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Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético; Rui Fontes Página 1 de 16 Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético Índice 1 A despesa energética e a sua medição .................................................................................................................... 1 2 As componentes da despesa energética ................................................................................................................. 3 2.1 A despesa energética basal ou taxa de metabolismo basal ............................................................................. 3 2.1.1 Metabolismo basal não diretamente relacionado com a síntese de ATP ..................................................... 3 2.1.2 Metabolismo basal diretamente relacionado com a síntese de ATP ........................................................... 5 2.1.3 Fatores que determinam a taxa de metabolismo basal normal .................................................................... 5 2.1.4 A taxa de metabolismo basal em situações patológicas .............................................................................. 6 2.2 A despesa energética associada à atividade física voluntária......................................................................... 6 2.3 Efeito termogénico dos nutrientes ................................................................................................................... 7 2.4 Despesa energética associada ao frio ............................................................................................................. 8 3 A energia metabolizável dos alimentos e o balanço energético ........................................................................... 8 3.1 Balanço energético na ausência de ingestão de macronutrientes ................................................................... 8 3.2 A energia metabolizável dos alimentos............................................................................................................ 9 3.3 O balanço energético..................................................................................................................................... 10 3.4 A obesidade ................................................................................................................................................... 10 4 A seleção dos nutrientes que sofrem oxidação no organismo ............................................................................ 11 5 Anexos .................................................................................................................................................................... 12 5.1 Anexo 1 – Nos seres vivos o trabalho é irrelevante ....................................................................................... 12 5.2 Anexo 2 - Calorimetria indireta..................................................................................................................... 13 5.3 Anexo 3 - A técnica da “água duplamente marcada” ................................................................................... 14 5.4 Anexo 4 – Medida da composição corporal e sua relação com o Índice de Massa Corporal....................... 15 5.5 Anexo 5 – Medida da composição corporal e da despesa energética na avaliação do balanço energético numa situação experimental. ....................................................................................................................................... 15 6 Bibliografia consultada ......................................................................................................................................... 15 1 A despesa energética e a sua medição Mesmo durante o sono os processos biológicos em que o ATP sofre hidrólise não param. Nestas condições, gasta-se ATP (ou outros nucleosídeos trifosfato que podem ser regenerados via ATP) na atividade das bombas de Na + -K + e Ca 2+ e outros processos de transporte ativo, na contração muscular do coração e músculos respiratórios e em processos anabólicos como a síntese de ácidos nucleicos, a síntese de proteínas, a gliconeogénese, a glicogénese, a síntese de lipídeos, etc. Se pensarmos numa criança em crescimento, os processos anabólicos predominam em relação aos catabólicos. Num indivíduo adulto que mantenha constante a sua massa e constituição corporal, pelo menos quando vistos num intervalo de tempo de um dia, por exemplo, os processos anabólicos e catabólicos equivalem- se mas, na componente anabólica destes processos cíclicos, gasta-se ATP. A quantidade total de ATP do organismo (cerca de 120 mmol) é escassa e, mesmo em repouso, se a sua síntese for interrompida (com a ingestão de cianeto, por exemplo), a descida da sua concentração nas células leva à morte em alguns segundos. Estima-se que, em repouso, um indivíduo adulto hidrolisa cerca de 40 mmol/min, mas a concentração de ATP mantém-se estacionária porque cada molécula de ATP hidrolisada é imediatamente reposta, maioritariamente por ação da síntase de ATP mitocondrial. No entanto a síntese de ATP está dependente dos processos oxidativos da cadeia respiratória e, em última análise, do catabolismo dos glicídeos, dos lipídeos e das proteínas (habitualmente designados de macronutrientes). O catabolismo do glicogénio, por exemplo, inclui, num primeiro passo, a sua fosforólise, mas o processo relevante é a oxidação (pelo O 2 ) dos monómeros constituintes a CO 2 e água. No caso das gorduras os produtos do catabolismo também são CO 2 e água enquanto no caso das proteínas há que acrescentar a ureia e outros produtos azotados (fundamentalmente amónio e creatinina) que se perdem na urina. Numa qualquer transformação química a energia libertada ou captada do meio corresponde à diferença entre a entalpia dos reagentes e dos produtos. Na transformação do ATP (+ H 2 O) em ADP + Pi a reação é exotérmica libertando 5 kcal 1 1 1 caloria (cal) corresponde à quantidade de calor necessária para aumentar de 1 ºC (mais rigorosamente entre 14,5-15,5ºC) 1 grama de água. A evolução da linguagem escrita e oral é inevitável e, frequentemente, essa evolução é inócua. Noutros casos essa evolução é infeliz porque confunde conceitos. A grandeza caloria é muito pequena quando falamos de alimentos e alguém um dia resolveu passar a escrever Caloria com maiúscula para exprimir a ideia de kcal. Essa mudança, apesar de infeliz, impôs-se na literatura médica e assim,

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Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético; Rui Fontes

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Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético

Índice 1 A despesa energética e a sua medição .................................................................................................................... 1 2 As componentes da despesa energética ................................................................................................................. 3

2.1 A despesa energética basal ou taxa de metabolismo basal ............................................................................. 3 2.1.1 Metabolismo basal não diretamente relacionado com a síntese de ATP ..................................................... 3 2.1.2 Metabolismo basal diretamente relacionado com a síntese de ATP ........................................................... 5 2.1.3 Fatores que determinam a taxa de metabolismo basal normal .................................................................... 5 2.1.4 A taxa de metabolismo basal em situações patológicas .............................................................................. 6

2.2 A despesa energética associada à atividade física voluntária......................................................................... 6 2.3 Efeito termogénico dos nutrientes ................................................................................................................... 7 2.4 Despesa energética associada ao frio ............................................................................................................. 8

3 A energia metabolizável dos alimentos e o balanço energético ........................................................................... 8 3.1 Balanço energético na ausência de ingestão de macronutrientes ................................................................... 8 3.2 A energia metabolizável dos alimentos............................................................................................................ 9 3.3 O balanço energético ..................................................................................................................................... 10 3.4 A obesidade ................................................................................................................................................... 10

4 A seleção dos nutrientes que sofrem oxidação no organismo ............................................................................ 11 5 Anexos .................................................................................................................................................................... 12

5.1 Anexo 1 – Nos seres vivos o trabalho é irrelevante ....................................................................................... 12 5.2 Anexo 2 - Calorimetria indireta..................................................................................................................... 13 5.3 Anexo 3 - A técnica da “água duplamente marcada” ................................................................................... 14 5.4 Anexo 4 – Medida da composição corporal e sua relação com o Índice de Massa Corporal....................... 15 5.5 Anexo 5 – Medida da composição corporal e da despesa energética na avaliação do balanço energético

numa situação experimental. ....................................................................................................................................... 15 6 Bibliografia consultada ......................................................................................................................................... 15

1 A despesa energética e a sua medição

Mesmo durante o sono os processos

biológicos em que o ATP sofre hidrólise não

param. Nestas condições, gasta-se ATP (ou outros

nucleosídeos trifosfato que podem ser regenerados

via ATP) na atividade das bombas de Na+-K

+ e

Ca2+

e outros processos de transporte ativo, na

contração muscular do coração e músculos

respiratórios e em processos anabólicos como a

síntese de ácidos nucleicos, a síntese de proteínas,

a gliconeogénese, a glicogénese, a síntese de

lipídeos, etc. Se pensarmos numa criança em

crescimento, os processos anabólicos predominam

em relação aos catabólicos. Num indivíduo adulto

que mantenha constante a sua massa e

constituição corporal, pelo menos quando vistos

num intervalo de tempo de um dia, por exemplo,

os processos anabólicos e catabólicos equivalem-

se mas, na componente anabólica destes processos

cíclicos, gasta-se ATP.

A quantidade total de ATP do organismo

(cerca de 120 mmol) é escassa e, mesmo em

repouso, se a sua síntese for interrompida (com a

ingestão de cianeto, por exemplo), a descida da

sua concentração nas células leva à morte em

alguns segundos. Estima-se que, em repouso, um

indivíduo adulto hidrolisa cerca de 40 mmol/min,

mas a concentração de ATP mantém-se

estacionária porque cada molécula de ATP

hidrolisada é imediatamente reposta,

maioritariamente por ação da síntase de ATP

mitocondrial. No entanto a síntese de ATP está

dependente dos processos oxidativos da cadeia

respiratória e, em última análise, do catabolismo

dos glicídeos, dos lipídeos e das proteínas

(habitualmente designados de macronutrientes). O

catabolismo do glicogénio, por exemplo, inclui,

num primeiro passo, a sua fosforólise, mas o

processo relevante é a oxidação (pelo O2) dos

monómeros constituintes a CO2 e água. No caso

das gorduras os produtos do catabolismo também

são CO2 e água enquanto no caso das proteínas há

que acrescentar a ureia e outros produtos azotados

(fundamentalmente amónio e creatinina) que se

perdem na urina.

Numa qualquer transformação química a

energia libertada ou captada do meio corresponde

à diferença entre a entalpia dos reagentes e dos

produtos. Na transformação do ATP (+ H2O) em

ADP + Pi a reação é exotérmica libertando 5 kcal1

1 1 caloria (cal) corresponde à quantidade de calor

necessária para aumentar de 1 ºC (mais rigorosamente

entre 14,5-15,5ºC) 1 grama de água. A evolução da

linguagem escrita e oral é inevitável e, frequentemente,

essa evolução é inócua. Noutros casos essa evolução é

infeliz porque confunde conceitos. A grandeza caloria é

muito pequena quando falamos de alimentos e alguém

um dia resolveu passar a escrever Caloria com

maiúscula para exprimir a ideia de kcal. Essa mudança,

apesar de infeliz, impôs-se na literatura médica e assim,

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por mole porque a entalpia dos reagentes é maior

que a dos produtos e é este o valor da diferença de

entalpias (H). Obviamente que a transformação

simétrica em que se forma ATP (+H2O) a partir de

ADP + Pi é endotérmica e tem um valor simétrico.

Dado que a concentração de ATP é estacionária

significa que a energia (somatório dos H)

envolvida no processo cíclico que ocorre nas

células é nula, mas a síntese de ATP depende da

oxidação dos macronutrientes.

