventivas e compensatórias ao dano. Não se trata de dispor do interesse público, mas, ao contrário, da escolha do melhor ins­trumento para sua implementação" (OLIVEIRA; NEVES, 2014, p. 14).

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lizada no processo administrativo, toma-se mais provável a comprovação de infrações contra a ordem econômica que também sejam penalmente tipificadas ( e.g., cartéis e crimes relacionados) e, consequentemente, a condenação dos demais indivíduos envolvidos nesses crimes. Aliás, o recurso a modelos de justiça consensual também é cada vez mais frequen­te no próprio Direito Penal, sendo considerado, inclusive, como uma das causas de expansão desse ramo jurídico, como já exposto neste trabalho11

Nesse contexto, como observa Marco Aurélio Valério, acordos de leniên­cia também funcionam como um "instrumento que ajuda na investigação e repressão de certas formas de crimes, notadamente aqueles que apre­sentam conotações organizadas" (V ALERIO, 2006, p. 198).

O funcionamento adequado de um programa de leniência, con­tudo, depende do acerto no seu desenho institucional, com vistas a estabe­lecer regras que ofereçam os incentivos corretos à sua utilização pelos agentes colaboradores, sem que haja, contudo, abusos no recurso a tal ins1jtuto (perverse e.ffects 12

).

Diversos trabalhados discutem o design ótimo de programas de lenlência concorrenciais, sobretudo com relação à persecução de cartéis 13

Evidentemente, a solução dessa discussão não é trivial e o modelo mais apropriado para cada programa variará conforme a estrutura persecutória de ilícitos antitrustes e a política concorrencial adotada em cada país. De forma geral, contudo, na elaboração e implementação de uma política de len~ência com relação a cartéis, a International Competition Network

11 Como constatado por Rosimeire Leite, há no Brasil e no estrangeiro uma tendência de expansão de acordos no âmbito do processo penal. De acordo com a autora, "a moro­sidade do processo penal, a sobrecarga do aparato judiciário e os desencantos com a abordagem meramente repressiva foram alguns fatores que concorreram para o for­talecimento de novos caminhos, representados, principalmente, pelos modos alterna­tivos de resolução de conflitos e pela justiça restaurativa. Afora essas iniciativas, que atuam, em regra, como complemento da justiça estatal, têm-se promovido também significativas mudanças no próprio processo penal, investindo-se em ritos especiali­zados e em saídas alternativas à persecução que se fundam no princípio da oportuni­dade. É nesse contexto de transformações sociais e jurídicas que se insere a justiça consensual penal (..). No cerne da proposta do consenso está a ide ia de ampliar as possibilidades do processo penal com o reforço da autonomia da vontade. Pelos insti­tutos que materializam o referido modelo de justiça, a persecução é encerrada mediante acordos entre a acuação e a defesa, ou seja, a solução resulta da vontade dos sujeitos intervenientes e não de um ato impositivo do órgão julgador após a análise de fatos e provas, como ocorre no processo penal clássico" (LEITE, 2009).

12 Sobre a questão, conferir o trabalho de Massimo Motta e Michele Polo (Motta; Polo, 1999).

13 Nesse sentido, por exemplo, conferir o trabalho de Zhijun Chen e Patrick Rey (CHEN; REY, 2013).

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(ICN) aponta como pré-requisitos (i) a adoção de penalidades elevadas; (ii) a instituição de um combate vigoroso e de alto risco de detecção da conduta; e (iii) a implementação de transparência e segurança quanto à operação do programa de leniência. Na ausência desses pré-requisitos, de acordo com a ICN, não há incentivos para que participantes de uma práti­ca colusiva a denunciem (self-report). Ainda segundo a ICN, conquanto os benefícios atribuídos ao leniente não possam ser exagerados, também há riscos envolvidos na negociação e celebração de acordos de leniência que não podem ser desconsiderados pelas autoridades concorrenciais na elaboração e implementação de uma política. Por isso, é importante que se considere não só se o programa contém os incentivos corretos, mas também se o mesmo não contém eventuais desincentivos que obstaculi­zem um participante de uma determínada conduta anticompetitiva a de­nunciá-la. Nessa esteira, dentre as diversas recomendações feitas pela ICN, consta o alerta quanto à necessidade de articulação clara da política de leniência com eventuais sistemas paralelos de persecução da conduta anticompetitiva, como o cível e o criminal, de modo a prover o máximo de segurança para potenciais lenientes e incentivá-los a colaborar com as autoridades concorrenciais (ICN, 2009).

O instituto da leniência foi instituído, pela primeira vez, na an­tiga Lei de Defesa da Concorrência (Lei 8.884/1994) no ano 200014

• Em um contexto de mudança de foco quanto à atuação das autoridades de defesa da concorrência, com esta medida (dentre outras, como a possibi­lidade de realização de escutas telefônicas e operações de busca e apreen­são, além de convênios com o Ministério Público e a Polícia Federal) 15,

buscava-se fortalecer a persecução de condutas anticompetitivas, espe­cialmente cartéis. O acordo de leniência concorrencial, tal como origi­nalmente proposto, teve inspiração em instrumentos semelhantes existen­tes em legislações concorrenciais estrangeiras (como a americana e a europeia), considerados pela doutrina especializada e organizações inter­nacionais como instrumentos eficientes no combate a cartéis.

14 A Medida Provisória 2.055/2000, posteriormente transformada na Lei 10.149/2000, introduziu o programa de leniência antitruste por meio do acréscimo dos artigos 35-B e 35-C à Lei 8.884/1994.

15 Conforme apontado por Paulo Furquim de Azevedo e Alexandre Lauren Henriksen, a instituição conjunta dessas medidas foi relevante para criação de um ambiente se­vero de combate a condutas anticompetitivas, especialmente cartéis, e, consequen­temente, para o próprio deslanche do programa de leniência concorrencial brasilei­ro, que, em um primeiro momento, não obteve resultados expressivos, tendo o pri­meiro acordo de leniência sido firmado apenas no ano de 2003 (Processo Adminis­trativo 08012.001826/2003-10 - "Cartel dos Vigilantes") (AZEVEDO; HEN­RIKSEN, 2010).

