Relatório fdht 2015
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FÓRUM DOS DIREITOS HUMANOS E DA TERRA
Coordenação
Centro Burnier Fé e Justiça - CJCIAS
Rua do Ouro nº 64,
Araés, Cuiabá, MT
CEP: 78005-675
Fone (65) 3023-2959 // cel. 9664-2331
E-mail: [email protected]
Relatório disponível em: http://direitoshumanosmt.blogspot.com.br/p/relatorios-fdht.html Relatório dos Direitos Humanos e da Terra: Mato Grosso 2015 Coordenação: Inácio Werner e Michèle Sato Comissão de leitura: Eveline Werner Rodrigues, Herman Oliveira, Inácio Werner, Michèle Sato e Paulo Cesar Moreira. Capa: Regina Silva Editoração: Herman Oliveira Revisão gramatical: Eveline Werner Rodrigues Colaboração: Fernando Xavier e Carlos Freitas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
R382 Relatório dos direitos humanos e da Terra: Mato Grosso 2015/ Inácio Werner,
Michèle Sato (Orgs.). – Cuiabá: Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso, 2015.
138 p.: il. color.; 31 cm. ISBN 978-85-913365-3-1 Inclui bibliografia
1. Direitos humanos - Mato Grosso. 2. Mato Grosso - Ocupação territorial. 3. Conflitos socioambientais. 4. Direito da terra. I. Werner, Inácio, org. II. Sato, Michèle, org.
CDU 342.7+349.41(817.2)
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Carlos Henrique T. de Freitas – CRB-1 2.234
QUEM SOMOS
1. Associação Brasileira de Homeopatia Popular, ABHP 2. Associação Brasileira de Saúde Popular -ABRASP/BIO SAÚDE 3. Central Única dos Trabalhadores, CUT 4. Centro Burnier Fé e Justiça, CBFJ - CJCIAS 5. Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade, CDHHT 6. Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos de Mato Grosso, CEBI-MT 7. Centro Pastoral para Migrantes, CPM 8. Conselho Indigenista Missionário, CIMI MT 9. Coletivo Jovem de Meio Ambiente, CJMT 10. Comissão Pastoral da Terra, CPT- MT 11. Conselho Nacional do Laicato do Brasil, CNLB 12. Comunidades Eclesiais de Base, CEBS- Regional Oeste II 13. Escritório de Direitos Humanos da Prelazia de São Félix do Araguaia 14. Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional; FASE 15. Fórum de Lutas das Entidades de Cáceres, FLEC 16. Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento, FORMAD 17. Grupo de Estudo Educação Merleau-Ponty – GEMPO UFMT/IE 18. Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação – GPMSE UFMT/IE 19. Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte, GPEA-UFMT 20. Instituto Caracol, iC 21. Instituto Humana Raça Fêmina, INHURAFE 22. Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, MST 23. Movimento Nacional de Direitos Humanos, MNDH-MT 24. Movimento dos Trabalhadores Rurais 13 de Outubro 25. Operação Amazônia Nativa, OPAN 26. Pastoral Carcerária, PC 27. Rede Mato-grossense de Educação Ambiental, REMTEA 28. RuAção- Núcleo Interinstitucional Merleau-freiriano (UFMT) 29. Sindicato dos Trabalhadores no Ensino o Público de Mato Grosso, SINTEP 30. Sociedade Fé e Vida – Cáceres 31. Universidade Federal de Mato Grosso, UFMT
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PREFÁCIO
Estamos no olho do furacão. Tempo agônico - vida e morte, angústias e esperanças:
estas coisas opostas que jamais se desgrudam, sobremaneira, no limite dos limites. Poucos
meses dilaceraram o país. E o fizeram por destruírem a Política. Política é REL-AÇÃO.
Quebrada, ela quebra; calada: silencia, estanca o sentido. Sobra só delírio, só! Delírio
furioso. Violência cruel, destrutividade de tudo e todas e todos, autoflagelação.
O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro"1.
O Capitalismo nasce disso: a entropia, o encaramujamento do ser em si mesmo,
como absoluto Só a vida Política cria, fecunda, gera o universo, o diverso e o pluriverso.
A implosão ou explosão da Política é o aniquilamento de tudo que não seja Eu
absoluto e soberano. O capitalismo é uma religião regressiva, agressiva e incivilizatória,
cujo “Deus é o Dinheiro-e-eu-absoluto!” (Benjamin). Tom Zé dizia exatamente isso:
“Quando Deus quer perder um sujeito, dá muito dinheiro para ele”.
A financeirização da vida já não vale o canto de que “tudo o que move é sagrado!”
Todo o contrário, porque a Modernidade que gerou o capitalismo, dissera Touraine,
instaurou a guerra - “A guerra da Ordem contra o Movimento”. Faz isso sentido para o
presente relatório-denúncia?
Faz todo o sentido. Significa que nada que vive e pode viver é sagrado. O capital e
o capitalista dizem reiteradamente: “Não te quero vivo!” Bancos nacionais e
internacionais são farejadores de sangue e suor humano, tudo o que ainda não se tornou
objeto, mumificado, reserva de mercado. Produzem um não-eu-mercadoria que funciona
como portador da destruição da vida de todos os outros e outras. Toda alteridade perece
e assassinada, liofilizada, trata-se da nadificação do SER e dos entes. Marx e Engels
asseveram: “Tudo o que é solido se desmancha no ar!”2.
Há a esperar o que deste regime? Só expropriação, exploração e acumulação
privada vampiresca do suor e sangue do todo outr@. Direito vivo, achado na rua, jamais
rimará com a “ordem democrática” que temos, da qual ela é avessa.
É difícil compreender que toda a VIDA possa ser tão odiada, tão espezinhada e
aviltada. Nada pode ter cor, cheiro, fome, querer, desejo sem que seja sacrificado. O
encontro com o Capital é a exoneração da vida humana e de toda a VIDA. Pacto com a
Morte pela in-DIFERENÇA. Seu fundamento é o Totalitarismo do mesmo. Os oprimidos
serão interditados, nos corredores de onde circulam os bens necessários para se viver,
privados de toda prerrogativa, indigência e dignidade, e de tudo o que funda sua
1 Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgio-agamben 2 Manifesto do Partido Comunista.
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existência: Trabalho, Terra/Território e Teto. Os que estão no poder, o zumbizama, orgia
da delinquência, prevalece como estrutura de (DES)ordenamento pela raiva e podridão
do “Olimpo” – paraíso dos deuses gregos. Os deuses gregos sofriam da mesma doença:
moria (Loucura). Castravam pessoas ou colocavam répteis e águias que lhes comessem
eternamente o fígado caso alguém ousasse perturbar-lhes a sesta. Estamos às portas do
Olimpo: “Os Deuses estão loucos” – título paradigmático de filme que exprime a violência
da cultura capitalista que administra as casas do povo, onde quer que se encontrem: na
lógica indecente dos soberanos de papel. São de Papel, mas são soberanos, mas... de papel!
– nos inspira Mao Tse Tung3. O capitalismo é uma tara. Esse é o panorama que
contemplamos dia e noite, daqueles que se venderam e se tornaram sórdidos e perigosos,
interditada a solidariedade, a compaixão, a busca de organização para se poder viver.
Há um só projeto único fadado à vitória: a extinção - desaparecimento de todos e
todas, para que a lógica lembrada por Sartre se concretize: “O inferno são os outros!”4.
Essa é a fisiologia predominante das casas do povo, inçadas por sumos-sacerdotes da
maldade, “saúvas”, lembrando de Antonio Callado5, justificados pelo deus ‘Dinheiro’, que
instrumentalizam o Deus vivo, em uma teologia da prosperidade, em que não há lugar
para a cruz, salvo para malvados e infiéis. Deus há muito ficou fora do jogo. Isso sugere a
bela teologia de Glauber Rocha, em filme irônico: “Cada um por si, e Deus contra todos!”6.
Ler este relatório do Fórum de Direitos Humanos e da Terra nos envergonha, bem
como todos e todas militantes da luta pelos Direitos Humanos. Nos fornece um espelho
não do que as ‘saúvas’ devoram do país, mas da destruição da política: o que nos
engrandeceria e nos dignificaria é estraçalhado raivosamente, o diverso, o não alinhado,
relembra-nos a origem primeira do termo PESSOA (PROSOPON) - o que se contrapõe,
conforme Emanuel Mounier7. Esta miséria se faz com a gente, nos mata, nos globalizou.
Ninguém está fora, todos, todas, tudo está dentro e também geramos a geleia geral de uma
república sem pessoas. Não podemos mais afirmar nossa imaculada conceição ou de
quem quer que seja, já não adianta apontar, também nós, o outro, a outra, todos e todas
estamos juntos, até o fim, nisso: um processo de demissão de nossa singularidade para
virarmos o cidadão insosso e genérico da “Revolução das Luzes” – massa de manobra que
somos, sob tentáculos dos déspotas iluminados. Não à modernidade clássica e sua filosofia
ditatorial de genérico Universal. Qual o fio que desenrola o novelo? Afirmação da vida em
sua crua singularidade e diferença. Reconhecimento da alteridade que nos precede e nos
confere vida e oxigênio. Afirmação de que só haverá política no duro embate e no difícil
poliálogo, em que, de antemão, ninguém se pretenda santo, gente de bem e inocente.
Danilo Streck diz, não será o “Candido” de Rousseau que poderá mudar o sistema.
É o reconhecimento da OUTRA e do OUTRO – particularmente o mais machucado, o mais
destruído, que reconheceu a própria fragilidade, renegou ser soberano dos outros e
3 Sobre as justas contradições no meio do povo”; 1951. 4 Huis clos, 1945. 5 Quarup, 1967. 6 Inclusive usado por W. Herzog em seu filme: O Enigma de Kaspar Hauser. 7 O Personalismo, 1932.
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outras, atento ao cuidado a cada gesto, a cada passo. A busca incessante da difícil
comunhão pressupõe toda a diferença jamais negada, e a luta em nós, com todos, todas e
tudo, implica “...não estraçalhar a cana rachada nem o pavio que ainda fumega”8: porque
vida é um princípio constantíssimo (GIORDANO BRUNO). É preciso urgentemente ir
muito além da JUSTIÇA, ela se acostumou com o justiceirismo; com a vingança; promoveu
massacres, paredões e genocídios praticados por soberanos. Ela já não basta. Não é
possível manter o “Olho por olho, dente por dente – dizia Gandhi - ou todos ficaremos
cegos e desdentados”. É preciso descobrir a força da PALAVRA em carne, criadora, que
inclua a REL-AÇÃO com a ALTERIDADE e OUTREIDADE, e nela a compaixão, como
semente do coração da política. Só a Palavra grávida com o pé nu na realidade caótica, em
comunhão com os mais violentados, acreditará no sentido do caminho. Já não existem
avenidas fecundas, há que sangrá-las com um atalho revolucionário por sobre o nada. Já
não é hora de ter mapas e bússolas aferidos com qualidade total: elas mentem: apontam
só para o NORTE! Isaías olhava à tardinha de sua panela de barro a fumaça, e nela Deus
lhe dizia: “o Perigo vem do norte!” Fizeram aliança com os Egípcios contra os Assírios, e
terminaram escravos de Nabucodonosor.
A financeirização da vida é a lei suprema do Capitalismo. A vida vale nada, não. As
economias locais, de países, e globalmente espraiadas, têm impactos diretos no cotidiano
de todos e todas, com vistas a sufocar os que foram sequestrados do poder, na perspectiva
de lhes retirar o poder real de mudar as coisas de rumo. Ora, o que lhes tiraram é a
‘representação’ – e tem feito diuturna e descaradamente com as mulheres no parlamento.
