Regionalismo e democracia: uma construção...

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Regionalismo e democracia: uma construção possível Ana Maria Stuart

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Regionalismo e democracia: uma construção possível

Ana Maria Stuart

Sumário

Introdução ..................................................................................................................................... 1 Testemunho do autor .................................................................................................................. 7 Debate .......................................................................................................................................... 14

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Introdução

Democracia e regionalismo

A preocupação inicial do trabalho é a construção democrática além das fronteiras do Estado-nação. A disciplina das Relações Internacionais teve que dar conta, na década de noventa, da explicação de grandes transformações no cenário mundial. As correntes teóricas tradicionais, reformuladas na década de oitenta, não conseguiram apreender a complexidade desse processo. O realismo e o liberalismo, em todas as suas versões, deixaram grandes interrogantes sem resposta e não conseguiram apreender o processo de transformação em curso. As leituras dos pós-positivistas, em especial os da Escola Inglesa, ajudaram a identificar a perspectiva teórica adequada ao objeto de estudo, sem abandonar uma visão metodológica pluralista. Para desenvolver, explicar e interpretar as premissas e hipóteses do trabalho, os conceitos elaborados pelos construtivistas iluminaram a pesquisa, permitindo desvendar os problemas colocados. O percurso dessas teorias que ajudam a explicar a transformação em curso com base em princípios de causalidade endógena, colocando a ênfase no processo de construção histórica e social e na relação agente-estrutura, ocupam as páginas do Capítulo I da tese.

O Capítulo II, empírico, tem como objetivo perscrutar a emergência da dimensão regional subnacional no processo de integração. Foi necessário observar a diversidade de formatos institucionais nos quinze países membros para constatar o processo de descentralização que, com diferenças próprias de caráter histórico-institucional, ocorre em toda Europa. Num segundo momento, observam-se as políticas estruturais e de coesão da União Européia, numa perspectiva diacrônica, com especial atenção às conseqüências da entrada dos sócios "pobres" do sul da Europa, momento decisivo para a mudança de rumo e de "olhar" da Comunidade em relação a suas regiões.

A institucionalização desse processo é apresentada no Capítulo III. A constituição do Comitê das Regiões, a mais nova das instituições da União Européia criada pelo Tratado da União Européia (Maastricht, 1992), e a percepção do papel que cumpre no arcabouço institucional europeu, são objeto privilegiado para observar a emergência de novos atores políticos no processo de integração europeu: os atores subnacionais. Sendo a pergunta principal deste trabalho a relação entre democracia e regionalismo, neste capítulo observa-se o papel desses representantes dos poderes locais na trama de mecanismos capazes de atenuar o chamado "déficit democrático" da UE. No contexto da crise de representação política que caracteriza o estágio atual dos processos de integração regional, a presença de atores subnacionais - prefeitos, governadores, presidentes de regiões, etc. - como protagonistas do cenário institucional europeu é considerada uma contribuição ao processo de "democratização" das decisões supranacionais. Essa hipótese gera uma outra: a atuação desses atores, representantes do Estado nacional concebido como construção social e territorial, legitima, perante a sociedade regional e local, a cessão de soberania necessária à adesão ao projeto de integração.

O arcabouço institucional da União Européia permite uma explicação do processo de tomada de decisões das instâncias supranacionais e das políticas públicas geradas com o intuito de qualificar a integração pela via da coesão econômico-social. A participação dos atores políticos subnacionais no Comitê das Regiões é discutida como instrumento de representação dos interesses e direitos dos cidadãos, na formulação das propostas de alocação de recursos segundo os objetivos traçados pela Comissão Européia e implementados pelo Estado nacional.

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Seguindo-se aos dois capítulos de observação empírica, o IV apresenta as reflexões sobre a hipótese principal: a relação entre democracia e regionalismo é uma construção possível desde que os processos de integração sejam entendidos como projetos de coesão econômico-social, tendentes a diminuir as disparidades regionais e sociais no âmbito do bloco regional, e dotados de instrumentos de representação dos interesses da cidadania. Estabelecer condições de igualdade de oportunidades e de participação para os habitantes de todos os países e de todas as regiões é condição necessária para construir uma relação positiva entre democracia e regionalismo. Essa hipótese baseia-se na premissa da transformação do Estado-nação westfaliano e do conceito clássico de soberania, e busca encontrar novos caminhos para a defesa dos direitos da cidadania e o exercício da democracia. O desafio é a manutenção dos direitos individuais e coletivos - pilares da democracia - no processo de delegação de poderes para a esfera supranacional ou intergovernamental.

Por último, no Capítulo V, são apresentadas as iniciativas existentes no Mercosul com o intuito de abrir caminhos para pesquisas futuras. A reflexão vinculada à questão da institucionalidade regional está presente em vários trabalhos acadêmicos sobre o Mercosul. A contribuição desta tese centra-se no papel que os novos atores, representantes de governos de estados, de províncias e de cidades, podem desempenhar se adquirirem voz ativa no processo de decisão regional. Assim como as instituições consultivas - o Comitê Econômico e Social na UE e o Fórum Consultivo Econômico e Social no Mercosul - cuidam da representação dos atores sociais, há necessidade de construir instâncias de representação dos interesses específicos das sociedades regionais e locais, pela via dos seus governantes diretamente eleitos pela população. O Comitê das Regiões poderá servir de inspiração, sempre e quando o Mercosul mude o rumo e confirme a vocação do Tratado de Assunção de constituir um Mercado Comum.

Por último, fica a expectativa de que o recorte empírico apresentado neste trabalho e a escolha do instrumental teórico abram novos campos e novas pistas para futuras pesquisas que contribuam ao repertório de temas, debates e enfoques da disciplina das Relações Internacionais. Principais pressupostos teóricos

1. A escolha do tema não é neutra: os interesses que guiam o conhecimento se tornam constitutivos da eleição tanto do objeto como do enfoque teórico-metodológico, assim como no final, quando avaliamos as descobertas.

2. Afirmar a autonomia da política perante o avanço desmedido dos enfoques econômicos e a importância da transformação do cenário mundial na década de noventa.

3. A perspectiva construtivista permitiu a introdução de conceitos que explicam as dinâmicas que resistem a tendências de homogeneização no cenário sócio-político internacional, decorrentes do processo de globalização econômico-financeira. No entanto, a revalorização do particular perante o universal e dos poderes locais perante o poder do Estado nacional pode ter resultados "regressivos". Até o momento, o Estado permanece como o guardião dos direitos da cidadania. Nos processos de integração regional, em especial na União Européia, onde está em curso um movimento constitucionalista que defende uma nova cidadania européia, o desafio é a construção de políticas públicas que promovam a liberdade (autonomia) e a igualdade (coesão socioeconômica).

4. A integração econômica pode ser fator de desenvolvimento de integração política, mas também pode ser fator de regressão dessa integração. Assim como pode aliar o processo a uma perspectiva de ganhos, também pode aliar a frustrações quando esses ganhos não ocorrem. A importância da "percepção dos próprios atores" e do grau de credibilidade que essa atuação

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tem na sociedade civil gera "sentido de comunidade" e "identidade", com base em interesses e valores comuns, garantia de sustentabilidade do processo de integração.

As hipóteses

Hipótese básica: a relação entre democracia e regionalismo depende da construção de políticas públicas formuladas e implementadas articuladamente pelas instâncias de poder no plano nacional e regional.

Uma das premissas dessa hipótese é a consideração substantiva do conceito de democracia que amplia o significado, conjugando liberdade política (autonomia) e a igualdade social (coesão). Considera-se que a presença de instituições representativas dos interesses regionais e locais, como expressão territorial específica do Estado, contribui na resolução do problema do "déficit democrático" nos processos de integração regional.

Por fim, sustenta-se que a formulação e implementação de políticas públicas regionais promove interesses e valores comunitários, contribuindo assim para a formação da identidade coletiva. Essa é condição necessária para a existência de uma base social – constituency – que possa exercer o controle democrático e participar do processo decisório no plano regional. Nesse sentido, trata-se de considerar a integração como um instrumento de ampliação do poder dos Estados e das sociedades no processo de construção de instâncias que contemplem as transformações em curso do conceito de soberania.

As principais reflexões

Este trabalho define regionalismo como programa de integração e, nesse sentido, considera-se que embute a idéia de coesão. Portanto, a meta de "inserção mais competitiva no cenário mundial", que geralmente guia o discurso econômico da regionalização, não é o foco deste trabalho. Já democracia é concebida como sistema de valores, além de sistemas de regras.

A base da legitimidade institucional na União Européia encontra-se nos Tratados. No entanto a complexidade normativa dos mesmos exige uma especialização que, no geral, está ausente na formação do cidadão comum. Surge, assim, a necessidade de encontrar meios para resolver tanto a questão da legitimidade formal como da legitimidade social. Aliás, sustenta-se aqui que ambas se constituem simultaneamente, mediante a participação dos representantes de todos os níveis de poder político que compõem o Estado na formulação e execução conjunta das políticas públicas regionais, de "baixo para cima", tendo como guia os princípios de subsidiariedade e de proximidade.

Dada a persistência do Estado-nação como base da legitimidade política, vincular a cidadania à identidade nacional continua sendo a maneira tradicional de ver o problema. Cidadania como expressão do "demos" singular é construção nacional dificilmente transponível para um plano supra ou internacional. Não há no horizonte uma alternativa ao Estado-Nação como base de uma "nova cidadania" desse tipo. Como construir, então, uma identidade que considere a institucionalidade de Bruxelas como representação do "desejo" de pertencer a uma União regional?

Em primeiro lugar, há que considerar os dois pilares de representação na União Européia: o pilar intergovernamental e o pilar supranacional. O primeiro conecta a União aos cidadãos através dos governos e parlamentos eleitos no plano nacional; o segundo, vincula a UE ao eleitorado pan-europeu que elege o Parlamento Europeu. Os pilares não são estanques, estão interpenetrados e funcionam, muitas vezes, como sistemas quase simbióticos.

Nesse sentido, ganhou força o argumento sobre a necessidade de envolvimento dos parlamentos nacionais no controle do processo decisório europeu. Isso significa que, além do

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papel de ratificação dos Tratados, os parlamentos ganharam a oportunidade de representar seus povos nos assuntos da União, influenciando os governos antes das reuniões do Conselho de Ministros, revisando os rascunhos de legislação européia que, depois de Amsterdã, devem circular nos parlamentos nacionais no mínimo seis semanas antes de serem considerados pelo Conselho. Esse aumento da atenção dos parlamentos nacionais à política européia reaproxima o cidadão comum da agenda da União, da qual havia ido ficando paulatinamente desinteressado, como mostra a alta abstenção nas últimas eleições parlamentares européias. Essa relação entre instâncias supranacionais e nacionais, sejam partidárias, sindicais ou dos movimentos sociais apresenta conflitos que influenciam negativamente o processo de democratização. Trata-se, como conseqüência, de analisar o "déficit democrático" não somente como resultado da pressão do regime consensual dos Estados e da euro-burocracia supranacional vinculada à Comissão e ao Parlamento, mas de incluir, no leque de causas, a responsabilidade dos agentes internos representantes dos partidos e de outras entidades da sociedade civil.

A grande questão para a cidadania é contar com um sistema legal que garanta os direitos fundamentais. Nesse sentido, a Constituição da União Européia, prevista para 2004, conta com apoio da maioria dos grandes Estados, a começar por França e Alemanha. O grau de compromisso das sociedades dos Estados, política e civil, em todos os níveis (nacional, regional e local) terá influência no sucesso desse grande passo na construção da democracia européia.