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Atualmente, um programa de leniência 16 antitruste reformulado é previsto nos arts. 86 e 87 da nova Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011) e vem se mostrando um importante instrumento de política pública para a detecção e punição de condutas anticompetitivas no Brasil, sobretudo cartéis 17

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), por intermédio de sua Superintendência-Geral (SG-CADE), poderá celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica autora de infração contra or­dem econômica, desde que a mesma: (i) seja a primeira a se qualificar com respeito a essa infração, caso em que receberá um marker (senha comprobatória dessa posição na fila para a negociação do acordo); (ii) colabore efetivamente com as investigações e o processo administrativo e dessa colaboração resulte a identificação dos demais envolvidos na infra­ção ,e a obtenção de informações e documentos que comprovem a infra­ção ,noticiada ou sob investigação; (iii) cesse completamente seu envol­virni:nto na conduta a partir da data de propositura do acordo; (iv) confes­se spa participação no ilícito; e (v) coopere com as investigações e o pro­cesgo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que soli­citada, a todos os atos processuais, até seu encerramento. Além disso, a Lei de Defesa da Concorrência também exige que (v) a SG-CADE ainda não disponha de provas suficientes para assegurar a condenação da em­presa ou pessoa física envolvida na conduta por ocasião da propositura do aco{do.

' V ale destacar que a nova Lei de Defesa da Concorrência não maij; proíbe que aquele que tenha estado à frente da conduta anticompeti­tiva (i.e., o líder) possa celebrar o acordo de leniência, o que representa um passo importante para a geração de incentivos à utilização desse insti­tuto no Brasiti8

16 Refere-se aqui a "Programa de Leniência", que inclui não só a própria previsão da possibilidade de se firmar um acordo de leniência com o CADE, mas também medi­das que visam à instrução de pessoas jurídicas e físicas quanto ao instituto (art. 197, Resolução 1/2012 do CADE).

17 De acordo com informações oficiais do site do Conselho Administrativo de Defesa Econômíca (CADE), até abril de 2016, um total de 54 (cinquenta e quatro) acordos de leniência tinham sido firmados pelas autoridades de defesa da concorrência no Brasil. Informação disponível em <http://www.cade.gov.br/assuntos/programa-de-leniencia>. Acesso em: 01 ago. 2016.

18 Todavia, como destaca Leonor Cordovil, apesar dessa relevante alteração nos requisi­tos, "não pode ser negado o risco de uma empresa, de má-fé, provocar, instigar um conluio, delatá-lo às autoridades concorrenciais e se eximir de penalidade, com o claro intuito de prejudicar a imagem de seus concorrentes e, porque não, eliminá-los. Obviamente, devem as autoridades concorrenciais se preocupar em descartar esta

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Com relação às pessoas físicas, elas também poderão propor e firmar acordos de leniência, desde que sejam cumpridos os requisitos elencados nos itens (ii) a (v) acima. Dessa forma, o fato de a pessoa jurí­dica não ser proponente de acordo de leniência não impede que seu fun­cionário ou ex-funcionário o proponha. Neste caso, contudo, sendo fir­mado o acordo, os beneficios não se estenderão à pessoa jurídica 19• Essa possibilidade de a pessoa física também firmar acordos de leniência é bastante importante, dada a criminalização do cartel no Brasil.

Ao propor o acordo de leniência à SG-CADE, o proponente de­verá possuir todas as informações e documentos necessários para a sua formalização, oralmente ou por escrito20

• Caso isso não seja possível, o proponente poderá se apresentar à SG-CADE e requerer uma declaração desse órgão atestando ter sido o proponente o primeiro a comparecer em relação a uma determinada infração a ser noticiada ou já sob investiga­ção. Nessa declaração constará, então, o prazo para que o proponente apresente sua proposta à SG-CADE21

• Essa proposta de acordo de leniên­cia é considerada sigilosa, salvo no interesse das investigações e do pro­cesso administrativo, e a ela somente terão acesso as pessoas autorizadas pelos Superintendente-Geral do CADE22•

Proposto o acordo, as informações e documentação apresenta­das são analisadas pela SG-CADE e é redigido conjuntamente o histórico da conduta que instruirá o acordo de leniência, no caso de sua ulterior celebração. A negociação a respeito da proposta do acordo de leniência deverá ser concluída ao término dos prazos concedidos pela SG-CADE para tanto23

• Não importará em confissão quanto à matéria de fato, nem reconhecimento de ilicitude da conduta analisada, a proposta de acordo de leniência rejeitada, da qual o CADE não poderá fazer qualquer divul­gação24. Além disso, não sendo o acordo alcançado (por rejeição ou de-

possibilidade, no caso de o interessado ser o líder da infração" (CORDOVIL, 2011, p. 191).

19 Art. 198, § 3°, Resolução 112012 do CADE. 20 Art. 200, Resolução 1/2012 do CADE. 21 Art. 199, Resolução 112012 do CADE. 22 Art. 200, § 1°, Resolução 112012 do CADE. 23 Art. 204, Resolução 112012 do CADE. 24 O art. 86, § 7° e 8°, da Lei 12.529/2011 prevê o instituto da leniência plus. No caso de

não obter, no curso de inquérito ou processo administrativo, a habilitação para a cele­bração do acordo de leniência, a empresa ou pessoa física poderá celebrar com a SG­CADE, até a remessa do processo para julgamento pelo Tribunal Administrativo do CADE, um acordo de leniência relacionado a uma outra infração, da qual o CADE não tenha qualquer conhecimento prévio. Nessa hipótese, o infrator leniente se bene­ficiará da redução de 113 da pena que lhe for aplicável no processo em que não foi ha-

Reflexos Penais da Regulação 173

sistência), todos os documentos serão devolvidos ao proponente, não permanecendo qualquer cópia na SG-CADE, e não poderão ser utilizados para quaisquer fins pelas autoridades que a eles tiveram acesso25

Já no caso de a proposta ser aceita, as condições necessárias pa­ra assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo (objetivo almejado pela autoridade concorrencial) serão estipulados no próprio acordo de leniência negociado e firmado com a SG-CADE26