Só que a representação do sistema é um fantasma! Representação do quê? Aquele que
representa não é a coisa representada. O poder que aí está é um engodo. Emerge sempre
no consenso de uma esfera de poder alardeada e enganosa de ‘democracia’ na qual
aqueles que poderiam mudar, não terão acesso legal. A representação, por isso, não se
flagra que está nua, por isso a raiva das saúvas.
O Papa Francisco, no final do Evento voltado aos movimentos sociais, na Bolívia, lembrou que a chamada “democracia era uma ditadura sutil! Afirmou, sem pestanejar... “Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que ‘geme e sofre as dores do parto’”9 - lembrava o Papa. “Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra10. O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos” (afirmava). E ao ouvir as pessoas e suas lutas e sofrimentos, dizendo que precisavam do apoio do Papa para poder para mudar o sistema o Papa disse que perguntas ouvira e as respostas que tinha:
O que posso fazer eu, catador, lixeiro, reciclador, frente a tantos problemas se mal ganho o suficiente para comer? O que posso fazer eu, artesão, vendedor ambulante, caminhoneiro, trabalhador excluído se nem sequer tenho direitos trabalhistas? O que posso fazer eu, camponesa, indígena, pescador que mal posso resistir o avassalamento das grandes
8 Mt. 12, 20ss. 9 Rm 8, 22. 10 Gn 2, 7.
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corporações? O que posso fazer eu, desde minha vila, meu barraco, meu povoado, meu assentamento, quando sou diariamente discriminado e marginalizado? O que pode fazer estudante, o militante, o missionário que percorre as favelas e periferias com os corações cheios de sonhos, mas quase nenhuma solução para meus problemas? (Respondendo) Muito! Podem fazer muito. Vocês os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podem e fazem muito. Ouso dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, em suas mãos, em sua capacidade de organizar-se e promover alternativas criativas, na busca cotidiana dos três "T" -trabalho, teto e terra. Não se intimidem (Papa Francisco, encerramento do Encontro de Movimentos Sociais na Bolívia).
Não nos deixemos enganar. Agamben diz que a democracia é uma ‘palavra de
ordem’. Vazia. O que vige entre nós, de verdadeiro, é um ‘estado de exceção’!
Agamben afirmava que pobres, marginalizados, pessoas ‘cortadas’ (HOMO
SACER/MULIER SACER) do reconhecimento da sua condição de humanos, são
identificados como trastes, lumpens, desprezíveis, perigosos, subversores da ordem do
sistema. E, neste sentido, são destinados a casos de polícia.
Agamben alerta que o sistema se legitima pelo discurso da ser a face visível da
“ordem legal”, como se ela fosse um objeto definível, concreto. No entanto, se ela amarra
os “normalizados” à sua mumificação e amortecimento; ela, a mesma “ordem”,
efetivamente, faz o contrário. Suspensa aos considerados não humanos, ela pré-destina a
eventual revolução deles ao limbo social ou ao inferno do sistema. O sistema usa com
todas as letras o “Estado de Democrático de Direito” como escudo para manter a “ordem
legal” exercida perversamente contra os párias escolhidos e marcados a ferro em brasa;
destinando-lhes à exclusão absoluta do direito de ter direitos11. Eles e elas não são
contadas entre pessoas “legais”. Nem seus meios de vida, na melhor da hipóteses
“informais”. São matáveis, morte justificada que se mata neles o prejuízo que eles próprios
destinam a si, o de manterem-se à margem e fora da lei. Que lei temos? Quem as cria? Para
quem? Contra quem? Essa é a grande mentira! “A Lei mata, [...] é o espírito que vivifica.”12.
O aparato legal os nega. Os ilegaliza por sua existência.
A Lei da hegemonia do capital para os que estão vivos e insurgentes é a morte. Se
retira deles toda a defesa, a vida e as condições de poder viver, - o que Benjamin e
Agamben chamam de “vida nua”. Tornando-os vulneráveis e alvos fáceis da culpa e
condenação. As pessoas com vida nua são as únicas pessoas que sofrem os rigores da lei,
na carne, sem qualquer piedade. Jamais a Lei do Capital será utilizada contra o Rei e seus
amigos apaniguados. A Lei existe, em última análise, para servir aos opressores
destinando aos espoliados, e que já se encontram nas masmorras e nos labirintos do
sistema, selar seu desaparecimento.
Apenas por isso o distintivo da fidelidade integral à ORDEM é acatado pelos
“homens de bens”, como pauta de procedimento ético, num Sistema que nunca soube
11 ARENDT, A condição humana, 2008. 12 Cor. 2, 3ss.
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exatamente o que ÉTICA pode vir a ser. Supliciado e executado pelo Nazismo, o Pastor
Dietrich Bonhoffer cujo depoimento13 no cárcere é uma convocação à luta - pôs o dedo na
chaga: “Esse sistema não merece minha verdade!”.
Cabe, hoje, a todos e a todas, um nível ético maior do que aquele sob o qual as Leis
se pautam. Perguntarem-se a quê elas vieram? Resultam de quê? Contra quem? E a favor
de quem?... Mas também ter presente que, em qualquer Fórum Internacional de Justiça
decente, estabelece por isso, como legítima, a objeção de consciência! Ninguém pode
cumprir ordens, ou aceitar como caminho de ação, uma ação que julgar imoral ou
perversa. Neste sentido, careceremos urgentemente de uma educação que se torne um
novo patamar de referência de ética dos movimentos sociais, que quebre a espinha dorsal
do sistema. Estabeleça o direito formal e explícito a se contrapor ao injusto e imoral, e não
seguir leis que apontam o caminho da exclusão e morte.
Recentemente, foi apontado pelo Papa Francisco a coragem do Bispo de El
Salvador, Dom Oscar Romero, beatificado pelo Papa há cerca de mês e meio, que foi
assassinado traiçoeiramente durante a Missa que celebrava, quando levantava o cálice em
uma missa por uma senhora idosa que havia falecido em um asilo de idosos e idosas, por
trás do vitral o alvejaram à morte. D. Oscar teve a coragem de dizer pela rádio ao soldados
do Exército Salvadorenho: “Eu lhes peço, eu vos suplico e vos ordeno: cessem a
repressão!”. E, também por usar os microfones da rádio para dizer aos soldados que
“deviam desobedecer às ordens de matar seus irmãos e semelhantes”. Ora, o Estado de
Direito hoje vigente no país encobre toda execução dos oprimidos, na prática, por vontade
dos “homens de bens”, que escondem o rosto e julgam que não incorrem em crime.
Exultam porque não mataram humanos, mas coisas, trastes, escória, ralé. Nesta leitura, é
possível compreender que o Estado dispõe de meios tanto de investigação, como
esclarecimento destes assassinatos, no entanto, operam sob a sombra da legitimação.
Matam-se como traficantes só no ‘Morro de Alemão’, e jamais na Rocinha! A mesma
violência e genocídio, encobertos, ambos, sob a capa da cínica e indecente da violência
legal, volta-se aonde as pessoas estão expostas à maior desproteção. E cria-se
artificialmente, pela divulgação mentirosa, espaço reservado simbólico infernizador que
permite justificar a necessidade de sangue para aplacar os Deuses-Hidras, e fazer daquele
espaço uma unidade de demonstração da violência escancarada, sem decoro. Na prática,
os extermínios de lavradoras e lavradores, de posseiros, sequestro de crianças indígenas
desaparecidas, e indígenas homens e mulheres, nas rodovias ou nos cercos construídos
pelos ‘falcões’ que dominam a “república”, são legitimados – inclusive os territórios
imemoriais com papéis forjados, ou assentados em muitos lugares ao mesmo tempo, para
esquentar roubo de terra. O fato alardeado de que atrapalham o agronegócio, as
mineradoras, os grandes cartéis sempre protegidos por dispositivos artificiosos de
grande progresso da nação e do país, nunca se perguntam: “progresso” para quem, cara
pálida? De outra, criar leis não implica que elas sejam justas, menos ainda legítimas,
inclusive porque os fazedores das leis são os que quebram os interesses nacionais, e as
13 Resistência e Submissão em: http://www.sociedadebonhoeffer.org.br/resistencia.htm
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fazem de encontro à constituição, quebrando cláusulas pétreas, em sessões repetidas na
mesma noite: não aceitam perder! Governos, no Mato Grosso, diziam que nada faziam de
ilegal no poder, posto que pariam leis como mortalhas para uma ética caiada. Se
extermínio humano é crime imprescritível, contudo, os promotores de massacres
continuam impunemente a comete-los, dia após dia, contra os pobres, expropriados,
favelados, indígenas. Estão em nome - de que Deus? - e do Estado e da Lei deles,
respaldados por mecanismo legais, que protelam julgamentos dos crimes bárbaros, pelos
anos que forem necessários, até estiolar todos os prazos legais de poder aparecerem com
a cara que tem: bandidos! As duas medidas e dois pesos utilizados de maneira
discricionária, muito frequentemente, guiando-se por um princípio de suposta
universalidade, por uma justiça cega, - eles, funcionam à maravilha - servidores e
servidoras que ‘também não enxergam diferenças’, à imagem e semelhança da modelo
inspiradora. Para os capitalistas abarrotados de bens e privilégios, todos os crimes, no
atacado, sempre prescrevem antes do julgamento; mas ‘crimes,’ no varejo, cometidos
por adolescentes, negros, mulheres, indígenas, sentenciados nos presídios, sem terra, e
militantes dos movimentos sociais, que ordinariamente são crimes dos que lutam contra
uma sentença de morte, perseguição, saque, extorsão, ameaças, escravidão, ou
sobrevivência no limite, possuem de seu no máximo as ruas - que costumam à revelia da
lei não ser públicas -, e em antros que as cidades ainda não lhes tiraram, para buscar, em
bandos para diminuir o extermínio diuturno; para estes e estas, seus crimes são sempre
‘imprescritíveis”! Se forem negros, católicos, indígenas... suas penas parecem sempre
serem aumentadas e não diminuídas.
Ninguém vê isso? Isso é invisível? Não é.
Ano após ano, o Brasil é condenado, já está sendo em 2015 pelo excesso de
execuções e extermínios pseudo-legalizados e, por isso, está também, OUTRA VEZ, neste
relatório do Fórum de Direitos Humanos e da Terra e do conjunto dos movimentos sociais,
denunciando aos organismos públicos no Brasil e também organismos internacionais que
cuidam dos Direitos da Pessoa Humana e da Terra. Por quê? Não existe vontade política
de que seja diferente.
ALIÁS, não se trata sequer de vontade, o que sequer existe é POLÍTICA sem
qualquer adjetivação outra.
A Política sempre foi alvo de extinção, no capitalismo. O que mais desagradou da
palavra do Papa Francisco na Bolívia foi ele ter dito, com todas as letras, que a VIDA toda,
e toda vida, já não pode viver nem sobreviver neste sistema!
Os mais pobres são destinados à morte ‘Severina’. Destinados aos sacrifícios
sangrentos e, ao desaparecimento diuturno, sob o tacão do Estado, com ‘lavagem das
mãos’ por “autoridades” do Judiciário; e sob um covarde silêncio, inclusive, do Ministério
Público. Essa é a essência do que se conclui da ação da polícia no Rio de Janeiro,
legitimando extermínio, racismo ambiental, higienização de negros, cuja maioria quase
absoluta dos assassinados eram jovens e inocentes! Tinham um agravo: eram pobres e
negros. Em um único lugar demonstrativo, Rio de Janeiro, foi denunciado publicamente,
9
pelo delegado de Polícia e pesquisador Orlando Zaccone, com depoimento público e
fundamentado em dados, e acessível a quem não viu, veja14. Havia, pois, conivência deste
mesmo aparato da ‘democracia’ com extermínio premeditado e cruel ‘relacionando’
pessoas das favelas e drogas como traficantes, para legitimarem o provável assassinato.
