Relato de campo: Caminhada etnográfica pela região do...

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1 Relato de campo: Caminhada etnográfica pela região do Bixiga, atividade do Curso Sesc de Gestão Cultural, do Centro de Pesquisa e Formação, no dia 04/11/2016. O trecho percorrido teve inicio às 16h00 na subida da rua Cardeal Leme, seguiu por dentro do bairro até a Treze de Maio de onde voltou ao ponto de partida, terminando às 18h30. Relato: José Guilherme Magnani Terminada a palestra “Identidades e Diversidade Cultural, o grupo desceu até a Nove de Julho, em frente ao prédio do SESC. Inicialmente era um bloco compacto e a ideia era que eu, mais Flávia, Eder e Edson do CPF, formássemos sub grupos, para facilitar o deslocamento e diversificar as observações; mas a caminhada tem lá sua lógica e logo os participantes se agruparam segundo seu próprio ritmo do andar e parar e das afinidades pessoais. Registrei uma primeira cena, que logo iria se repetir ao longo do trajeto: uma grelha com churrasquinho; afinal, era uma sexta-feira, final de tarde... A primeira parada foi diante de uma casa de artigos religiosos, basicamente de Umbanda e Candomblé, em frente à quadra da tradicional escola de samba Vai-Vai. Exus, pombagiras, caboclos e pretos-velhos ocupavam as prateleiras e a vitrine, além de poções, unguentos, alguidares, guias coloridas, instrumentos de percussão e demais objetos usados nos cultos: uma antecipação da visita já programada ao ilê Axé Iyá Oxun, do babalorixá Francisco de Oxun, mais acima. Equipamentos a escola de samba, a loja de produtos religiosos e o terreiro de candomblé que remetem a uma das faces do Bixiga, a presença negra e suas tradições.

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Relato de campo: Caminhada etnográfica pela região do Bixiga, atividade do

Curso Sesc de Gestão Cultural, do Centro de Pesquisa e Formação, no dia

04/11/2016. O trecho percorrido teve inicio às 16h00 na subida da rua Cardeal

Leme, seguiu por dentro do bairro até a Treze de Maio de onde voltou ao ponto de

partida, terminando às 18h30. Relato: José Guilherme Magnani

Terminada a palestra “Identidades e Diversidade Cultural”, o grupo desceu até a Nove

de Julho, em frente ao prédio do SESC. Inicialmente era um bloco compacto e a ideia

era que eu, mais Flávia, Eder e Edson do CPF, formássemos sub grupos, para facilitar o

deslocamento e diversificar as observações; mas a caminhada tem lá sua lógica e logo

os participantes se agruparam segundo seu próprio ritmo do andar e parar e das

afinidades pessoais. Registrei uma primeira cena, que logo iria se repetir ao longo do

trajeto: uma grelha com churrasquinho; afinal, era uma sexta-feira, final de tarde...

A primeira parada foi diante de uma casa de artigos religiosos, basicamente de

Umbanda e Candomblé, em frente à quadra da tradicional escola de samba Vai-Vai.

Exus, pombagiras, caboclos e pretos-velhos ocupavam as prateleiras e a vitrine, além

de poções, unguentos, alguidares, guias coloridas, instrumentos de percussão e demais

objetos usados nos cultos: uma antecipação da visita já programada ao ilê Axé Iyá

Oxun, do babalorixá Francisco de Oxun, mais acima. Equipamentos – a escola de

samba, a loja de produtos religiosos e o terreiro de candomblé – que remetem a uma

das faces do Bixiga, a presença negra e suas tradições.

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A outra face do Bixiga veio em seguida: ao me deparar com uma senhora, visivelmente

curiosa com nossa movimentação, resolvi abordá-la e contar o que estávamos fazendo

ali. A conversa engrenou e ela fez uma alusão a seu pai, já doente, que estava no interior

da casa. Olhei pela janela e logo se assomou o sr. Atílio Pozzo, que não se fez de

rogado para encarar a multidão que se juntou diante de sua janela. Creio que muitos dos

caminhantes registraram diferentes trechos da conversa; chamou-me a atenção, contudo,

a disposição daquele velho morador do Bixiga dos imigrantes italianos: 94 anos,

aguentou firme o assédio e chegou a cantar um tango!