Os beneficios que o leniente poderá receber também serão pre­vistos no acordo de leniência, conquanto já sejam estabelecidos na pró­pria Lei de Defesa da Concorrência. É importante esclarecer, contudo, que a assinatura do acordo com a SG-CADE não importa na aquisição imediata desses beneficios pelo signatário, ficando sujeita à verificação, pelo Tribunal Administrativo do CADE, do cumprimento do acordo de leniÇncia, quando do julgamento do processo administrativo por infração à ordem econômica com relação aos demais participantes da conduta27

lnlitado, sem prejuízo da obtenção integral dos benefícios do acordo de leniência fir­mado em relação à nova infração denunciada, no caso de verificação de seu cumpri­mento pelo Tribunal Administrativo do CADE. Outro acordo disponível para o infra­tor na seara concorrencial é o termo de compromisso de cessação de conduta, previsto no art. 85 da nova Lei de Defesa da Concorrência, por meio do qud o infrator, dentre qutras obrigações que sejam julgadas cabíveis, se obriga a não praticar a conduta in­'!estigada ou seus efeitos lesivos. No termo de compromisso constarão: (i) a especifi­Cfição das obrigações do representado no sentido de não praticar a conduta investigada ou seus efeitos lesivos, bem como outras obrigações que sejam julgadas cabíveis na negociação, entre elas a necessidade de colaboração quando o processo ainda estiver ém trâmite perante a SG-CADE (conquanto essa condição também possa ser exigida no Tribunal Administrativo); (ii) a fixação do valor da multa para o caso de descum­primento, total ou parcial, das obrigações compromissadas; e (iii) a fixação do valor da contribuição pecuniária ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos quando cabível. Essa contribuição pecuniária é obrigatória nos casos de cartel (art. 36, § 3°, I e II, Lei 12.529/2011), assim como o reconhecimento de participação na conduta investigada por parte do compromissário. Cumpridos os termos do compromisso firmado, o pro­cesso administrativo é arquivado apenas com relação aos compromissários. Diferen­temente do que ocorre no acordo de leniência, o TCC não gera benefícios na seara criminal. Isso, contudo, não impede que o compromissário se valha de uma colabora­ção premiada com o Ministério Público.

25 Art. 205, Resolução 1/2012 do CADE. Isso, contudo, não impedirá a abertura de investigação pela SG-CADE para apurar fatos relacionados à proposta de acordo de leniência, quando essa nova investigação for oriunda de elementos probatórios autô­nomos de que o CADE possa tomar conhecimento por qualquer outro meio.

26 Para cláusulas e condições que deverão constar no acordo de leniência, conferir o art. 206 da Resolução 112012 do CADE.

27 A identidade do signatário do acordo de leniência é mantida como de acesso restrito em relação ao público em geral até esse momento. Além disso, é vedada a divulgação ou o compartilhamento, total ou parcial, com outras pessoas físicas, juridicas ou entes

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Em troca da confissão de culpa e de sua colaboração efetiva, uma vez declarado o cumprimento do acordo de leniência, a pessoa jurí­dica e/ou fisica será beneficiada com a extinção da ação punitiva da Ad­ministração Pública28 ou a redução de 1 a 2/3 da penalidade aplicável nessa esfera. Além disso, como o cartel é uma espécie de infração à or­dem econômica que também é tipificada na legislação penal brasileira, a celebração de acordo de leniência antitruste determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação às pessoas fisicas signatárias da leniência nos crimes contra a ordem econômica previstos no art. 4o da Lei 8.13711990 e, ainda, nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos Administra­tivos) e no art. 288 do Código Penal (crime de associação criminosa)29

• A referência expressa aos crimes tipificados em outros diplomas, além da Lei 8.13711990, representou grande avanço da nova Lei de Defesa da Concorrência, com o intuito de garantir maior segurança às pessoas fisi­cas interessadas na assinatura do acordo de leniência, proporcionando maiores incentivos à utilização desse instituto. Uma vez verificado, pelo Tribunal Administrativo do CADE, o cumprimento do acordo de leniência pelo signatário, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes acima exclusivamente com relação ao autor beneficiário do acordo.

Esses benefícios do acordo de leniência podem ser estendidos às empresas do mesmo grupo econômico e aos seus dirigentes, adminis­tradores e empregados que também estejam envolvidos na infração, desde que também o firmem em conjunto com a pessoa jurídica leniente. Para a extensão dos efeitos, também é possível a adesão ao acordo assinado pela proponente, mesmo que formalizada em documento apartado e em mo-

de outras jurisdições, do acordo de leniência e de seus anexos ou de quaisquer outros documentos apresentados pelo signatário do acordo de leniência ou que recebam tra­tamento de acesso restrito por parte do CADE, sendo que a desobediência desse dever sujeitará os infratores à responsabilização administrativa, civil e penal. O acesso a es­ses documentos somente é concedido aos representados estritamente para fins de exercício do direito ao contraditório e da ampla defesa (art. 207, Resolução 1/2012 do CADE).

28 A extinção da ação punitiva administrativa é cabível apenas nas hipóteses em que a proposta de acordo é apresentada à SG-CADE, sem que essa tenha conhecimento pré­vio da infração noticiada.

29 Se,. por um lado, o ministério público está impedido de oferecer a denúncia, o que est1m~l~ a adesão ao programa de leniência; por outro lado, a suspensão do prazo prescncwnal da pretensão punitiva estatal afasta a possibilidade de o signatário do acordo de leniência procrastinar e não colaborar efetivamente com a investigação até o transcurso desses prazo, quando também haveria a extinção da punibilidade do cri­me (i. e., do jus puniendi estatal).

Reflexos Penais da Regulação 175

menta subsequente, quando admitida pela autoridade, segundo critério de conveniência e oportunidade30131

Já no caso de descumprimento do acordo de leniência, o signa­tário ficará impedido de firmar novo acordo pelo prazo de 3 anos, conta­do da data de seu julgamento pelo Tribunal Administrativo do CADE.

3 REFLEXOS PENAIS DO ACORDO DE LENIÊNCIA ANTITRUSTE E A SUA IMPORTÂNCIA NA PERSECUÇÃO DE CARTÉIS

Conforme exposto acima, o acordo de leniência firmado com a autoridade antitruste brasileira somente tem reflexos na esfera penal nos casos de cartel (a única conduta anti competitiva que, atualmente, também recebe tratamento penal). O cartel é um acordo, implícito ou expresso, entr~ concorrentes com o objetivo de, principalmente: (i) fixar preços; (ii) fixar quantidade; (iii) dividir clientes; e (iv) dividir áreas geográficas de atu'lção32 • Por meio da ação coordenada entre concorrentes, o principal propósito do cartel é eliminar a concorrência e, consequentemente, au­mentar preços e reduzir o bem-estar do consumidor.

Os cartéis também podem ser organizados no escopo de certa­mes licitatórios, em que os concorrentes definem o vencedor e implemen-

' 3D Art. 198, § 2°, da Resolução 1/2012 do CADE. 31 .Essa questão é bastante polêmica no Brasil, já que, em alguns países, como os Estados

únidos, a extensão dos beneficios do acordo de leniência às pessoas fisicas é automática 32 O art. 4° da Lei 8.137/1990 define o crime de cartel nos seguintes termos: "Art. 4o

Constitui crime contra a ordem econômica: I - abusar do poder econômico, domi­nando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas; II- formar acordo, convênio, ajus­te ou aliança entre ofertantes, visando: a) à fixação artificial de preços ou quantida­des vendidas ou produzidas; b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas; c) ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de dis­tribuição ou de fornecedores". O art. 36, §3°, da Lei 12.529/2011, por sua vez, alude à infração administrativa de cartel da seguinte forma: "§ 3° As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: I- acordar, combinar, ma­nipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: a) os preços de bens ou ser­viços ofertados individualmente; b) a produção ou a comercialização de uma quanti­dade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume oufrequência restrita ou limitada de serviços; c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clien­tes, fornecedores, regiões ou períodos; d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública; II- promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comer­cial uniforme ou concertada entre concorrentes".