Por último, a questão da autonomia é tratada em relação à identidade. A construção da cidadania comum – um demos europeu – será possível pela via da formação de interesses e valores comuns que comprometam as vontades num objetivo multidimensional (de municípios, poderes regionais e Estados) para a elaboração de políticas específicas. Com base na articulação de consensos básicos além das fronteiras, poderá surgir essa nova cidadania comum, não necessariamente relacionada a valores identitários baseados no passado histórico ou em abstrações homogeneizadoras. Trata-se de uma cidadania que se exercita no dia a dia pela via da participação em projetos e políticas públicas locais, nacionais e macro-regionais, promovendo a autonomia. Essa prática de políticas comuns tende à extensão da igualdade de oportunidades para todos os cidadãos, o que é considerado condição necessária para a emergência e subsistência da democracia.

No presente trabalho, a ênfase está colocada na necessidade de reafirmar a política -o Estado- como a dimensão que realmente conta no processo de decisão no bloco regional e por intermédio da qual a cidadania exprime seus interesses e valores. A questão da soberania é tema subjacente em relação à questão da autonomia. O constitucionalismo federativo e a realidade pluralista das sociedades democráticas enfraquecem a idéia do Estado como ator unitário soberano, detentor do monopólio de decisões autônomas e sujeito exclusivo da política internacional. O regionalismo é uma das expressões desse processo de transformação. Algumas conclusões

Há necessidade de constituir uma arena política supranacional para que a cidadania acompanhe os debates e a agenda do bloco regional com o intuito de desenvolver um sentido de pertença, fundamental para a construção de uma identidade que não tem um padrão independente e exogenamente dado como as identidades tradicionais baseadas em etnia e cultura. Considera-se que essa nova identidade regional é constantemente alimentada pelas realizações políticas.

O renascimento do regionalismo, impulsionado pelo surgimento de novos blocos regionais nas Américas, notadamente NAFTA e MERCOSUL, assim como na Ásia, provocou a retomada da polêmica sobre a "natureza" do processo de integração. O debate

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"institucionalizado" insistiu no velho esquema binário "supranacionalismo versus intergovernamentalismo" apesar das mudanças nos fundamentos e no contexto internacional. A confusão decorre por considerar as áreas de livre-comércio surgidas na década de noventa como processos de integração regional. Como já foi dito, nos marcos do presente trabalho, integração pressupõe construção institucional e políticas públicas comuns no plano econômico, social e político. Acrescente-se, à luz da reflexão do ponto anterior, a criação e manutenção de interações múltiplas, intensas e diversas, entre atores autônomos. Assim, integração é concebida como resultante das ações que, dentro do sistema de Estados, buscam institucionalizar práticas e expectativas comuns que garantam a cooperação para organizar as demandas econômico-sociais e políticas das diferentes instâncias representativas dos poderes dos Estados.

Os desafios contemporâneos que se colocam para a democracia têm a ver com suas fronteiras. O aumento de escala do processo decisório pode ser "tão importante para a democracia como foi no passado a mudança de escala da cidade-estado para o Estado-nação", reflete Robert Dahl, indagando sobre a possibilidade de estar acontecendo uma "terceira transformação" democrática (Dahl, 1989: 318-320).

Por último, o debate atual sobre a futura Constituição européia apresenta dados empíricos de interesse para uma visão sobre o futuro da União. A França propôs uma federação de Nações-Estados. As diferenças com a concepção alemã são de grau e não as tornam incompatíveis. A idéia alemã, que acalentou na década de oitenta o projeto da Europa das Regiões, está inspirada na própria organização do Estado federal descentralizado, onde o poder dos Estados membros seria similar a das Länders.

A reforma desse sistema implica numa reforma das três instituições que entre si partilham o governo: o Conselho, a Comissão e o Conselho Europeu, que supervisiona a ambos. O Conselho deveria exercer uma função legislativa e adotar o nome de "Conselho dos Estados" e a Comissão deveria reforçar o poder executivo, reproduzindo assim a divisão de poderes do estado democrático, propõem alguns autores. A posição que busca reforçar os símbolos da supranacionalidade defende que o Presidente da Comissão Européia seja indicado pela formação política vencedora do pleito para o Parlamento no conjunto dos 15 países da União Européia. Já o governo britânico diferencia-se profundamente dos projetos francês e alemão defendendo o caráter atual de “união” de estados. Eles defendem a idéia de que os europeus devem sentir que a Europa lhes pertence e não apenas que eles pertencem à Europa.

Decisões importantes ficaram para a próxima reforma, em 2004, quando se espera aprovar a Constituição e o marco jurídico para dar aplicabilidade à Carta de Direitos, compêndio de valores e princípios da cidadania européia. A Conferência Intergovernamental (CIG) debateu sobre a necessidade de relançar a Europa com uma Constituição. No entanto, os debates sobre as dificuldades de construir a Europa política e social no tempo da implementação da União Econômica Monetária estão no centro da agenda. A predominância da lógica liberal dilui o projeto de integração no plano político e social, que fica subordinado aos imperativos da competitividade econômico-financeira. O alargamento dos princípios democráticos exige esforços normativos e institucionais: “Uma União Jurídica Européia é de maior importância que uma União Monetária Européia”, proclama Ralph Dahrendorf (1997: 246).

O debate está acontecendo, repercutindo a Declaração de Laeken (dezembro, 2001) sobre o "Futuro da União Européia", onde o Conselho Europeu realizou a Convocatória da Convenção para preparar a Conferência Intergovernamental (CIG) de 2004. Os argumentos tendem na direção da constituição de uma "federação de Nações-Estados", seguindo a proposta da França lançada por Jacques Delors em 1996. É uma fórmula eclética, que tenta condensar a preocupação em reter a diversidade das identidades e simbolismos nacionais, assim como continuar o

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processo de integração europeu, cuja repercussão no plano dos Estados membros ajuda a redefinir suas funções no plano dos governos central, regional e local.

Essa visão se completa com o desenvolvimento do conceito de "autonomia democrática" como base para a construção de uma concepção comum de democracia que transcenda o modelo clássico e incorpore a solidariedade como um valor comum a todos. Essa proposta apresenta alto grau de correspondência com as hipóteses que guiam este trabalho e que foram testadas com as informações apresentadas nos Capítulos II e III.

Com base na premissa da "mútua constituição dos agentes e as estruturas", sustenta-se que a democratização do processo de integração somente acontecerá se existir essa imbricação dos representantes diretamente eleitos pela população, em todos os níveis de governo, no fazer as políticas européias dirigidas às populações por eles representadas. Portanto, a democracia não pode ser considerada somente um atributo do bloco regional pela imposição desse regime de governo aos seus Estados membros, mas deve ser endogenamente gerada pela participação de representantes de poderes regionais e locais autodeterminados, embora constitutivos do Estado nacional, que é membro pleno de direito pelos Tratados.

Neste trabalho, esses "princípios" são considerados construções históricas e sociais que guiam as ações dos poderes num sistema democrático e federalista: resolver os problemas no nível mais próximo do cidadão, com transparência, pela via de políticas públicas, visando o bem-estar coletivo e o desenvolvimento democrático. No entanto, se existem situações impostas exogenamente -como as decorrentes da implantação da União Econômica e Monetária no plano macro-sistêmico- é, no mínimo, ingênuo pretender resolver os problemas originados nesse contexto com medidas locais ou regionais. Impõe-se, nesse caso, formular políticas reguladoras e compensatórias no mesmo plano macro-sistêmico da União. Nesse sentido, é importante reconhecer a capacidade de iniciativa da Comissão que, em conjunto com o Parlamento e assessorada pelos Comitês Consultivos das Regiões e Econômico-social, elabora as políticas públicas necessárias para a defesa dos interesses, valores e direitos dos cidadãos.

A literatura de cunho sócio-político está repleta de debates sobre os impactos da regionalização sobre os trabalhadores, os consumidores, os investidores e sobre os membros de comunidades culturais. Menos atenção, no entanto, foi dedicada aos impactos sobre a cidadania como partícipe do processo democrático. Essa tarefa é dos partidos políticos, no plano nacional e transnacional.

Adensar o processo decisório, incorporando os representantes regionais e locais ao processo de implementação de políticas benéficas para os cidadãos, é a resposta encontrada neste trabalho ao desafio da construção de um novo regionalismo, relembrando que as instituições são importantes, mas não suficientes para garantir os interesses e os valores democráticos. As atitudes dos sujeitos, individuais e coletivos, que interagem com elas também são definidoras de rumos. Se tudo é socialmente construído, como sustentam os construtivistas, tudo também pode ser socialmente desconstruído.

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Testemunho do Autor

A tese surge, e o título diz, por uma preocupação inicial sobre essa questão da construção democrática além das fronteiras do Estado-nação. Por que? Porque estamos num continente onde a consolidação da democracia é difícil no plano nacional, estamos na aventura de construir um bloco regional e não podemos perder as conquistas democráticas que temos no plano nacional. Então essa foi a preocupação inicial, a pergunta inicial que me levou a desenvolver esse trabalho. O processo de construção regional mais desenvolvido é o da União Européia, e fui lá olhar essa questão. O objetivo principal era buscar inspiração para repensar o Mercosul, para mudar os rumos do Mercosul que, no momento em que comecei a tese, estava numa fase bem complicada. Eu pensava que a maneira como estava sendo conduzido o processo comprometia os destinos das nossas democracias. Eu buscava inspiração para a construção de um Mercosul - que respondesse aos interesses do desenvolvimento e da democracia para a região. Ou seja, o fim último era esse, mas o trabalho foi estudar a União Européia.

O primeiro capítulo aborda as questões teóricas, que vou depois descrever. O segundo e o terceiro são frutos da pesquisa empírica. No segundo capítulo trago toda a diversidade institucional européia dentro dos países, porque foi um recurso metodológico necessário. Fui observar os agentes internos chamados sub-nacionais, ou seja, agentes políticos locais e regionais, e aí me deparei com a grande diversidade político-institucional de cada um dos 15 países que integram a União Européia. Nesse capítulo, fui observar as políticas públicas da União Européia, principalmente a criação dos fundos estruturais, e a criação dos fundos de coesão, porque o entendimento de democracia com o qual trabalho é um conceito que vai além do processual, é a busca da liberdade, entendida como autonomia e coesão econômica e social que é em definitivo a busca da igualdade.

O trabalho no capítulo terceiro foi sobre a institucionalização dessa presença de agentes políticos diversos, mediante a formação de uma nova instituição na União Européia, que é o Comitê das Regiões, uma instituição consultiva, criada pelo Tratado de Maastricht, onde sentam representantes de prefeituras, conselhos municipais, presidentes de regiões, presidentes de comunidades, ou seja, essa grande diversidade que existe sob o Estado-nação e que coloca, em Bruxelas, seus valores e interesses, as suas demandas no processo de integração regional. Esta pesquisa desemboca no capítulo quarto, onde faço as reflexões. O quinto é a abertura de novas teses para repensar o Mercosul inspiradas nesse estudo.