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A próxima parada, programada de antemão, foi a visita ao ilê Axé Iyá Oxun, do

babalorixá Francisco de Oxun, já citado. Deu-nos um chá de cadeira – estava atendendo

a uma consulente e finalmente apareceu, todo paramentado: de branco, turbante e adjá

numa das mãos. De certa forma repetiu a fala proferida na caminhada do ano anterior (a

toda hora interrompida pela ida e vinda de seus cachorros pela sala, conduzidos pelos

ogans): histórico da casa, de sua iniciação, sua inserção no bairro. Falou, falou... Edson

tentou várias vezes lembrar que nossa programação continuava, mas em vão; quando

uma das participantes perguntou qual a diferença entre candomblé e umbanda, aí então

que soltou o verbo... Pelo visto o interesse da plateia era grande e no final ele ainda

ofereceu canjica! Sem dúvida, o timing ali era outro, diferente do previsto pelo CPF...

Finalmente, seguindo o roteiro, pudemos chegar até a nascente do rio Saracura –

devidamente soterrado, como a maioria da rede fluvial na cidade – e ladeado de

serviços de lava-carros. Ali ao lado, um estabelecimento meio comercial, meio moradia,

com imenso cartaz sobre o desaparecimento de um gato. Até esse trecho da caminhada,

o que mais chamou a atenção foi o ecletismo das habitações, dos serviços, dos

equipamentos, como se pode ver nas fotos:

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Subindo a ladeira da Rua Veloso Guerra, encontramos casas mais elaboradas,

devidamente gradeadas, com os carros de seus moradores praticamente colados à

entrada. Algumas, verdadeiros castelinhos de variados estilos; no topo, o Teatro Ruh

Escobar, um tanto destoando desse conjunto. Detivemo-nos na escadaria que liga a rua

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dos Ingleses e a Treze de Maio, pois uma parte do grupo tomou outro rumo e ali

ficamos no aguardo, numa espécie de “não lugar”, segundo o conceito de Marc Augé

(1994): bastante pichado e ermo; eu o denominaria, contudo, um pórtico, cheio de

marcas e sinais contraditórios, separando duas manchas (Magnani. 2012):

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A rua Treze de Maio inaugura um novo pedaço nessa mancha até então sinuosa e cheia

de subidas e descidas: retilínea, plana e já com os conhecidos restaurantes de culinária

italiana; nesse sentido, dialoga mais com a cidade, enquanto a parte anterior é auto-

contida, de certa forma mais percorrida por seus moradores e usuários habituais. Pode-

se dizer que essa parte da Treze de maio faz parte de um circuito mais amplo, o circuito

gastronômico paulistano: Cantina Roperto, Mamma Celeste, Pizzaria Speranza,

Lazarella, entre outros estabelecimentos do gênero.

Depois de uma polêmica sobre se encerrávamos a caminhada com uma cerveja, para

compartilhar as vivências, ou voltávamos para o CPF onde fecharíamos as atividades,

decidiu-se por esta última alternativa – comida e cerveja ficariam para depois –,

deparamo-nos com outro equipamento característico do Bixiga: a Igreja de Nossa

Senhora de Achiropita. Sugeri que entrássemos, afinal daria um bom contraponto com o

terreiro do pai Francisco.

Havia certa movimentação e resolvi perguntar o que ia acontecer a umas senhoras que

estavam atarefadas arrumando um dos altares laterais. Era a última sexta feira do mês,

explicou, data em que o Apostolado da Oração, tradicional associação de leigos devotos

do Sagrado Coração, comemora com missa e comunhão. Convidei algumas das

participantes para entrar na conversa e aproveitei para tirar uma foto de uma dessas

senhoras, a quem pedi que pusera a fita vermelha, símbolo da associação; no outro lado

da igreja, uma jovem absorta, rezando frente à imagem da Virgem Maria..