Apesar da complexidade dos processos

biológicos, no caso de um adulto que mantenha

constante a massa das proteínas, lipídeos e

glicídeos constituintes, no balanço global, a única

transformação líquida que tem lugar é a conversão

dos macronutrientes ingeridos e do O2 tomado do

exterior em CO2, água e produtos azotados da

urina. Quando o indivíduo não se alimenta ocorre

a oxidação dos mesmos compostos, neste caso os

que estão presentes nas suas células, no plasma ou

no líquido extracelular. Estes processos são

exotérmicos porque a entalpia dos reagentes

(nutrientes e O2) é maior que a dos produtos (CO2,

água e produtos azotados).

O somatório dos processos biológicos em

que a glicose se oxida a CO2 + H2O é a Equação 1

e é igual à que corresponde à oxidação da glicose

que ocorreria num calorímetro onde se queimasse

glicose.

Equação 1

C6H12O6 + 6 O2 6 CO2 + 6 H2O + 669 kcal

Quando 1 mole de glicose se oxida, a

diferença (H) entre a entalpia dos reagentes

(glicose e 6 O2) e dos produtos (6 CO2 e 6 H2O) é

de 669 kcal quer num ser vivo quer num

calorímetro. Sendo maior nos reagentes que nos

produtos a reação diz-se exotérmica e a diferença

é libertada durante o processo oxidativo na forma

de calor2.

quando a propósito de nutrição se escreve Caloria (ou

por gralha caloria), está-se de facto a falar de kcal, a

quantidade de calor necessária para elevar de 1ºC

(entre 14,5ºC e 15,5ºC) 1kg de água. Contudo, nos

trabalhos de investigação e mesmo em alguns livros de

texto mais recentes, já é muito frequente a substituição

destas unidades de energia tradicionais por kJ e MJ

(kilojoules e Megajoules; 1 kcal = 4,18 kJ = 0,00418

MJ). Ao longo do texto, em alguns casos, apresentar-se

o valor da energia em kcal e em kJ ou MJ. 2 1 watt.hora (wh) é a quantidade energia libertada

durante 1 hora quando a potência é 1 watt (1 J/s);

donde se pode deduzir que 1 wh = 3600 J = 861 cal.

Por exemplo, o calor libertado por uma lâmpada de 60

w é 60 J/s = 5,18 MJ /dia = 1240 kcal/dia = 60 wh/h =

1,44 kwh/dia. Quando uma reação é exotérmica, por

Uma equação semelhante (Equação 2) pode

ser escrita no caso do palmitato (exemplo de um

ácido gordo) e também aqui os produtos e os

reagentes (e consequentemente, o valor de H)

são os mesmos nos seres vivos e num calorímetro.

Equação 2

C16H32O2 + 23 O2

16 CO2 + 16 H2O + 2413 kcal

No caso das proteínas, a situação só não é

exatamente a mesma porque o único produto

azotado que se obtém quando se queimam

proteínas num calorímetro é azoto gasoso e não

ureia. O H correspondente ao processo oxidativo

das proteínas (e aminoácidos) não é igual no ser

vivo e num calorímetro porque os produtos da

reação são diferentes nos dois casos. Por exemplo,

no caso do aminoácido leucina a equação que

descreve a oxidação desde aminoácido num

calorímetro (Equação 3) corresponde à soma da

que descreve a oxidação da leucina num ser vivo

(Equação 4) e da oxidação da ureia (formada

nesse processo) num calorímetro (Equação 5). De

forma previsível o somatório das energias

libertadas nas reações 4 e 5 é igual à que se liberta

na reação 3.

Equação 3

C6H15NO2 + 8 ¼ O2 6 CO2 + 6 ½ H2O + ½ N2

+ 869 kcal

Equação 4

C6H15NO2 + 7 ½ O2 5 ½ CO2 + 5 ½ H2O + ½

CON2H4 + 793 kcal

Equação 5

½ CON2H4 + ¾ O2 ½ CO2 + H2O + ½ N2 + 76

kcal

A velocidade com que os macronutrientes

(glicídeos, lipídeos e proteínas) se oxidam no

organismo, entendido como um todo, designa-se

de despesa energética e pode ser medida, medindo

o calor libertado por um indivíduo.

Para medir este calor pode usar-se um

calorímetro direto: uma câmara isolada e com

instrumentos adequados à medição de todo o calor

que é libertado por um indivíduo que é encerrado

no seu interior. O calorímetro mede o somatório

dos H de todas as reações que ocorrem no seu

interior mas, se pensarmos que nos processos

cíclicos o H soma é nulo, o calorímetro mede a

convenção, o H é negativo; no presente texto vamos

ignorar essa convenção e escrever, simplesmente, calor

libertado e calor consumido consoante os casos.

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diferença entre a soma das entalpias dos nutrientes

que, no balanço global, foram oxidados e do O2

consumido e a soma dos produtos desses

processos oxidativos. (De facto, o H pode

libertar-se como calor ou trabalho mas, como

explicado no Anexo 1, o trabalho realizado pelos

seres vivos pode ser, na esmagadora maioria das

situações, considerado nulo e o H corresponder

apenas a calor.)

Porque é muito caro e pouco cómodo o

calorímetro direto é, mesmo na investigação,

pouco utilizado. Um outro instrumento usado com

o mesmo fim (medir a despesa energética do

indivíduo) mede a quantidade de O2 consumida e

de CO2 libertada por um indivíduo e designa-se de

calorímetro indireto. Pode ser também uma

câmara mas, mais comummente, é uma

campânula (que se coloca na cabeça) ou uma

máscara onde entra e sai ar e instrumentação

adequada para medir o fluxo de O2 e CO2. Dado

que a quantidade de calor libertado por litro3 de

O2 consumido varia muito pouco com o tipo de

macronutriente que está a ser oxidado (entre cerca

de 4,64 kcal/L ou 19,4 kJ/L no caso das proteínas

e cerca de 4,98 kcal/L ou 20,8 kJ/L no caso dos

glicídeos) uma estimativa do calor libertado

poderia ser simplesmente obtida a partir do

consumo de O2. Contudo, porque a razão entre o

CO2 libertado e o O2 consumido varia com o tipo

de nutriente que está a ser oxidado a medição dos

dois valores pode ajudar à precisão da medida;

além disso o conhecimento destes valores também

pode ser usado para calcular as quantidades de

glicídeos, de lipídeos e, eventualmente, de

proteínas que está a ser oxidada. Uma explicação

dos princípios que presidem ao cálculo destas

quantidades e da quantidade de energia libertada

usando calorimetria indireta é apresentada no

Anexo 2.

Uma terceira técnica usada na avaliação da

despesa energética é o da “água duplamente

marcada”. Embora o erro associado seja

relativamente elevado, esta técnica tem a

vantagem de permitir estimar essa despesa em

indivíduos que mantêm a sua vida normal. A

única limitação imposta ao indivíduo em estudo é

a necessidade de colher urina ou outro líquido

biológico (onde se doseia o 18

O e o deutério)

regularmente após a ingestão de uma determinada

quantidade de água marcada com 18

O e deutério.

3 Por tradição, em estudos de calorimetria indireta, a

unidade usada para medir gases (O2 ou CO2) é o litro

(L) embora se deva acrescentar que se convenciona que

a temperatura é 0 ºC e a pressão 1 Atm; ou seja 1 L =

1/22,4 mol.

Esta técnica da água duplamente marcada é

explicada de forma sumária no Anexo 3.

2 As componentes da despesa energética Classicamente considera-se que a despesa

energética total tem 3 componentes: taxa de

metabolismo basal (Basal Metabolic Rate - BMR)

ou despesa energética basal, a despesa associada à

atividade física voluntária e o efeito termogénico

dos nutrientes. Embora seja, no homem em

condições normais, um fator com pouca

relevância, também se pode considerar um quarto

componente: a despesa energética associada à

adaptação ao frio. Um quinto componente é, às

vezes, referido separadamente da atividade física

voluntária: uma parte da atividade dos músculos

esqueléticos não poderá ser classificada como

estritamente voluntária e corresponde ao que

poderíamos designar como a “irrequietude”

própria de cada indivíduo.

Num estilo de vida mais ou menos

sedentário, como é o da maioria das pessoas que

vivem na chamada “civilização ocidental”, a

maior parte da despesa energética total (cerca de

60-70%) corresponde a despesa energética basal.

A componente correspondente à atividade física

voluntária é a mais variável podendo em

trabalhadores braçais, por exemplo, corresponder

a ¾ da despesa energética total.

2.1 A despesa energética basal ou taxa de metabolismo basal

A taxa metabólica basal (ou despesa

energética basal) é, classicamente, medida num

indivíduo deitado (muitas horas após qualquer

atividade física violenta), em descanso físico e

mental (relaxado mas acordado), 10 a 18 horas

após a ingestão de alimentos, num ambiente

confortável e temperatura agradável. Todo o calor

produzido nestas condições (e o O2 e CO2

trocados com o ambiente) corresponde à oxidação

do glicogénio e da gordura armazenados e, numa

fração menor, das proteínas endógenas.

2.1.1 Metabolismo basal não diretamente relacionado com a síntese de ATP

É frequente pensar-se que os nutrientes são

oxidados na exata medida em que se sintetiza (e

hidrolisa) ATP; é inclusive comum fazerem-se

cálculos da quantidade de ATP que se forma

quando um mole de glicose, de um determinado

ácido gordo ou aminoácido se oxida no

organismo. Embora se saiba que a síntase do ATP

e o simporte fosfato/H+ não são os únicos

“caminhos” no regresso dos protões à matriz da

mitocôndria, esses cálculos pressupõem que todos

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os protões bombeados pela ação dos complexos I,

III e IV da cadeia respiratória regressam à matriz

da mitocôndria através da ação dessas proteínas.

Esses cálculos também ignoram que, por exemplo,

a glicose pode ser oxidada a CO2 pela ação das

enzimas da via das pentoses fosfato, que o

NADPH formado no processo pode ser oxidado

(pelo O2) em reações catalisadas por oxigénases

de função mista e oxídases distintas da oxídase do

citocromo c, sendo que estes processos não

contribuem para a síntese de ATP. Se pensarmos

no organismo como um todo ou em células e

mitocôndrias reais é imediato reconhecer que uma

parte do metabolismo oxidativo não tem uma

relação direta com a síntese/hidrólise de ATP.