Agora alguns pressupostos teóricos da tese: A escolha do tema não é neutra, os interesses que guiam o conhecimento se tornam constitutivos da eleição, tanto do objeto como do enfoque teórico-metodológico, assim como no final, na hora de avaliar nossas descobertas. Afirmar a autonomia da política perante o avanço desmedido dos enfoques econômicos também foi objeto dessa tese, ou seja, observar os agentes políticos perante o processo de integração regional partindo da convicção de que o processo de transformação do cenário mundial nos anos 90 foi realmente transformador, e que exige uma leitura diferenciada da que vinha, tradicionalmente, sendo feita pela academia de Relações Internacionais. Aí, desenvolvi o que Robert Cox chama de novo realismo, que reconhece a importância das relações de poder, mas mantém a diferença com o realismo clássico colocando o foco da análise no processo de transformação, no estudo das transformações do sistema, e só num segundo momento explorando a necessidade de ponderar as limitações impostas pelas relações de poder, ou seja, colocar o núcleo, o foco da análise nas transformações do sistema.

Essa abordagem permite a compreensão de processos que se desenvolvem na direção do que se chama de novo regionalismo, com a participação de novos sujeitos sociais e políticos no

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plano internacional. No presente trabalho, a implementação de políticas públicas regionais com a participação de agentes locais e/ou regionais permite vislumbrar essa nova forma de pensar o regionalismo. Segundo alguns autores isso também pode ser estágio prévio na direção do novo multilateralismo, com a presença de novos sujeitos.

A reflexão pós-positivista nas relações internacionais iluminou aspectos dessa pesquisa empírica. O construtivismo permitiu ampliar a análise com conceitos explicativos dessas dinâmicas que resistem as tendências à homogeneização no cenário sócio-econômico internacional - tendências essas decorrentes do processo de globalização econômico-financeira. Servi-me, em especial, das teorias de auto-organização que emergem quando se chega à conclusão de que princípios ordenadores internos desempenham um papel principal e os fatores externos unicamente estabelecem limites. Para essas teorias da auto-organização os conceitos básicos são “comunicação, simbiose e coevolução”. No entanto, a revalorização do particular perante o universal e dos poderes locais perante o poder do Estado nacional, poderia ter resultados regressivos. Nessa valorização do particular, próprio do pós-modernismo, abre-se uma perspectiva de atender aquelas questões não resolvidas pelo modernismo. Não entanto, há grandes riscos de regressão. O reconhecimento de que, até o momento, o Estado-nação permanece como guardião dos direitos da cidadania é uma forma de evitar esses riscos. Nos processos de integração regional, em especial o da União Européia, onde está em curso o movimento constitucionalista que defende uma nova cidadania européia, o desafio é a construção de políticas públicas que promovam a liberdade, a autonomia e a igualdade, a coesão econômico-social, e é isso o que tentei mostrar nos capítulos II e III.

Os construtivistas, no marco da grande polêmica das ciências sociais hoje, preocupam-se, principalmente, com a compreensão dos processos e das transformações em curso, tentando novos caminhos para a disciplina das relações internacionais. As reflexões de Alexander Wendt e de John Ruggie, foram as que me inspiraram a tomar esse enfoque como fator enriquecedor do meu trabalho. Eles colocam o foco na natureza contingente do sistema internacional, que consideram sempre como histórico e socialmente construído, e essa é a contribuição mais importante desse enfoque teórico. Ajudar a desvendar os fatores de mudança e as possibilidades de transformação do sistema era a grande dívida da nossa disciplina perante 89, ou seja, o que aconteceu ante e pós queda do muro de Berlim não foi bem resolvido no marco teórico tradicional, seja realista, neo-realista, liberal, neoliberal. A explicação dessa transformação na hipótese das visões teóricas tradicionais é que a interação não modifica a natureza egoísta dos interesses dos Estados nacionais, e que as instituições são meros instrumentos dos Estados para viabilizar a cooperação. Os construtivistas contestam esses enfoques sustentando que a ação coletiva gera interesses próprios, interesses novos, e como resultado dessa interação o sistema se transforma, assim como se transforma a identidade dos atores que passam a partilhar valores comuns. Uma de suas premissas mais importantes é que as estruturas profundas do sistema dos Estados são também de natureza intersubjetiva e não somente materiais.

Na pesquisa empírica foi possível identificar a constituição da identidade social do Estado via a interação das diversas esferas de decisão sub-nacional. Em relação às instituições européias defensoras dessas políticas pode-se observar também o surgimento de lealdades em relação às políticas públicas de reconversão industrial, de apoio ao desenvolvimento, lealdades que vão do plano local para o plano regional, para o plano nacional, para o plano supranacional ou internacional. A proposta construtivista é observar a natureza dos agentes, ou seja, dos atores, dos sujeitos e das estruturas, e a natureza da própria relação entre ambos - a proposta é outorgar aos agentes e às estruturas o mesmo status ontológico, ou seja, a mesma importância e não fazer reducionismo, não fazer da estrutura nem do ator a parte principal da inter-relação, ou seja,

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centrar na relação entre ambas como entidades co-determinadas ou mutuamente constituídas, como os construtivistas gostam de dizer.

As hipóteses: A hipótese básica é que a relação entre democracia e regionalismo depende da construção de políticas públicas formuladas e implementadas articuladamente pelas instâncias de poder no plano local, regional, nacional e internacional. Outra das premissas, como dito anteriormente, é a consideração substantiva do conceito de democracia, que tem seu significado ampliado ao se conjugar liberdade política e igualdade social e a presença de instituições representativas dos interesses regionais e locais como expressão territorial específica do Estado, que contribuem na resolução do problema de déficit democrático nos processos de integração regional. Uma terceira hipótese sustenta que a formulação e implementação dessas políticas públicas regionais promovem interesses e valores comunitários, contribuindo assim à formação da identidade coletiva, algo importante porque é condição necessária para existência de uma base social que possa exercer o controle democrático e participar do processo decisório no plano regional.

Quais foram as principais descobertas empíricas? Em primeiro lugar, já mencionei a diversidade institucional européia. No apêndice da minha tese há um material que mostra o processo de descentralização em cada um dos quinze países da União Européia, pois hoje democracia também é sinônimo de descentralização do poder político.

A segunda descoberta foi o processo de reforma dos fundos estruturais, que é datado historicamente. Os fundos estruturais foram criados na década de 70, logo depois da crise, quando se formou, nos marcos do Acordo de Paris, um comitê de política regional. Na época, a Alemanha apresentou muita resistência em mobilizar esses fundos. Mas com a assinatura do Ato Único Europeu e, principalmente, com a entrada de Espanha e Portugal em 1986, começa todo um processo de transformação dessa questão regional. A primeira reforma que se dá em 1988, estabeleceu novos objetivos para a adaptação econômica das regiões menos desenvolvidas, sendo estas caracterizadas como as regiões que têm um PIB inferior a 75% da média comunitária. Países inteiros ficaram incluídos. É interessante que esses fundos estruturais mapeiam a Europa por regiões, não por nações. O segundo objetivo foi definido como reconversão econômica das regiões em declínio industrial. O terceiro, a luta contra o desemprego de longa duração; o quarto, a inserção profissional e políticas dos jovens, abrangendo todo o território da União; e o quinto objetivo que tinha uma dupla função de acelerar a adaptação das estruturas agrárias em todo o território da União Européia e fomentar o desenvolvimento das zonas rurais.

Essa foi uma primeira reforma e começou com um peso razoavelmente grande – aproximadamente 30% do orçamento comunitário foram alocados para os fundos estruturais. A reforma seguinte foi pós Maastricht, em 93, e aí, além dos Fundos Estruturais foram criados os Fundos de Coesão por pressão principalmente da Espanha, que foi o negociador mais duro. Ameaçou não assinar o Tratado de Maastricht se não fossem contempladas políticas claras de compensação financeira para as regiões de países menos desenvolvidos. Vocês se lembram dos objetivos econômicos de Maastricht, pelos quais todos tiveram que fazer políticas de ajuste que tiveram conseqüências sociais em cada um desses países? Essas exigências dos depois chamados países da coesão – Espanha, Portugal, Grécia – tinham como objetivo tentar compensar seus sacrifícios, para que pudessem entrar na União Monetária e cumprir com os chamados objetivos de ajuste estrutural de Maastricht. É interessante notar que esses fundos de coesão são nacionais e vão para os países, diferentemente dos fundos estruturais que são regionais. O critério concentrou-se nos Estados membros. Foi considerado por alguns um recuo na agenda de regionalização da Europa porque houve uma volta ao princípio do Estado já que é o Estado que

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recebe e não a região. Beneficiados foram aqueles cujo PIB era inferior a 90% da média comunitária, e aí entraram Espanha, Portugal, Grécia e Irlanda. O poder de decisão sobre o destino do fundo pertence à Comissão Européia em concordância com o país receptor.

Outra descoberta foi o último relatório da Comissão Européia sobre coesão econômica e social. Esse relatório contém os resultados do imenso trabalho dessa instituição de colher informação sobre os frutos dessa política de coesão. Já tinha havido um relatório em 96, mas o último relatório é de 2001 e chama-se “Unidade, Solidariedade, Diversidade para a Europa, seus Povos e seus Territórios”. É um trabalho imenso, muito rico, onde são avaliados os resultados e estabelecidos novos objetivos para a Europa ampliada. Na primeira parte, que trabalha sobre coesão econômica, os resultados mostram que persistem as disparidades, mas há avanços notáveis como, por exemplo, no PIB de Espanha, Portugal e Grécia, que era de 68% da média européia e subiu para 79% em 99, ou seja, depois de aproximadamente uma década de aplicação dos fundos. No caso de Portugal a elevação chegou a 17% e na Irlanda, 14%. O contraste entre as regiões também continua, mas as regiões que estão entre os 25% mais desenvolvidos têm um nível duas vezes superior às que estão nos 25% menos desenvolvidos, então há avanços aqui também, pois essa relação era muito pior antes da existência dos fundos estruturais. Há também o relatório mostrando o resultado da coesão social, onde as taxas de desemprego aparecem declinantes nessas regiões onde se aplicaram os fundos estruturais, caindo de 10.7% em 97 para 8.3% em 2000. Há ainda uma parte sobre coesão territorial.

A quarta descoberta foi o próprio Comitê das Regiões e seu funcionamento na institucionalidade européia – como ele opera, a percepção dos seus agentes, a percepção das instituições plenas - Comissão, Parlamento, Conselho de Ministros, o Conselho Europeu - sobre esse comitê. Vale a pena notar que esse comitê, depois do Tratado de Nice, é obrigatoriamente formado por representantes eleitos para as suas funções. Ele foi pensado pela própria Comissão para legitimar a sua ação. Jacques Delors, que foi Presidente da Comissão, abriu a primeira sessão plenária do Comitê das Regiões dizendo: “A tarefa do comitê das regiões é nada menos do que promover a legitimidade democrática da União, por isso vosso comitê é tão importante, vocês vão nos ajudar a diminuir o gap, primeiramente pelo envolvimento que vocês vão ter nas questões da União que estão sendo percebidas como tão distantes pelos governos locais e os governos regionais, e também vocês vão trazer para a União os problemas colocados por vossas comunidades e as reações dos movimentos de base, e por outro lado da medalha vocês vão também levar para suas comunidades a explicação das políticas comunitárias para as pessoas”. Esse papel do Comitê foi definido pela Comissão que sofre um grau de questionamento na sua legitimidade democrática. O Comitê das Regiões se coloca como guardião dos princípios de subsidiariedade e de proximidade, princípios que foram trabalhados na defesa das autonomias e na defesa das decisões tomadas em níveis próximos do cidadão comum.

