Relações entre a poesia marginal e a política dos anos 70 no brasil

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Resumo: Poesia Marginal foi um acontecimento cultural dos anos 70, que em um ambiente de medo e repressão militar que dominava o país naquela época de ditadura, teve o intuito de se expressar livremente. Com um grande número de adeptos jovens buscaram caminhos alternativos para contestar com a censura e transmitir a indignição e os seus sentimentos em relação à situação política do Brasil. A leitura da poesia marginal há de apontar para as possibilidades abertas ao pensamento filosófico pela literatura brasileira contemporânea. Palavras-chave: Poesia marginal, repressão militar e expressar livremente Influenciada pela primeira fase do Modernismo brasileiro, pelo Tropicalismo e por movimentos de contracultura, tais como o rock, o movimento hippie, histórias em quadrinhos e o cinema. A poesia marginal é tendente à coloquialidade, à espontaneidade, à experimentação rítmica e musical, ao humor, à paródia e à representação do cotidiano urbano. É uma exceção a algumas destas tendências o poeta Roberto Piva, mais tendente ao Surrealismo e próximo à poesia da Geração Beat, demonstrando grande erudição em seus poemas, tal qual o faz Geraldo Carneiro, que, no entanto, utiliza frequentemente recursos semelhantes aos da poesia concreta.No Brasil, poesia marginal é a designação dada à poesia produzida pela geração mimeógrafo, incluindo aí poetas absolutamente desconhecidos que produziram suas obras fora do eixo Rio-São Paulo, embora ao redor do mundo se use o termo para referir-se à tendências que funcionam independentemente de uma poesía "oficial", canonicamente aceita.

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Resumo: Poesia Marginal foi um acontecimento cultural dos anos 70, que em um ambiente de medo e

repressão militar que dominava o país naquela época de ditadura, teve o intuito de se expressar

livremente. Com um grande número de adeptos jovens buscaram caminhos alternativos para

contestar com a censura e transmitir a indignição e os seus sentimentos em relação à situação política

do Brasil. A leitura da poesia marginal há de apontar para as possibilidades abertas ao pensamento

filosófico pela literatura brasileira contemporânea.

Palavras-chave: Poesia marginal, repressão militar e expressar livremente

Influenciada pela primeira fase do Modernismo brasileiro, pelo Tropicalismo e por

movimentos de contracultura, tais como o rock, o movimento hippie, histórias em quadrinhos

e o cinema. A poesia marginal é tendente à coloquialidade, à espontaneidade, à

experimentação rítmica e musical, ao humor, à paródia e à representação do cotidiano urbano.

É uma exceção a algumas destas tendências o poeta Roberto Piva, mais tendente ao

Surrealismo e próximo à poesia da Geração Beat, demonstrando grande erudição em seus

poemas, tal qual o faz Geraldo Carneiro, que, no entanto, utiliza frequentemente recursos

semelhantes aos da poesia concreta.No Brasil, poesia marginal é a designação dada à poesia

produzida pela geração mimeógrafo, incluindo aí poetas absolutamente desconhecidos que

produziram suas obras fora do eixo Rio-São Paulo, embora ao redor do mundo se use o termo

para referir-se à tendências que funcionam independentemente de uma poesía "oficial",

canonicamente aceita.

O gênero de poesia que foi denominado de "marginal" no Brasil se tornou conhecido por este

nome porque seus poetas abandonaram os meios tradicionais de circulação das obras, através

de (editoras e livrarias), e buscaram meios alternativos, realizando cópias mimeografadas de

seus trabalhos, comercializados a baixo custo, vendidos de mão em mão, nas ruas, em praças

e nas universidades. Através dela, os poetas da geração mimeografada queriam se expressar

livremente em pleno regime da ditadura militar, bem como revelar novas vozes poéticas.

Esta tradição marginal se estendeu pelos anos de 1980, tendo utilizado também o recurso da

fotocópia e a produção de fanzines.