Embora as estimativas variem, em condições

de medida do metabolismo basal a fração do calor

libertado (e do O2 consumido e dos nutrientes

oxidados) que não tem relação direta com a

síntese de ATP poderá representar cerca de ¼ do

total; admitindo, por exemplo, uma taxa de

metabolismo basal de 1600 kcal/dia ou 6,7 MJ/dia

(um valor plausível num adulto saudável com 70

kg de peso) seria cerca de 400 kcal/dia

(correspondendo a cerca de 3,75 mol de O2 do

total de cerca de 15 mol de O2 consumidas por

dia). Aceitando esta estimativa o calor

correspondente ao metabolismo basal seria

equivalente ao libertado por uma lâmpada de 80

watts4 ou, prosseguindo com a comparação, à

soma de duas lâmpadas, uma lâmpada de 20 watts

debitando calor “não diretamente relacionado com

a síntese de ATP” e uma outra de 60 watts

“relacionada com este processo de síntese”.

O O2 que é consumido no bombeamento de

protões que não vão entrar na matriz da

mitocôndria através da síntase de ATP não pode

ser considerado, pelo menos em sentido estrito,

como contribuindo para a síntese de ATP. O

“leak” de protões na membrana mitocondrial

interna não contribui para a síntese de ATP, mas

diminui o gradiente eletroquímico na membrana

mitocondrial; este gradiente é reposto pelas

bombas da cadeia respiratória e, em última

análise, pela oxidação dos macronutrientes pelo

O2 (que se reduz a água pela ação da oxídase do

citocromo c). O “leak” de protões não

corresponde a síntese de ATP, mas promove a

combustão de macronutrientes, ou seja, leva à

libertação de calor e ao consumo de O2.

A identidade das proteínas da membrana

mitocondrial interna responsáveis pelo “leak” de

protões em condições de medida do metabolismo

4 Mais precisamente 77,4 watts: 1 600 000 cal/dia

4,18 J/cal = 6 688 000 J/dia; o dia tem 86 400 s, donde

6 688 000 J / 86 400 s = 77,4 J/s.

basal não está ainda completamente clarificada,

mas poderá incluir uma atividade (não relacionada

com a atividade “principal”) do trocador ATP-

ADP e a atividade “basal” das proteínas

desacopladoras (UCPs). A UCP1 (também

designada por termogenina) só existe no tecido

adiposo castanho e é, via estimulação do sistema

nervoso simpático, ativada pelo frio, mas poderá

ter uma atividade basal mesmo quando o

indivíduo não sente frio. Algo de semelhante se

poderá dizer relativamente às outras UCPs. A

UCP3 dos músculos esqueléticos, por exemplo,

parece ter um papel no controlo (diminuição) da

produção de superóxido na cadeia respiratória (e,

consequentemente, do stress oxidativo), é ativada

por agonistas adrenérgicos (como as

catecolaminas libertadas no sistema nervoso

simpático), mas terá também uma atividade basal

nas condições em que se mede a taxa metabólica

basal.

Para além de ser consumido aquando da

atividade da oxídase do citocromo c, o O2 também

é, como já referido, substrato de outras oxídases e

oxigénases que não participam, pelo menos de

forma direta, na criação do gradiente

eletroquímico da membrana mitocondrial interna.

O consumo de O2 e o calor libertado nas

atividades destas enzimas pode também incluir-se

na fração do metabolismo oxidativo não

diretamente relacionado com a síntese de ATP.

No metabolismo dos aminoácidos (hidroxílase da

fenilalanina e oxídase do homogentisato, por

exemplo), do etanol e de xenobióticos (diferentes

citocromos P450, por exemplo), do heme, do

colesterol, dos sais biliares e em processos

relacionados com a atividade de defesa dos

leucócitos (a oxídase do NADPH, por exemplo)

existem múltiplos exemplos deste tipo de

enzimas.

Na oxidação do etanol, por exemplo, a

equação soma é sempre a Equação 6 e libertam-se

sempre 7,1 kcal/mol de etanol oxidado mas,

mesmo ignorando o “leak” de protões, a

quantidade de ATP correspondente à oxidação de

um mole de etanol varia com as enzimas

envolvidas no seu catabolismo.

Equação 6

C2H6O + 3 O2 2 CO2 + 3 H2O + 7,1 kcal

Se no primeiro passo do processo (a

conversão etanol acetaldeído) estiver envolvida

a desidrogénase do etanol forma-se NADH que é

oxidado na cadeia respiratória levando, em última

análise, à produção do ATP. Contudo, não

acontece o mesmo quando o sistema enzimático

envolvido inclui o citocromo P450, CYP2E1

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(MEOS; microsomal ethanol oxidizing system);

neste caso, no passo do processo oxidativo etanol

acetaldeído consome-se diretamente O2 e

NADPH, mas isto não dá origem a ATP. Quando

o MEOS intervém na oxidação do etanol uma

parte da oxidação do etanol deve ser incluída na

fração do metabolismo oxidativo não diretamente

relacionada com a síntese de ATP.

2.1.2 Metabolismo basal diretamente relacionado com a síntese de ATP

Se admitirmos que ¼ da despesa energética

basal (“lâmpada de 20 watts”, ver acima) não está,

pelo menos em sentido estrito, diretamente

relacionada com a síntese/gasto de ATP será

forçoso concluir que os outros ¾ “servem” para

produzir o ATP hidrolisado nos processos já

referidos no Capítulo 1 (“lâmpada de 60 watts”,

ver acima). Poderá ser surpreendente que apenas

uma fração menor (cerca de 5%) da despesa

energética basal diretamente relacionada com a

síntase do ATP esteja relacionada com a atividade

que mais facilmente pode ser observada em

condições de medida desta despesa: a atividade

contráctil dos músculos respiratórios e do coração.

Nas condições de medida do metabolismo basal,

os processos mais gastadores de ATP e,

consequentemente, os que mais contribuem para a

despesa energética basal relacionada com a síntese

de ATP, são as atividades das bombas de Na+-K

+

e do Ca2+

(cerca de 30%) e o processo de

renovação de proteínas (turnover proteico;

também cerca de 30%). O processo de renovação

de proteínas é um processo contínuo estimando-se

que um adulto sintetiza (e hidrolisa) cerca de 300

g/dia. O processo de renovação de proteínas pode

ser visto como um ciclo de substrato; se, num

ciclo de 24 horas, a quantidade de proteínas no

organismo entendido como um todo não variar, o

balanço líquido corresponde apenas ao ATP que

se hidrolisa aquando da síntese proteica. Um

raciocínio semelhante pode ser feito no caso dos

triacilgliceróis, do glicogénio, etc. Estamos a usar

a expressão “ciclo do substrato” em sentido lato;

num sentido estrito “ciclo de substrato” refere-se à

ação simultânea de duas enzimas, uma cínase e

uma fosfátase com papéis antagónicos num

mesmo órgão (como a cínase da frutose-6-fosfato

e a fosfátase da frutose-1,6-bisfosfato) cuja soma

de atividades seria, supondo velocidades iguais, a

hidrólise de ATP.

2.1.3 Fatores que determinam a taxa de metabolismo basal normal

O cérebro não interrompe nunca a sua

atividade e a atividade cerebral é, no adulto,

responsável por cerca de 20% da taxa de

metabolismo basal. No seu conjunto, o cérebro, o

fígado, os rins e o coração, embora representem

apenas 5-6% da massa do organismo adulto, são

responsáveis por mais de metade da taxa

metabólica basal. O tecido adiposo, embora possa

conter (normalmente) 10-30% da massa corporal,

só é responsável por 2-5% da taxa de metabolismo

basal.

O valor absoluto da taxa metabólica basal

varia com múltiplos fatores. Porque a quantidade

de reservas de gordura influencia de forma

marcada o peso dos indivíduos mas pouco a taxa

de metabolismo basal, se se exprimir esta taxa por

unidade de massa corporal (em kcal/kg de peso,

por exemplo), os indivíduos com uma

percentagem de gordura anormalmente baixa terão

uma taxa muito alta. A correlação é muito mais

perfeita e linear quando se constroem gráficos em

que no eixo horizontal se coloca a massa isenta de

gordura e no vertical a taxa de metabolismo basal.

Ou seja, um fator determinante na taxa de

metabolismo basal é o valor da massa corporal

(peso) subtraído da massa de gordura do

organismo. Ao contrário da massa isenta de

gordura, as gotículas de triacilgliceróis contidas

nos adipócitos não gastam ATP nem contêm

UCPs nem oxídases ou oxigénases e não são,

portanto, “tecido metabolicamente ativo”.

Quando um determinado indivíduo engorda

aumenta a sua massa gorda, mas também aumenta

a sua massa isenta de gordura. O tecido adiposo

corresponde, na sua maior parte, à gordura

acumulada nos adipócitos, mas também existe

tecido metabolicamente ativo no citoplasma e

organelos desses adipócitos, nos vasos sanguíneos

que o irrigam e nos tecidos de sustentação.

Quando um indivíduo engorda aumenta a massa

de triacilgliceróis acumulados, mas também

aumenta a massa de tecido metabolicamente ativo

no tecido adiposo mas não só. Se o seu nível de

atividade física for semelhante ao que tinha antes

de engordar a massa muscular nos membros

inferiores também aumentará porque carregam

mais peso. Isto explica que os obesos tenham, em

média e comparativamente com os não obesos,

uma taxa de metabolismo basal aumentada.

Reciprocamente, quando um indivíduo

emagrece perde massa gorda mas também massa

isenta de gordura e, por isso, a sua despesa

energética basal diminui. De facto, esta

diminuição é mais marcada do que a que seria de

esperar tendo em conta a diminuição da massa

magra. Um fator que poderia explicar esta

desproporção seria a diminuição da secreção de

hormonas tiroideias que, como será explicado à

frente (ver Capítulo 2.1.4), estimulam a despesa

energética. Em termos teleológicos a diminuição

das hormonas tiroideias que se começa a verificar

Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético; Rui Fontes

Página 6 de 16

alguns dias após o início da descida do peso

corporal pode ser entendido como um fator de

proteção do organismo em situações de fome. Esta

diminuição das hormonas tiroideias constitui um

travão na degradação líquida das proteínas

musculares e dos triacilgliceróis armazenados no

tecido adiposo.