Quais foram as principais reflexões? O regionalismo em si é um programa de integração, e nesse sentido se diferencia do conceito de regionalização, que é um processo de fora para dentro. Regionalismo é uma opção de construção de um projeto regional, e a idéia de coesão econômica e social deve estar vinculada à idéia de integração e de regionalismo. Portanto, é uma questão vinculada a essa idéia da democracia como processo que tende a conjugar liberdade e igualdade, respeito das autonomias e busca de coesão econômica e social.

Mas há várias questões que preocupam aos que trabalham o regionalismo visando a defesa dos direitos democráticos. Em primeiro lugar há a questão da legitimidade. Os tratados são desconhecidos pela população. Mesmo os especialistas não conhecem o Tratado da União Européia devido a sua complexidade, então, para o cidadão isso é ainda mais difícil e origina estranhamento. Quando o Parlamento tem que votar, ratificar, ou quando vai para um

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referendo, um plebiscito, o cidadão muitas vezes acaba participando porque acha que o custo de não participar é muito alto, mas não tem exata consciência sobre o que está votando quando vota a favor de um Tratado. Para combater essa questão da complexidade do sistema de tratados iniciou-se o processo de discussão do Projeto de Constituição Européia para conseguir, assim, uma Carta que garanta aos cidadãos o respeito dos seus direitos.

Hoje, tanto os tratados quanto as instituições apresentam problemas, porque o caráter da liderança européia, cuja máxima expressão é o duo Comissão/Conselho, está marcado pela divisão singular dos poderes executivo e legislativo. O Conselho, na verdade, por representar os Estados ou governos eleitos democraticamente, é o que, em última instância, legitima o processo todo. Mas o processo de tomada de decisões ainda é muito obscuro, é o mais contestado, porque o Conselho de Ministros ou Conselho da União seciona a portas fechadas, e, junto com a extremada tecnocracia dos comitês que formam à Comissão Européia, são objeto de críticas. Essa questão da legitimidade das instituições está mais desenvolvida na tese.

Outra questão abordada é a da cidadania, porque não há no horizonte uma alternativa ao Estado-nação como base de uma nova cidadania, e aí surge a questão dos pilares de representação na União Européia. O pilar intergovernamental conecta a União ao cidadão por meio dos governos e parlamentos eleitos no plano nacional. O segundo, supranacional, vincula a União Européia ao eleitorado pan-europeu que elege o Parlamento Europeu. É importante observar se os interesses da cidadania se alinham estritamente em termos nacionais, ou seja, há de se observar por onde passam as linhas de conflito, e nesse sentido já há clivagens no cenário europeu que transcendem as fronteiras do Estado nacional.

Na busca de novos elementos para dar mais força à formação de uma cidadania européia, introduz-se o argumento da necessidade de envolver os parlamentos nacionais no controle do processo decisório europeu. Isso se vê na última Convenção Inter- Governamental (CIG) onde, junto dos parlamentares europeus, há representantes dos parlamentos nacionais. Isso significa que além da função de ratificação dos tratados, os parlamentos ganharam a oportunidade de representar seus povos nos assuntos da União, influenciando os governos antes das reuniões do Conselho de Ministros, revisando rascunhos da legislação européia que, depois de Amsterdã, devem circular nos parlamentos nacionais no mínimo seis semanas antes de serem considerados pelo Conselho. É uma forma de trazer essas idéias de simbiose, de co-participação, de comunicação entre as diferentes instâncias: a instância nacional, mas que é também, logicamente, a instância regional e a instância local; e a instância supranacional ou intergovernamental. Gostaria de concluir dizendo que, na verdade, é uma mescla das duas coisas. Não é mais uma opção válida dizer: “vamos ter instituições intergovernamentais ou supranacionais”.

Mais uma questão para reflexão é a da importância na autonomia de se constituir interesses, valores e identidades comuns – a centralização do processo de tomada de decisões no Conselho de Ministros e na Comissão Européia colocou o problema da autonomia na agenda européia. O Tratado de Maastricht iniciou um processo irreversível de integração econômica, processo confirmado pelo pacto de estabilidade assinado em Dublim em 96, e como a atividade econômica transcorre no plano do bloco regional, alicerçada nos imperativos da união econômica e monetária, o impacto no mundo do trabalho, na sociedade e na política tem conseqüências que começam a ameaçar as próprias bases da construção européia, isso é, a busca da paz e da democracia, que são os grandes sustentos da formação da comunidade européia. Muito desse ressurgimento da direita na Europa tem a ver com os resultados dessas políticas pós-Maastricht – na verdade Maastricht divide a Europa em dois depois do plebiscito da França e do plebiscito da Dinamarca. Então, a dificuldade de garantir os direitos básicos ao mesmo

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tempo da implementação da união econômica monetária provoca esse distanciamento das sociedades, que sentem como tendo ameaçadas a sua segurança social, política e jurídica, o que leva Dahrendorf a dizer, em 1997, que “...uma união jurídica européia é de maior importância que uma união monetária européia”. Ou seja, a questão da ameaça à autonomia é o pano de fundo.

A cidadania que está se forjando em termos europeus é aquela que se exercita no dia a dia pela via de participação em projetos e políticas públicas nacionais e macro-regionais, levando em conta a importância da promoção da autonomia. Essas práticas de políticas comuns tendem à extensão da igualdade de oportunidade a todos os cidadãos, o que é considerado como condição necessária para emergência e subsistência da democracia. É assim que se legitima a União perante a participação da cidadania na formulação e implementação de sua política, com a mediação de seus representantes políticos no plano local, regional e nacional.

É possível concluir que Maastricht fechou o ciclo predominantemente funcionalista do processo de integração. Fui bastante questionada na banca quando falei isso. Depois de Maastricht, esse argumento funcionalista de que o spillover dos processos de integração econômicos iria contagiar o processo político ficou insuficiente, porque a necessidade de envolvimento dos agentes é o que realmente resolverá a questão do déficit democrático. Caso seja deixado por conta dos avanços da integração econômica, técnica, administrativa, a questão da democracia estará muito comprometida. Quando a União Européia se tornou mercado único e união monetária, esse conceito de funcionalidade passou a ser chamado de governança, conceito que permeia toda uma discussão sobre as redes. Mas o importante é dizer que no meu trabalho, a ênfase está depositada na necessidade de se reafirmar a política e a presença de atores políticos, ou seja, desse Estado multidimensional que comporta suas diferentes instâncias local, regional e nacional. Sustento também que há transformações em curso no Estado-nação, decorrentes dessa necessária ampliação do seu raio de ação, tanto em direção a instâncias internacionais, supranacionais, como sub-nacionais, sempre no intuito de articular interesses respeitando processos de descentralização em atenção às reivindicações da autonomia. Todos esses documentos que analisei mostram a tendência de todos os países à descentralização das decisões.

Essa transformação do Estado deve contar com a leitura atenta de novas realidades políticas que permitam a elaboração de uma nova síntese político-jurídica capaz de contemplar as novas formas de poder e as novas autoridades que estão surgindo. Como disse Bobbio, o regionalismo é uma das expressões desse processo de transformação do Estado e, portanto, também, uma contingência histórica, uma construção histórica, social e política.

Uma das primeiras conclusões é a necessidade de se constituir uma arena política internacional no plano do bloco, para que a cidadania acompanhe os debates e a agenda regional, com o intuito de desenvolver esse sentido de pertença, fundamental para a construção de uma identidade que não tenha um padrão independente e exogenamente dado, como as identidades tradicionais baseadas em etnias ou culturas ou essencialismos de qualquer tipo – aqui a identidade deve ser construída e constantemente alimentada pelas realizações do próprio sistema político. Há um artigo do Haas, que menciono aqui, da International Organization de 76, no qual ele diz que a criação de um espaço político em que domine a discussão e a negociação “...pode ser sub-nacional, nacional, regional, inter-regional e global”. Esse é o Haas de volta do funcionalismo, depois de toda a crise das teorias da integração, que caíram no esquecimento nos fins dos anos 70 e início dos anos 80. O debate institucionalizado insistiu no velho esquema binário, supranacionalismo versus intergovernamentalismo. Como já disse antes, há de se buscar uma nova institucionalidade que combine elementos intergovernamentais com

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elementos supranacionais, principalmente nessa via da participação das instâncias nacionais no próprio processo de institucionalização regional.

Por último, o debate atual sobre a futura constituição européia apresenta dados empíricos de interesse para uma visão sobre o futuro da integração. A França propõe uma federação de nações-estados, diferentemente da concepção alemã que é mais moldada na sua própria conformação, baseada em Estados autônomos. As diferenças entre essas concepções são de grau e não as tornam incompatíveis. A visão alemã acalentou, na década de 80, este projeto de Europa das regiões, que seria uma Europa de Estados inspirada na própria organização do Estado federal descentralizado – o poder dos Estados membros seria similar aos landers alemães. Nos últimos debates essa proposta perdeu força e o consenso passou a pender na direção da proposta francesa. O debate está acontecendo, repercutindo a declaração de Laeken de dezembro de 2001 sobre o futuro da União Européia, onde o Conselho Europeu realizou convocatória da convenção para preparar a conferência intergovernamental de 2004, que vai incorporar os dez países, que vai transformar, novamente, todo o cenário europeu.

Concluindo, digo que adensar o processo decisório, incorporando os representantes regionais e locais ao processo de implementação de políticas benéficas para os cidadãos é a resposta encontrada nesse trabalho ao desafio da construção de um novo regionalismo, relembrando que as instituições são importantes, mas não suficientes para garantir os interesses e os valores democráticos. As atitudes dos sujeitos, individuais e coletivos, que interagem com elas também são definidoras de rumos, porque se tudo é socialmente construído, como dizem os construtivistas, também tudo pode ser socialmente desconstruído.

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Debate Pergunta: Algo que me chamou muita atenção foi o que você falou sobre como Maastricht

representou o fim de um tipo de visão, aquela sobre como a integração de elementos econômicos pode tornar a integração algo mais automático, mais palatável do ponto de vista político. Por exemplo, ao se criar uma área de livre comércio, uma união aduaneira e assim por diante, cria-se condições políticas cada vez mais propícias para uma integração também política. Acho isso interessante porque considero o inverso também como um questionamento válido, ou seja, será que se consegue integrar politicamente se não houver certas condições econômicas sendo satisfeitas? Por exemplo, se não houver cada vez mais uma condição de concorrência eqüitativa entre os países? Será que a centralização econômica não é cada vez mais necessária para um processo de integração? E aí o complicador é que tipo de centralização econômica deve haver. Não ter sistemas tributários harmonizados, sequer dentro dos países membros, é um problema, tal como acontece entre províncias argentinas, cada uma com uma política econômica independente. A Europa só evoluiu e avançou quando ela conseguiu centralizar essa questão.

Gostaria de saber sua opinião sobre isso, sobre como trabalhar o fato de que para se conseguir uma integração factível seja necessário se criar essas condições econômicas. Talvez o argumento funcionalista tenha se esgotado em Maastricht, mas havia um elemento de verdade nele. Gostaria também que falasse sobre como você vê o Mercosul e América do Sul nesse contexto, se é possível continuar só na retórica política e quais são as possibilidades com essas condições econômicas tão diversas que se tem na região.