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tam mecanismos de distribuição dos ganhos adicionais auferidos pela contratação do preço final mais elevado entre os agentes participantes do conluio (por meio de, por exemplo, subcontratação, celebração de contra­tos de fornecimento, pagamentos em espécie, etc. )33.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econô­mico (OCDE)34 classifica os cartéis como a mais grave lesão à concor­rência35. De forma unânime, a literatura econômica aponta que, no caso de infrações de cartel, os efeitos líquidos à sociedade são invariavelmente negativos. Ao limitar artificialmente a concorrência em um determinado mercado e permitir que os seus partícipes aumentem preços e restrinjam a oferta, práticas cartelizadas prejudicam seriamente os consumidores. Além disso, os cartéis também podem trazer prejuízos à inovação tecno­lógica em um dado setor, na medida em que reduzem significativamente os incentivos para que os concorrentes aprimorem seus processos produ­tivos e lancem novos e melhores produtos no mercado36.

Por esses motivos, as legislações concorrenciais mundo afora têm adotado, cada vez mais, uma diversidade de regras e medidas com vistas à persecução administrativa, cível e penal de cartéis. Além disso, em grande parte das jurisdições concorrenciais, essa conduta é frequen­temente tratada como infração, cujo objeto é sempre ilícito per se, presu­mindo-se os seus efeitos nocivos e bastando a simples prova da existência do acordo para a condenação das pessoas físicas e jurídicas envolvidas no conluio (ou seja, não há necessidade de comprovação e mensuração dos efeitos líquidos negativos dessa conduta).

Como já exposto, no Brasil, o cartel é tipificado penaP7 (art. 4°, Lei 8.137/1990) e administrativamente38 (art. 36, §3°, I e 11, Lei

33 Os esquemas de cartéis em licitação geralmente são: (i) apresentação de propostas fictícias ou de cobertura (cover bidding); (ii) supressão de propostas (bid suppressi­on); (iii) propostas rotativas (bid rotation); e (iv) divisão de mercado (área geográfica ou clientes).

34 Informações disponíveis em: <http://www.oecd.org/competitionlcartels/>. Acesso em: 18 set. 2016.

35 Especificamente, a OCDE faz referência aos cartéis hard-core (ou clássicos), que são acordos ilícitos entre concorrentes caracterizados por um alto grau de institucionaliza­ção e pela adoção de mecanismos sofisticados para o funcionamento do cartel (por exemplo, estabelecimento de regras, reuniões frequentes e periódicas, etc.).

36 Informações disponíveis em: <http://www.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicacoes -institucionais/documentos-da-antiga-lei/cartilha _leniencia. pdt>. Acesso em: 18 set. 2016.

37 Na seara penal, o indivíduo está sujeito a pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, conforme nova redação dada ao art. 4° da Lei 8.137/1990 pelo artigo 116 da Lei 12.529/2011. Na redação anterior desse dispositivo, a pena era de, alterna-

Reflexos Penais da Regulação 177

12.529/2011), sendo ainda cabível o ajuizamento, por qualquer prejudi­cado, de ações cíveis com vistas à reparação de danos (art. 4 7, Lei 12.529/2011) e ações civis públicas pelo Ministério Público e demais legitimados (arts. 1° e 5°, Lei 7.347/1985), conquanto a persecução nessa seara ainda seja bastante incipiente no país39. Dada a gravidade da condu­ta de cartel e seus efeitos invariavelmente perniciosos, as políticas crimi­nais e de defesa da concorrência brasileiras buscam concentrar esforços e os escassos recursos públicos no combate dessa prática. Nesse sentido, por exemplo, são as alterações introduzidas no art. 4° da Lei de Crimes contra a Ordem Econômica pelo art. 116 da nova Lei de Defesa da Con­corrência, que limitou a relevância da persecução penal de infrações à ordem econômica ao crime de cartel e endureceu a pena aplicável.

Além de sua gravidade, cartéis são considerados ainda como uma das condutas mais difíceis de serem detectadas, investigadas e pro­vadàs. Cientes da ilicitude do conluio, membros de um cartel geralmente são piscretos e sigilosos e ocultam as evidências de seus atos (contatos, reuniões, trocas de informações por meios diversos, etc.). Por isso, muitas vezes, são necessários esforços hercúleos das autoridades de defesa da concorrência para a reunião de elementos probatórios ou indícios míni­mos da conduta.

t{vamente, reclusão ou de multa. Na forma do artigo 12 da Lei 8.137/1990, essa pena p'ode ainda ser aumentada de 1/3 (um terço) até metade se o crime causar grave dano à coletividade, for cometido por um servidor público no exercício de suas funções ou se rMacionar a bens ou serviços essenciais para a vida ou para a saúde.

38 No Brasil, cartéis do tipo hard core, considerados a mais grave infração antitruste, também têm sido julgados como ilícitos per se em razão do alto grau de instituciona­lização da prática e dos seus efeitos invariavelmente negativos à concorrência e ao mercado. Nesse sentido, conferir a obra de Molan Gaban (GABAN, 2012. p. 188). De acordo com o art. 37 da Lei 12.529/2011, empresas participantes de um cartel estão sujeitas a multas administrativas aplicadas pelo CADE, que podem variar entre de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do valor do faturamento no ramo de atividade em que ocorreu a infração, a qual nunca será inferior à vantagem auferi­da, quando for possível sua estimação, além de outras penas, como a publicação da decisão em jornal de grande circulação, a proibição de contratar com instituições fi­nanceiras oficiais e de participar de licitações públicas, a cisão de ativos, entre outras. As demais pessoas fisicas ou jurídicas de direito público ou privado e associações sem atividade empresarial envolvidas na conduta também estão sujeitas a multas do CADE, que podem variar entre R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) e R$ 2.000.000.000,00 (dois bilhões de reais). Finalmente, no caso de administradores direta ou indiretamente res­ponsáveis pela infração cometida, a multa cabível é de 1 (um por cento) a 20% (vinte por cento) daquela aplicada à empresa ou às demais pessoas jurídicas e associações.