A cultura de que negros e pobres sempre podem dar margem de serem ordinariamente
traficantes e não ‘usuários’, envolve estratégia da polícia de, reiteradamente, pôr a droga
junto aos pertences dos detidos, sugerindo um julgamento a priori, que legitimaria
perante a opinião pública a execução. Execução de negros, pobres, favelados ou de
periferias: a que Zaccone chama “assassinatos em nome da Lei”.
Ora, o que este relatório do Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso
que, agora, você terá acesso, tem em comum com os pobres e oprimidos é que também ele
é um GRITO!
Grito contra todas as torturas, massacres, cativeiros da terra, destruição das
florestas, cerceamento de acesso ao chão, envenamento das águas, do leite materno, da
produção de doenças incuráveis, incentivo atual à proliferação de episódios horrendos
como aquele do Paralelo Onze, no Estado do Mato Grosso, fantasma que pesa e ronda –
sobremaneira - grupos indígenas não contatados ou arredios. Nada disso, apesar de estar
interditado na letra constitucional, pode impedir um mandato dissimulado de extermínio
dos pobres, favelados, negros, mulheres, homossexuais, lavradores, quilombolas,
militantes, adolescentes, idosos, sem terras, sem tetos... E logicamente por trás deste perfil
de vulnerabilidade há um perfil dos autores: ricos, brancos, heterossexuais, idosos,
moradores das áreas ricas e condomínios de luxo, com cargo político, ou sob o guarda
chuva de um ocupador de cargos... E, incrível, com equipamento de guerra, legitimado o
uso exclusivamente no interesse público, e não nos interesses alienistas, ocorrido
claramente na área Munduruku no Rio Teles Pires, no Mato Grosso - pasmem, com
helicópteros de guerra15, o que resultou na morte do Adenilson Munduruku16: pasmem!
Quem mais se desespera com a morte de Adenilson é o macaquinho, chorando aos gritos
em face da violência! Os animais não são violentos: violentos somos nós, que os
travestimos de uma animalidade que é apenas nossa, projetada neles. Não matam homens
ou animais senão para protegerem suas vidas, ou alimentar-se. Os animais não odeiam,
nós odiamos. Nossa civilização perdeu o endereço da piedade. Nossos deuses são mortais
e nos odeiam.
As forças de segurança, por outro, mostram eficácia como aparato de repressão
sempre em uma única direção - a defesa dos donos do capital e das propriedades privadas,
por vezes, roubada à nação, tirada da proteção do Estado Brasileiro, e posta a serviço de
grandes grupos internacionais, sem acesso aos brasileiros e brasileiras; e, com sequestros
de recursos naturais, patenteamento de espécies nativas. Fatos corriqueiros, com vistas a
renderem a autonomia e soberania de nosso país por sobre nosso solo, riquezas, florestas,
14 Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-06-06/apos-analise-delegado-conclui-que-sociedade-aceita-violencia-policial.html 15 Disponível em: https://youtu.be/S3ct4uqk6dI 16 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7cFqRHhIR3k
10
minérios, água, ar e fronteiras, em face do cuidado comum. E as mesmas ‘figuras’ que
administram interesse públicos por representação, operam ações pela retaguarda, em
‘normalidade perversa’, respaldados a cada dia mais e mais com dispositivos de
inimputabilidade, mantendo-se à margem de qualquer controle e usufruindo de um
estatuto perverso, o de usar a chamada “violência legal” ao âmbito privado.
Ao lermos, também neste ano, as tragédias e vê-las anunciadas nos relatórios de
2011 e 2013, e saber que elas não precisariam ter ocorrido, nos mortifica. São tragédias
pré-anunciadas. Sabia-se antes quais os alvos, como também raramente se ignora pessoas
e grupos que promovem o constrangimento, ameaças, execuções e extermínio. As pessoas
ameaçadas careceram da mediação do Estado Político, de cuja sociedade são parte e têm
direitos. Demonstra-se, desta forma, a conivência destes mesmos Estados, sob três formas
corriqueiras.
1. A aparente letargia da Federação em responder às acusações recebidas, ano a
ano, e a larga tolerância de manter sem mudanças o conjunto de dispositivos no amparo
das vítimas. Sobretudo aquelas para as quais existem políticas públicas e verbas com estas
finalidades, por exemplo, na defesa de testemunhas, de defensores, e de pessoas do
próprio ministério público. Neste caso, sou testemunha do desinteresse absoluto do
Estado de Mato Grosso de assumir o programa, o que do meu ponto de vista, o faz réu e
conivente com as violências praticadas e das consequências pessoais e sociais delas.
2. Arrastam-se processos ano a ano, e cujos assassinos nominados possuirão seus
crimes jamais punidos. Inclusive, existe, hoje, e está ativo, sofisticado programa de
informatização das informações, que permite a identificação dos assassinos. E, no entanto
não são usados para a justiça, mas para blindarem os assassinos e mandantes, impedindo
o acompanhamento público por parte da sociedade, gerando espaço bem maior de crimes
num rosário que se arrasta, e não se termina, como onda de tsunami; neste caso que
poderia e deveria ser contida.
3. Priorizam-se recursos econômicos em grande escala para aqueles precisamente
que sempre promoveram o atropelamento dos direitos humanos, inclusive da ordem
legal, e obtiveram privilégios de continuarem de maneira criminosa seus ataques às
medidas necessárias na contenção dos crimes praticados. Em linguagem bem popular: há
pessoas “graúdas” e “por cima” nas hierarquias de mando e com largo espectro
administrativo, que há anos - em linguagem bem popular – “comem o Estado pelas
bordas”! Obtêm na marra a legitimação da delinquência. Neste sentido, estes senhores
sentem-se seguros de obter prestígio e poder para institucionalizarem na marra, na
contramão das normas públicas, a (des)ordem legal criminosa que lhes proporciona
enriquecimento, desvios, sonegação, e espaço de mando. Desproporção absoluta entre o
necessário e o excesso. E a sociedade se pergunta: qual é mesmo a tarefa que cabe ao
Estado? E como foi possível criar leis de proteção de direitos pessoais, sempre obliteram
‘em defesa privada’ os largos interesses amplos, universais e públicos?
Há nestes ‘cidadãos’ uma capacidade infinita de esmerilhar todos os direitos de
quem quer que seja, para obterem interesses destruindo o ordenamento político, pela
11
corrupção, pela má fé, pela destruição do pacto social, ameaçando, sobretudo, em níveis
ambientais, danos irreversíveis e sem precedentes, a vida biológica, psíquica, simbólica
de maneira frívola e cínica, e, ademais, com discursos públicos sobre sua atuação
irrefreável contra o Estado. Inspirados em um arcabouço jurídico político e desenhado
sob regras e procedimentos de processos de exceção, operam através de leis que possuem
por vício serem ilegítimas, feitas para matar, pilhar, silenciar, oprimir, e sentenciar
vítimas e inocentes.
A velocidade das informações hoje hegemonizadas, e sob controle dos grandes
meios de comunicação, que com capilaridade de nível municipal, estadual e federal
promovem diminuição dos espaços geográficos livres, fomentam a disputa de quadrilhas
que palmo a palmo tomam os territórios e terras, destroem rios, florestas e recursos
naturais, mantêm vidas sitiadas quer pela ação evidente e descarada do trabalho escravo,
via ações de caráter paraestatais, e paramilitares, conduzidos pela miséria da política. Os
Meios de comunicação na mão dos interesses privados dilaceram junto aos grandes
conglomerados transnacionais a ocupação do planeta, através de grandes latifúndios, uso
de herbicidas tóxicos, secantes e destruidores, semeiam a morte e o extermínio diuturno
das populações que estão nos limites do mundo - empurradas que são pela ganância
sádica de guerras bacteriológico-químicas e de destruição de tudo que oferecer
resistência administrando apartheids, cerceamento de recursos para sobreviver,
abandono de solo pátrio, destruição da população civil pela fome, pela miséria, pelo
desnaturamento legitimado pela força dos Mercados.
Francisco não abranda as críticas a essa perversidade: A democracia é uma
ditadura disfarçada.
Podemos – perguntava o Papa - falar de um fim apocalíptico? Um juízo final que
não oferecerá nenhuma possibilidade de salvação? A palavra de Francisco em suas
andanças pela Bolívia conclui o contrário: “Sofremos de certo excesso de diagnóstico, que
às vezes nos leva a um pessimismo charlatão ou a rejubilar com o negativo”. Ainda que
em nosso tempo a morte e seus programas estejam nos projetos dos ricos e seus
conglomerados, permeia em todos nós a vida, tempo de parturição que nos convoca a
todos à resistência diuturna contra o perecimento. Diz o Papa, e isso nos ajuda neste
momento, em nível global e planetário, que é necessário que o povo freie as formas de
morte, uma vez que os governos parecem perplexos e impotentes e, afirma, que o Papa os
acompanhará nesse esforço.
Há uma luta global em curso que tem alcançado formas cada vez mais globalizadas,
porque mostram tentáculos e raízes em cada lugar do planeta, e a ação de cada um somada
à ação dos movimentos sociais, será o caminho mais importante, para deter a
perversidade, a ameaça global de desintegração do planeta, e o retorno uma ecologia
integral em favor do gosto pela vida. Francisco desafia que é preciso parar os governos
que apostam num capitalismo perverso.
Nenhum de nós talvez acreditasse que existisse ainda uma reserva tão ampla, tão
massiva, de retorno à Política como relação de uma criança que confia na outra, dizia o
12
poeta Thiago de Mello em Estatuto do Homem. Emerge um projeto social popular que
concretize o que a todos e todas interessam, o respeito à diversidade e à pluriversidade
como centralidade da VIDA, mediada pela partilha, pelo reconhecimento mútuo e
convivialidade: só isso é Política. A ida do Papa, descentrado da religião, anuncia a fome
das pessoas de justiça e beleza, de uma ecologia integral que enterre as guerras, que
(des)potencialize a perversidade em curso. Não esperávamos, penso, que houvesse tantas
energias voltadas à VIDA como lugar absoluto do reencontro de todos, todas e tudo, em
favor da paz e da convivialidade. É hora, pois, de mais claro conhecer os males que nos
atormentam. Saber que podemos mudar, porque as pessoas cansaram de viverem no
martírio sem fim, sem saída, de mútua destruição inútil, de tudo e todos e todas. Vamos
derrotar o capitalismo e todas as suas violências! A paz é o caminho, precisa ser preparada
a cada palmo, com projetos comuns, contra tudo o que mata, mente, destrói, perverte e
violenta. Eis o papel da luta pelos Direitos Humanos sociais, ampliados, das etnias, das
diferenças, que não se pense uma universalidade com o sacrifício das singularidades.
Luiz Augusto Passos17
17 Professor Associado da Universidade Federal de Mato Grosso. Coordenador do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação e do Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty.