Drª Ana Maria Stuart Na verdade, quando se pensa no ciclo funcionalista da União Européia, o que se tem em

mente é a idéia um pouco determinista de que uma maior integração resultaria num processo de ganhos que seriam bem vistos por todos, o que faria surgir, naturalmente, uma vontade de integração política, nessa visão de steps consecutivos. A experiência mostrou que isso não era verdadeiro, e aí se viu que um processo de integração econômica pode trazer ganhos para alguns, em determinados níveis, em determinadas atividades, mas também pode trazer perdas, e então se trata de um processo de perdas e ganhos também do ponto de vista político, para o próprio processo de integração. Nesse sentido, há de se pensar uma combinação, talvez, ambiciosa, nova, de elementos que permitam distinguir entre centralização e harmonização, porque o que deve ser promovido e o que é legítimo de ser buscado é a harmonização de políticas, que é diferente de centralização de políticas – harmonização pressupõe a interferência de todos os que são partes, e é dessa combinatória que os Estados que têm verdadeiro interesse de promover a integração devem cuidar politicamente.

No contexto do Mercosul, com esse cenário de carências históricas e de dívidas sociais, o desenvolvimento é ainda mais delicado, mas há de se fazê-lo. Deve-se ressaltar a importância de se promover grandes obras de infra-estrutura, isso que já foi iniciativa do governo anterior quando da criação da IIRSA, e que esse governo retomou, colocando recursos e chamando outras entidades financeiras, como a CAFF e o FONPLATA, para participar desse esforço de criação de infra-estrutura que, enfim, permita o aumento da interdependência econômica – porque como podemos ter interdependência se não temos nem como intercambiar direito, salvo aquelas vias principais nomeadamente São Paulo/Buenos Aires. Mas e o restante? Todo esse trabalho de mapeamento da União Européia, de diferenciar as regiões nos mínimos detalhes, é muito didático, muito ilustrativo do que é possível fazer para se pensar um verdadeiro processo

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de integração que implique em busca de coesão econômica e social. Nem tudo será feito de maneira plena, mas acho que já se pode começar.

Pergunta: Gostaria de compartilhar um pouco das minhas perplexidades, com tudo que escuto sobre

o processo de construção da União Européia, a sensação que tenho é de que se trata de um processo construído, mas talvez o mais interessante seja que a União Européia parece algo muito sui generis. Acho que é sui generis do ponto de vista de sua história, porque, afinal de contas, é a região onde nasceu o Estado-nação, e é a primeira região onde há um processo de delegação a instituições supranacionais, passou por duas guerras no século XX, enfim, tem muitas especificidades, e quando vejo o processo em si, me parece que, na verdade, ele não tem uma direção, algo ficou até mais claro na sua exposição. Assim como há elementos que impulsionaram a democratização no sentido da inclusão de regiões, inclusive do ponto de vista da introdução de elementos de integração de diferentes instâncias locais, regionais, etc., há um processo de centralização. Não é claro que a regionalização representou um ganho do ponto de vista da democracia, democratização entendida como inclusão, tal como você a está trabalhando, ou seja, há também déficit democrático. Ao mesmo tempo em que se tem instâncias de representação supra nacional, o parlamento, tem-se dentro do parlamento correntes que são de direita. Vejo, então, um processo em aberto, no qual também existem ganhos, mas existem também elementos que são extremamente complexos. Estou pensando na própria política migratória européia que se tornou muito mais fechada com relação ao resto do mundo. Gostaria então de propor uma discutição: ao mesmo tempo em que há esse processo na Europa do desmonte do estado de bem estar, com desemprego estrutural, em nossa região, onde há uma tradição soberanista forte, até porque se trata de uma região onde as instituições são muito frágeis, o problema é ao inverso ao da Europa, pois não se trata de partir de instituições fortes, e sim de instituições fracas, em função, inclusive, da própria política internacional. Temos, então, um processo de construção institucional dentro de cada um dos nossos países e simultaneamente uma diversidade muito grande, que não sei se é maior que na Europa, mas significante se compararmos o Paraguai com o Brasil ou mesmo com a Bolívia. Há, então, uma diversidade muito maior e, ao mesmo tempo, com uma tradição soberanista, na política externa, muito forte. Não construímos ainda as instituições supranacionais que a Europa construiu e que foram, algumas delas, fundamentais, a exemplo da corte européia que teve implicações, do ponto de vista de política pública, para além da questão do mercado único. Acho que no nosso caso, a questão é ainda mais complexa, pois não temos as instituições, e não estou nem considerando instituições como fundos regionais. Temos diferenças, mas com muita dificuldade em ceder a soberania, em criar instituições, de fato, supra-nacionais. Esse é um problema que vai ter que ser enfrentado pelo Brasil. Talvez os desafios para nós sejam ainda maiores do que no caso europeu devido às diferenças e pelo nosso passado.

Drª Ana Maria Stuart Também acho que o processo da União Européia é sui generis, e nesse estudo me deparei

com a capacidade de transformação do próprio processo. Hoje temos mais uma inovação em curso : a "conferência intergovernamental" que está preparando o projeto de Constituição, tem um novo formato – já estão dizendo que esse novo formato que incorpora, como disse antes, representantes do parlamento nacional, vai ser adotado para as próximas conferências intergovernamentais (as chamadas CIGs, preparatórias das mudanças nos tratados) porque deu resultados na construção de consensos. Então essa capacidade de inovar para ir resolvendo os

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problemas surpreende. É um processo de ganhos e perdas, tal como é vivido pelos cidadãos na Europa, por isso também a preocupação. Fizeram até uma conferência sobre "proximidade". Nessa conferência aprovaram uma série de medidas para aproximar a União do cidadão comum, porque levaram muitos sustos. A rejeição ao processo de centralização que você mencionou é real. Você também mencionou que as pessoas, para se enquadrarem nesses ajustes estabelecidos em Maastricht, tiveram que entrar no desmonte de estados de bem estar social, uma tradição na Europa – daí a ficar contra a própria União é um passo. De um consenso que existia, passou-se a uma situação complicada, a qual estão tentando reverter com esse processo de constitucionalização, que não é apenas mais um tratado. Nice foi o último dos tratados, assinado em fevereiro de 2002, a conferência foi em dezembro de 2001 e foi um fracasso. Porque esperava determinar toda a transformação da institucionalidade em função da ampliação européia, mas houve muita resistência da parte de alguns Estados membros. Há um outro aspecto: o processo de integração é diferente quando a maioria dos governos ou os governos dos países líderes é social-democrata. Há momentos históricos em que esses países são governados por partidos de liberais, de direita. É notável como o Tratado de Amsterdã é produto da Europa "rosa", quando tantos governos social-democratas foram eleitos. Foi uma resposta a Maastricht para dizer “bom, já que temos metas macroeconômicas, temos que ter também metas sociais, metas de emprego, metas de inclusão, etc.” Não é possível pensar o bloco sem pensar nos países que o integram, sem pensar na política desses países, por isso os pensadores "construtivistas" são tão úteis para olhar essa transformação. Eles dizem que o processo é contingente, tudo vai sendo constantemente construído pelas forças sociais e políticas. Para a nossa região, concordo, e é por isso que minha preocupação é com a democracia, porque se temos instituições democráticas frágeis ainda não consolidadas no plano interno, como vamos fazer para ter controle democrático sobre processos além das nossas fronteiras? Deve-se observar dentro da própria Europa o avanço democrático que países de tradição autoritária, como Portugal e Espanha, tiveram depois de integrar a União. A responsabilidade de compartilhar com outros um objetivo democrático, porque, afinal, essa é uma condição primeira da União Européia, e acho maravilhoso que também seja uma condição primeira do Mercosul. Por exemplo, no caso do Paraguai, que não sei se pode ser chamado de país plenamente democrático mas que certamente está em processo de democratização, foi o Mercosul, com a sua cláusula democrática, que parou as tentativas de regressão desse processo regido por uma constituição, com atores políticos, com eleições, que correu sérios riscos. Acho que é possível crescer nesse compromisso democrático, ampliando os efeitos da integraçào além da necessidade de respeitar uma cláusula democrática, começar a imaginar um Mercosul que com controle da cidadania política. Um exemplo disso foi dado pelo governo brasileiro na última reunião de cúpula, em junho, em Assunção, onde já entrou com um projeto para 2006 de institucionalização do Mercosul, sugerindo a necessidade de trabalhar rapidamente para transformação da comissão parlamentária do Mercosul num parlamento. Já há trabalhos nesse sentido, há uma comissão trabalhando no Congresso, vinculada à comissão parlamentária. Estamos atrasados sim, porque é verdade que essa idéia da importância da defesa da soberania é intrínseca à história das nossas nações, mas acho que há uma consciência de que ceder soberania para um processo conjunto não é abrir mão da soberania, é adquirir mais soberania, porque permitirá uma maior capacidade de negociação internacional, porque permitirá constituir sujeitos internacionais mais fortes, mais respeitados. Por muitos é visto como mais um ganho de soberania do que uma perda de soberania.

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Pergunta: Considero a tese extremamente complexa, pois é uma tese que acredita que as relações

internacionais tenham já um corpo teórico. Depois ela se propõe, a partir desse corpo teórico, a fazer uma demonstração empírica, e ademais lida nos seus resultados com formulação de conceitos. É uma tese que reflete a experiência da própria professora que, além de uma formação constante em relações internacionais, desde a graduação, também se aprofundou em estudos de agentes sociais, como do mundo do trabalho, e faz sempre essa conexão entre o ator social, a regionalização e o conceito, a região, a formação, a atividade do ator e o conceito. Só ela poderia trazer tanta complexidade ao mesmo tempo conceitual e empírica, então é um prazer enorme ver esse resultado.

Entendo que quando se fala de esquerda ou de direita, definitivamente não se pode falar do fim da história, não se pode imaginar que o objetivo da democracia da União Européia seja a ausência da vitória da direita nos países, pois caso essa fosse a intenção da noção de centralidade do foco da democracia na União Européia, seria, realmente, o fim da democracia. Então, afastemos, em absoluto, a disputa eleitoral como definição de democracia. Fica claro que a definição de democracia na União Européia, segundo a tese de Ana Stuart, caminhou de um aspecto institucionalista, por isso ela se refere, também, na vida política ao formalismo, para um aspecto da própria transformação da democracia numa espécie de democracia em algum grau participativa. A todo momento a democracia representativa na centralidade da União Européia caminha para uma inclusão dos atores sociais, seja ao nível local, ao nível regional, seja do nível local-regional ao nível intergovernamental, seja desses níveis a uma suposta supra-nacionalidade. Então, deixando isso claro, ela passa para uma idéia do que seja, digamos, conceitualmente, estar propriamente avançado, quer dizer, estar avançado é achar que assim como o desenvolvimento econômico não traria desenvolvimento social para todos sem uma atitude social, o desenvolvimento econômico de todas as partes não traria de forma nenhuma um verdadeiro desenvolvimento, portanto, substituir essa noção funcionalista do desenvolvimento da somatória dos Estados pelo conceito de governança ou de redes é não incluir, também, uma nova noção de desenvolvimento. Então, a tese vai qualificando a transformação – por isso ela usa o construtivismo, a transformação do processo da democracia e desenvolvimento na União Européia – como um modelo para aplicação ao Mercosul, o que acho absolutamente interessante, sugestivo, e que me traz dúvidas. Acho que a frase mais interessante, entre tantas interessantes, é a que diz que o que o regionalismo é uma faceta da transformação do lugar do Estado nacional nas relações internacionais. Indo adiante, ela distingue o regionalismo da regionalização, dizendo que “...a regionalização é algo que vem de fora e o regionalismo é uma opção, é uma adoção dos atores nacionais, mas não só nacionais, sub-nacionais também”.