Possivelmente, possa-se considerar uma continuidade desta tendência na poesia que se

encontra apenas na Internet, sendo produzida por poetas que não usam outro meio de

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divulgação, à parte de um mercado literário propriamente dito, ou da indústria cultural, por

postura ou exclusão, estando à margem não por motivos políticos, como a poesia marginal

dos anos de 1970, mas, principalmente, econômicos. A poesia marginal sempre foi do povo

do gueto, a dos participantes da antologia 26 Poetas Hoje, apresenta também, no geral,

tendência à oposição ao concretismo, pelo menos à sua forma mais usual, sendo a exploração

da subjetividade a principal característica a opô-los àquele movimento.

Historicamente, os primeiros sinais editoriais da poesia marginal foram os

folhetosmimeografados Travessa Bertalha de Charles Peixoto e Muito Prazer de Chacal,

ambosde 1971. Duas outras publicações também marcaram as fronteiras desse novo

territórioliterário. São elas: Me Segura qu¶eu vou dar um troço de Waly Salomão (1972) e

aedição póstuma de Últimos Dias de Paupéria, de Torquato Neto, (1972). Em 1973, a poesia

marginal já aparece como categoria poética nos encontros Expoesia I, na PUC RJe Expoesia

II em Curitiba. No ano seguinte, o evento PoemAção, três dias de mostras edebates, no MAM

RJ, com grande afluência de público, comprovou a presença literáriados marginais na cena

poética da época.O termo marginal (ou magistral como dizia o poeta Chacal), ambíguo desde

o início,oscilou numa gama inesgotável de sentidos: marginais da vida política do

país,marginais do mercado editorial, e, sobretudo, marginais do cânone literário. Foi uma

poesia que surgiu com perfil despretensioso e aparentemente superficial mas quecolocava em

pauta uma questão tão grave quanto relevante: o ethos de uma geraçãotraumatizada pelo

cerceamento de suas possibilidades de expressão pelo crivo violentoda censura e da repressão

militar. Em cada poema-piada, em cada improviso, em cadarima quebrada, além das marcas

de estilo da poesia marginal, pode-se entrever umaaguda sensibilidade para registrar ± com

maior ou menor lucidez, com maior ou menor destreza literária ± o dia-a-dia do momento

político em que viviam os poetas dachamada geração AI5.Determinados em não deixar o

³silêncio´ se instalar, os poetas marginais definiramuma poesia com fortes traços anti-

literários que se chocava com o experimentalismoerudito das vanguardas daquele momento.

Uma dicção poética empenhada em ³brincar´com os padrões vigentes de qualidade literária,

de densidade hermenêutica do texto poético, da exigência de um leitor qualificado para a

plena fruição do poema e seussubtextos. Assim, os marginais, com um só gesto, desafiaram

não apenas a crítica, mastambém a instituição literária oferecendo uma poesia biodegradável

que não pareciaimportar-se nem com a permanência de sua produção, nem com o

reconhecimento dacrítica informada pelos padrões canônicos da historiografia literária. Ao

contrário,marcavam sua posição ao não explicitar qualquer projeto literário ou político e

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aoapresentar-se claramente como não-programática, mostrando-se avessa à escolas e

aenquadramentos formais. Neste sentido, poderíamos considerar hoje os marginais

comoestruturalmente marcados por experiências que refletem uma quebra geral de certezas e

fórmulas sejam elas políticas, literárias ou existenciais.

O termo "marginal" foi cunhado pela própria professora e não remete à noção de fora-da-lei,

como poderia supor o leitor mais desavisado. Na verdade, ele se aplica a autores que tinham

dificuldade para emplacar suas obras em editoras de grande porte. Não é à toa, portanto, que

eles foram imortalizados pela expressão "geração do mimeógrafo", já que se valiam dessa

máquina para levar ao público consumidor, de forma ágil e barata, livros de pequena tiragem

bancados por conta própria. Entretanto, "26 poetas hoje" é emblemático porque fez justamente o

contrário: abriu as portas do mercado editorial para a maioria dos que participaram da antologia.

Além disso, marginal era aquele que traduzia em versos de postura anti-intelectual os problemas

do seu cotidiano, revelando sintonia com as mudanças políticas e comportamentais por que

passava o país. Uma época de repressão e censura impostas pelo governo militar, mas também

um período de assimilação da cultura pop, que o Tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil

ajudou a introduzir.