13
RESUMO O presente relatório apresenta um amplo panorama dos Direitos Humanos e da Terra historicamente infringidos pelo poder político, econômico que se imbrica com a propriedade privada. Para isso, traça uma linha temporal iniciando com o processo de ocupação territorial do estado de Mato Grosso em seus aspectos políticos, normativos e econômicos passando pela discussão detalhada sobre a terra do ponto de vista da ocupação, da função social sem descurar sobre uma discussão de gênero. Os conflitos em torno da disputa por terra e pela qualidade da água se estabelecem em função da concentração e das racionalidades como sustentáculo do capitalismo gerando mercantilização dos bens comuns como a água e a própria terra transformados em hidronegócio e agronegócio. Nesse sentido, e dado o não reconhecimento dos direitos indígenas e dos grupos vulneráveis denuncia processos de degradação socioambiental que atingem povos e comunidades tradicionais seja por intrusão dos territórios, seja pelo uso excessivo e imprudente de agrotóxicos em todo o estado de Mato Grosso. Por outro lado, apresenta experiências exitosas de viabilidade de manejos sustentáveis como a agroecologia. Finalmente as denúncias de conflitos e mortes no campo entremeiam tristemente os textos que foram construídos coletivamente por sujeitos, movimentos sociais e instituições vinculadas ao tema aqui debatido. Palavras-chave: Direitos Humanos. Mato Grosso. Conflitos socioambientais. ABSTRACT This report provides a broad overview of Human Rights and the Earth historically inflicted for political and economic power that overlaps with private property. For this, traces a timeline starting with the territorial occupation process of Mato Grosso state in its political, legislative and economic aspects through the detailed discussion of the land occupation point of view, without neglecting the social function of a gender’s debate. The conflicts over competition for land and water quality are established depending on concentration and rationality as the support of capitalism generating commodification of common goods such as water and the land itself transformed into hydro and agribusiness. In this sense, and given the non-recognition of indigenous rights and vulnerable groups, the current report denounces environmental degradation processes that affect traditional peoples and communities by intrusion of territory, either by excessive and reckless use of pesticides throughout the state of Mato Grosso. On the other hand, it presents sustainable management feasibility of successful experiences as agroecology. Finally, allegations of conflicts and deaths sadly interspersed field texts that were built collectively by subjects, social movements and institutions associated with the topic discussed here. Keywords: Human Rights. Mato Grosso. Socio-environmental conflicts.
14
LISTA DE ABREVIATURAS
ANA Agência Nacional das Águas
ANDEF Associação Nacional Defesa Vegetal
ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária
ARA Associação dos Retireiros do Araguaia
ARPA Associação Regional de Produtores Agroecológicos
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CASAI Casas de Saúde Indígena
CDHHT Centro de Direito Humanos Henrique Trindade
CNPCT Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais
COETRAE Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo
COMPRUP Cooperativa Mista de Produtores Rurais de Poconé
CONDISI Conselho Distrital de Saúde Indígena
CONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPT/MT Comissão Pastoral da Terra/Mato Grosso
CRAS Centro de Referência de Assistência Social
CTB Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil
CTNBio Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
DNPM Departamento Nacional de Produção Mineral
DOE Divisão de Operações Especiais
FDHT-MT Fórum de Direitos Humanos e da Terra - Mato Grosso
FETAGRI/MT Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Mato Grosso
FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz
FUNAI Fundação Nacional do Índio
GEF Global Environmental Facility
GINI Índice de Gini*
GT Grupo de Trabalho
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBGE Instituto brasileiro de Geografia e Estatística
ICMBIO Instituto Chico Mendes de Biodiversidade
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INSI Instituto Nacional de Saúde Indígena
LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros
MAB Movimento dos Atingidos por Barragens
MAPA Ministério da Agricultura e do Abastecimento
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MST/MT Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/Mato Grosso
OEA Organização dos Estados Americanos
OIT Organização Internacional do Trabalho
PAA Programa de Aquisição de Alimentos
PBA Plano Básico Ambiental
PCH Pequena Central Hidroelétrica
PDISP Portaria de Declaração de Interesse do Serviço Público
PIB Produto Interno Bruto
15
PL Projeto de Lei
PLS Projeto de Lei do Senado
PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar
PNDH-3 Plano Nacional de Direitos Humanos
PNUMA Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PROVITA Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas
RDS Reserva de Desenvolvimento Sustentável
RENAP Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares
SEINT Seção de Inspeção do Trabalho
SEJUDH Secretaria de Estado de Justiça e de Direitos Humanos
SESAI Secretaria Especial de Saúde Indígena
SPU Superintendência do Patrimônio da União
SRTE/MT Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Mato Grosso
STF Supremo Tribunal Federal
TV Televisão
UFMT Universidade Federal de Mato Grosso
UHE Usina Hidroelétrica
UNEMAT Universidade Estadual de Mato Grosso
*Índice de Gini - mede a desigualdade social a partir da distribuição da renda. Este índice foi criado pelo matemático italiano Corrado Gini.
16
LISTA DE TABELAS E FIGURAS
Tabela 1 - Fonte: IBGE - Censo agropecuário 2006. 47
Figura 1 - Comunidade comemorando o Dia das Crianças. 57
Figura 2 - Culturas de subsistência. 58
Figura 3 - Moradia queimada por fazendeiros. 58
Figura 4 - Maria Lúcia, Josias e Ireni. 61
Tabela 2 - Investimentos no agronegócio x agricultura familiar. Fonte: Cristiano Cabral. 62
Tabela 3 - Investimentos. Fonte: Cristiano Cabral. 65
Tabela 4 - Dados: Crescimento da produção x Geração de empregos. Fonte: Cristiano Cabral. 66
Figura 5 - Imagem de área aberta para extração ilegal de madeira na TI Kayabi (Juara). 87
Figura 6 - Caminhão sobre balsa para transporte de madeira da TI Kayabi (Juara) e detalhe do transporte.
91
Figura 7 - Abertura na TI Kayabi para entrada de caminhão e placa indicando Terra Protegida. Detalhe da placa (dir.).
92
Figura 8 - Barraco e bicicleta queimada durante o despejo. 107
Figura 9 - Buracos feitos à bala nas panelas. 108
Figura 10 - Policiais Militares do Pará atuando ilegalmente no Acampamento em Santa Terezinha, MT.
109
Figura 11 - Divisa do Assentamento Roseli Nunes e áreas de Monocultivos de cana. Foto: Fran Paula.
115
Figura 12 - Hortas agroecológicas e coletivas da ARPA. Foto: Fran Paula. 117
Figura 13 - Entrega de cesta agroecológica em bairros carentes do município de Mirassol D’Oeste, MT. Foto: Fran Paula
117
Figura 14 - Infográfico da Batalha Contra os Agrotóxicos 120
17
SUMÁRIO UMA ABORDAGEM INICIAL
Inácio Werner & Michèle Sato 21 CAPÍTULO 1 26 PROCESSO SÓCIO-HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO MATO-GROSSENSE
CENTRO JESUÍTA DA CIDADANIA E AÇÃO SOCIAL DE CUIABÁ INTRODUÇÃO 26 1.1 - A HISTÓRIA LEGAL DA TERRA EM MATO GROSSO 28
1.1.1 - Períodos colonial, imperial e republicano 28 1.2 - O PODER POLÍTICO DO CORONELISMO E DOS GRILEIROS 30 1.3 - POLÍTICAS DE COLONIZAÇÃO 33 1.4 - O PROCESSO DE OCUPAÇÃO RECENTE: A ABERTURA DA FRONTEIRA AGRÍCOLA 36 CONSIDERAÇÃO FINAL 38 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 38
Roberto Rossi CAPÍTULO 2 40 DIREITOS HUMANOS: TERRA E TERRITÓRIO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES E TRABALHADORAS SEM TERRA - MST/MT REDE NACIONAL DE ADVOGADOS E ADVOGADAS POPULARES - RENAP
2.1 - MODELO ESTRUTURADO PARA CONCENTRAÇÃO E APROPRIAÇÃO CAPITALISTA 40 2.2 - TERRAS PÚBLICAS E ÁREAS DEVOLUTAS 41
2.2.1 - Dados de MT 43 2.3 - CONFLITOS NO CAMPO GERAM MORTES E AMEAÇAS DE MORTE DE CAMPONESES EM MATO GROSSO 45
Rosangela Rodrigues da Silva 2.4 - CONCENTRAÇÃO DA TERRA EM MATO GROSSO 46 2.5 - REFORMA AGRÁRIA CLÁSSICA E REFORMA AGRÁRIA POPULAR 47
2.5.1 - Reforma Agrária Clássica 47 2.5.2 - Reforma Agrária Popular 48 2.5.3 - Fundamentos do Programa de Reforma Agrária Popular 49
Vanderly Scarabeli 2.6 - FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA 50
2.6.1 - O caso Jardim Gramado (Cuiabá, 2014) 51 2.6.2 - Artigo 928 do Código de Processo Civil: despejos arbitrários 52
Vilson Nery 2.7 - MULHERES CAMPONESAS: A INVISIBILIDADE DO SEU COTIDIANO E DE SUA LUTA 54
Lucinéia Miranda de Freitas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 56
RELATO DE CASO I Paulo Cesar Moreira Santos
I CONFLITO EM NOVO MUNDO – FAZENDA ARAÚNA 57 II CONFLITO EM NOVA MUTUM 59
18
CAPÍTULO 3 61 AGRONEGÓCIO E HIDRONEGÓCIO: APROPRIAÇÃO CAPITALISTA
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA - CPT/MT COORDENAÇÃO DO MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS - MAB/MT
3.1 - VIOLÊNCIA NO CAMPO E A LUTA POR HUMANOS DIREITOS À VIDA, À TERRA E AO TRABALHO 61 3.2 - CONCENTRAÇÃO DE FINANCIAMENTO, CONCENTRAÇÃO DE TERRA CONCENTRAÇÃO DE PODER: A BARBÁRIE FUNDIÁRIA DO MATO GROSSO 65
Cristiano Cabral 3.3 - TRABALHO ESCRAVO: ATÉ QUANDO O ESTADO BRASILEIRO VAI CONTINUAR COMBATENDO ESTE CRIME? 68
Elizabete Fatima Flores 3.4 - AGROTÓXICO: LUCRO E BIOCÍDIO 73 3.5 - A COMPLEXA CONJUNTURA DO DIREITO HUMANO À ÁGUA, BEM PÚBLICO E PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE 76
3.5.1 - O hidronegócio no mato grosso: lucro, privação e descartabilização da água 76 Cristiano Cabral
3.6 - CONFLITOS RELACIONADOS AOS GRANDES PROJETOS: HIDROELÉTRICAS, HIDROVIAS E MINERAÇÃO 79
Coordenação MAB/MT REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 81
RELATO DE CASO II I ASSASSINATO DE MARIA LÚCIA DO NASCIMENTO 82
Zilma Porfiro II O ASSENTAMENTO ROSELI NUNES E O PROCESSO DE RESISTÊNCIA À ATIVIDADE MINERADORA: DO SONHO DA CONQUISTA DA TERRA AO PESADELO DA AMEAÇA DE EXPROPRIAÇÃO 83
II.I Ameaças da mineração 84 II.II Do susto à reação, as famílias dizem não à mineração 84
José Gomes Lucineia Miranda de Freitas
CAPÍTULO 4 87
VIOLÊNCIA E POVOS INDÍGENAS CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO - CIMI/MT
4.1 VIOLÊNCIA POLÍTICA 88
4.1.1 Poder Legislativo 88 4.1.2 Poder Executivo 88 4.1.3 Poder Judiciário 89
4,2 TERRAS 90 4.3 - VIOLÊNCIA COTIDIANA 92 4.4 - SAÚDE 93 4.5 - EDUCAÇÃO 93 4.6 - AGROTÓXICOS 94 4.7 - USINAS HIDROELÉTRICAS 95
Mario Bordignon MANIFESTO DA ALIANÇA DOS POVOS INDÍGENAS APIAKÁ, KAYABI, MUNDURUKU E RIKBAKTSA 95
19
CAPÍTULO 5 96 OS DIREITOS DOS POVOS
REDE MATO-GROSSENSE DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL INSTITUTO CARACOL
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 103
RELATO DE CASO III PRELAZIA DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA
I RETOMADA DE TERRAS PÚBLICAS NA REGIÃO DO ARAGUAIA 105
I.I Sobre os Retireiros do Araguaia 105 Rita de Cassia de Azevedo Diácono José Raimundo Ribeiro da Silva Paulo Cesar Moreira Santos
II CONFLITO EM SANTA TEREZINHA 107
Paulo Cesar Moreira Santos CAPÍTULO 6 111 TERRITÓRIOS LIVRES! POR AGROECOLOGIA, BIODIVERSIDADE E SOBERANIA ALIMENTAR
FÓRUM MATO-GROSSENSE DE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO - FORMAD MOVIMENTO DOS TRABALHADORES E TRABALHADORAS SEM TERRA - MST/MT
INTRODUÇÃO 111 6.1 - BIODIVERSIDADE E SOBERANIA ALIMENTAR 112 6.2 - A AGROECOLOGIA COMO INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA 113 6.3 - TERRITÓRIOS LIVRES: RESISTÊNCIA E LUTA 115 6.4 - REFORMA AGRÁRIA E AGROECOLOGIA PROMOVENDO SEGURANÇA E SOBERANIA ALIMENTAR 118
Francileia Paula de Castro Devanir Oliveira de Araujo João Inácio Wenzel
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 118 CAPÍTULO 7 121 ESTADO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS E OS DESAFIOS PARA O FUTURO BREVE
7.1 - ESTADO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS E OS DESAFIOS PARA O FUTURO BREVE 121
Teobaldo Witter REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 129
APÊNDICE 1
Princípios do Fórum de Direitos Humanos e da Terra CARTA DE PRINCÍPIOS DO FÓRUM DE DIREITOS HUMANOS E DA TERRA DE MATO GROSSO 130
APÊNDICE 2
NOTA DE APOIO À OPERAÇÃO “TERRA PROMETIDA” DA PF E REPÚDIO AOS QUE QUEREM IMPEDIR A APURAÇÃO DA GRILAGEM DE TERRA NO ESTADO DE MATO GROSSO 131
APÊNDICE 3
20
CARTA DENÚNCIA 133
APÊNDICE 4
Pedido de Providências do Fórum de Direitos Humanos e da Terra, CPT/MT e diversas entidades junto à Defensoria Pública de MT 135
21
UMA ABORDAGEM INICIAL
Inácio José Werner & Michèle Sato
Este é o terceiro relatório de direitos humanos do Fórum de Direitos Humanos e
da Terra Mato Grosso. O relatório é uma continuidade dos relatórios de 2011 e 2013. Com
pesar, podemos afirmar que, infelizmente, pouco mudou na realidade apresentada nos
relatórios anteriores, as denúncias continuam válidas e é necessário reafirmá-las.