2.1.4 A taxa de metabolismo basal em situações patológicas

Alguns fatores de natureza patológica afetam

de forma marcada a taxa de metabolismo basal.

No hipertiroidismo (excesso de produção de

hormonas tiroideias) a taxa de metabolismo basal

pode estar 60-100% acima do esperado tendo em

conta o valor da massa isenta de gordura. Crê-se

que no aumento da despesa energética basal

associada ao hipertiroidismo podem estar

envolvidos diferentes mecanismos. A estimulação

simpática (adrenérgica) aumenta a atividades das

UCPs (pelo menos da UCP1 e UCP3) e foi

recentemente defendido que os efeitos das

hormonas tiroideias na taxa metabólica basal

poderiam ser inteiramente mediados por aumento

do tono simpático induzido pelas hormonas

tiroideias nos seus recetores hipotalâmicos

[Cannon e Nedergaard, 2010; Lopez et al., 2010].

De acordo com este ponto de vista o aumento da

despesa energética basal no hipertiroidismo seria,

em última análise, uma consequência do aumento

da componente da despesa energética basal que

não está diretamente relacionada com a síntese de

ATP. No entanto, também está largamente

documentado que as hormonas tiroideias

aumentam a taxa de renovação proteica a nível

muscular (mais a hidrólise mas também a síntese)

e outros ciclos de substrato (turnover de

triacilgliceróis, por exemplo). Estes processos

gastam ATP e o aumento da oxidação dos

nutrientes poderia, pelo menos em parte, ser

explicado com base neste gasto aumentado. Se

estes processos são secundários à ação das

hormonas tiroideias no hipotálamo ou são ações

locais destas hormonas não está ainda

completamente clarificado. Para além destes

efeitos no metabolismo, os indivíduos com

hipertiroidismo têm também um trémulo

constante a que corresponde gasto de ATP nas

fibras musculares.

Em situações traumáticas com fraturas, após

cirurgias, nos queimados, nas doenças

inflamatórias e nas doenças febris também há

aumento da despesa energética basal. O mesmo

acontece em doenças crónicas que evoluem com

caquexia como a SIDA, o cancro e muitas outras.

As causas destes aumentos estão mal estudadas,

mas em todas estas situações há aumento do tono

simpático (que pode induzir ativação das UCPs)

assim como aumento do “turnover” proteico

(aumento da hidrólise no músculo e aumento da

síntese sobretudo no fígado5) e de outros ciclos de

substrato com o gasto de ATP (e a oxidação de

nutrientes) que lhes corresponde. De qualquer

forma, seja qual for a causa primeira, em todas as

situações em que há aumento do consumo de

nutrientes, há também aumento do consumo de O2

e da produção de CO2, aumento do trabalho do

músculo cardíaco (na irrigação dos tecidos) e dos

músculos respiratórios (que introduzem O2 no

organismo e descarregam CO2). Este aumento de

trabalho muscular também contribui, obviamente,

para o aumento da despesa energética basal.

2.2 A despesa energética associada à atividade física voluntária

A despesa energética total é marcadamente

influenciada pela atividade física, mas não pela

atividade intelectual. Embora áreas específicas do

cérebro aumentem o seu metabolismo aquando de

determinadas atividades intelectuais ou sensitivas,

quando entendido como um todo, a variação no

consumo de nutrientes e de O2 no cérebro é

indetetável.

Quando o indivíduo se levanta da cama onde

esteve a medir a taxa de metabolismo basal a sua

despesa energética aumenta instantaneamente. Só

a decisão de se levantar e contrair determinados

músculos pode ser entendida como voluntária: os

mecanismos que induzem o aumento do

catabolismo dos nutrientes e o consumo de O2 são

completamente independentes da vontade do

indivíduo.

Na posição de deitado em descanso absoluto

a despesa energética de um adulto poderá ser da

ordem de 1,1 kcal/min (equivalente a 1600

kcal/dia ou 6,7 MJ/dia), mas pode aumentar mais

de 40-50 vezes num atleta treinado que está a

correr os 100 m (cerca de 36 km/h). Numa corrida

lenta (7-8 km/h) o aumento poderá ser de cerca de

10 vezes6. Na posição de sentado a despesa será

de cerca de 30% superior à basal.

5 A síntese e a hidrólise a ocorrer em proteínas

diferentes em órgãos distintos não poderia, em sentido

estrito, ser considerado um processo de renovação

(turnover) mas, do ponto de vista de alguém

interessado em estudar o metabolismo energético de

um organismo vivo entendido como um todo, não será

despropositado considerá-lo como tal. 6 É de notar que estes aumentos da despesa se referem

ao organismo entendido como um todo; nas fibras

musculares esqueléticas que estão a contrair-se o

aumento de consumo de nutrientes e O2 assim como a

produção de calor que lhes corresponde, dependendo

da intensidade do exercício, pode ser de muitas

centenas de vezes.

Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético; Rui Fontes

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A atividade muscular contráctil gasta ATP na

atividade da ATPase da miosina e na atividade

aumentada das bombas de Ca2+

e de Na+-K

+. É

imediato depreender que, sendo a concentração de

ATP estacionária, a um aumento na velocidade de

hidrólise de ATP vai corresponder um aumento

idêntico na velocidade de síntese, mas os

mecanismos que explicam este aumento assim

como o aumento da oxidação dos nutrientes que

lhe corresponde não são ainda completamente

compreendidos.

A proposta mais antiga baseia-se na ação do

ADP na respiração mitocondrial [Chance e

Williams, 1955]. O aumento da hidrólise do ATP

aumenta a concentração de ADP e Pi que

entrariam para a mitocôndria estimulando a

síntase do ATP. Esta estimulação implica

aumento da entrada de protões para a matriz da

mitocôndria com a consequente diminuição do

gradiente eletroquímico na membrana

mitocondrial interna o que, por sua vez,

estimularia a atividade das bombas da cadeia

respiratória (complexos I, III e IV) e a velocidade

de oxidação do NADH e do FADH2. O aumento

consequente da concentração do NAD+ e do FAD

estimularia as desidrogénases do ciclo de Krebs e

das vias oxidativas específicas da glicose, dos

ácidos gordos e dos aminoácidos. O aumento da

concentração de ADP levaria também, via ação da

cínase do adenilato, ao aumento da concentração

do AMP. Um ou outro destes nucleotídeos (ou

ambos) é capaz de ativar enzimas (como a

fosforílase do glicogénio, a cínase da frutose-6-

fosfato, a síntase do citrato, a cínase de proteínas

ativada pelo AMP, etc.) com papéis relevantes na

regulação do catabolismo da glicose e dos ácidos

gordos. A existência nas fibras musculares do

ciclo de substrato frutose-6-fosfato/frutose-1,6-

bisfosfato assim como o papel ativador do AMP

na cínase da frutose-6-fosfato (e inibidor na

fosfátase da frutose-1,6-bisfosfato) ajudaria a

explicar que variações, mesmo que relativamente

discretas neste nucleotídeo, poderiam ter efeitos

marcados na velocidade de fluxo na glicólise7.

7 Admitindo que, por exemplo, a atividade da cínase da

frutose-6-fosfato é de 10 moles/min e a da hidrólase

da frutose-6-fosfato de 9 moles/min, a velocidade de

fluxo na glicólise será de 1 mol/min. Se a atividade da

cínase, estimulada pelo AMP aumentar de 10

moles/min para 90 moles/min o aumento na

atividade da cínase será apenas de 9 vezes mas o

aumento de fluxo na glicólise aumentou de 1 mol/min

para 81 (90-9) moles/min: um aumento de 81 vezes

na velocidade de fluxo foi conseguido com uma

variação muito mais modesta (9 vezes) na atividade da

enzima (a cínase da frutose-6-fosfato) que catalisa a

conversão da frutose-6-fosfato em frutose-1,6-

No entanto, alguns dados parecem

contradizer ou, pelo menos, colocar reservas

acerca da importância deste mecanismo. Pelo

menos no caso do coração, embora o seu consumo

de O2 possa, quando estimulado (pelo exercício

físico, por exemplo), aumentar 4 vezes, não há

variação nas concentrações de NADH, de Pi, de

ADP, de AMP (nem, obviamente, de ATP).

O Ca2+

entra para o citoplasma das fibras

musculares quando estas são estimuladas; isto faz

aumentar a sua concentração citoplasmática cerca

de 100 vezes aumentando também na matriz

mitocondrial. O Ca2+

estimula a atividade

contráctil e a bomba de Ca2+

(processos que

gastam ATP) mas, simultaneamente, também é

um poderoso estimulador de enzimas envolvidas

nos processos catabólicos oxidativos e na síntese

de ATP. O Ca2+

estimula a cínase da fosforílase,

as desidrogénases do glicerol-3-fosfato, do

piruvato, do isocitrato, do -cetoglutarato, os

complexos I e IV e a própria síntase do ATP. No

caso da desidrogénase do piruvato o efeito é

indireto: o Ca2+

ativa a fosfátase da desidrogénase

do piruvato que catalisa a desfosforilação e

consequente ativação da desidrogénase do

piruvato.

2.3 Efeito termogénico dos nutrientes

A taxa metabólica basal deve ser medida

entre 10 e 18 horas depois da ingestão de

alimentos porque a ingestão de alimentos provoca,

por si só, aumento da despesa energética. Este

efeito dos alimentos designa-se hoje “efeito

termogénico dos nutrientes” e esta terminologia

está a substituir uma outra que entrou em desuso:

“ação dinâmica específica”. O efeito termogénico

dos nutrientes é, pelo menos em parte, uma

consequência do aumento da atividade metabólica

associada à digestão, absorção, processamento e

armazenamento dos nutrientes ingeridos; todos

estes processos implicam gasto de ATP. É de

notar que a síntese de glicogénio e de

triacilgliceróis são processos anabólicos e o

mesmo se pode dizer da síntese de proteínas que

aumenta transitoriamente nos músculos assim

como noutros tecidos e órgãos quando a

concentração de aminoácidos aumenta no plasma

a seguir à ingestão de proteínas. Assim, a entrada

de nutrientes no organismo estimula os processos

oxidativos diretamente relacionados com a

bisfosfato. De facto, a atividade da fosfátase da frutose-

1,6-bisfosfato é também inibida pelo AMP, pelo que o

efeito na velocidade de fluxo da glicólise pode ser

ainda mais potenciado que o exemplo acima dá a

entender.

Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético; Rui Fontes

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reposição do ATP gasto nos processos anabólicos

acima referidos.

Embora os outros possíveis fatores

contribuintes para o efeito termogénico dos

nutrientes não estejam ainda completamente

clarificados é de referir que a entrada de nutrientes

no organismo também provoca estimulação do

sistema nervoso simpático que poderá estimular as

UCPs e, consequentemente, o “leak” de protões

na membrana mitocondrial interna.

O valor do efeito termogénico dos nutrientes

varia com a sua natureza e corresponde a cerca de

3 % do valor calórico dos lipídeos da dieta, 5 %

do dos glicídeos e 25 % do das proteínas. Nas

dietas mistas é cerca de 10 % do valor calórico

dos alimentos ingeridos.

O valor relativamente elevado no caso das

proteínas poderá, eventualmente, estar relacionado

com o facto de uma percentagem relativamente

elevada dos aminoácidos absorvidos ser, logo a

seguir às refeições, degradada nos próprios

enterócitos do intestino, no fígado e noutros

órgãos. Ao contrário do que acontece com a

oxidação dos glicídeos e ácidos gordos que é

regulada por mecanismos onde predominam

fatores como a velocidade de hidrólise do ATP e

fatores hormonais, a oxidação de cada um dos

aminoácidos está muito dependente da sua

concentração particular dentro das células. Isto

poderá ser em grande parte uma consequência de,

nas enzimas envolvidas nas vias de oxidação dos

aminoácidos, o Km dos aminoácidos serem

elevados; variações nas suas concentrações

refletem-se em variações quase proporcionais na

atividade dessas enzimas. Assim o catabolismo

dos aminoácidos aumenta quando a sua

concentração aumenta após a absorção e a

importância das oxídases e oxigénases nas vias

catabólicas de muitos aminoácidos poderá

contribuir para o acréscimo de calor libertado e de

O2 consumido (não diretamente relacionado com a

síntese de ATP) aquando da ingestão de proteínas.

2.4 Despesa energética associada ao frio

É do conhecimento geral que uma reação ao

frio intenso é o trémulo que provoca gasto de ATP

e, consequentemente, estimulação dos processos

oxidativos e da produção de calor mas, pelo

menos nos países da “civilização ocidental”, isto

teria no cômputo geral da despesa energética

diária um valor muitíssimo reduzido.

Um outro aspeto da resposta ao frio envolve

o desacoplamento na membrana mitocondrial

interna. De acordo com o consenso dominante a

resposta termogénica ao frio é mediada pela

estimulação da UCP1 e esta proteína apenas está

presente nas células do tecido adiposo castanho.

Até há poucos anos acreditava-se que este tipo de

tecido apenas existia nos bebés e, por isso, não

teria qualquer relevância no homem adulto. No

entanto, as descobertas mais recentes apontam

noutro sentido: os adultos ou, pelo menos, uma

grande percentagem dos adultos contêm “ilhas” de

tecido adiposo castanho no pescoço, na região

supraclavicular, no mediastino, junto da coluna

vertebral e em torno das glândulas suprarrenais

[Nedergaard et al., 2010]. Como já referido, a

estimulação da UCP1 envolveria diretamente o

sistema nervoso simpático e o aumento da

secreção de hormonas tiroideias que estimulariam,

via hipotálamo, o tono simpático nesse tecido.

Também há quem defenda que a resposta

termogénica ao frio envolve o próprio tecido

muscular esquelético mas, neste caso, a natureza

das proteínas desacopladoras envolvidas

(sabendo-se que não é nem a UCP3 nem a UCP2)

permanece desconhecida [Wijers et al., 2009;

Yoneshiro et al., 2011].

Os bebés humanos não tremem, mas o frio

pode fazer aumentar a sua despesa energética para

o dobro da basal. Em indivíduos adultos onde se

demonstrou de forma inequívoca a presença de

tecido adiposo castanho esse aumento pode ser, na

ausência de trémulo, de cerca de 30% [Yoneshiro

et al., 2011]. Isto é equivalente à diferença entre

estar sentado ou deitado, mas o interesse recente

neste tipo de estudos radica no conhecimento que

pode ser adquirido e que poderá vir a revelar-se

útil no combate à epidemia de obesidade no

mundo contemporâneo.

3 A energia metabolizável dos alimentos e o balanço energético

3.1 Balanço energético na ausência de ingestão de macronutrientes

Se um indivíduo, por um qualquer motivo,

deixar de se alimentar acaba por morrer. Sem

água, a morte sobrevém rapidamente, mas a

ingestão de macronutrientes não tem um caráter

tão urgente; dependendo da massa das reservas

energéticas armazenadas no tecido adiposo, pode-

se sobreviver durante meses. O episódio que

precipita a morte é habitualmente uma infeção

respiratória: o sistema de defesa contra

organismos patogénicos, que inclui a capacidade

de tossir usando a musculatura respiratória,

definha e precipita o desenlace. As reservas de

glicogénio esgotam-se nos primeiros dias e no

momento da morte também já se esgotaram as

reservas de triacilgliceróis e cerca de metade das

proteínas endógenas. Os aminoácidos

constituintes dessas proteínas e o glicerol dos

Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético; Rui Fontes

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triacilgliceróis foram sendo convertidos em

glicose (gliconeogénese) assegurando glicose para

o metabolismo dos eritrócitos, do cérebro e da

medula renal. O resto do organismo oxidou

diretamente ácidos gordos derivados da lipólise no

tecido adiposo e os corpos cetónicos que se

formaram no fígado a partir dos ácidos gordos.

Entre cerca de metade a 2/3 do metabolismo

cerebral também foi sustentado com os corpos

cetónicos.

Independentemente do tipo de nutrientes que

vão sendo utilizados, a energia correspondente à

sua conversão em CO2 (e em compostos azotados

da urina) é igual à despesa energética. O calor

associado à oxidação de 1 grama de glicogénio é

de 4,1 kcal. Dada a relativa heterogeneidade dos

ácidos gordos constituintes dos triacilgliceróis das

reservas endógenas o valor pode variar, mas um

valor frequentemente usado é o de 9,5 kcal/g de

triacilgliceróis oxidados. No caso das proteínas

endógenas a variabilidade é ainda maior e o valor

de 4,3 kcal/g é um valor possível. Este valor parte

do pressuposto que o azoto constituinte das

proteínas foi maioritariamente convertido em

ureia. Se soubermos qual a despesa energética

diária assim como o contributo de cada um dos

macronutrientes para esta despesa e o balanço

hídrico (a diferença entre a água perdida e a que

ingere) de um indivíduo saudável que, por

exemplo, está em greve da fome, podemos, com

os dados apresentados, calcular a perda de peso

que vai ocorrendo ao longo do tempo.

Para explicar melhor como é que, numa

situação de jejum total (só ingere água, sais

minerais e vitaminas), a despesa energética se

relaciona com a perda de peso apresentaremos a

seguir um exemplo hipotético. Admitamos um

adulto saudável, em greve da fome, que já perdeu

todo o glicogénio8 e que a sua despesa energética

total é de 1200 kcal/dia ou 5 MJ/dia. Poderá

parecer estranho que o valor escolhido seja

8 As reservas de glicogénio são relativamente escassas.

Admitindo 400 g armazenados no conjunto músculos e

no fígado de um adulto, o seu valor energético seria de

1640 kcal (400 g 4,1 kcal/g; 400 g 17,1 kJ/g = 6,9

MJ) que equivale à despesa energética basal num dia.

Pelo contrário o valor energético dos triacilgliceróis é

incomparavelmente maior. Se admitirmos 20 kg de

gordura e usarmos o valor de 9,5 kcal/g obtemos

190 000 kcal (ou 794 MJ = 20 000 g 39,7 kJ/g) um

valor mais de 100 vezes superior. Se admitirmos 12 kg

de proteínas e pensarmos que podemos (antes de

morrer) usar metade deste valor como combustível o

valor energético disponível seriam 25 800 kcal (6 000 g

4,3 kcal; 6 000 g 18 kJ/g = 108 MJ); cerca de 1/7

do valor disponível em 20 kg de gordura, mas quase 16

vezes o que equivale a 400 g de glicogénio.

inferior ao que escolhemos como exemplo no

Capítulo 2.1.1 para a despesa energética basal

mas, como referido no Capítulo 2.1.3, o

emagrecimento provoca diminuição nesta despesa

e não é previsível que, na situação analisada, as

outras componentes da despesa energética tenham

um valor muito diferente de zero. Admitamos

também que, no cômputo geral da oxidação dos

lipídeos endógenos e das proteínas endógenas, a

perda de 1 g da mistura corresponde a 7,76 kcal

ou 32,4 kJ (correspondendo a uma mistura em que

2/3 da massa oxidada são triacilgliceróis e 1/3 são

proteínas) e que o balanço hídrico é negativo e de

150 g/dia (a perda de proteínas leva à perda da

água que lhe está associada). Com estes dados

será imediato determinar que o indivíduo perderia

155 g/dia da mistura de lipídeos e proteínas (1200

kcal/dia / 7,76 kcal/g = 155 g/dia) e 150 g/dia de

água num total de 305 g de peso corporal por dia.

A situação exposta no parágrafo anterior é

um exemplo extremo de balanço energético

negativo. Há balanço energético negativo quando

a despesa energética é maior que a energia

metabolizável dos nutrientes. O balanço

energético é positivo no caso inverso e nulo

quando são iguais.

3.2 A energia metabolizável dos alimentos

O conceito de energia metabolizável dos

nutrientes precisa de ser clarificado porque não

corresponde exatamente à energia de oxidação dos

alimentos que são introduzidos na boca aquando

das refeições. No caso das proteínas, dado que no

metabolismo se produz ureia e outros produtos

azotados (e não azoto gasoso) a diferença é

flagrante (ver Capítulo 1) mas, mesmo entrando

em linha de conta com isto, a diferença contínua a

existir. Dependendo da forma como os alimentos

foram cozinhados e também da sua natureza, uma

parte maior ou menor da energia química

associada à sua oxidação não é energia

metabolizável porque uma parte desses alimentos

nem sequer é absorvida. As fibras podem ser

parcialmente digeridas pelas bactérias do intestino

grosso e os produtos desses processos podem ser

metabolizados nos colonócitos (ou mesmo noutros

órgãos), mas a maior parte perde-se nas fezes.