39 Nesse sentido, conferir a pesquisa realizada por Davi Tangerino e Pedro Abramovay (TANGERlNO; ABRAMOVA Y, 2012).

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Ademais, a evolução das tecnologias de comunicação e o encurta­mento das distâncias e do espaço temporal para trocas de informações tor­nam desnecessário o encontro pessoal entre os partícipes do conluio e, dessa forma, facilitam ainda mais a organização e prática do cartel, bem como o monitoramento e punição de participantes que descumpram as suas regras.

Dadas essas dificuldades de detecção, apuração e obtenção de provas quanto ao cartel, legislações mundo afora têm adotado técnicas e mecanismos investigativos cada vez mais sofisticados. No Brasil, a legisla­ção concorrencial prevê diversas medidas para auxiliar na investigação de condutas cartelizadas, tais como a possibilidade de realização de escutas telefônicas e operações de busca e apreensão, além da própria possibilidade de celebração dos acordos de leniência de que trata este trabalho. Com relação a esta ferramenta, como observa Thiago Marrara40

, seguindo o caminho de outros países, no Brasil optou-se por negociar com o infrator em troca de suporte para uma investigação de cartel bem-sucedida (MAR­RARA, 20 15). Não por outro motivo, a leniência tem sido considerada, pelas autoridades concorrenciais, uma ferramenta relevantíssima - senão a mais importante - no combate a cartéis. É nesse contexto que se revela extremamente relevante o oferecimento de segurança jurídica, bem como dos incentivos corretos, como a extinção da punibilidade penal no caso de crime de cartel e demais crimes diretamente relacionados, para estimular a adesão de um dos agentes infratores ao programa de leniência antitruste.

4 AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL SOBRE A PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA ASSINATURA DO ACORDO DE LENIÊNCIA ANTITRUSTE COM REFLEXOS PENAIS

Como visto, o programa de leniência antitruste é um importante instrumento de política pública para a detecção e punição de cartéis no

40 Thiago Marrara observa que "em face da nova realidade, muitos Estados se viram joga­dos frente a um dilema: negociar e punir com base em processos administrativos forte­mente instruídos ou não negociar e aceitar um crescimento da impunidade resultante da fraqueza probatória de processos acusatórios baseados em técnicas tradicionais de ins­trução. Vários desses Estados (cj ALBRECHT, 2008, p. 257), inclusive o Brasil, opta­ram pela via utilitarista: aceitaram negociar com um infrator com o objetivo de enri­quecer o processo e lograr punir outros infratores! Diga-se bem: negociar não para be­neficiar gratuitamente, não para dispor dos interesses públicos que lhe cabe zelar, não para se omitir na execução das JUnções públicas. Negociar sim, mas com o intuito de obter suporte à execução bem-sucedida de processos acusatórios e atingir um grau sa­tisfatório de repressão de práticas ilícitas altamente nocivas que sequer se descobririam pelos meios persecutórios efiscalizatórios clássicos" (MARRARA, 2015).

Reflexos Penais da Regulação 179

Brasil. Apesar disso, algumas questões importantes sobre a sua estrutura­ção ainda têm suscitado debates doutrinários. Uma das críticas feitas ao instituto se refere à ausência de previsão expressa, na Lei 12.529/2011, da participação do Ministério Público na negociação, assinatura e verifica­ção do acordo de leniência anti truste com reflexos penais (i. e., dos acor­dos celebrados no caso de carte1)41

, o que, para parte da doutrina, implica­ria até mesmo a inconstitucionalidade do art. 87 da Lei 12.529/2011.

4.1 Pela Participação Necessária do Ministério Público no Acordo de Leniência Firmado com o Cade com Reflexos Penais

A corrente42 que se filia à necessidade de participação do Par­quet no acordo de leniência com reflexos penais se baseia principalmente na atribuição constitucional privativa do Ministério Público para o ajui­zan\ento de uma ação penal pública incondicionada (129, I, da Constitui­çãd Federa- CF), como no caso do crime de cartel. Como visto, a cele­bracão, com a SG-CADE, de um acordo de leniência com reflexos penais impacta automaticamente a titularidade privativa do Parquet (promotor natural) para o ajuizamento da ação penal pública incondicionada: (i) primeiramente, o impedindo de oferecer a denúncia criminal durante a tramitação do processo administrativo no CADE; (ii) Posteriormente, extinguindo a punibilidade dos crimes de cartel e demais crimes direta­mente relacionados a essa prática, no caso de verificação do cumprimento do :acordo de leniência pelo seu signatário na ocasião do julgamento do processo administrativo. Para essa parte da doutrina, em razão desse im­pacto em sua atribuição privativa, o Ministério Público deveria necessaria­mente participar do acordo de leniência firmado pelo CADE, sob pena de violação da referida atribuição constitucional.

Essa corrente defende ainda que o acordo de leniência violaria o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública incondicionada, que veda que o Parquet disponha da ação penal com base em um _juízo de conveniência e oportunidade ou de política criminal, obrigando-o a ofere­cer a denúncia sempre que houver a configuração do crime (conduta típi-

41 Com relação ao tema, Leonor Cordovil observa que "há certa dúvida, entre os opera­dores do direito da concorrência, surf(ida na vif(ência da Lei 8.884/1994, sobre a possibilidade de a autoridade administrativa conceder a anistia penal, sendo o Minis­tério Público o titular da ação" (CORDOVIL, 2011, P. 193).

42 Ver, por exemplo, os trabalhos de Rafael Soares (SOARES, 2010) e Antônio Fonseca (FONSECA, 2011).

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ca, ant~jurídica e culpável), bem como provas de materialidade e indícios de sua autoria. Na mesma linha de raciocínio, argumenta-se que, presen­tes os referidos requisitos contra todos os investigados, o Ministério Pú­blico não poderia "escolher' propor o processo penal contra alguns e não contra todos", o que violaria o princípio da indivisibilidade (ANDERS; BAGNOLI, 2012, p. 264). Também se alega violação ao princípio da indisponibilidade, segundo o qual o Ministério Público não pode desistir do processo penal em que o crime é apurado. Ainda, os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade, no ordenamento jurídico brasilei­ro, só poderiam ser miti2ados em caráter excepcional, em situações pre­viamente regradas, como por exemplo nos casos de suspensão condicio­nal do processo e de transação penal (arts. 76 e 89, Lei 9.099/1995) e de delação premiada (arts. 13 e 14, Lei 9.807/1999), em que se atribui ao próprio Ministério Público uma "discricionariedade regrada". No caso do acordo de leniência firmado pelo CADE sem participação do Ministé­rio Público, no entendimento dessa corrente, não haveria simples mitiga­ção desses princípios, mas subtração ou negação dos mesmos ao se excluir o Parquet. Nessa esteira, chega-se até a discutir se comete o crime de prevaricação (art. 319, CP) o membro do Ministério Público que, em função da assinatura e verificação do cumprimento de um acordo de leniên­cia firmado com o CADE, deixar de ajuizar a ação penal pública incondi­cionada (GABAN, 2007).