O relatório é sempre uma construção coletiva e um processo de vários meses de
trabalho, sendo o resultado de dois seminários, reuniões mensais do Fórum, reuniões
específicas, trocas de e-mails e produção coletiva para escrita e elaboração final do
relatório. O documento aqui apresentado é fruto da vivência e prática militante, reúne
informações do campo normativo, da visão acadêmica sobre o tema em diálogos com
relatos de caso que elucidam o cenário de violência e luta dos povos pela terra e
manutenção de seus territórios.
Este relatório tem um diferencial dos anteriores por fazer um recorte temático,
uma opção pela temática da terra e território.
Logo no primeiro capítulo, “O processo sócio-histórico da ocupação do território
Mato-grossense”, vemos como a concentração fundiária em Mato Grosso é reflexo da
construção histórica da propriedade privada da terra e o que resultou disso são as
grandes desigualdades sociais, dentre elas a distribuição de renda e de terras.
Os mais de dois séculos e meio de disputa pela ocupação do território foram e
continuam sendo marcados por muita violência privada e institucional, além da
conivência e da inércia do Estado.
O coronelismo foi um componente característico do primeiro período republicano
em Mato Grosso. O fenômeno do coronelismo tem o seu fundamento na concentração da
propriedade enquanto base econômica de sustentação das manifestações do poder
político.
O favorecimento vem desde o período das Sesmarias, da criação de leis como a Lei
de Terras de 1850, por meio de concessões, comercialização, troca de favores políticos,
legitimação de posses e de terras griladas.
22
A colonização foi implantada no Estado como parte da estratégia do governo
federal, que visava a ocupação dos “espaços vazios” e o fortalecimento de seus domínios
nas áreas de fronteira (“integrar para não entregar”). As colonizadoras muitas vezes se
apropriavam das terras em vez de transformá-las em assentamentos. Este processo de
expansão da ocupação das fronteiras agrícolas se acelerou principalmente nas décadas de
1970 e 1980, quando o fluxo migratório foi mais intenso.
Esse processo histórico de ocupação do território mato-grossense, portanto, fez
com que o campo deixasse de ser um espaço de reprodução da vida camponesa para ser
um produtor de commodities, formando uma agricultura sem agricultores.
Ou seja, a colonização do Estado favoreceu a expansão do agronegócio, que se
configurou em um modelo de produção baseado na monocultura, na concentração
fundiária, na mecanização pesada, na degradação ambiental e redução da água disponível,
no uso intensivo de agrotóxicos, fertilizantes e transgênicos. Assim, se configura a
perversa aliança entre a Revolução Verde e a histórica concentração de terras em que
certo sentido de Estado (quase totalitário nas convergências insanas entre política,
economia e elite rural) contradiz certa ideia de democracia.
No segundo capítulo, “Direitos Humanos: Terra e Território”, é possível observar
como o modelo de desenvolvimento econômico do Brasil foi estruturado para dar suporte
ao processo de acumulação de riquezas da burguesia, base do sistema capitalista nacional.
A terra passou a ter um preço importante. Dominar a terra passou a significar dominar a
própria economia.
O estado de Mato Grosso apresentou a maior quantidade de apropriação de áreas
devolutas por particulares na forma de grilagem, que é um dos mais poderosos
instrumentos de domínio e concentração fundiária por meio da falsificação de
documentos. Essa situação está no cerne dos graves conflitos sociais pela terra em Mato
Grosso.
A luta pela terra e pelo território sempre foi marcada pela violência dos
proprietários e pela violência Estatal e, de outro lado, pela luta, resistência e organização
dos camponeses, dos povos tradicionais, das comunidades indígenas, dentre outros.
As consequências negativas do processo de desenvolvimento no campo, por meio
da concentração da terra e das riquezas, potencializam o processo de conflitos no campo,
23
pois as forças populares resistem das mais variadas formas para permanecerem no meio
rural.
Para que seja promovida a desconcentração da terra, um debate fundamental é a
Reforma Agrária. Para isso, são apresentados elementos para diferenciar as propostas e
os fundamentos para um programa de Reforma Agrária no Brasil.
A ideia de função social da propriedade da terra está intrinsecamente ligada a
quem nela trabalha, pertence a quem produz, assistindo ao produtor rural o direito de
estar e permanecer, enquanto produz alimentos para a própria subsistência. É
inconcebível que juízes concedam reintegração de posse sem ouvir a parte que está sendo
retirada da terra, sem questionar a legitimidade e as condições das pessoas despejadas.
Ainda nesse capítulo, é dado um destaque às mulheres na luta cotidiana, na
conquista de avanços para o campesinato, notadamente no destaque e protagonismo que
o gênero feminino possui e exerce nas conquistas, na resistência, nas denúncias e, claro,
mas tristemente, nas mortes no campo.
No terceiro capítulo, “Agronegócio e Hidronegócio: Apropriação capitalista”, é
explicitada a priorização dada pelo Brasil à exportação de matéria prima para produzir
superávit na balança comercial nacional, influenciada pela força do agronegócio na
comercialização de suas commodities, sendo que Mato Grosso é peça fundamental nesta
lógica.
Nesse mundo do agronegócio, o que persiste é o trabalho escravo. Para evitar
constrangimentos ou prejuízos financeiros, procura-se, por meio de alterações
legislativas, fazer adaptações, tais como mudar o conceito de trabalho escravo ou, então,
impedir a publicação da “lista suja” do trabalho escravo.
A temática agrotóxico perpassa todo o relatório, embora de forma mais destacado
nos capítulos 3 e 4. O uso dos agrotóxicos é um dos pontos chave para a evolução do
capitalismo no campo, com o objetivo voltado somente para a obtenção de lucro. Com esse
veneno, a morte sobre a vida (biocídio) afeta todos os espaços dos diversos seres vivos,
atingindo também os locais onde o veneno não é aplicado diretamente.
A água, que deveria ser bem comum, torna-se hidronegócio. Em Mato Grosso, 70%
de toda a água é utilizada no agronegócio.
24
Contudo, não são somente os Aquíferos que correm sérios riscos de sofrer com os
efeitos do agro-hidronégocio no Estado, mas os lençóis freáticos sofrem da mesma causa
e consequência. Por ser um depósito subterrâneo, fonte de abastecimento, a preocupação
com seu desaparecimento é real. A construção das hidroelétricas é uma ameaça real a
quem historicamente ocupa as margens ou tira o seu sustento dos rios.
O capítulo 4, “Violência e Povos Indígenas”, apresenta a preocupação ante vários
projetos de lei declaradamente anti-indígenas, apresentados pela numerosa bancada
chamada de ruralista. Os Direitos indígenas adquiridos na Constituição de 1988 estão
sendo violados e projetos de lei querem legalizar essas violações. Após 515 anos continua
o mesmo objetivo: a posse ou o uso das terras indígenas. Nas aldeias chegam os reflexos
destas políticas: demarcações de terras indígenas paralisadas, plantios de soja regados
com agrotóxicos cercando as áreas indígenas, poluindo rios, ar e intoxicando pessoas,
arrendamentos ilegais, madeireiras e mineradoras praticando o extrativismo ilegal.
No capítulo 5 são retomadas as discussões tratadas no seminário do PIDESC, Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e culturais com representação
representantes de povos e populações tradicionais. Foi feito a escolha de um caso dentre
muitos para demonstrar como os impactos do agronegócio destroem o meio ambiente e
a organização social das comunidades.
O capítulo 6, “Territórios livres! Por Agroecologia, Biodiversidade e Soberania
alimentar”, desenvolve uma discussão envolvendo temáticas como a concentração de
terras, agrotóxicos, agronegócio, as quais foram apresentadas nos capítulos anteriores.
O fundamento principal da Agroecologia está na capacidade da ação dos próprios
ciclos da natureza, incorporando todos os elementos naturais; dessa forma é possível ter
uma agricultura verdadeiramente sustentável. Indispensável considerar o conhecimento
da agricultura familiar camponesa, bem como a forma como ela se relaciona com a terra
e as sementes com as quais têm uma convivência harmônica. A agroecologia vive cercada
de conflitos, tanto pela posse da terra, pela obtenção de financiamento e assistência
técnica, mas, pincipalmente, porque está na fronteira onde existe o uso excessivo de
veneno, que induz os insetos e outros seres vivos a buscarem refúgio nos espaços de
prática agroecológica.
25
No sétimo capítulo, “Estado Atual dos Direitos Humanos e os Desafios para o
Futuro breve”, vemos que para qualquer referência avaliativa seria fundamental ter um
plano de Direitos Humanos, com o qual não conta neste momento o estado de Mato
Grosso.
Direitos humanos dizem respeito ao direito de viver, direito de lutar, direito de
morar, de se alimentar, de viver sem violência... de ser feliz. É um termo político, jurídico,
mas, também, da utopia do bem viver na plenitude. Para isso é fundamental que o Estado
reconheça as pessoas, com identidade história e não número ou coisa.
Este relatório não tem um fim em si mesmo e nem vai resolver o problema da
concentração de terras nas mãos do latifúndio e do agronegócio. Tampouco vai garantir
terra para os povos Indígenas, Quilombolas, Retireiros, Povos e Populações Tradicionais,
Acampados ou Sem Terra. Mas pode ser instrumento de discussão, de alerta a sociedade,
pensar novas alternativas, juntar forças para cobrar do poder público ações para a
garantia de direito ao acesso à terra.