Uma parte dos lipídeos e das proteínas também se

perde nas fezes. Estima-se que, em média, a parte

que se perde nas fezes poderá ser da ordem de 1%

no caso dos glicídeos (ignorando as fibras), de 5%

no caso dos lipídeos e de 7% no caso das

proteínas. Arredondando números isto leva a

estimar o valor calórico dos glicídeos

(maioritariamente amido), dos lipídeos

(maioritariamente gordura) e das proteínas que

são ingeridas em cerca de 4, 9 e 4 kcal/g,

Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético; Rui Fontes

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respetivamente. Uma parte do valor energético

dos alimentos que também não é energia

metabolizável (mas que normalmente é mínima)

corresponde aos nutrientes que se perdem

diretamente na urina ou na respiração: é o caso do

etanol (respiração e urina), dos corpos cetónicos

(urina) ou, no caso dos diabéticos, a glicose que se

perde na urina.

3.3 O balanço energético

O funcionamento dos organismos vivos não

está em contradição com a 1ª lei da

termodinâmica (a energia não se perde nem se

cria, apenas se pode transformar noutras formas

de energia) e, consequentemente, quando a

energia metabolizável dos nutrientes tomados do

exterior (o aporte energético) é superior à que se

liberta (a despesa energética) há acumulação de

compostos orgânicos no organismo e o balanço

energético diz-se positivo. Como já referido no

Capítulo 3.1, no caso contrário, há diminuição e o

balanço energético é negativo.

Balanço energético positivo é a condição

fisiológica normal nas crianças, nos adolescentes,

nos fetos (ou na unidade feto-grávida) e nas

situações de recuperação após balanços

energéticos negativos como aqueles que se

seguem a uma doença febril ou traumática. Os

obesos que mantêm um peso estável têm, no

momento da observação, balanço energético nulo

mas, se forem ao médico, este terá de dizer-lhes

que a sua saúde física (e eventualmente mental)

pode melhorar se encetarem um programa (dieta e

exercício físico) que leve a um balanço energético

negativo.

O conceito de balanço energético só faz

sentido se se considerarem períodos de tempo

alargados (uma semana, no mínimo). Na meia

hora em que decorre uma refeição a energia

metabolizável dos nutrientes ingeridos é sempre

maior que a despesa energética e no intervalo

entre refeições (aporte zero) é sempre menor, mas

não faz sentido dizer que, nesses intervalos de

tempo, há balanços energéticos positivo e

negativo. Um indivíduo que mantém o seu peso

estável durante um ano está em balanço

energético nulo, mas terá havido dias em que as

refeições lhe agradaram mais e comeu mais e dias

em que fez mais exercício físico que noutros.

Um indivíduo que, no momento presente,

tem excesso de peso ou é claramente obeso

passou, seguramente, algum período de tempo no

seu passado em balanço energético positivo. (Se é

uma criança obesa passou, seguramente, algum

período de tempo em que o valor deste balanço foi

superior ao que seria de esperar tendo em conta o

aumento da sua altura.) No entanto, um cálculo

simples permite-nos compreender que, na

esmagadora maioria das situações, a diferença

percentual entre o aporte energético e a despesa

energética é tão pequena que se torna impossível

de avaliar por outros meios que não seja a

avaliação das suas consequências na massa

corporal e, eventualmente, na percentagem dos

componentes dessa massa corporal. Noções

básicas sobre avaliação da composição corporal

são apresentadas no Anexo 4 e, no Anexo 5,

apresenta-se uma situação experimental de

balanço energético negativo.

Os mecanismos homeostáticos

(nomeadamente os mecanismos de regulação do

apetite) tendem a manter o consumo de energia

equivalente à despesa, mas os hábitos dietéticos e

a baixa atividade física na civilização ocidental

moderna levam a que haja um aumento de peso

médio da população de cerca de 10 kg entre os 25

e os 40 anos de idade. Este dado é, independente

de outros estudos, um indicador seguro de que, em

média, existe, nesta faixa populacional, um

balanço energético positivo. O seu valor pode ser

estimado admitindo determinados pressupostos

razoáveis. É razoável admitir que cerca de 80 %

do aumento da massa corporal corresponde a

deposição de reservas de triacilgliceróis (8000g

9,5 kcal/g = 76000 kcal) e que os restantes 20%

são constituídos maioritariamente por água (16%

do total) e proteínas (400g 4,3 kcal/g =1720

kcal). De acordo com estes pressupostos este

aumento de massa corresponde a um balanço

energético positivo de 77 720 kcal (76000 + 1720)

ao longo de 15 anos; isto corresponde a um

balanço diário de +14,2 kcal ou +59,4 kJ [=

77 720 kcal / (365 dias/ano 15 anos)], ou seja, o

equivalente a 1,5 g de azeite ou menos de 4 g de

sacarose. Considerando uma despesa média de

2400 kcal/dia ou 10 MJ, para engordar 10 kg em

15 anos basta ter um balanço energético positivo

de 0,59 % (14,2 kcal/ 2400 kcal = 0,0059).

Reforçando a ideia de que o único método de

avaliação do balanço energético é a medida da

massa corporal (eventualmente complementada

com a avaliação da sua composição) refira-se que

este excesso está muito abaixo de qualquer erro

experimental quando se usam métodos de

avaliação da despesa energética e do valor

energético da dieta para avaliar o balanço

energético.

3.4 A obesidade

A compreensão dos mecanismos biológicos

que levam os seres humanos a interromper uma

refeição ou, mais importante ainda, a adequar,

num prazo de tempo largo, o aporte energético à

despesa energética são, sobretudo nos últimos

Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético; Rui Fontes

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anos, objeto de uma investigação intensa. Embora

esteja fora do âmbito deste texto far-se-ão a seguir

algumas considerações sobre este tema

interessante e complexo.

Sabe-se, por exemplo, que a colecistocinina,

uma hormona libertada por células endócrinas

situadas no intestino sob estímulo das gorduras da

dieta, atua em terminais vagais que levam a uma

sensação de saciação induzindo o indivíduo a

terminar a refeição. Sabe-se também que a leptina,

uma hormona segregada pelos adipócitos, atua no

hipotálamo e inibe o apetite. De facto, as crianças

que nascem com mutações no gene que codifica a

leptina (casos raríssimos) têm um apetite

exagerado, ficam extremamente obesas e a

terapêutica com leptina recombinante é eficaz.

Contudo, apesar de os indivíduos obesos, em

consonância com o excesso de tecido adiposo

produzirem mais leptina que os indivíduos

magros, têm uma enorme dificuldade em

emagrecer. A dificuldade sentida pelos obesos em

emagrecer e a ausência de efeito da terapêutica

(experimental) com leptina no tratamento da

obesidade que não é provocada por défice de

leptina atestam que a leptina, podendo,

eventualmente, impedir que os obesos continuem

continuamente a engordar, não é capaz de fazer

diminuir o apetite a ponto de entrarem em balanço

energético negativo e baixarem de peso.

O aumento da incidência de obesidade na

civilização ocidental moderna parece ser uma

consequência de os sistemas de regulação do

apetite dos seres humanos terem evoluído num

quadro ambiental muito distinto daquele que

existe nesta civilização. Ingerir os alimentos que

estão disponíveis é um fator de sobrevivência num

ambiente em que a incerteza do amanhã aconselha

a armazená-los no sítio mais seguro: as próprias

reservas de gordura no tecido adiposo. Quando,

por decisão voluntária, um obeso decide tomar

medidas de forma a obter balanço energético

negativo, a diminuição das reservas faz disparar

mecanismos que estão adaptados para a

sobrevivência em situações de fome: diminuição

da despesa energética (ver Capítulo 2.1.3) e

aumento do apetite. A acrescentar a este quadro

não poderá ser ignorado que a indústria e o

comércio alimentar não para de oferecer alimentos

cuja apresentação, paladar e facilidade de

preparação e ingestão acentuam o prazer inerente

ao ato de comer. Para o mesmo fim contribuem

também as máquinas que se vão inventando e que

diminuiem o esforço físico exigido num grande

número de atividades (deslocar-se, lavar a roupa,

etc.). Neste contexto, não deixa de ser irónico que

o acesso a alguns ginásios se faça através de

escadas rolantes.

4 A seleção dos nutrientes que sofrem oxidação no organismo A composição da mistura de macronutrientes

que está, num dado momento, a ser oxidado pelo

organismo depende de vários fatores de entre os

quais se destaca se o indivíduo acabou de ingerir

uma refeição ou está em jejum, o tipo de

alimentos que ingeriu, o tempo de jejum e os

níveis das reservas de glicogénio e a massa de

triacilgliceróis das reservas, se o indivíduo está a

descansar ou a fazer exercício físico e a

intensidade desse exercício.

Diferentes órgãos usam de forma

preferencial diferentes nutrientes mas, nalguns

casos, essas preferências têm pouca relevância

quando se considera o organismo como um todo.

O consumo de glicose pelos eritrócitos, por

exemplo, não representa oxidação líquida de

glicose. Uma parte da glicose que está a ser

consumida nos eritrócitos provém da

gliconeogénese que se sintetiza a partir de lactato

produzido nos mesmos eritrócitos e isto, do ponto

de vista de quem observa o metabolismo no

organismo inteiro, é um ciclo de substrato

sustentado, em última análise, pelos processos

oxidativos que estão a decorrer no fígado. No

fígado, a glicose é, relativamente aos outros

nutrientes (lipídeos e aminoácidos), um

combustível pouco importante e, na maior parte

das situações, a energia correspondente à

gliconeogénese provém maioritariamente da

oxidação dos ácidos gordos.

A relação entre a excreção de CO2 e o

consumo de O2 no organismo como um todo é

medida por calorimetria indireta (ver Anexo 2) e o

valor dessa razão permite estimar se, num dado

momento, um indivíduo está a oxidar

predominantemente glicídeos ou lipídeos. A

Equação 1 e a Equação 2 permitem deduzir que,

se um indivíduo estivesse a oxidar exclusivamente

glicose a razão molar entre o CO2 produzido e o

O2 consumido seria 1 e que, se estivesse a oxidar

exclusivamente palmitato esta razão seria 0,696.