É necessário fazer uma importante ressalva ao se analisar essa produção literária que marcou

os anos 70. Falar de poesia marginal não implica falar apenas de jovens inebriados por cinema,

cartoons e shows de rock. Ela não diz respeito somente a pessoas como Chacal e Charles, que

organizavam bem freqüentados recitais – as famosas "artimanhas" – e mergulhavam de cabeça

no ambiente de psicodelia típico daquela década. A antologia lançada por Heloisa Buarque de

Hollanda é prova disso. Constam dela escritores de pelo menos três gerações diferentes, com

valores e ideais distintos, mas que se irmanavam pela insatisfação com os anos de chumbo da

ditadura. Também se aproximavam pela utilização de "uma comunicabilidade direta, uma

linguagem cotidiana e nada rebuscada para expressar aquela realidade", explica Flávio Aguiar,

professor de literatura da Universidade de São Paulo (USP), que também participou dos "26

poetas hoje".

Por essa razão, soaria falso caracterizar a poesia marginal como um movimento. Até porque não

se percebe uma unidade ideológica, muito menos a manifestação de receitas sobre o modo de

se fazer literatura – como propunham os modernistas de 1922, encabeçados por Mario e Oswald

de Andrade, por exemplo. Tratava-se da partilha de um sentimento comum sobre uma realidade

hostil. "A grande qualidade da antologia da Heloisa foi revelar alguns poetas, mas o defeito

consistiu em colocar um rótulo em pessoas muito diferentes que estavam produzindo na mesma

época. Eles não se vêem como um grupo", garante Viviana Bosi, professora da USP.

Liberdade e repressão

Há quem diga que o ano de 1968 não acabou até hoje. Em Paris, durante o mês de maio,

centenas de milhares de jovens europeus tomaram as ruas da cidade com um objetivo no

mínimo ambicioso: mudar o mundo. Protestavam contra a manipulação exercida pelos meios de

comunicação de massa, lutavam pelo fim das discrepâncias entre homens e mulheres,

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defendiam a preservação do meio ambiente. Enfim, clamavam por uma sociedade mais justa e,

acima de tudo, livre.

No Brasil, as manifestações de Paris também ecoaram para valer e apimentaram o já temperado

caldeirão político da época. O país havia completado quatro anos sob o domínio da ditadura, e a

pressão social pela redemocratização se acentuava. No campo das artes, Chico Buarque, com

sua peça de teatro "Roda Viva", e Caetano Veloso, através de sua canção "É proibido proibir",

funcionavam como porta-vozes dos críticos do regime militar. Entretanto, em reação à crescente

insatisfação popular, o general e presidente da república Costa e Silva assinou o Ato

Institucional de n°5 (AI5), no apagar das luzes de 1968. Imediatamente, começou um nebuloso

período de perseguições e repressão aos inimigos do governo.

As mídias de grande circulação e as manifestações culturais de massa, como o cinema e a

música, sofreram mais com a censura dos órgãos militares do que a literatura. "A poesia nunca

foi formadora de opinião, e não tinha o poder de fogo das outras artes. Por isso, não existia tanto

controle. De qualquer maneira, ela agregou muita gente nos anos 70. Os recitais eram muito

concorridos. Hoje isso é impensável", analisa Heloisa. A poesia marginal também seguiu a trilha

aberta pela imprensa alternativa, de que se destacam os jornais "Opinião", "Movimento" e

"Pasquim". "Havia um clima muito receptivo no país a esse tipo de publicação devido à censura.

Era uma forma de resistência cultural contra um mercado editorial considerado anacrônico e

contra o controle imposto pelo regime militar", conta Flávio Aguiar.

O florescimento da poesia marginal é fruto do choque entre a atmosfera repressiva, no plano

político interno, e a metamorfose comportamental que se verificava em esfera mundial. "Imagine

o que é ter 17 anos em 1968, com a ditadura comendo solta? Meu pai foi preso depois do AI5. Aí

aparecem o movimento hippie, o festival de Woodstock. Eu precisava de um canal para

responder a todas essas informações, e o canal foi a palavra", conta Chacal. Havia um tom de

desilusão no ar com relação aos métodos tradicionais de luta pregados pela esquerda – que não

pareciam a resposta adequada à violência dos novos tempos. Por outro lado, a liberdade

individual defendida pelos jovens de Paris era um convite à rebeldia, não à revolução.