26
CAPÍTULO 1
PROCESSO SÓCIO-HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO MATO-GROSSENSE CENTRO JESUÍTA DE CIDADANIA E AÇÃO SOCIAL DE CUIABÁ
Roberto Rossi
Precisamos combater o regime capitalista na agricultura, dividir a propriedade agrícola, dar a propriedade da terra ao que efetivamente cava a terra e não ao doutor vagabundo e parasita, que vive na ‘casa grande’ ou no Rio ou em São Paulo. Já é tempo de fazermos isso e é isso que eu chamaria o problema vital.
Lima Barreto apud Luiz Ricardo Leitão18
INTRODUÇÃO
As raízes dos problemas e da concentração fundiária em Mato Grosso são reflexos
da construção histórica da propriedade privada da terra. Mato Grosso herdou do período
colonial práticas concentradoras de terras e, até hoje, o Estado apresenta graves
problemas relacionados à distribuição e à concepção mercadológica da terra (STEDILE,
1998). Resultou disso grandes desigualdades sociais, dentre elas a distribuição de renda
e de terras. Portanto, essas desigualdades não são conjunturais, mas decorrentes de um
encadeamento de ações políticas e jurídicas que vem ocorrendo desde o período colonial
(FONTES e FILHO, 2009).
De acordo com Moreno (2007, p. 33), “a história da terra em Mato grosso reflete
um processo de mais de dois séculos e meio, caracterizado pela conquista, ocupação e
disputa do território”, constituindo, portanto, o processo de formação e concentração da
propriedade privada no Estado. A transferência de grandes extensões de terras públicas
(devolutas) à iniciativa privada se deu por meio de concessões, comercialização, troca de
favores políticos, legitimação de posses e de terras griladas.
Em sua tese de doutorado, Moreno (1994) sustenta, ainda, que as terras públicas
(devolutas) passaram para o domínio privado por meio da “burla legal19”, favorecendo a
apropriação capitalista de grandes extensões de terras, em tempos passados e atuais. A
autora mostra que os diversos governos de Mato Grosso, desde 1892, vêm favorecendo o
18 Luiz Ricardo Leitão. O sítio pós-moderno de Lobato. Brasil de Fato, 03/12/2010. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/5206. Acessado em 16/05/2015. 19 Segundo o dicionário Houaiss, burla significa o artifício usado para enganar; lograr; fraudar. Significa ainda embuste, ação dolosa.
27
acesso a grandes porções de terras seja por latifundiários, capitalistas individuais ou
empresas nacionais e internacionais.
Todo um aparato jurídico-político foi criado para legitimar os diferentes interesses desses grupos sociais, bem como sustentar a política fundiária de regularização e venda de terras públicas (devolutas) no Estado. Portanto, a articulação entre o poder político e o poder econômico, com base em mecanismos institucionais e jurídicos, possibilitou a transformação das terras públicas (devolutas) em propriedade privada, acentuando o processo de concentração fundiária, condição necessária para o avanço da fronteira agrícola a partir dos anos 1970 e para a territorialização do capital (2007, p. 52).
Fontes e Filho (2009) também atestam que as políticas governamentais em favor
das grandes propriedades foram preponderantes para a intensificação da concentração
fundiária em Mato Grosso. Outro fator que contribuiu para a concentração fundiária foi a
“aquisição de terras com fins especulativos, ou seja, os estabelecimentos passaram a ser
demandados, não para atividades produtivas, mas como fundo de reserva e proteção aos
ataques inflacionários” (p. 69).
Cavalcante (2008), da mesma forma, observa que a distribuição das terras mato-
grossenses é resultado das ações da colonização portuguesa e da política fundiária de
regularização e venda de terras públicas do Estado. Com isso, se estabeleceu uma base
institucional que promoveu um modelo de propriedade fundiária que favoreceu a
manutenção do poder das elites, ontem e hoje. Consequentemente, efetivou-se um modelo
de desenvolvimento concentrador e excludente. Logo, o processo histórico da formação
da propriedade privada, concentrador, excludente e violento, reflete a atual situação em
que se encontra a estrutura fundiária mato-grossense.
Em Mato Grosso, pois, constata-se uma orquestrada concentração fundiária
responsável pela realidade desumana na qual estão submetidos os camponeses,
resultando na persistente violação dos seus direitos constitucionais de acesso à terra
(Art.5º, incisos XXII e XXIII). Martins (1991) observa que, historicamente, os camponeses
ocuparam e ocupam a terra sem garantias e direitos fundamentais assegurados, ou terra
insuficiente para trabalhar em condições dignas, bem como com políticas agrárias
adequadas e justas.
Esse processo histórico de ocupação do território mato-grossense, portanto, fez
com que o campo deixasse de ser um espaço de reprodução da vida camponesa para ser
28
um produtor de commodities, formando uma agricultura sem agricultores
(CAVALCANTE, 2008).
1.1 - A HISTÓRIA LEGAL DA TERRA EM MATO GROSSO
1.1.1 - Períodos colonial, imperial e republicano
As leis, que regularam o processo de aquisição de terras, serviram de mecanismos
políticos para dar sustentação a uma política fundiária voltada à constituição da moderna
propriedade territorial, de acordo com os interesses das classes que dominaram e
comandaram, historicamente, o poder econômico e político no Mato Grosso e no Brasil,
principalmente, dos proprietários de terra.
O processo “legal” de distribuição de terra e, consequentemente, a concentração
fundiária brasileira, tem seu início no período colonial. Segundo Stedile (1998, p. 09), “a
primeira forma de distribuição da terra foi o sistema de capitanias hereditárias, pelo qual
a Coroa destinava grandes extensões de terras aos donatários (...) em troca de favores e
de tributos, eles recebiam essas concessões, obrigando-se a explorá-las e protegê-las”.
Esse período se encerra com a Lei de Terras de 1850.
Conforme Moreno (1994 e 2007), Stedile (1998), Rodrigues (1990), a legislação
fundiária brasileira e mato-grossense foi estruturada com base nos princípios da Lei de
Terras de 1850. Este documento, segundo Moreno (1994), reconhece e legitima o direito
de propriedade sobre as terras públicas e decreta sua aquisição mediante contratos de
compra e venda. A Lei de Terra foi, paulatinamente, adaptando-se aos interesses dos
grandes “proprietários”.
Desse modo, criaram-se as condições para o reconhecimento das sesmarias
havidas sem o preenchimento das formalidades legais, desde que estivessem ocupadas e
cultivadas. Além disso, assegurou-se o direito de preferência para a compra de terras
públicas que estavam sob o domínio particular. Como essas ocupações ocorriam em
grandes áreas, a aplicação da Lei beneficiava os grandes proprietários (grileiros e
posseiros). Sendo assim, excluía os pequenos posseiros desse benefício, uma vez que eles
não tinham condições de comprar a terra onde viviam e trabalhavam. Ou seja, a Lei
manteve os privilégios das Elites agrárias. Ora, se a Lei de Terras definia a compra como
único meio de aquisição de terras, ela tira dos povos indígenas qualquer direito sobre a
terra que ocupavam há muitos séculos. Em suma, foi uma lei feita para beneficiar os
29
grandes latifundiários, que não tinham somente o poder econômico, mas também
influenciavam o sistema político (MORENO, 1994).
Assim, ao conferir um preço à terra, restringe-se o acesso a ela e mantinha-se os
escravos libertos e imigrantes subordinados como mão de obra. Conforme Stedile (1998),
a partir dessa Lei, a terra se torna mercadoria capitalizada, impedindo que os pequenos
proprietários, escravos libertos e imigrantes pudessem adquirir um pedaço de terra para
se reproduzirem como camponeses. Nessa perspectiva, Stedile explica que:
[...] percebendo a inevitabilidade da libertação dos escravos, a Coroa tratou de legislar o processo de posse, para que o acesso à terra fosse mais restrito, assegurando a disponibilidade de mão-de-obra, já que os escravos libertos deveriam permanecer nas fazendas como trabalhadores assalariados. Nessa mesma época, na Europa, a tensão social agravava-se em decorrência da crise verificada, sobretudo no campo, onde crescia o número de camponeses pobres ou miseráveis compelidos a emigrar para a América, o que resolveria parcialmente os problemas sociais naqueles países. Mas esses camponeses europeus tinham já uma tradição de propriedade da terra e dificilmente seriam atraídos para a América para se tornarem assalariados rurais. (1998, p. 10-11).
Na mesma linha de raciocínio, Camacho (2011) conclui que o imigrante e o escravo
liberto não teriam acesso aos meios de produção. E, a partir desse momento, o
trabalhador foi banido de sua terra. A terra passa a ter um preço para que se torne
inacessível ao trabalhador e dominada pela aristocracia rural. Dito de outra forma: “[...] a
terra tornou-se uma mercadoria do modo de produção capitalista. Uma mercadoria que
tem um preço, só acessível a uma determinada classe” (CAMACHO, 2011, p.47). Esse
acontecimento histórico marcará, até hoje, a questão agrária no Brasil, pois, se oficializa,
a partir de então, a propriedade privada da terra, na lógica do capital e do mercado.
Fontes e Filho (2009) concluem que a Lei de Terras foi uma espécie de divisor de
águas em relação à territorialização do Brasil e de Mato Grosso, tanto na legitimação da
propriedade privada e do latifúndio, como na demarcação de terras públicas (devolutas)
do Estado brasileiro. Esse fato histórico marcará a questão agrária brasileira, dando início
ao processo de acumulação da terra como reserva de valor.
Camacho (2011) observa que o Brasil e, sobretudo Mato Grosso, durante toda sua
história, sempre foi controlado pelas oligarquias rurais que utilizaram seu poder
econômico e político para garantir que a distribuição da terra não fosse feita de maneira
30
igualitária, concentrando grandes extensões de terras nas mãos de uma minoria. E com a
Lei de Terras de 1850, essa realidade se torna, assim, cada vez mais desigual.
Moreno (1994), estudando os efeitos da Lei de Terras, constata a ocorrência de
três fenômenos distintos, contudo, relacionados: o primeiro diz respeito à adaptação das
Leis aos interesses dos grileiros e posseiros; o segundo refere-se ao processo de
privatização das terras públicas (devolutas) que continua sendo efetivado por meio de
invasões e ocupações de forma incontrolada; por último, constata-se a vinculação do
processo de privatização das terras públicas ao coronelismo.
1.2 - O PODER POLÍTICO DO CORONELISMO E DOS GRILEIROS
No período republicano, a Constituição de 1891 possibilitou a transferência das
terras públicas (devolutas) da União para os Estados. Nesse momento, com a implantação
do sistema federativo, os estados-membro passaram a ter o domínio das terras públicas
(devolutas) situadas em seus respectivos territórios.
No entanto, o processo de distribuição e regularização fundiária, ao invés de
beneficiar os pequenos posseiros, favoreceu os grandes posseiros e a criação de enormes
latifúndios.
A expansão da pequena propriedade, enquanto política fundiária, só fez parte dos discursos governamentais para justificar a consignação de verbas nos orçamentos para a construção de estradas e outras obras de infraestrutura. Ou seja, a expansão da pequena propriedade, naquele momento histórico, mostrava ser utópica, uma vez que toda a política fundiária estadual estava voltada para a expansão da grande propriedade, adequada ao sistema produtivo vigente e vinculada aos interesses oligárquicos. Soma-se a isso a ideia de que o Estado dispunha de grandes reservas de terras devolutas e era necessário estimular a sua venda para o seu povoamento. No entanto, a abundância de terras devolutas não significou a democratização do acesso à terra. (MORENO, 2007, p. 55).