Além disso, como a verificação do cumprimento do acordo de leniência - condição necessária para o recebimento da anistia penal - está a cargo de um órgão com atribuição administrativa (i.e., o Tribunal Ad­ministrativo do CADE), essa corrente também alega que haveria violação à independência funcional dos membros do Ministério Público (art. 127, § 1°, CF43) para a persecução penal.

Com base nesses argumentos, autores como Rafael Junior Soa­res sustentam a inconstitucionalidade do dispositivo legal que prevê a extinção da punibilidade após a verificação do cumprimento de acordo de leniência firmado com o CADE sem a participação do Ministério Público, e até mesmo argumenta que tal acordo não poderia ser oposto ao Ministé­rio Público como forma de impedi-lo de oferecer a denúncia, já que o órgão acusatório não se vinculou ao que fora acordado na esfera adminis­trativa, e, mesmo que tivesse participado, lhe faltaria fundamento legal para se permitir a negociação com o Parquet (SOARES, 2010).

43 "Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdi­cional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. § 1" - São princípios institucio­nais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional".

Reflexos Penais da Regulação 181

4.2 Pela Desnecessidade da Participação do Ministério Público no Acordo de Leniência com Reflexos Penais Firmado com oCade

Por diversas razões, não me parecem acertadas as conclusões quanto à imprescindibilidade de previsão legal de participação do Minis­tério Público no acordo de leniência com reflexos penais firmado com o CADE e à impossibilidade de oposição do acordo ao Parque!, para impe­di-lo de oferecer a denúncia contra os seus signatários. Como será expos­to nos itens a seguir, não há violação à atribuição constitucional do Mi­nistério Público para o ajuizamento da ação penal pública incondicionada quanto ao crime de cartel e demais crimes relacionados a essa prática, nem aos princípios processuais penais da obrigatoriedade e indisponibili­dade da ação penal pública incondicionada.

' 1 o - Promoção privativa da ação penal pública na forma da lei: ia art. 129, I, da CF44 apenas prevê que é uma das funções institucio­nai~ do Ministério Público a promoção, privativamente, da ação penal pública, na forma da lei, sem estabelecer que o parquet seja obrigado ajuizar esse tipo de ação penal em toda e qualquer hipótese. Como se pode observar, decorre do próprio dispositivo a orientação constitucional de 'lue a lei disciplinará o exercício dessa função institucional pelo Minis­tério Público. Com efeito, é a legislação infraconstitucional que defme o seu;regramento e as hipóteses em que o Ministério Público está ou não autÔrizado a oferecer a denúncia. Como será abordado no próximo item, incllmbe à lei prever aquelas hipóteses em que uma certa conduta será considerada como um crime punível e, portanto, passível de ser objeto de uma ação penal pública de atribuição do Parquet. Dessa forma, é o prin­cípio constitucional da legalidade (art. 3 7, CF) que norteia a atribuição do Parquet para o ajuizamento da ação penal pública incondicionada (como, aliás, o faz para toda a Administração Pública), antes mesmo dos princí­pios processuais penais da obrigatoriedade e da indisponibilidade. Nessa toada, como dispõe o art. 5°, § 2°, da Lei Complementar 75/1993 (Lei Orgânica do Ministério Público), "somente a lei poderá especificar as funções atribuídas pela Constituição Federal e por esta Lei Complemen­tar ao Ministério Público da União, observados os princípios e normas nelas estabelecidos".

r - Punibilidade do crime como condição para o a.iuiza­mento da ação penal pública: o Ministério Público somente é obrigado

44 "Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I -promover, privativa­mente, a ação penal pública, na forma da lei".

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a exercer o seu poder-dever de ajuizar a ação penal pública quando, além de se tratar de conduta típica, anti jurídica e culpável (elementos do cri­me), a mesma for penalmente punível e, ainda, haja prova de autoria e materialidade do crime.

A punibilidade diz respeito à possibilidade de o Estado exercer o seujus puniendi quando há um crime. É nesse momento em que nasce a relação jurídico-punitiva entre o Estado e o sujeito que o praticou, de modo que o direito estatal de punir, antes abstrato, toma-se concreto, "sur~indo a punibilidade, que é a possibilidade jurídica de o Estado im­por a sanção" (JESUS, 2002, p. 667). Essa é a regra. Todavia, há casos, em que a própria legislação penal estabelece causas excludentes da puni­bilidade, que impedem o jus puniendi do Estado45146.

É o que ocorre, por exemplo, nas hipóteses enumeradas exem­plificativamente47 no art. 107 do Código Penal (CP), em que se extingue a punibilidade pelo perdão judicial, pela morte do agente e pela prescrição, dentre outras causas. O próprio CP e a legislação extravagante também preveem outras causas de extinção da punibilidade. Esse é o caso, por exemplo, do pagamento do tributo ou contribuição social antes do rece­bimento da denúncia nos crimes previstos na Lei 8.137/1990 e na Lei 4.729/1965 (art. 34 da Lei 9.24911995). Por certo, é o que também ocorre por ocasião da verificação do cumprimento do acordo de leniência com reflexos penais firmado com o CADE. Nesse caso, conforme prescreve o art. 87 da Lei de Defesa da Concorrência, é extinta a punibilidade para o crime de cartel e demais crimes relacionados a essa prática com relação ao beneficiário do acordo de leniência cumprido. Ou seja, a conduta deixa de ser punível na esfera penal, exclusivamente com relação ao beneficiá­rio do acordo, em decorrência de uma previsão legal.

45 Conforme observa Cezar Roberto Bitencourt, "a pena não é elemento do crime, mas consequência deste. A punição é a consequência natural da realização da ação típica, antijurídica e culpável. Porém, após a prática do fato delituoso podem ocorrer causas que impeçam a aplicação ou execução da sanção respectiva. No entanto, não é a ação que se estingue, mas o ius puniendi do Estado (...)" (BI1ENCOURT, 2002, p. 699).

46 Conforme assevera Rogério Greco,"(..) o Estado, em determinadas situações previs­tas expressamente em seus diplomas leKais, pode abrir mão ou mesmo perder esse di­reito de punir. Mesmo que, em tese, tenha ocorrido uma infração penal, por questões de política criminal, o Estado pode, em alKumas situações por ele previstas expres­samente, entender por bem em não fazer valer o seu ius puniendi, razão pela qual haverá aquilo que o Código Penal denomina de extinção da punibilidade" (GRECO, 2011, p. 686).