A esta razão dá-se o nome de Quociente

Respiratório (QR); em inglês a expressão mais

usada é Respiratory Exchange Ratio que

poderíamos traduzir por Razão Respiratória de

Trocas. No caso do glicogénio o QR também é,

obviamente, 1. Os triacilgliceróis são misturas

mais heterogéneas e a sua composição em ácidos

gordos pode fazer variar um pouco o valor do QR

que lhe corresponde, mas é sempre muito próximo

de 0,7. Nas proteínas a heterogeneidade é ainda

maior e um valor possível para o QR é um valor

próximo de 0,83.

Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético; Rui Fontes

Página 12 de 16

Assim se, num dado momento se estiverem a

oxidar quase exclusivamente glicídeos, como

acontece após uma refeição rica nestes

constituintes, o valor do QR aproxima-se de 1. À

medida que o tempo de jejum vai aumentando, o

contributo dos ácidos gordos para a despesa

energética vai aumentando e o valor aproxima-se

de 0,7. Num jejum de cerca de 10-14 horas será

cerca de 0,85 mas, se este for muito prolongado

(vários dias ou semanas), poderá ser de cerca de

0,73. Este é o valor de QR que corresponde à

situação hipotética analisada no Capítulo 3.1 em

que o indivíduo em jejum prolongado oxidava

uma mistura em que 2/3 da massa oxidada eram

triacilgliceróis e 1/3 proteínas. Mecanismos

homeostáticos mal compreendidos regulam a

razão entre a massa de triacilgliceróis e a massa de

proteínas oxidadas nestas condições: essa razão é

tanto maior (e, consequentemente, menor o QR)

quanto maior for a percentagem de massa gorda

do indivíduo que está a jejuar.

O que se escreveu acima pode fazer pensar

que o Quociente Respiratório não pode ser

superior a 1 mas, embora o fenómeno seja de

difícil observação experimental, tal é possível no

estado pós-prandial de uma refeição rica em

glicídeos quando previamente e durante vários

dias a dieta também foi rica em glicídeos. Nestas

condições tudo o que se oxida são glicídeos e uma

parte dos glicídeos ingeridos está a ser convertida

em lipídeos, ou seja, a lipogénese de novo está

estimulada ao máximo. Nestas circunstâncias, a

produção do NADPH (que é oxidado por ação da

síntase do palmitato) provém maioritariamente da

via das pentoses-fosfato e, nesta via metabólica,

produz-se CO2, mas não se consome O2.

Uma situação inversa acontece quando se

ingere etanol. Na oxidação do etanol a razão

CO2/O2 é ainda mais baixa que a dos lipídeos

(0,66; ver Equação 6) e, além disso, o etanol

ingerido é rapidamente oxidado substituindo os

outros nutrientes. Assim, independentemente do

QR de partida, a ingestão de etanol provoca

descida do valor do QR.

Se, como é mais comum, a composição

corporal e o peso de um dado indivíduo adulto

não se modificarem num intervalo de tempo

adequado (um mês, por exemplo)9 isso significará

que todos e cada um dos macronutrientes que ele

ingeriu nesse intervalo foram oxidados. Se

designarmos por Quociente Respiratório da Dieta

(FRQ, do inglês Food Respiratory Quotient) a

9 Se a atividade física e o tempo após a uma refeição

forem semelhantes (sempre antes do pequeno almoço,

por exemplo) nos dois momentos da medida, também a

massa de glicogénio do organismo será semelhante.

razão CO2/O2 que é previsível obter da oxidação

dos alimentos ingeridos nesse intervalo de tempo,

o valor do FRQ coincidirá com o do Quociente

Respiratório médio no mesmo intervalo. Ou seja,

se o balanço energético for nulo, QR = FRQ.

Quando o balanço energético é negativo parte da

energia utilizada pelo indivíduo provém das suas

reservas de triacilgliceróis e, por isso, o QR será

menor que o FRQ. Em situações de balanço

energético positivo parte da gordura ingerida não

é oxidada, sendo armazenada no tecido adiposo;

ou seja, nesta condição o indivíduo oxida todos os

glicídeos (e proteínas) que ingere, mas não toda a

gordura ingerida e o QR será maior que o FRQ.

Já foi referido que o exercício físico aumenta

a despesa energética, mas a mistura de

macronutrientes que é oxidada varia com a

intensidade do exercício. Em exercícios de

intensidade baixa ou moderada (abaixo de 55% da

velocidade máxima de consumo de O2) o QR é

determinado pelos outros fatores já referidos. No

entanto, para exercícios de muito alta intensidade,

as fibras musculares em contração passam a

oxidar predominantemente o glicogénio nelas

armazenado e a glicose do sangue (proveniente,

em última análise, do fígado que aumenta a sua

taxa de produção). Isto faz com que o QR medido

por calorimetria indireta (e que representa o

cômputo geral da oxidação dos glicídeos, lipídeos

e proteínas no organismo como um todo)

aumente.

5 Anexos

5.1 Anexo 1 – Nos seres vivos o trabalho é irrelevante

De acordo com a 1ª lei da termodinâmica, a

energia correspondente ao H das reações pode

repartir-se por calor e trabalho. Assim,

poderíamos interrogar-nos se um calorímetro,

sendo apenas capaz de medir calor, seria um bom

instrumento para medir o somatório dos H dos

processos reativos nos animais. Tal só é

admissível se o trabalho dos animais for nulo. Ao

contrário do que se passa com uma lareira que só

produz calor, aparentemente o trabalho dos

animais e, em particular, o trabalho do homem,

não é nulo. Poderíamos também pensar que o

homem se poderia comparar a uma empilhadora

que transforma a energia correspondente à

oxidação do seu combustível na energia potencial

gravítica dos objetos que vai colocando em

estantes, mas não é este o caso: um calorímetro é

capaz de, na esmagadora maioria das situações,

medir rigorosamente o somatório dos H dos

processos reativos que ocorrem no homem.

Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético; Rui Fontes

Página 13 de 16

Admitamos, por exemplo, que um indivíduo

encerrado no calorímetro eleva a energia potencial

gravítica de um peso de 40 kg colocando-o numa

estante a 2 m do solo. O trabalho correspondente a

esse aumento da energia potencial gravítica do

peso pode ser calculado como sendo igual a 0,19

kcal10 e, neste caso, o calor libertado e que poderá

ser medido no calorímetro será 0,19 kcal mais

baixo que o H correspondente aos processos

reativos. De facto, dado que o H correspondente

aos processos reativos num homem adulto pode

ser da ordem de -1 a -10 kcal/min (o sinal do H

é, por convenção, negativo quando a energia se

liberta), o valor de 0,19 kcal não será,

normalmente, um grande fator de erro mas,

admitindo outros valores de trabalho, poderia,

pelo menos teoricamente, haver um erro

apreciável na medição por calorimetria direta do

H dos processos reativos no animal. Contudo, se

o objeto cair da estante, a energia potencial

gravítica transforma-se em energia cinética de

igual valor e, ao chocar com o solo, em calor: se

durante o tempo em que se mede o calor o objeto

voltar à sua posição inicial não existirá qualquer

erro se considerarmos o trabalho nulo. A

esmagadora maioria da energia correspondente

aos processos reativos dos trabalhadores que

fizeram as pirâmides do Egito transformou-se em

calor durante a construção e só uma parte ínfima

(a que corresponde à energia potencial gravítica

das pedras empilhadas) aguarda ainda o momento

do seu derrube até ao nível do solo para também

se poder contabilizar como calor. Também

quando o indivíduo empurra uma caixa ao nível

do solo o seu trabalho é nulo porque toda a

energia cinética correspondente ao movimento da

caixa se acaba por transformar em calor através do

atrito. Na ausência de atrito a caixa que está a ser

empurrada teria um movimento acelerado, mas

não é isso que se observa normalmente. Para além

do caso da elevação da energia potencial gravítica

dos objetos existem outras situações em que o H

dos processos reativos não coincide de modo

perfeito com o calor libertado. Um exemplo é

quando o indivíduo usa a sua força muscular para

acionar um dínamo que carrega uma bateria;

também neste caso o H dos processos reativos

pode ser fracionado em duas parcelas: calor e

energia elétrica. No entanto, se a energia

acumulada na bateria for utilizada, toda a energia

acumulada na bateria acaba por se transformar em

calor.

10 Trabalho (Joules) = massa (kg) aceleração (ms

-2)

altura (m); 40 kg 9,8 ms-2

2 m = 784 J; 784 J / 4,18

cal/J = 188 cal 0,19 kcal

O caso do trabalho dos “órgãos internos”

como o coração (trabalho mecânico), o cérebro

(trabalho elétrico), etc., é muito semelhante ao que

foi explicado acima. Por exemplo, no caso do

coração, a hidrólise do ATP fornece a energia

usada na contração do músculo cardíaco que se

transforma na energia cinética do sangue em

movimento. Mas o sangue não tem movimento

uniformemente acelerado: o atrito entre as fibras

musculares cardíacas, entre as várias camadas de

sangue e entre o sangue e os vasos sanguíneos

acaba por converter toda essa energia em calor.

De facto todo o H correspondente à oxidação

dos nutrientes no coração acaba por se

transformar em calor sendo este calor o que

corresponde ao somatório das diferenças entre a

energia libertada e consumida em cada uma das

diferentes etapas de transdução de energia. Nos

neurónios ocorre um fenómeno semelhante: a

energia elétrica potencial correspondente à

diferença de carga entre as duas faces da

membrana celular acaba por se transformar na

energia cinética do movimento dos iões através

dos canais iónicos e, no mesmo momento, em

calor.

Em jeito de conclusão pode escrever-se que

o calor medido num calorímetro direto é uma

medida exata do H das reações que ocorrem nos

animais porque (1) o somatório dos H das

reações que ocorrem nos animais é a energia total

disponibilizada (calor + trabalho) e (2), com a

exceção dos casos em que o trabalho muscular

serve para aumentar a energia potencial gravítica

de objetos ou para carregar uma bateria, todo o

trabalho se transforma, no mesmo momento em

que se realiza, em calor. Uma vez que a

concentração de intermediários do metabolismo se

mantém mais ou menos constante, o H

correspondente aos processos reativos que

ocorrem num ser vivo corresponde praticamente

ao dos processos oxidativos líquidos (diferença

entre oxidação e síntese redutora) dos glicídeos,

lipídeos e proteínas.