Além disso, a complacência dos governadores estaduais, com relação aos abusos
cometidos pelos grandes latifundiários na apropriação das terras públicas, revelou-se
também na legalização de exageradas extensões de terras. Esse fato decorria dos abusos
dos latifundiários, que podiam controlar e manipular de perto o processo de regularização
fundiária. Embora o serviço de medição e demarcação de terras era feito por
agrimensores, mediado por juízes e cartórios, a burla à lei mantinha-se inalterada. Pois,
estes atores, por meio de mecanismos de burla à lei, podiam manobrar e controlar os
31
processos de venda ou regularização de terra, segundo seus interesses e dos proprietários
de terra (MORENO, 1994). Em outro estudo, a autora mostra que
A estratégia para burlar o limite constitucional consistia no parcelamento da gleba em vários lotes, até o limite máximo permitido, em nome de várias pessoas ligadas por laços de parentesco ou simplesmente que emprestava ou ‘vendiam’ seus nomes para a formalização do processo de habilitação. Para cada lote, eram constituídos processos individuais, onde cada requerente, codificado como ‘laranja’, devia apresentar seus documentos pessoais e do procurador, quando representado, e atender, comprovadamente, a todos os requisitos exigidos por lei, para fazer jus à regularização da ‘posse’ (...) grande parte das irregularidades praticadas ocorreu em nome da política fundiária do Estado, voltada basicamente à venda da terra que, em diversos governos, ocorreu de forma indiscriminada e com fins meramente especulativos (2007, p. 212-213).
Nesse período, foi chave a vinculação do processo de privatização das terras
públicas ao coronelismo. O coronelismo foi um componente característico do primeiro
período republicano em Mato Grosso. O fenômeno do coronelismo tem o seu fundamento
na concentração da propriedade enquanto base econômica de sustentação das
manifestações do poder político.
Após a proclamação da República dois grupos oligárquicos dominavam a vida
política e econômica de Mato Grosso, alternando-se no poder a oligarquia do norte
composta por usineiros, extrativistas e pecuaristas, e a oligarquia do sul, composta por
grandes pecuaristas e comerciantes.
O modelo de dominação baseado no sistema coronelista/oligárquico predominou em Mato Grosso até a primeira metade do século XX. Devido à sua natureza urbano-rural, as elites dominantes estabeleceram relações com o poder de Estado, salvaguardando seus interesses políticos e econômicos através de um sistema eleitoral baseado na troca de favores, onde a terra teve forte poder de barganha (MORENO, 2007, p. 49).
No Estado Novo - período ditatorial implantado por Getúlio Vargas - uma extensa
e intricada rede burocrática foi montada para dar sustentação e controlar os processos de
mudanças sociais e econômicas assumidos pelo Estado. A exigência desse aparato
burocrático contribuiu para o surgimento da política clientelista em substituição à política
dos coronéis. A dominação passou a se dar, sobretudo, pelo controle dos cargos políticos
e administrativos e pelo controle dos votos. Essa prática estendeu-se ao controle da
distribuição das terras públicas (devolutas) estaduais. Cada governo que assumia,
suspendia as concessões, as vendas e a tramitação normal dos processos de regularização.
32
Depois procedia à rápida regularização ou engavetamento dos processos pertencentes
aos adversários políticos (MORENO, 1994).
O processo de concentração fundiária foi, desse modo, sendo facilitado tanto por
uma legislação permissiva quanto pelas fraudes praticadas pelos proprietários, com a
conivência dos representantes do poder público, que faziam vistas grossas perante os
abusos cometidos, como praticar atos de burla à legislação vigente, por exemplo.
O problema não estava na lei, embora toda a legislação de terras fosse muito liberal. O fato é que havia um favorecimento declarado à regularização de grandes áreas, fosse resultante de pressões dos proprietários ou da própria política fundiária, que expressava interesses diversos na questão da terra (2007, p. 98). Os excessos de área, um dos mais graves mecanismos de burla, foram sistematicamente legitimados, tendo como punição apenas o pagamento atualizado das terras. Entre a expedição do título provisório e o título definitivo, as áreas aumentavam consideravelmente de tamanhos com a complacência dos governantes (2007, p. 100).
Controlado pelos Cartórios de Fé Pública, o processo de venda, nesse período,
caracterizou-se pelas especulações e fraudes de todo tipo, contribuindo com a informação
corrente em todo o país, de que o Mato Grosso havia vendido mais terras do que
efetivamente possuía, chegando a ultrapassar os limites geográficos do seu território. Em
suma, tanto a regularização fundiária como a venda de terras públicas foi efetivada dentro
de um complexo jogo de interesses envolvendo governantes, funcionários públicos e as
oligarquias estaduais (MORENO, 2007).
Segundo Moreno (2007), de 1892 a 1930, as terras públicas de Mato grosso
passaram para o domínio particular, por meio dos seguintes processos:
1) Regularização das concessões de sesmarias e legitimação das posses, normalmente, de grandes extensões; 2) Concessões gratuitas a imigrantes nacionais e estrangeiros e concessões especiais a colonizadores e empresas particulares; 3) Arrendamento e aforamento para a indústria extrativa de vegetais; 4) Contrato de compra e venda de terras devolutas (p. 77).
Conclui-se que a política fundiária do Estado, até 1930, reduziu-se a legitimação de
títulos de domínio, regularização indiscriminada de grandes áreas, cujas terras estavam
nas mãos de posseiros ou grileiros. Passando por atos fraudulentos, praticados por
grandes posseiros e grileiros, com a conivência dos responsáveis pelos serviços de
33
registro, medição e demarcação das terras, os governos estaduais promoveram a
regularização de grandes extensões de terras, forjando as bases para a atual concentração
fundiária do Estado de Mato Grosso (MORENO, 1994).
Por outro lado, passados 25 anos da promulgação da Constituição da República de
1988, que estabeleceu o direito dos remanescentes de quilombos à propriedade definitiva
de suas terras, nenhuma comunidade quilombola de Mato Grosso teve as suas terras
regularizadas. Atualmente, conforme o Ministério Público Federal, 68 processos estão em
trâmite na Superintendência Regional do INCRA em Mato Grosso para a regularização do
território de comunidades que já foram certificadas pela Fundação Palmares como
remanescentes de escravos. Dos 68 processos pendentes no INCRA de Mato Grosso, 50
deles não têm nem previsão para o início dos trabalhos de identificação e delimitação do
território. Os demais processos estão sendo encaminhados, a passos lentos. Apenas três
comunidades quilombolas já tiveram a etapa de identificação e delimitação concluídas.
Isso mostra, historicamente, as formas degradantes de tratamento a que os
remanescentes de quilombos foram submetidos desde o regime escravocrata, cujas bases
ideológicas se mantêm até hoje, marcadamente no seu direito à terra (BANDEIRA, 1988).
1.3 - POLÍTICAS DE COLONIZAÇÃO
Com a política de povoamento do território nacional, incentivada pelo governo
federal, os governos estaduais passaram a investir na fundação de núcleos coloniais,
subsidiados pelo governo federal. No entanto, entregaram esta tarefa a colonizadores ou
empresas particulares de colonização, por meio de concessões de terras reservadas à
colonização oficial ou privada. Moreno (1994) observa que a maior parte das
colonizadoras privadas não cumpriu os contratos e usava a terra para especular em
benefício próprio. Muitos grileiros, por sua vez, aproveitaram a oportunidade para
incorporar imensas porções de terra ao patrimônio particular.
A colonização foi implantada no Estado como parte da estratégia do governo
federal que visava a ocupação dos “espaços vazios” e o fortalecimento de seus domínios
nas áreas de fronteira (“integrar para não entregar”). Por meio da “Marcha para o Oeste”,
tentava-se conquistar o interior do país, cujo objetivo era a sua integração à economia
nacional.
34
Sendo assim, a partir do final da década de 1940, os governos mato-grossenses
aceleraram o processo de privatização de terras públicas (devolutas) e a legalização de
antigos latifúndios particulares. No campo da colonização, deram continuidade à política
federal de ocupação do Oeste brasileiro gestado por Getúlio Vargas.
Moreno (2007) conclui que a política de colonização serviu mais para controlar a
entrada de colonos imigrantes e a expansão da pequena propriedade. Todavia, o número
de imigrantes que veio para o Estado e o número de trabalhadores livres aqui existentes
não representavam forças suficientes para concorrer com os especuladores e provocar
um processo contrário à concentração fundiária. O fato é que havia um favorecimento
declarado à regularização de grandes áreas, fosse resultante de pressões dos
proprietários ou da própria política fundiária, que expressava interesses diversos na
questão da terra.
Nesse sentido, fazia parte também da política de regularização fundiária os
chamados projetos de ‘Colonização Empresarial’.
Foi assim que diversos empresários do centro-sul do país tornaram-se também grandes proprietários de terra em Mato Grosso. Inicialmente ‘ocupavam as terras ao longo das rodovias federais ou nas áreas consideradas indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacional, depois adquiriam-nas a preços simbólicos, justificado pela ocupação pioneira e desbravamento das áreas de cerrados ou floresta para a implantação de empresa capitalista. Para burlar a constituição no tamanho das áreas, recorriam a um ‘procurador’ que obtinha procurações de diversas pessoas, para requererem em nome de terceiros os títulos de propriedade das terras devolutas ‘já ocupadas’. Dos órgãos oficiais conseguiam declarações sobre a inexistência de índios ou de posseiros nas terras pleiteadas. Ao INCRA competia apenas sacramentar a ocupação, ou melhor, legalizar a grilagem titulando as terras onde normalmente eram desenvolvidos projetos agropecuários incentivados pelo governo (MORENO, 2007, p.164).
A implementação da política de colonização coincide com a criação do primeiro
Código de Terras (1930-1966), a partir do qual foram criadas as condições legais para um
novo reordenamento fundiário no Estado. Esse período é caracterizado pela venda
indiscriminada de terras públicas (devolutas). Conforme Moreno (1994), a política de
colonização foi transformada em um rendoso negócio de terras. Contudo, o tratamento
dado às questões de terras foi tão fraudulento, que ocasionou a suspensão das atividades
públicas do Departamento de Terras do Estado.
35
Uma prática que ilustra as fraudes do Departamento de Terras do Estado era a
emissão de títulos frios. A autora revela que estes títulos entraram no mercado de terra e
passaram a ser denominados “títulos voadores”, cabendo aos seus compradores ajustá-
los a alguma terra desocupada, condição necessária para a regularização da propriedade
real do imóvel.
Não obstante às irregularidades do processo de distribuição das terras do Estado,
Mato Grosso passou a concentrar uma infinidade de programas e projetos destinados à
ocupação e exploração das terras mato-grossenses. Segundo Moreno (1994), sob a
ideologia de segurança e integração nacional, os governos militares centralizaram e
militarizaram a questão fundiária nos Estados da Amazônia Legal, com o objetivo de
garantir a territorialização do capital. Conforme a autora, o território mato-grossense, que
já era alvo de especulação e disputa, passou a ser alvo estratégico para a implantação dos
chamados projetos de colonização empresarial.
A implantação da colonização foi, por conseguinte, estrategicamente concebida
para a viabilização desses projetos e para aliviar as tensões e conflitos sociais no campo,
provocadas pela forte concentração da terra em outros estados do país. Consoante
Moreno (1994), nas décadas de 1970-80, foi implantado em Mato Grosso 268 projetos de
colonização. Muitos deles nem foram executados. No entanto, todos serviram de pretexto
para a privatização de grandes áreas, muitas vezes avançando sobre áreas indígenas ou
áreas ocupadas por antigos posseiros, provocando o aumento de conflitos e violências no
campo e o fortalecimento da concentração fundiária no Estado.