47 O referido dispositivo não é numerus clausus, havendo outras causas de extinção da punibilidade no próprio CP (por exemplo, a restitutio in integrum, prevista no art. 249, § 2°, CP).

Reflexos Penais da Regulação 183

3° -Anistia penal conferida pela lei, e não pelo CADE: em continuidade à linha de raciocínio acima, destaca-se ainda que essa anistia penal - assim como todas as demais - não é conferida pelo CADE, mas sim pela lei posta pelo legislador enquanto representante da sociedade. Ou seja, a extinção do jus puniendi estatal não decorre de decisão do CADE, mas é mero efeito da lei que institui o programa de leniência antitruste (i.e., a Lei 12.529/2011). O Tribunal Adminis­trativo do CADE tão somente detém a atribuição - também conferida por lei- de verificar o cumprimento do acordo, caso em que automati­camente ocorre a extinção do jus puniendi estatal, conforme autoriza­do em lei.

4° - Adequação da verificação do cumprimento do acordo de Jeniência pelo CADE: É acertado que seja atribuída ao CADE não só a função de negociar e firmar o acordo de leniência, mas também de veri-

' fie~ o seu cumprimento para fms de aquisição dos benefícios administra-tiv<is e penais conferidos pela Lei 12.529/2011. Afmal, este é um dos órgJos integrantes do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), possuindo a função precípua e estando melhor capacitado para zelar pela ordem econômica constitucionalmente estabelecida. Não por outro motivo, o programa de leniência antitruste atribui ao próprio CADE a função de realizar, no caso concreto, um juízo de oportunidade e con­ven!ência quanto à celebração do acordo de leniência (o que, por si só, não,implica o gozo dos benefícios do programa pelo signatário do acordo, con\o já exposto).

5o - A extinção da J?Unibilidade se limita à pessoa beneficiá­ria do acordo de leniência: E importante destacar que o Ministério Pú­blico somente está impedido de oferecer a denúncia exclusivamente con­tra a pessoa física signatária do acordo de leniência integralmente cum­prido, restando autorizado a prosseguir com o ajuizamento da ação penal pública incondicionada contra todas demais pessoas físicas coautoras do crime de cartel e outros crimes relacionados a essa prática. Dessa forma, em nada é comprometida a titularidade constitucional exclusiva do Minis­tério Público para o ajuizamento da ação penal pública incondicionada48. Pelos mesmos motivos, também não há que se falar em violação aos prin­cípios processuais penais da obrigatoriedade e da indisponibilidade da

48 Conforme observa André Marques Gilberto, apoiado em Renato Stenter, o regramento dos efeitos penais do acordo de leniência não resulta "em qualquer inconstitucionali­dade, pois preservada a competência privativa do MP para a proposição de ações penais públicas; foi instituída apenas uma proibição - voltada ao próprio MP - de qjuizar essas ações no caso de assinatura do acordo de leniência com as autoridades brasileiras" (GILBERTO, 2009).

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ação penal pública incondicionada. Até porque, como esclarecido por Paulo Rangel em comentários ao princípio da obrigatoriedade, a liberda­de de agir, do Ministério Público, na verificação dos fatos e dos requisitos necessários à propositura da ação não pode ser confundida com a obriga­ção de promovê-la de qualquer forma: "dever de agir, desde que presen­tes os requisitos que viabilizam o curso do processo" (RANGEL, 2012, p. 228).

6° - Atribuições restritas do Ministério Público na le~isla­ção concorrencial: deve ser observada a vontade do legislador que não incluiu a participação obrigatória do Ministério Público como um requi­sito na celebração do acordo de leniência. Nesse sentido, note-se que o art. 20 da Lei 12.529/2011 apenas prevê expressamente a participação de membro do Ministério Público Federal na emissão de parecer nos processos administrativos para imposição de sanções por infrações à ordem econômica, de oficio ou a requerimento do Conselheiro-Relator. Recentemente, em 30.09.2016, o CADE e a Procuradoria-Geral daRe­pública expediram a Resolução Conjunta PGR/CADE 112016, estabele­cendo as condições para o exercício das funções do representante do Ministério Público Federal junto ao CADE a que se referem o referido dispositivo. Nesta resolução conjunta, não foi prevista a participação do Parquet federal na negociação, assinatura e verificação do cumprimento do acordo de leniência, o que demonstra que esta não é a intenção des­ses órgãos49

7° - Risco de pre.iuízo à efetividade do pro~rama de leniên­cia: É importante destacar que o programa de leniência antitruste foi es­tabelecido pelo legislador em atenção a uma política voltada à repressão de condutas anticompetitivas, sobretudo cartéis, considerados a mais grave forma de violação à concorrência. O acordo de leniência é uma ferramenta que visa a facilitar, acelerar e reduzir custos de investigações e processos. A obrigatoriedade de participação do Ministério Público na negociação, assinatura e verificação desses acordos, contudo, pode preju­dicar a efetividade do programa de leniência, gerando custos de transação adicionais, retardando as negociações, prejudicando os seus incentivos e, ao cabo, desincentivando a busca pela colaboração.

49 Na Resolução Conjunta PGR/CADE 1/2016, apenas se estabeleceu que o repre­sentante do Ministério Público Federal junto ao CADE terá ciência da sua cele­bração pela SG-CADE quando da instauração do respectivo inquérito administra­tivo não sigiloso ou processo administrativo para imposição de sanções adminis­trativas por infrações à ordem econômica, ou antes disso, caso seja publicizado pela SG-CADE.

Reflexos Penais da Regulação 185

4.3 A PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO COMO INTERVENIENTE-ANUENTE NO ACORDO DE LENIÊNCIA COM REFLEXOS PENAIS FIRMADO COMOCADE

Em razão dos questionamentos quanto à própria constituciona­lidade do programa de leniência antitruste no que diz respeito aos seus reflexos penais - os quais ainda não foram dirimidos judicialmente -, visando a conferir maior segurança jurídica aos seus signatários e evitar discussões futuras quanto à validade e eficácia dos acordos de leniência firmados, o CADE tem frequentemente buscado a participação do Par­quet, que é envolvido na qualidade de interveniente-anuente em grande parte dos acordos (CADE, 2016). De outra banda, em condutas com re­perfussão criminal, os lenientes também não têm sido processados na esfera penal pelo Ministério Público (ANDERS; BAGNOLI; PAGOTTO; GIÁNINNI, 2012, p. 265).