Dado esse quadro, que assim entendi, penso que corresponde à sua apresentação. O grande ausente é o Mercosul, a União Européia é tomada como modelo, mas o Mercosul, sem dúvida, é lugar histórico de aplicação desse modelo, e aí colocaria duas questões. Se a democracia e a paz foram os motivos centrais da União Européia, e você escolheu a democracia e o desenvolvimento como motivos centrais do Mercosul, não seria a paz social um motivo muito mais candente de organização do Mercosul do que uma idéia tão genérica como essa do desenvolvimento? E não seria, justamente pela ausência da inclusão social das massas despossuídas da modernidade, no campo do Mercosul, em que o próprio Mercosul se sente ameaçado? Digamos assim, não seria mais latente o caso da vitória de uma política voltada contra o exagero do estado bushiano, do perdão intenso às dívidas externas dos países em desenvolvimento, de uma atração automática muito maior pela inclusão, pela paz social, do que

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a expectativa da reprodução de um modelo? Então essa é a primeira questão que, de coração, eu encaminho. A segunda questão é uma questão conceitual. Acho que Dahrendorf, quando fala na questão jurídica e política, fala no sentido exatamente contrário ao que você empregou. Considero Ralph Dahrendorf profundamente conservador, mas acho que ele acredita que a razão da dinâmica histórica do momento é a razão da manutenção do Estado nacional contra a criação das regiões, e lhe digo mais, ele acha que a federação de nações-Estados, como quer a Europa, vai de encontro com a permanência da primeira invenção soberana do Estado nacional. São essas as duas questões. Vou continuar essa pergunta: nessa razão o próprio Moran acha que o conflito dessas formas de organização pode levar a uma guerra catastrófica, federação versus Estado.

Drª Ana Maria Stuart Não diria que tomo a União Européia como modelo, e sim como inspiração, ou seja, tenho

plena consciência das diferenças enormes que existem entre as histórias, entre as tradições. Temos que pensar por nós mesmos, olhando nossa realidade. Fui buscar inspiração porque aquilo é um celeiro de políticas. Bruxelas é um celeiro de políticas públicas, de criação, para concluir que “temos que fazer isso com a nossa realidade, temos que mapear a nossa tal como eles mapearam a deles”. Vamos encontrar objetos muito diferentes dos que eles encontraram, mapeando as diferentes regiões. Então é fonte de inspiração mais do que um modelo a copiar.

Sobre a questão de esquerda e direita, você tem toda a razão. A direita civilizada, a direita democrática, tem que participar porque existem cidadãos que pensam assim, assim como existem outros que pensam diferente. Não cabe dúvida sobre respeitar a diversidade. Agora, deve-se ressaltar a atitude dos partidos social-democratas, e nesse sentido acho que Maria Regina tem razão, que ficam agregados no Parlamento Europeu como família, e é o que está acontecendo no plano das instituições, a formação de famílias européias políticas: a família dos socialistas, a família dos democrata-cristãos, os partidos progressistas, que já constituíram partidos europeus que só funcionam no parlamento e que não têm projeção ainda nos Estados individuais. Há mais vocação integracionista dos partidos sociais-democratas, principalmente dos partidos do Sul, dos partidos da França, da Espanha. Na França, o Partido Socialista deu grandes nomes para as instituições européias, entre eles Delor; há os Democratas de Esquerda, ex-partido comunista na Itália renovado; há grandes integracionistas que estão trabalhando nesse processo, enquanto os partidos da direita têm uma atitude ou uma vocação mais voltada para o Estado-nação.

Sobre o Dahrendorf, por se tratar de um liberal, um conservador liberal, acho que a defesa que ele faz de uma ordem jurídica, política e jurídica, acompanhando uma nova ordem econômica é muito importante. Por isso o trago, porque não é um socialista, é um conservador, um liberal que está dando importância à ordem democrática, que deve ser construída concomitantemente à ordem econômica. Quando penso as regiões, não penso nas regiões divorciadas do Estado-nação. O Estado tem que representar as suas regiões. A Alemanha, por exemplo, leva os governadores dos landers, que sentam na representação da Alemanha no Conselho da União, no Conselho Europeu. Isso equivale a dizer que, nas nossas instituições do Mercosul, o governo brasileiro deveria se preocupar em levar os governadores, o governo argentino em levar representantes das províncias, enfim, o Estado trazer toda a sua institucionalidade própria, que é diversa, e que não é igual para todos, e sentar nas instituições comuns.

Sobre essa briga no plano da discussão da nova Europa, os resultados da última Convenção mostram que há consenso na direção de formar uma federação de Estados-nação.

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Vai haver uma federação, cuja carta será aprovada, ou seja, já há determinados princípios básicos de direitos e garantias de direitos. Não vejo que Alemanha e França estejam partindo para o confronto de visões, vejo que há um processo de confluência nesse padrão e que a Alemanha já abandonou a idéia da Europa das regiões, uma idéia que responde mais a seu formato interno. Temos a Alemanha federal e a França unitária. No entanto, a França teve que reformar seu sistema interno, criar regiões, dar representação para suas regiões, algo que teve que ir contra toda a sua tradição, teve que ir rompendo essa resistência.

Pergunta: Gostaria de fazer mais algumas observações. No processo europeu há sempre alguns

paradoxos interessantes, mas um dos momentos no qual houve real avanço, depois do que eles mesmos chamaram de euroesclerose, foi quando aconteceu a aliança entre um socialista e alguém de direita, nomeadamente entre o Mitterand e o Köll, que foram a verdadeira sustentação, sem a qual absolutamente nada do que está sendo feito hoje seria possível. Isso demonstra que eles conseguiram, de alguma forma, estar acima da cópia ideológica. Seria interessante estudar, por exemplo, o fato de que, para o Köll, uma certa autonomia para os landers, para as regiões alemães era importante, ao mesmo tempo que para o Miterrand, um outro tipo de agenda era importante. Uma lição importante para nós, talvez seja o fato de como demorou a haver esse reconhecimento do déficit democrático. Durante 30 anos não havia uma conversa sobre isso, é algo muito recente. A prova disso é que o próprio Miterrand, na época do referendo na Dinamarca, achou que ter o referendo na França seria uma brilhante idéia, e acabou sendo aprovado por apenas 0,25% de diferença, provando que havia um déficit democrático razoável na própria França.

Pergunta: Por ser jornalista tenho uma visão menos teórica. Em sua opinião, essa questão do déficit

democrático da qual se fala tanto não seria em parte devido à resistência dos governos nacionais, Estados nacionais, especificamente dos parlamentos que estão na sede das democracias européias, em transferir mais poderes para as instituições voluntárias? Em função disso até teria sido criado o princípio da subsidiariedade do qual você falou, e do qual se fala muito na Inglaterra, especialmente depois de Maastricht, por meio do qual estariam protegidos, sabendo que a União não iria se envolver em questões que pudessem ser resolvidas a nível local.

Agora uma pergunta a respeito do Mercosul, já que você falou que a sua maior preocupação é com a democracia. Agora que foi firmado esse acordo com o Peru, existe a expectativa ou a possibilidade de um acordo com outros países da comunidade andina. Houve comentários na Folha, um deles levados pelo professor Alfredo Valladão, dizendo que o Mercosul tinha conseguido consolidar a democracia do Cone Sul, da América Latina, e que trazer Colômbia, Venezuela, Peru, Equador ia importar uma instabilidade. Qual o risco que existe de o Mercosul importar essa instabilidade política como sugeriu o professor Alfredo Valadão? Porque, mesmo com tudo o que houve na Argentina, nunca se falou seriamente em golpe.

Drª Ana Maria Stuart Agradeço, pois a sua primeira questão levanta algo que desenvolvo na tese mas para a

qual não houve tempo de expor, que é a responsabilidade dos atores, sociais e políticos, no compromisso do envolvimento do país num projeto regional. Muito se fala nas responsabilidades dos eurocratas, dos burocratas, mas ao se observar as agendas dos partidos

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durante as campanhas eleitorais, as agendas dos próprios movimentos sociais hoje, vê-se que já estão bem mais internacionalizadas, mais nos movimentos sociais do que nos partidos políticos, que são os que afinal elegem seu representante nos parlamentos. É uma via de duas mãos, a responsabilidade tem que estar com o compromisso, com a democracia, com a transparência por parte das autoridades eleitas para exercer funções no plano do bloco regional, mas também há de existir nos atores nacionais internos, que devem contribuir para essa agenda, e colocar essas questões nos seus próprios parlamentos. Aqui vivemos isso, um empurra para o outro. A questão da comissão parlamentar do Mercosul não parece uma questão importante. Por que? Porque as demandas internas são tantas, porque estão tão envolvidos em outras questões além da agenda regional, que a agenda da construção de um bloco regional não é assumida. Então, concordo que responsabilidade desse déficit democrático também é dos sujeitos políticos que não se envolvem e não assumem a agenda do bloco regional.

Pergunta: Mas eles não querem transferir poder, além de usarem a União Européia como bode

expiatório ou paralisarem pela burocracia de Bruxelas. Drª Ana Maria Stuart: Sim. Agora, sem chegar nesse plano perverso, já a própria atitude de não envolvimento

denota uma falta de compromisso, é uma resistência também. A respeito da subsidiariedade, o comitê das regiões diz que tem um compromisso com

esse princípio, e que o usa para contribuir para o processo de integração, diferentemente da maneira como os ingleses o usam. Se trata do princípio que trabalha com a idéia de que as questões têm que ser resolvidas no âmbito do governo mais próximo do cidadão, então o que pode ser resolvido no plano local não se transfere para o plano regional, já o que o plano local não pode resolver o transfere para o governo e se este não consegue transfere para a União. Esse princípio ficou estabelecido em Maastricht. Dessa maneira – só podem ser transferidos à União aquelas matérias e assuntos que não podem ser resolvidos competentemente no plano do Estado-nação, então, o poder de decisão da União é residual e por isso subsidiário. O que dizem os representantes de poderes locais e regionais presentes no comitê das regiões? “Cuidamos desse princípio porque cuidamos dos interesses e os valores do cidadão comum, dos governos locais, regionais, estejam preservados e não sejam invadidos por um intervencionismo descabido. Se for para decidir a alocação dos fundos estruturais, queremos nos incluir nessa decisão, então não queremos que o nosso governo nacional simplesmente nos represente. Se for um investimento que vai modificar nossa região, que vai ter impactos ambientais, sociais, econômicos, eu, prefeito dessa cidade, ou presidente do conselho municipal desse lugar, ou presidente da região, quero estar presente para ver, realmente, como vão ser alocados os recursos no projeto. Dessa forma estou defendendo o princípio de subsidiariedade”. Significa, então, não permitir que as decisões sejam tomadas longe do local onde pode ser melhor tomada a decisão, porque é onde há, digamos, uma melhor compreensão de todos os fatores imediatos.

A questão do professor Valladão é de que estaríamos correndo o risco de importar a instabilidade dos países andinos. Acho que temos que ter grandeza. Pensar que o Brasil representa muito na América Latina e que as próprias propostas do governo brasileiro de se inserir como facilitador de negociações na Venezuela parou um processo que ia aceleradamente para uma guerra civil, conseguiu encontrar uma forma de criar um grupo de amigos. O governo tem tido muito cuidado em colocar a sua mediação para tentar diminuir o grau de competitividade, de instabilidade que existe nesses países, e esperemos que continue assim.