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Era certamente um ponto de outro circuito, o das igrejas católicas. Cabe assinalar que

há nexos entre circuitos diferentes: basta lembrar que o próprio pai Francisco relatou ter

sido convidado pelo pároco dessa igreja para participar de uma cerimonio católica,

mas com nuances de seu próprio culto, a Missa Afro.

Por fim, já na reta final em direção ao CPF para o encerramento da atividade, o registro

de um anúncio simples, que contrasta com a sequencia dos restaurantes badalados,

ratificando a heterogeneidade da dinâmica dessa mancha, com seus personagens,

serviços e equipamentos de diferentes escalas:

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Conclusão

Ainda que não seja do escopo do relato de campo estabelecer conclusões,

principalmente pelo fato de ter sido uma só experiência, em determinado dia e horário,

algumas observações podem ser registradas pois, em comparação com as dos demais

participantes, permitem caminhar na direção de uma visão mais abrangente.

A primeira que me ocorre é uma comparação entre esta caminhada e a da rua Augusta,

feita em 2013 no mesmo contexto do Curso Sesc de Gestão Cultural: lá, entramos mais

em contato com os atores sociais, os frequentadores das diferentes formas de encontro e

desfrute na tradicional mancha de lazer que é a região do “Baixo Augusta”, numa sexta

feira, já no começo da noite. Aqui, nosso contato foi mais com a paisagem urbana, as

edificações, os equipamentos – a igreja, o terreiro, a loja, o museu, a escadaria. Duas

manchas urbanas, quase contíguas, mas com dinâmicas bem diferentes.

Se, como foi assinalado acima, os restaurantes da Treze de Maio fazem parte de um

circuito mais amplo, o circuito gastronômico, foi possível registrar mais três: o dos

templos católicos com a Igreja de N. Senhora de Achiropita; o do samba, com a Escola

Vai Vai e finalmente o dos cultos afro-brasileiros, com o terreiro do babalorixá

Joaquim de Oxun. Ou seja, aquele pequeno trecho, aparentemente autocontido, com

seus pedaços (o “seu” Abilio, o pai Francisco, o dono do gato desaparecido, a

churrasqueira...), encravado em ladeiras e descidas, mantém diálogo com a cidade por

meio dos pontos, ali localizados, que fazem intersecção com os respectivos circuitos.

Segundo os diferentes calendários, esses equipamentos ora funcionam nos limites da

mancha (as missas dominicais, as cerimonias habituais do terreiro), ora extrapolam: a

festa anual em honra de N.S. de Achiropita, que atrai devotos da cidade toda (e

apreciadores da comida italiana preparada pelas mammas e nonas); a comemoração a

Oxun, em seu dia litúrgico, e assim por diante, para não falar dos ensaios durante o ano

em contraposição ao desfile do Carnaval, no caso da Vai-Vai.

Certamente uma caminhada na segunda feira de manhã, por exemplo, mostraria um

cenário diferente; como afirmou Geertz (1978), a análise cultural não termina nunca,

sempre volta para as mesmas coisas; é intrinsecamente incompleta “e, o que é pior,

quanto mais profunda, menos completa”... (op. cit: 39). Claro, essa última frase soa

mais como uma provocação, pois a partir de certo acúmulo de registros tem-se um

corpus consistente a partir do qual é possível descrever as regularidades das dinâmicas

observadas.

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Bibliografia citada

AUGÉ, Marc – Não lugares: introdução a uma Antropologia da supermodernidade.

Campinas, Ed. Papirus, 1994

GEERZT, Clifford – A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978

MAGNANI, José Guilherme C. – Da Periferia ao Centro: trajetórias de psquis em

Antropologia Urbana. São Paulo, Editora Terceiro Nome, 2012

São Paulo, novembro de 2016

José Guilherme Cantor Magnani