"Foi um momento de demolição de dogmas, uma resposta aos que acreditavam, com a melhor

das intenções, que o intelectual era irmão do operário para fazer a revolução. O que os dois

tinham em comum? Ambos estavam fora do centro social, mas cada um se encontrava isolado

no seu mundo", argumenta Viviana Bosi. O clima de desilusão e de crítica a esse discurso em

certa medida populista é evidenciado por um poema de Charles intitulado "Perpétuo Socorro":

"O operário não tem nada com a minha dor

Bebemos a mesma cachaça por uma questão de gosto

ri do meu cabelo

minha cara estúpida de vagabundo

dopado de manhã no meio do trânsito

torrando o dinheirinho miúdo a tomar cachaça

pelo que aconteceu

pelo que não aconteceu

por uma agulha gelada furando o peito"

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A ânsia de viver desregradamente, com cara de vagabundo dopado de manhã, rendeu à

geração de 70 o adjetivo de "desbundada" – trocando em miúdos, um grupo que queria tão

somente curtir a vida. Mas não eram apenas os jovens que enxergavam a necessidade de

repensar os métodos de militância política, ao fazer do próprio cotidiano a arma de protesto

contra o status quo. Na verdade, a poesia marginal nasceu da aliança entre esses poetas

influenciados pelo modo de vida alternativo da contracultura americana e os escritores que

vivenciaram o clima de disputa política profundamente ideologizada da década anterior. "Ao ler

Chico Alvim (um dos "26 poetas hoje"), que era marxista convicto, percebe-se que ele acha que

a retórica do Partido Comunista não tinha mais eficácia para a situação que se armou. Enxerga-

se a vontade de buscar uma saída, mas não a saída da revolução comportamental, como fez a

geração do desbunde", afirma Heloisa.

Traços estilísticos

À primeira leitura, a poesia marginal dos anos 70 parece resgatar propostas formuladas pelos

escritores que redefiniram os rumos da literatura nacional na Semana de Arte Moderna de 1922,

realizada em São Paulo: versos com toque humorístico e linguagem coloquial, que revelam

pouca preocupação com a métrica ou com a rima, e que retratam situações bastante cotidianas.

Entretanto, os marginais foram além nessa vontade de casar poesia e vida, deixando de lado o

politicamente correto e se valendo do efeito libidinoso e dos palavrões – tão corriqueiros, diga-se

de passagem, nas conversas entre as pessoas. É o que se pode ver nos versos de "Epopéia",

de Cacaso, professor universitário que exerceu uma certa liderança entre os marginais,

conquistando admiradores e popularizando esse tipo de produção no meio acadêmico:

"O poeta mostra o pinto para a namorada

E proclama: eis o reino animal!

Pupilas fascinadas fazem jejum"

Abordar temas terrenos e subjetivos consistia numa crítica ao que era considerado cânone na

época, como a poesia de João Cabral de Mello Neto, por exemplo. Na concepção de alguns

marginais, a literatura do mestre pernambucano tinha um caráter muito maquinal e tecnicista,

com versos bem acabados, porém pouco antenados ao dia-a-dia. Também representava uma

alfinetada no projeto estético do concretismo, criado pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos

e por Décio Pignatari, que defendiam a "morte" do verso convencional ao darem mais

importância para a espacialização das palavras na transmissão de uma mensagem – uma

poesia que privilegiava os efeitos de caráter visual. Além disso, os marginais não se

enquadravam no engajamento político-partidário da poesia produzida nos moldes prescritos pelo

Centro de Cultura Popular, da União Nacional dos Estudantes (UNE), durante a década de 60.

Mas, se a opção por uma linguagem coloquial e temas pouco complexos já havia sido praticada

pelos modernistas, e se a crítica à conjuntura política também já tinha sido feita antes, o que de

fato singulariza os marginais? Pode-se dizer que eles "desengravataram" a poesia, que desceu

do pedestal e passou a freqüentar ambientes não tão eruditos. O público fiel, composto

principalmente de universitários que freqüentavam a zona sul do Rio de Janeiro ou os cinemas

de São Paulo, identificou-se com aquela maneira espontânea e inocente de peitar as grandes

editoras. "Era difícil entrar no mercado. Mas, com o avanço das técnicas gráficas, fazer um livro

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de poucas páginas ficou barato, e o mimeógrafo se tornou a forma mais simples de reprodução.