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Pergunta: Cada vez que você fala, desperta novos interesses. Você, respondendo ao colega jornalista,

falou do princípio da subsidiariedade, do local, do regional, do Estado nacional e da união. Só gostaria de lembrar que a hierarquia dessas instâncias governamentais, de governabilidade, estão colocadas nessa abstração de poder cujas relações não estão necessariamente subordinadas dessa forma. É muito comum, por exemplo, no caso de uma organização não governamental da região de Vupertal, na Alemanha, que ela prefira romper com a identidade nacional e direcionar-se diretamente à União – há um by-pass constante de instâncias governamentais.

Drª Ana Maria Stuart: Mas veja minha surpresa na pesquisa ao ver que, no comitê das regiões, os blocos são

nacionais. Há um alinhamento nacional em conjunto com a lealdade partidária e outras lealdades.

Pergunta: Mas talvez, a questão que a Nanci levantou aconteceu, por exemplo, no caso francês, um

país de tradição unitária que vai ter que se descentralizar e participar da criação de uma instância supranacional, federal, etc., dando, assim, à instância local um poder que talvez ela não tivesse anteriormente.

Drª Ana Maria Stuart: Com certeza. Mas pode também ser conflituoso. Pergunta: Todo esse time é conflituoso. Drª Ana Maria Stuart: Não estou sugerindo aqui que tudo funciona harmoniosamente. Os conflitos existem e o

importante é contar com instrumentos normativos e institucionais que permitam resolve-los. Pergunta: Não funciona ordenadamente como numa metáfora ao Estado nacional, que tem ainda a

presença da soberania, portanto, a federação é superior ao Estado, ao local. Na hora em que se cria arranjos, nos quais a soberania, embora não destrua o Estado nacional, passa por uma transformação de sentido, as idas e vindas desse processo não são necessariamente hierárquicas.

Drª Ana Maria Stuart: É muito interessante ver em Bruxelas as contradições entre a representação nacional e

representações locais. Visitei alguns e perguntei como era a relação com a delegação oficial, e as respostas eram sempre “depende”. Eles aceitam, porque uma região, uma cidade abre um escritório em Bruxelas para defender seus lobbies, seus interesses, seus negócios, e como você disse, o Estado não tem nada a ver com isso.

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Pergunta: É horrível dizer isso, mas repetindo mais ou menos o que o Berlusconi disse, acho que um

cidadão alemão se sente, muitas vezes, mais a vontade numa identidade comunitária, do que numa identidade nacional.

Drª Ana Maria Stuart: Mas não é isso que acontece na maioria dos casos, isso seria uma exceção. Pergunta: Essa questão de que se vai importar instabilidade é absurda, porque, como dito pela Ana

Maria, no caso da Europa, a própria constituição da União Européia, de quando ainda era Comunidade Européia, foi fundamental no processo de democratização e consolidação das instituições políticas na Espanha e em Portugal, assim como a cláusula democrática funcionou no caso do Mercosul. Acho, então, que acontece exatamente o oposto, pois assim como se pode dar mais poder às instâncias regionais vis-à-vis o poder nacional num sistema mais unitário, também se pode fortalecer as instituições democráticas nacionais quando há um espaço supranacional.

Pergunta: A questão é justamente se vamos importar instabilidade ou exportar estabilidade.

Pergunta: Acho essa uma argumentação para quem é contra a idéia de se ter uma instância política,

um argumento muito complicado. Pergunta: Nos dois casos as possibilidades estão presentes: não há uma hierarquia definida, é

possível que, ao mesmo tempo, se importe instabilidade ou exporte democracia. Não sei se a democracia é nossa centralidade, embora seja instrumental. Não sei se a questão da inclusão e da paz social seria mais central.

Drª Ana Maria Stuart: É desenvolvimento com inclusão social, desenvolvimento sustentado, enfim, com todas

essas qualificações, nesse sentido da busca da inclusão social. Pergunta: A professora Ana Stuart mencionou a questão da falta de grandeza, que considero, talvez,

o aspecto menos científico de toda a apresentação, mas ao mesmo tempo o de maior eloqüência, o que mais cala fundo, porque essa questão democrática tem uma série de implicações. Nessa linha, gostaria de fazer dois comentários, que têm a ver diretamente com a União Européia e o parâmetro pelo qual se pode tentar indicar o que é democrático no processo de evolução, de consolidação da União Européia e também no Mercosul.

Tocando no que a Nanci disse, a direita não representa perigo algum, há perigo sim nas chamadas doutrinas irracionais ou não razoáveis. O que são essas doutrinas irracionais ou não razoáveis? São doutrinas que não aceitam um fato da vida política contemporânea, que é o fato do pluralismo. Não há hoje nenhuma doutrina, em nenhum lugar do mundo, nem mesmo a Al-Qaeda, que tente impor o modelo totalizante ou hegemônico. A globalização trouxe um

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fenômeno que é o sepultamento, para todo o sempre, a despeito de Bush e de sua doutrina republicana do destino manifesto, de que qualquer doutrina política que venha a se tornar hegemônica em escala global ou escala regional – isso não existe mais, pluralismo é um fato, e a identificação entre doutrinas que sejam aceitáveis e não aceitáveis do ponto de vista democrático é baseada na capacidade delas de se submeterem ou se enquadrarem no foco de um consenso superposto em torno da idéia de liberalismo político, que é o primado da democracia. Essa caracterização tem uma outra implicação para os processos de integração fundamental, porque a pluralidade ideológica, na verdade, é uma benção, é um triunfo para um processo de integração e não um anátema. Então temos, hoje em dia, um regime fossilizado e com problemas tal como o entre Cuba e Estados Unidos, cujos antagonismos são vistos como a grande ameaça à democracia. A forma instrumental pela qual esse conflito possa ser enquadrado pode representar uma grande benesse e não o contrário, ou seja, a idéia do choque político não é infensa, não é antinômica à própria idéia de integração. Acho, inclusive, que o Mercosul passou com nota dez nesse aspecto, por ter sobrevivido a tentativas de integração em meio a uma grande confusão ideológica, e aí a palavra pluralismo é até inadequada, pois se trata de uma total falta de identidade, uma total azáfama ideológica. Sobrevivemos primeiro a Menen, com seu realismo periférico, com sua total falta de visão e de clareza no que diz respeito à inserção argentina no mundo, promovendo-a de maneira um tanto voluntarista. Sobrevivemos também a Cavallo e De La Rua com seu total antimercosulismo. Então, esses testes, aos quais ele sobreviveu, foram radicais para o Mercosul, pois geraram um acirramento e um fortalecimento no debate em torno da integração, o que demonstra que não há problema nenhum com a pluralidade ideológica e, em muitos casos, nem com a falta de visão política, ou seja, é a estrutura do processo que conta, o comprometimento que vai além do político. Aí gosto de recuperar determinadas noções funcionalistas, que são gradualistas e construtivistas também, porque acho que o processo gera sim spillover, inclusive spillover político a partir do qual surge uma certa dinâmica que cria estruturas, que por sua vez causam determinados constrangimentos em torno dos atores, constrangimentos cujos custos de violação se tornam cada vez maiores, conforme subsistem, mesmo que apenas cronologicamente.

A professora Maria Regina mencionou a idéia do sui generismo do processo europeu, que está presente em todas as análises que pode se fazer, mas há um aspecto procedimental que também pode ser transplantável, que pode ser replicável para outra experiência, inclusive a do Mercosul, afinal de contas, o Mercosul se recuperou, mesmo que tenha pecado no começo pelo excesso de voluntarismo, idéia que está diretamente vinculada à análise intergovernamental de que os executivos nacionais podem estabelecer um ritmo para o processo, o que é verdadeiro, mas com contrapesos ligados a questão gradualista. Entretanto, essa recuperação veio muito tardiamente, apenas no ano 2000 durante o governo Fernando Henrique, inicialmente com a Cúpula de Brasília, depois com a Cúpula de Guaiaquil, seguindo iniciativas de fortalecimento da integração física, energética, de transportes, etc. Isso é um beabá básico a partir do qual o Peru, a Venezuela, a Comunidade Andina, etc. podem prosperar. Foi exatamente o que se deu na União Européia, nos primórdios da consolidação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço. Esses déficits crônicos e básicos que impedem o avanço da idéia do spillover, seja político ou econômico, é que devem ser atacados de princípio, e o teriam sido tardiamente no caso do Mercosul, enquanto na Europa, embora não fosse esse processo linear, a escolha teria sido certa. Esse foi apenas um comentário rápido, mas tenho só uma pergunta para a Ana. Quando você mencionou que há uma dialética bastante interessante e um tanto confusa com a qual a própria teoria das relações internacionais tem que se defrontar, me fez pensar que há outro lado que deveria ser mencionado. Você indicou que, na verdade, o processo de integração na Europa

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seria quase que um movimento de vários Estados, de maneira não necessariamente coordenada, na direção de uma ampliação de seu raio de ação – ao se enfurnarem no processo de integração os Estados estariam buscando maior autonomia, e isso podia indicar um fortalecimento da soberania. Agora, há uma questão contrária, que é o grande enigma que a globalização trouxe: essa idéia de enfraquecimento do Estado-nação, da estrutura do Estado vestifaliano como conhecemos. Daniel Bell diz que o Estado se tornou demasiadamente grande para as coisas pequenas, e daí surge a idéia da política comunitária, da política das regiões, da política que atende à comunidade local, do município, entretanto, ao mesmo tempo se tornou pequeno demais para as coisas grandes as grandes coordenações que dizem respeito, por exemplo, aos direitos humanos, ao meio ambiente, aos ‘grandes universais’ da política internacional. Essa dialética é interessante para saber se há reforço de soberania, e aí devemos ir além das declarações dos presidentes e dirigentes a respeito da situação da soberania nesse processo e tentar entender, verdadeiramente, o que está acontecendo em termos sistêmicos, se há ou não perda de poder do Estado, porque isso é muito importante e é o que vai chegar na idéia da autonomia como o valor supremo que a democracia liberal pretende valorizar. Então, gostaria de saber se você vê perda de soberania, ou se vê o contrário. Como você fixa essa história da União Européia?

Drª Ana Maria Stuart: É interessante levantar mais uma vez a questão do funcionalismo, porque essa é a grande

teoria da integração. Foi transgressor da minha parte apresentar a possibilidade de ruptura com essa perspectiva, mas não é uma ruptura que não reconheça a importância da contribuição do enfoque funcionalista para explicar os processos de integração, pois é o que melhor os explica. No entanto, alguns acontecimentos, principalmente depois de Maastricht, não encontram explicação na teoria funcionalista tradicional que, enfim, precisa de novos instrumentos para entender esses processos que não seguiram a linha do acúmulo, mas que estavam regredindo do ponto de vista político, e isso se mostrou nos exemplos aqui dados sobre a rejeição do Tratado de Maastricht por parte da população. Deve-se deixar claro que esse processo não é determinista, não é automático, ele depende de fatores que são endógenos aos próprios Estados que fazem parte desse processo, e que nem tudo pode ser resolvido no plano institucional e dos procedimentos, assim como na democracia, nem tudo pode ser resolvido no plano da institucionalidade se não há sujeitos que estejam, de alguma maneira, incluídos – não é tudo processual.