Conquanto essa postura do CADE não me pareça necessária­afinal, parece-me prescindível a participação do Ministério Público no acordo de leníência -, não há qualquer prejuízo ou irregularidade nos acordos de leniência que tenham sido firmados com a participação do órgão ministerial enquanto interveniente-anuente, ainda que não haja previsão legal para tanto. Afmal, o Ministério Público é o fiscal da apli­caçfio e cumprimento da lei e da ordem jurídica (art. 127, caput, CF; arts. 1° e 5°, I, LC 7511993), além de também exercer função na proteção da atividade econômica, livre concorrência, livre iníciativa e, ainda, do inte­resse do consumidor (art. 5°, I, "c" e "h", 11, "c", LC 75/1993).

Em decorrência dessa participação "convidada", que não está regrada em lei, outros questionamentos são suscitados pela doutrina quanto à atuação do Ministério Público nos acordos de leniência antitrus­te. Na ausência de norma que discipline o assunto, por exemplo, discute­-se ainda: (i) qual o Parquet competente para participar do acordo, se estadual ou federal; e (ii) se é suficiente a assinatura de apenas um mem­bro do órgão ministerial para impedir que, posteriormente, outro membro ingresse com a ação penal contra o leniente (GABAN, 2012, p. 257).

Com base em precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ)50, frequentemente se argumenta que a defmição do órgão ministerial

50 Nesse sentido, conferir os seguintes precedentes: CC 37.226/SP, Rei. Ministro Jorge Scartezzini, Terceira Seção, julgado em 28/04/2004, DJ 01/07/2004, p. 174; e AgRg no RMS 41.361/RS, Rei. Min. Ari Pargendler, I" T., j. em 25.06.2013, DJe 02.08.2013.

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competente deve acompanhar a competência jurisdicional para a aprecia­ção de crime de cartel, a qual, em regra, pertence à Justiça Estadual, sen­do a Justiça Federal competente apenas quando o escopo da conduta su­perar os limites estaduais51

• Todavia, me parece mais acertado que seja "convidado", em qualquer caso, o representante do Ministério Público Federal junto ao CADE (art. 20, Lei 12.529/2011 ), já que: (i) este já tem atribuições junto à autarquia; (ii) possivelmente terá melhor conhecimen­to acerca da matéria concorrencial; e (iii) à luz da Constituição Federal, o Ministério Público é um órgão uno e indivisível (art. 127, § 1°, CF).

Com relação à segunda questão, ainda que fosse imprescindível a participação do Ministério Público para que seja extinta a punibilidade e vedado o ajuizamento da ação penal pública, parece-me que a assinatura de apenas um membro do Ministério Público seria adequada para impedir que outro membro (federal ou estadual) ingresse com a ação penal públi­ca contra a pessoa física signatária do acordo de leniência, já que a referi­da instituição é um órgão uno e indivisível (art. 127, § 1°, CF; art. 4°, LC 75/1993), como já exposto.

Em todo caso, a despeito das soluções acima e com vistas a afastar os questionamentos quanto à própria constitucionalidade dos re­flexos penais do acordo de leniência antitruste, bem como as discussões decorrentes da participação "convidada" do Ministério Público na assina­tura desses acordos, é importante a inclusão, na Lei 12.529/2011, de um dispositivo acerca da desnecessidade de participação do Ministério Públi­co na negociação, assinatura e verificação do cumprimento do acordo de leniência firmado pelo CADE. Também é importante a manifestação expressa, nesse sentido, dos órgãos envolvidos no assunto, o que poderia ter sido feito nos próprios considerandos da recém-emitida Resolução Conjunta PGR/CADE 112016.

5 CONCLUSÃO

O programa de leniência é uma ferramenta relevante para a des­coberta, descontinuação, investigação e punição de condutas anticompeti­tivas, especialmente cartéis. Para o perfeito funcionamento desse progra­ma, contudo, é importante que sejam oferecidos os incentivos corretos para a atração do agente colaborador. Nesse sentido, a legislação concor­rencial prevê não só a possibilidade de extinção da ação punitiva da Ad­ministração Pública ou de redução da penalidade aplicável nesse âmbito,

51 Esse também tem sido o entendimento adotado pelo CADE, conforme o Guia do Programa de Leniência Antitruste dessa autarquia (CADE, 2016).

Reflexos Penais da Regulação 187

como também a extinção da punibilidade penal com relação ao crime de cartel e demais crimes relacionados a essa prática, quando verificado o cumprimento do acordo pelo Tribunal Administrativo do CADE.

Como visto, parte da doutrina questiona a ausência de previsão legal que estabeleça e regre a participação do Ministério Público no acor­do de leniência firmado com o CADE. Tal crítica, contudo, não merece prosperar. Como exposto, não há violação à atribuição constitucional do Ministério Público para o ajuizamento da ação penal pública incondicio­nada quanto ao crime de cartel e demais crimes relacionados a essa práti­ca, nem aos princípios processuais penais da obrigatoriedade, indivisibi­lidade e indisponibilidade da ação penal pública incondicionada, porque: (i) a promoção privativa da ação penal pública pelo Ministério Público dev,e se dar na forma da lei; (ii) a punibilidade do crime é condição para o ajuizamento da ação penal pública, sendo devidamente afastada por lei no casp de celebração e cumprimento do acordo de leniência anti truste (art. 87,\Lei 12.529/2011); (iii) a anistia penal é conferida pela lei, e não pelo CApE, que só verifica o cumprimento das obrigações estipuladas no acocdo de leniência; (iv) é adequada a verificação do cumprimento do acordo de leniência pelo CADE, o principal órgão atuante na proteção da concorrência; (v) a extinção da punibilidade se limita à pessoa física be­neficiária do acordo de leniência; (vi) as atribuições conferidas ao Minis­térib Público na Lei de Defesa da Concorrência são restritas; e (vii) há

I risdo de prejuízo à efetividade do programa de leniência.

Não obstante esse posicionamento, é de se concluir também que a qpestão merece regulação expressa na legislação concorrencial, com o intuito de proporcionar maior segurança jurídica aos interessados na cele­bração do acordo de leniência, impulsionando a utilização desse instituto. Assim, e considerando que o disciplinamento das funções institucionais do Parquet deve ser feito por via legislativa, é relevante que se positive em lei a desnecessidade de participação do Ministério Público na negocia­ção, assinatura e verificação do cumprimento do acordo de leniência fir­mado pelo CADE, assim como a manifestação expressa, nesse sentido, dos órgãos envolvidos no assunto, o que já poderia ter sido feito na Reso­lução Conjunta PGR/CADE 112016.

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