Havia dificuldade para comercializar, e isso passou a ser feito de mão em mão, pelo próprio

autor, nas portas de restaurantes e teatros. A princípio era uma alternativa, depois virou uma

opção de recusa ao mercado tradicional", acrescenta Flávio Aguiar.

Legado

Quando Caetano Veloso, Gilberto Gil e companhia estremeceram a cena da música popular

brasileira com a Tropicália, no final da década de 60, estava claro que esse movimento

descendia diretamente da Antropofagia criada por Oswald de Andrade, quarenta anos antes. A

idéia de devorar as influências culturais vindas de fora, misturando-as ao pastiche de ritmos e

expressões genuinamente tupiniquins, demorou a ser digerida pela esquerda tradicional no país.

O som da guitarra era visto como uma verdadeira afronta aos valores nacionalistas e por isso

causou tanto alvoroço na época. Com a mesma ânsia que Caetano e Gil beberam da fonte de

um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, os poetas marginais da década de

70 também se apropriaram do canal de cultura pop desbravado pelos tropicalistas.

O piauiense Torquato Neto, que pertencia à linha de frente daquele movimento, é um dos

grandes responsáveis pela disseminação dos novos valores que deram o tom da produção

literária desenvolvida ao longo dos anos de chumbo da ditadura. Por essa razão, é considerado

um dos pais da poesia marginal. Entre 1971 e 1972, ele assinou a coluna "Geléia Geral" no

jornal "Última Hora", com textos que refletiam a efervescência contracultural que já havia

contaminado outras áreas, como as artes plásticas. Não é por acaso, portanto, que a

homenagem eternizada pelo slogan "seja marginal, seja herói", feita por Hélio Oiticica ao

traficante Cara de Cavalo, morto pela polícia em 1966, é considerada uma metáfora da aura

inquieta daqueles anos.

Apesar de se encontrarem autores independentes em diversas partes do Brasil, como São

Paulo, Belo Horizonte e Brasília, a poesia marginal na verdade é um fenômeno bastante

localizado, uma febre que assolou a classe média e universitária, que freqüentava a zona sul do

Rio de Janeiro. "Não acho que existisse um grupo coeso de poetas, mas pelo menos havia um

grupo. Isso também era devido à liderança exercida pelo Cacaso", afirma Flávio Aguiar. Foi

nessa região da capital fluminense que surgiram círculos de autores que se reuniam para lançar

publicações de poesia, como a revista "Navilouca" e a coleção "Frenesi", produzidas com

recursos próprios e vendidas de mão em mão. É no Rio de Janeiro também que surge a Nuvem

Cigana, um grupo formado não só por poetas, como Chacal e Ronaldo Bastos – parceiro de

Milton Nascimento em diversas composições –, mas também por pessoas como o cantor

Paulinho da Viola e o jogador de futebol Afonsinho, que se reuniam para organizar artimanhas e

eventos culturais de todo tipo.

Atualmente, o legado da poesia marginal pode ser visto sob diversos ângulos. No campo

específico das letras, o número de teses acadêmicas sobre autores como Chico Alvim e Ana

Cristina César só fazem crescer. "É bastante irônico. Na década de 70, eles não eram

considerados literatura, mas hoje são parte do cânone, viraram oficiais", afirma Heloisa. Outros

buscaram novas formas de expressão artística e acabaram migrando para a televisão, como é o

caso de Chacal e Charles, que se tornaram roteiristas da Rede Globo. Além disso, diversas

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composições de sucesso, consagradas nas vozes de cantores bastante populares como Edu

Lobo, Moraes Moreira, Lulu Santos e Adriana Calcanhoto, foram feitas em parceria com os

poetas marginais.

É difícil resumir o espírito alvoroçado daquela época, em que a poesia preencheu uma parte do

vazio deixado pela repressão ostensiva aos movimentos organizados de contestação política. Os

marginais oscilam entre a necessidade de se libertar e a tensão por não se deixar controlar, mas

todos são reféns das suas individualidades, o que impossibilita qualquer generalização. "A

poesia marginal é um saco de gatos", brinca Chacal. Talvez também seja "como se todos

estivéssemos escrevendo um poema a mil mãos", como escreveu Cacaso.