A respeito da questão do fortalecimento da soberania por meio da agregação como região, eu compartilho dessa idéia. Em primeiro lugar acho que o Estado westifaliano é histórico, ele nasceu naquele momento como fruto de uma realidade histórica, se desenvolveu, teve a sua plenitude nos séculos XIX e XX, e hoje vemos um processo de transformação desse Estado. No entanto, continuo a sustentar que os Estados-nação são os verdadeiros atores, pois por enquanto não há outros, mas esses atores estão em transformação e a soberania, como atributo desse Estado, também é uma construção histórica, é um princípio jurídico histórico que também sofre transformação. Hoje, essas soberanias regionais são decorrentes dessa transformação do Estado-nação. Quando a União Européia, apesar dos riscos que corre ao incorporar os Estados do Leste, compra, aposta, vai em frente nesse processo, é porque, pensando cenário mundial, está fazendo uma opção estratégica de ampliar seu alcance, afinal, incorporando a população dos países do leste, vai ter aproximadamente 500 milhões de habitantes. Vai pagar um preço? Vai. Esses habitantes têm uma renda média que é, aproximadamente, um terço do PIB médio europeu, mas

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vai pagar o custo porque, estrategicamente, há um ganho significativo de soberania no marco dos jogos de poder mundial.

Pergunta: São dois pontos e uma pergunta. O primeiro ponto diz respeito à questão do déficit

democrático, com todas as objeções que eu teria ao termo déficit. Se levado em consideração um dos principais autores da teoria democrática contemporânea, Robert Dahl, não se acreditaria possível qualquer tipo de internacionalização. Dahl, em seu último livro, diz que não é possível pensar uma democratização num nível regional ou internacional se não se considerar um modelo de democracia que tenha sido obtido, pensado e teorizado, no nível nacional, e para o qual é necessário algum tipo de integração no que diz respeito à identidade dos focos. Deixando Dahl, sabemos como foi feita a integração que ajudou e que serviu como primeiro passo da democratização num âmbito nacional, sabemos que não foi nada democrático, então essa questão é um ponto que precisa ser levado em conta na discussão sobre democratização no âmbito regional.

O segundo ponto diz respeito à estabilidade. Democracia não significa estabilidade política. O fato de não ter havido golpes na Argentina, ou se tenha sequer suscitado algum pensamento nesse sentido, não evitou a crise institucional pela qual passa o país. O mesmo aconteceu com o Paraguai – o fato de haver democracia naquele país não inibiu os golpistas em nenhum momento, e certamente não inibirá os golpistas que por aí virão em outros países. A despeito de que a integração tenha tido, de fato, algum efeito sobre o processo de democratização nacional, existem alguns percalços institucionais que não dizem respeito, necessariamente, à existência de instituições democráticas. O ponto que considero mais importante é o que diz respeito à estabilidade dessas instituições, enfim, pensar crises das instituições democráticas sem necessariamente pensar no seu fim, na sua derrubada, na possibilidade de um modelo alternativo. A pergunta que tenho diz respeito a esses dois apontamentos iniciais, e aproveito para dizer que gostei do uso da palavra gap durante sua apresentação, pois é um ponto importante no processo de integração europeu. Como diminuir os gaps entre os países? Foi dito que o processo de integração europeu ajudou muito os países ibéricos e a Grécia, não apenas do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista da democratização, e que isso pode de alguma forma servir de modelo para nós. Pensando um pouco realisticamente um tema tão idealizado, o ponto é: como isso é pensado para a América do Sul? Sobre que gap se está falando? Quem vai, no final das contas, bancar os custos? Quem é a nossa Alemanha? Quem é a nossa França?

Drª Ana Maria Stuart: Muito interessante você ter resgatado os teóricos da democracia. Esse debate sobre a

possibilidade de existir uma negociação democrática no plano internacional é negada pelo próprio Dahl, o que não significa que não possa existir controle da cidadania sobre essa negociação, e por aí passaria a possibilidade de democratizar. Ao mesmo tempo Dahl fala que, assim como conhecemos os estágios de formação do Estado democrático, e ele fala dos diferentes estágios, poderíamos estar chegando num terceiro estágio, embora ele conteste a visão cosmopolita de Held. O próprio Alexander Wendt contesta Held e diz “...temos que pensar não num cosmopolitismo, mas num verdadeiro internacionalismo, ou seja, criar uma nova cidadania que se identificará com novos valores e com novos interesses”. Essa contribuição dos construtivistas de juntar interesse e valor é importante, pois os valores democráticos também comportam interesses das populações, que são inclusive econômicos, porque também se trata de

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democratizar a economia. Essa é uma discussão muito nova ainda em curso. No capítulo quatro, trago algo desse debate, sobre a possível democracia no plano internacional, mas atento principalmente às garantias dos cidadãos, de participar e de controlar essas decisões.

Agora sobre a questão da estabilidade. Quando falo de democracia, falo de estabilidade democrática e acho que houve inibição a golpes sim. Acho que há possibilidades de inibir movimentos que não vão progredir, pois se passa a sensação de que não serão bem sucedidos. Quando Alfonsín e Sarney se encontram em 85 para pensar essa aliança Brasil-Argentina, Alfonsín estava extremamente fragilizado pelas tentativas de golpe que já havia sofrido, e o Sarney era frágil porque acabara de assumir um governo que era, em verdade, do Tancredo, e não dele. Então, esta união pensada no início, entre Brasil e Argentina, tinha como contexto a necessidade de defender essas democracias que estavam renascendo. Alfonsín a recuperou em 83, depois da ditadura militar que tinha se iniciado em 76, estava julgando os militares pelas ofensas aos direitos humanos e sofreu aquelas tentativas de golpe. Então eu diria que inibe, mas não que consegue contornar todas as crises. Crise institucional também é algo próprio da democracia, conflito é próprio da democracia, ou seja, estabilidade tem que ser pensada nesse contexto. Estabilidade democrática significa que há conflito, há instabilidades dentro dessa macro estabilidade democrática. Agora, como diminuir os gaps entre países e quem banca os custos? E como pensar isso para a América do Sul? Essas perguntas são motivos para chamar mais teses. Temos que pensar, porque é verdade, que o PIB da Alemanha é muito importante na conformação do orçamento da União, mas não é o único. 1% do PIB de cada país conforma o orçamento da União, cujo total é de aproximadamente 100 bilhões de euros. Por que não se pensar em percentagens de PIBs dos países ou mesmo outro modelo? Agora está começando essa colaboração entre BNDES e CAF. Não vai ser no mesmo nível porque não temos a mesma potência econômica que a Europa tem, mas será no nosso nível, na medida da nossa possibilidade, da nossa competência.

Pergunta: Os países ainda têm problemas internos na questão democrática. Nesse modelo estaria -se

transferindo fundos do Brasil para resolver problemas sociais no Paraguai, mas as expensas dos problemas sociais que o Brasil tem.

Drª Ana Maria Stuart: Ao se ter interdependência, vê-se que os problemas do Paraguai podem transbordar para

o estado do Paraná e virar, assim, um problema do estado do Paraná e, conseqüentemente, do Brasil. Os ‘brasiguaios’ são uma realidade e integram toda uma região. Deve-se pensar nas regiões transfronteiriças, como o fazem na Europa, dando a devida importância e abordando propriamente essa problemática. O Paraguai faz parte de uma macro-região que se estende até o Brasil.

Pergunta: Gostaria de fazer um comentário rápido sobre estabilidade, só para dizer que não

concordo com a idéia de que democracia não pressupõe a estabilidade. A estabilidade que você quis mencionar não é exatamente essa estabilidade hobbesiana. A balança de poder é uma forma de estabilidade, mas não de residência, e democracia não se trata de um jogo soma zero, ou seja, apoiar um não quer dizer sair perdendo. Democracia, necessariamente, no sentido forte e filosófico, pressupõe estabilidade, porque se a democracia não estiver alicerçada nas regras do jogo que a supõe, ela não será, portanto, democracia. É razoabilidade, é confiança que faz todo o

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processo democrático. Por que achamos que o Brasil é democracia? Porque todos sabemos que o resultado eleitoral é legítimo, todos. Se votei no Serra – mas não votei – votei porque é meu direito, e reconheço que há quem não votou no Serra pelo direito da vitória do Lula, e essa é a idéia básica de previsibilidade, da estabilidade que garante ao concerto. E no plano internacional é a mesma coisa, tanto do ponto de vista da integração quanto do ponto de vista das Nações Unidas, etc., é o que se chama o princípio da reciprocidade: eu ajo corretamente porque sei que a expectativa que tenho em relação aos meus interlocutores é de que eles ajam e tenham as mesmas expectativas que eu tenho, ou seja, eu ajo bem porque sei que os outros sabem que ajo bem. A reciprocidade, a estabilidade e a residência são idéias fundamentais para a democracia e não podem jamais estar separadas.

Pergunta: Mas como pensar a integração pressupondo democratização se a democratização

pressupõe algum nível de estabilidade, que por sua vez, também é um motor chave de confiança internacional, da realização de acordos regionais?

Pergunta: No fundo, a chave está na idéia de confiança. Pergunta: O ponto chave é exatamente como resolver esse dilema: construir acordos críveis que

pressupõem confiança, que pressupõe algum nível de estabilidade que ainda não existe. Pergunta: Você está colocando estabilidade como sinônimo das regras do jogo... Pergunta: Sim, mas aí o pressuposto básico é justamente respeito às regras – as regras devem ser

respeitadas, e para serem violadas é necessário outro consenso. Pergunta: Você está tendo uma visão muito endogenista da estabilidade. Posso pensar em 1964 como

um caso de instabilidade, mas só posso entender 64 no contexto da Guerra Fria. E eu acho que a credibilidade também advém de uma outra faceta do comportamento dos Estados. A violação da regra no plano supra nacional pode aumentar o custo para outros autores que a abraçam, o que dá ao processo dois lados.

Agora algo mais polêmico. O que o sistema vestifaliano permitiu? Ele permitiu que a diversidade pudesse florescer, que se pudesse ser diferente dentro de cada Estado. Esse foi um ganho do sistema vestifaliano, mas que é mais complicado do que isso. Como manter a diversidade que permite o pluralismo nacional dentro de um sistema que se torna mais homogêneo?

Pergunta: Perfeito Maria Regina. O oposto disso é a idéia da inquisição na Península Ibérica, do

século XV até século XIX. Não havia nenhum tipo de oposição, era uma estrutura massacrante que condicionava a vida de todos e que não permitiu a diversidade religiosa que o Estado-nação permitiu.

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Drª Ana Maria Stuart: Para conservar as conquistas da modernidade há que ampliá-las ou correremos o risco de

retrocedê-las para a pré-modernidade. Pergunta: Quando se fala em regionalismo, uma das maravilhas desse tema é a oportunidade que ele

traz de falar em Estado-nação, em poder e soberania, em autonomia, e nesse caso, de todos em torno da questão central da democracia, e você tentou, justamente, unir os dois universos num contexto muito complexo. Confesso que algo que me incomoda nessas discussões é uma certa dicotomia que costuma haver entre o que é discurso e pensamento econômico e o que é discurso e pensamento político. Acho que é aí que devemos contribuir mais, pensando até que ponto um elemento é necessário ou não. Por exemplo, será que se pode viver de democracia nesse processo de integração? Uma democracia que mantém um substrato econômico, sendo coloquial, bem enrolado. Acho que o Mercosul também se beneficiou do fato de que a política e a politicagem conseguiram mantê-lo, mas não foram criadas condições econômicas nem políticas, como você deixou claro, para que ele se sustente por muito tempo, ou seja, está na hora de se fazer algo um pouco mais sério, e aí devem entrar Venezuela, Peru, etc.

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O CEBRI Tese é uma publicação

baseada na apresentação e no debate, no CEBRI, de teses acadêmicas em relações internacionais e política externa brasileira, elaboradas por brasileiros e defendidas e aprovadas em instituições de ensino superior no Brasil ou no exterior.

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