5.2 Anexo 2 - Calorimetria indireta

A calorimetria indireta baseia-se na

observação de que, na oxidação dos compostos

orgânicos, existe uma relação estequiométrica

entre a energia libertada e o consumo de O2 e a

produção de CO2.

Para além de ser mais barato que o método

de calorimetria direta, a calorimetria indireta tem

uma outra vantagem: combinado com o

doseamento (ou uma estimativa; ver abaixo) do

azoto na urina permite estimar com algum rigor o

tipo de combustível que está a ser oxidado pelo

indivíduo.

Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético; Rui Fontes

Página 14 de 16

A quantidade de proteínas oxidadas num

determinado período de tempo pode ser estimada

doseando o azoto eliminado na urina durante esse

período de tempo. Porque o azoto corresponde a

cerca de 16% da massa das proteína, se um

indivíduo excretou num determinado período de

tempo g gramas de azoto, a massa (em gramas)

das proteínas oxidadas nesse período de tempo

(Pro) pode ser estimada usando a equação

Equação 7.

Equação 7 Azoto da urina (g) = 0,16 Pro

No entanto, porque a ureia, o mais abundante

produto azotado no catabolismo das proteínas,

sofre circulação entero-hepática, a medida do

azoto urinário não serve para detetar variações

agudas na velocidade desse catabolismo. Por isso

também é frequente partir-se do pressuposto que o

indivíduo está em balanço azotado nulo e,

estimando a massa de proteínas ingeridas por dia,

admitir que a massa de azoto excretada é 16%

desse valor.

Múltiplos estudos permitiram a construção

de tabelas que mostram que, no caso das

proteínas, o consumo de O2 por grama de proteína

oxidada (1,03 L de O2/g de proteínas) é

ligeiramente superior ao caso dos glicídeos (0,81

L de O2/g de glicídeos) e muito inferior

comparativamente aos lipídeos (2,03 L de O2/g de

lipídeos). A simples comparação da fórmula da

glicose (C6H12O6) com a de um ácido gordo (por

exemplo estearato C18H36O2) permite perceber que

os lipídeos são, à partida, compostos com um

menor grau de oxidação que os glicídeos e que

consomem mais oxigénio no seu processo de

oxidação a CO2. Os dados dos estudos realizados

permitiram escrever a Equação 8 em que Gli, Pro

e Lip representam, respetivamente, a massa (em

gramas) de glicídeos, proteínas e lipídeos

oxidados no tempo em que decorre o estudo.

Notar que o volume de O2 consumido pode ser

determinado por calorimetria indireta.

Equação 8

Vol O2 consumido (L) = 0,81 Gli + 1,03 Pro +

2,03 Lip

No caso da produção de CO2 também é

possível, a partir de dados tabelados, escrever uma

equação, a Equação 9, em que o volume de CO2

produzido pode ser determinado por calorimetria

indireta.

Equação 9

Vol CO2 produzido (L) = 0,81 Gli + 0,85 Pro +

1,43 Lip

As equações 7, 8 e 9 constituem um sistema

de 3 equações a 3 incógnitas (Gli; Pro e Lip). Se

estivermos na posse de resultados obtidos por

calorimetria indireta (O2 consumido e CO2

produzido num determinado intervalo de tempo) e

tivermos estimado o azoto urinário excretado no

mesmo intervalo de tempo, podemos calcular a

massa (em gramas) dos glicídeos, proteínas e

lipídeos que foram oxidados. Sabendo-se que à

oxidação de 1 g de glicídeos, 1 g de proteínas e 1

g lipídeos endógenos (ou, mais precisamente,

glicogénio, proteínas e triacilgliceróis)

correspondem, respetivamente, cerca de 4,1, 4,3 e

9,5 kcal, é fácil calcular o calor libertado (despesa

energética) nesse intervalo de tempo:

Equação 10

Calor libertado (kcal) = 4,1 Gli + 4,3 Pro + 9,5

Lip

ou Equação 11

Calor libertado (kJ) = 17 Gli + 18 Pro + 39,7

Lip

5.3 Anexo 3 - A técnica da “água duplamente marcada”

A técnica da “água duplamente marcada”

baseia-se na existência de uma relação

estequiométrica entre a energia libertada na

oxidação dos compostos orgânicos e na produção

de CO2. A técnica da “água duplamente marcada”

(Double Labeled Water - DLW) permite estimar a

quantidade de CO2 produzida ao longo de vários

dias ou semanas. Depois de o indivíduo ingerir

água marcada com deutério (2H) e com

18O

(2H2

18O) vão-se colhendo amostras de urina, saliva

ou suor onde se doseia o 2H e o

18O e isto permite

calcular as velocidades com que estes isótopos

estão a ser eliminados. A velocidade de

desaparecimento do 18

O nos líquidos orgânicos é

uma medida do somatório das velocidades de

eliminação de água e de CO2 do organismo e a

velocidade de desaparecimento do deutério uma

medida da velocidade de desaparecimento da

água. A diferença entre os dois valores permite

estimar a excreção de CO2. Com este valor, com

uma estimativa do QR (que pode ser feita

admitindo que é semelhante ao FRQ; ver Capítulo

4) e, consequentemente, da energia libertada por

mole de CO2 produzida pode-se calcular o valor a

despesa energética.

Regulação da oxidação dos nutrientes e equilíbrio energético; Rui Fontes

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5.4 Anexo 4 – Medida da composição corporal e sua relação com o Índice de Massa Corporal.

Para a determinação da composição corporal

e da massa dos seus diferentes compartimentos,

podem usar-se (para além da balança) vários

métodos. Esses métodos permitem, no seu

conjunto ou individualmente, estimar a proporção

de massa gorda (a massa de triacilgliceróis) e a

sua complementar, a massa isenta de gordura.

Embora a massa gorda varie muito com o sexo e

de indivíduo para indivíduo (em geral entre 10 e

30% do peso total) os componentes da massa

isenta de gordura têm proporções que variam

menos; para a massa livre de gordura contribuem

a água (cerca de 74% no adulto), as proteínas

(cerca de 19%) e os minerais (essencialmente os

ossos: 7%). As técnicas correntes para avaliar a

massa e composição corporal não permitem

conhecer a massa das reservas glicídicas

(glicogénio hepático e muscular) mas,

dependendo do estado nutricional e do exercício

físico prévio, estas variarão entre cerca de 0,2% e

cerca de 1% da massa corporal. Há muitos

métodos para avaliar a composição corporal e dois

dos mais conhecidos baseiam-se na diferença de

densidades (Densitometria) ou na diferente

opacidade aos raios X (Absormetria de Rx de

energia dual) entre a massa gorda e a massa isenta

de gordura. A técnica da “Impedância Bioelétrica”

é mais simples e mais barata e baseia-se na

resistência diferencial que os diferentes tipos de

tecidos oferecem à passagem da corrente elétrica e

na sua capacidade diferencial para retardar o fluxo

de corrente após um estímulo elétrico. Um outro

método ainda mais simples baseia-se na medição

da espessura de pregas cutâneas em locais pré-

definidos e em tabelas que foram construídas com

base na comparação destas medidas com as que se

obtiveram com técnicas mais sofisticadas.

A percentagem de massa gorda varia com o

Índice de Massa Corporal (BMI; do inglês “body

mass index”; peso /altura2; kg/m

2). Num trabalho

em que se estudou um grande número de

indivíduos, Jackson e col. (2002) mostraram que,

para um dado valor de BMI, a percentagem de

gordura era maior nas mulheres que nos homens

(cerca de 10 kg). Nas mulheres, a curva que

relacionava as médias das percentagens de

gordura com o BMI era descrita pela seguinte

equação:

Equação 12

% de gordura = (4,35 BMI) – (0,05 BMI2) –

46,24.

Nos homens a equação correspondente era:

Equação 13

% de gordura = (3,76 BMI) – (0,04 BMI2) –

47,80.

Esta diferença entre os homens e as mulheres

está relacionada com os diferentes papéis

desempenhados pelos dois sexos na procriação. O

ciclo menstrual altera-se e a taxa de fertilidade das

mulheres baixa quando emagrecem para valores

anormais de massa corporal.

5.5 Anexo 5 – Medida da composição corporal e da despesa energética na avaliação do balanço energético numa situação experimental.

A variação no tempo da massa dos

compartimentos do organismo pode servir para

saber se existe balanço energético positivo, nulo

ou negativo e para quantificar o seu valor. Uma

experiência publicada em 1994 por Straut e col.

permite ilustrar esta ideia. Numa expedição de 95

dias através da Antártida foram avaliadas, num

indivíduo, a despesa energética (6524 kcal/dia;

estimada pela técnica da água duplamente

marcada em dois períodos de 15 dias) assim como

o valor calórico da dieta (5070 kcal/dia) e estes

dados permitiram o cálculo do balanço energético

que era negativo e igual a 1454 kcal/dia. De facto,

o indivíduo emagreceu 24,6 kg. A composição

corporal foi também avaliada no início e no fim

da expedição, tendo-se observado que tinha

havido uma perda de massa gorda de 14,5 kg e de

massa isenta de gordura de 10,1 kg. Admitindo

que nos dois momentos do estudo as reservas

glicídicas eram semelhantes (e irrelevantes no

contexto) e que cerca de 20% da massa livre de

gordura perdida era proteína, podemos (usando os

valores de 9,5 kcal/g de lipídeos endógenos

oxidados e de 4,3 kcal/g de proteínas endógenas

oxidadas) concluir por um balanço energético

negativo de 146436 kcal ao longo dos 95 dias ou,

em média, de 1541 kcal/dia. Os valores 1541

kcal/dia e 1454 kcal/dia deveriam, em teoria, ser

iguais: a pequena diferença entre eles apenas

reflete o erro inerente aos métodos e aos

pressupostos utilizados.

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A 1ª versão deste texto foi escrita em março de 2011 e

o autor agradece todas as críticas incluindo as que

foram feitas pelo estudante Bernardo Sousa. Foi

novamente revisto em janeiro de 2013.

([email protected])

Rui Fontes