Historicamente, a expropriação dos territórios indígenas está ligada aos movimentos de ocupação e colonização, normalmente relacionados aos ‘ciclos’ econômicos, que ocorreram no estado a partir do século XVIII, e às tentativas de colonização dirigida pelo governo federal. (...) Após a década de 1940, o processo de ocupação do território e a expropriação das nações indígenas vincularam-se primordialmente aos projetos governamentais de colonização (MORENO, 2007, p. 277-278).
Para Moreno, pois, a transformação das terras devolutas em reservas para
colonização tinha como estratégia proteger a grande propriedade privada e,
paradoxalmente, ocupar os espaços vazios, não obstante a presença de outros povos
vivendo milenarmente no território mato-grossense (SILVA, 2011).
36
1.4 - O PROCESSO DE OCUPAÇÃO RECENTE: A ABERTURA DA FRONTEIRA AGRÍCOLA
Durante as de cadas de 1970-80 o fluxo migrato rio para a regia o Centro Oeste foi
intenso. No iní cio da de cada de 1980, “em torno de um terço da populaça o brasileira
estava migrando do Sul, do Sudeste e do Nordeste para as regio es Centro Oeste e Norte”
em busca terra para viver e trabalhar (WITTER, 2004). A vinda de migrantes foi marcante,
pois,
Os migrantes vinham cada vez mais numerosos. As tenso es no campo, motivadas pela concentraça o da terra e pela polí tica de desenvolvimento agrí cola (monocultura mecanizada), empurravam cada vez mais migrantes para as novas a reas de colonizaça o que se localizavam na Floresta Amazo nica e no Cerrado, ao longo das rodovias rece m abertas. A propaganda das colonizadoras e do Governo Federal (homens sem terra para terra sem homens) foi decisiva para que o povo decidisse por esta regia o (WITTER, 1996).
Ora, é preciso entender que a intensa migração para Mato Grosso se insere no
processo mais amplo de construção capitalista do território, subjacente ao discurso oficial
de ocupar os espaços demográficos vazios e de integração nacional. Nesse caso, a
colonização, agrícola e empresarial, foi o grande agente da transformação regional mato-
grossense. Esse processo migratório induzido pelos governos militares pode ser
entendido da seguinte maneira:
Em primeiro lugar, pela sua transformação em área de fronteira agrícola e sua incorporação ao processo produtivo nacional, em virtude da redefinição da divisão social do trabalho, dentro da política de desenvolvimento traçada para o país pelos governos militares; e, em segundo, que a origem desse processo está ligada à histórica estrutura fundiária do país (...) dentro da lógica do processo de ocupação e construção capitalista do território. (...) A terra, como uma mercadoria qualquer, foi utilizada como principal atrativo para despertar o interesse dos empresários do sul e sudeste do país e dos migrantes da região centro sul (MORENO, 2007, p. 179-180). A política de colonização e ocupação do território facilitou as alienações irregulares e as doações de terras em troca de favores políticos, mas no final esses atos eram justificados e vistos por muitos como necessários ao povoamento do território (p. 193).
De acordo com Siqueira (apud SILVA, 2011, p. 33), o estímulo para migrar para o
Centro Oeste:
[...] tinha como meta fazer que as fronteiras econômicas e políticas convergissem e, para isso, era necessário que a nação se constituísse
37
territorialmente num bloco homogêneo. Tornava-se, portanto, essencial povoar os “espaços vazios” e promover sua integração política.
Dessa forma, no auge da expansão da fronteira agrícola, exacerbou-se o processo
de expropriação, tornando mais acirrada a luta dos povos autóctones contra o capital.
Porém, a disputa era assimétrica, pois “afigurava-se uma luta entre desiguais, envolvendo,
de um lado, índios e ou posseiros e, de outro, latifundiários, empresários ou grileiros”
(MORENO, 2007, p. 196).
Nesse sentido, em nome da ocupação dos espaços vazios e da política de integração
nacional “anularam-se a presença de outras formas de ocupação dos espaços”,
sobrepondo-se a “lógica dos capitais à lógica dos povos”, “do espaço como lugar de viver
(habitat)” e do “espaço como lugar do negócio (mercadoria)” (SILVA, 2011, p. 35). Mato
Grosso construiu “campos ricos de grãos e pobres de gente e cultura” (VAILANT, 2005,
apud SILVA p. 35).
Ora, os campos são pobres de gente porque toda monocultura requer o uso de
grandes extensões contínuas de terra. De acordo com Schlesinger (2013, p. 16-18), onde
“ela se instala, concentra a propriedade do território” (...) com isso, “as pequenas
propriedades de agricultores familiares estabelecidas em áreas de interesse da
monocultura terminam, em geral, mudando de dono...”. Assim, altamente mecanizada, a
monocultura não gera trabalho no campo, um dos principais “motivos da contínua
redução dos postos de trabalho” no meio rural.
A análise da estrutura fundiária e da organização social do processo produtivo
demonstra que, em Mato grosso, o latifúndio ou a grande propriedade, pouco ou
escassamente trabalhado, cedeu lugar à grande empresa rural. Ou seja, a colonização do
Estado favoreceu a expansão do agronegócio, que se configurou em um modelo de
produção baseado na monocultura, na concentração fundiária, na mecanização pesada, na
degradação ambiental e redução da água disponível, no uso intensivo de agrotóxicos,
fertilizantes e transgênicos.
Além disso, um dos mais graves impactos ambientais da monocultura é a “redução
da água disponível em função do desmatamento e a contaminação das águas por
agrotóxicos” (SCHLESINGER, 2013, p. 20). Ademais, a monocultura da soja produz outros
impactos ambientais, não menos graves, como adverte o autor.
38
Assoreamento de corpos d’água, devido à erosão do solo em áreas de renovação de lavoura. Esse assoreamento, além dos danos ambientais, pode ter como consequência a redução do potencial das hidroelétricas e da captação de água para o abastecimento público, entre outros problemas; Redução da biodiversidade, causada pelo desmatamento e pela implantação da monocultura; Contaminação dos solos e da água, provocada pela utilização intensiva de agrotóxicos; Emissão de gases de efeito estufa, como resultado do desmatamento (2013, p. 19).
CONSIDERAÇÃO FINAL
Em suma, verificamos que o emaranhado e a grande quantidade de leis e decretos
que foram sendo criados para disciplinar o processo de acesso à terra, serviu mais para
inibir a expansão da pequena propriedade e selar o compromisso dos governantes com
as classes rural e empresarial. É essa articulação entre o poder político e o poder
econômico, sustentada pelos mecanismos institucionais e jurídicos, que permitiu a
transformação das terras devolutas e públicas no Estado em propriedades privadas,
fortalecendo, de um lado, a estrutura fundiária existente e, de outro, criando as condições
necessárias para a territorialização do capital. Não se pode entender a questão fundiária
em Mato Grosso, hoje, sem passar pela análise dessa articulação que se revestiu de
múltiplos interesses de classe.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território Negro em Espaço Branco. São Paulo: Brasiliense, 1988. CAMACHO, Rodrigo Simão. A histórica concentração fundiária do Brasil: estudo de caso do município de Paulicéia/SP. Geografia em questão. V. 04. N. 01. 2011. CAVALCANTE, Matuzalem Bezerra. Mudanças da estrutura fundiária de Mato Grosso (1992-2007). Dissertação (mestrado). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. Presidente Prudente. 2008. FILHO, José Luiz Alcântara e FONTES, Rosa Maria Oliveira. A formação da propriedade e a concentração de terras no Brasil. Revista de História Econômica & Economia Regional Aplicada – Vol. 4, Nº 7, Jul-Dez, 2009. MARTINS, José de Souza. Expropriação e Violência: a questão política no campo. 3ª ed. São Paulo: Hucitec, 1991. Ministério Público Federal. Nenhum território quilombola está regularizado em Mato Grosso. Disponível em: http://noticias.pgr.mpf.mp.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/inercia-nenhum-territorio-quilombola-esta-regularizado-em-mato-grosso.
39
MORENO, Gislaene. Os (Des) Caminhos da Apropriação da Capitalista da Terra em Mato Grosso. Tese de Doutorado. FFLCH/USP/SP, 1994. ________________. Terra e Poder em Mato Grosso: política e mecanismos de burla (1892-1992). Cuiabá, MT: Entrelinhas/EdUFMT, 2007. RODRIGUES, Arlete Moisés. Moradia nas cidades brasileiras. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 1990. SCHLESINGER, Sérgio. Dois casos sérios em Mato Grosso. A soja em Lucas do Rio Verde e a cana-de-açúcar em Barra do Bugres. Mato Grosso: FORMAD, 2013. SEVERIANO, Mylton. Enfermaria: Reforma Agrária já! (um século atrás). Revista Caros Amigos, São Paulo: Casa Amarela, ano 11, n. 130, p. 11, jan. 2008. SILVA, Regina Aparecida da. Do invisível ao visível: o mapeamento dos grupos sociais do estado de mato grosso – Brasil. Tese (Doutorado). Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Universidade Federal de São Carlos, 2011. STEDILE, João Pedro. Questão agrária no Brasil. São Paulo: Atual, 1998. WITTER, Teobaldo. Olho por olho e a Chacina de Matupá, Mato Grosso: dimensões educacionais. Cuiabá, MT. 2004. Disponível em: http://ead2.est.edu.br/site_est/inscricoes/cursos/extensao/arquivos/Cursos_de_inverno/376/trabalho_TeobaldoWitter.doc Acesso em 30/05/2015. ________________. História da IECLB no Mato Grosso. Palestra na reunião do Distrito Mato Grosso -IECLB. Chapada dos Guimarães, MT, 5 a 7 de junho de 1996. (mimeo).
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CAPÍTULO 2
DIREITOS HUMANOS: TERRA E TERRITÓRIO MST/MT
RENAP/MT
2.1 - MODELO ESTRUTURADO PARA CONCENTRAÇÃO E APROPRIAÇÃO CAPITALISTA
Rosangela Rodrigues da Silva
O modelo de desenvolvimento econômico do Brasil foi estruturado para dar
suporte ao processo de acumulação de riquezas da burguesia. A concentração da terra e
sua transformação em mercadoria deram suporte a todo o desenvolvimento do sistema
capitalista nacional. Gorender (2013) reflete sobre a formação do capitalismo e como a
terra tornou-se mercadoria e potencializou o domínio econômico no país, “o fundamental
para o domínio econômico passou a ser o domínio da terra. A terra passou a ter um preço
importante. Dominar a terra passou a significar dominar a própria economia” (p. 31).
É por meio da modernização da agricultura que as formas tradicionais de produção
se alteram e o campo passa por transformações de sua estrutura produtiva, ou seja, os
insumos industriais compõem o novo cenário de produção da agricultura, os produtores
tornam-se empresários rurais e os latifúndios se transformam em empresas rurais. Com
isso a agricultura torna-se subordinada à indústria, potencializando assim a seletividade
de quem vive e trabalha no campo. Segundo Delgado (1985) “o processo de modernização
se realiza com intensa diferenciação e mesmo exclusão de grupos sociais e regiões
econômicas” (p. 87).
O que se assiste nos últimos períodos é o aumento da concentração da propriedade
rural, pois milhares de estabelecimentos deixaram de existir, dando lugar para a crescente
concentração da terra. Os dados apresentados pelo senso agropecuários do IGBE, em
2006, demonstram o alto índice de concentração de terra ocupada pelas grandes
propriedades.
[...] os pequenos estabelecimentos – com menos de 10 hectares – contabilizam 2.477.071 (47,9% do total), mas a área ocupada pelos mesmos é de apenas 7.798.607 (2,4 % do total), ao passo que, no polo oposto, os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares são apenas 46.911 (0,9% do total), mas ocupam 146.553.218 hectares (44,4% da área total) [grifo meu] (ALENTEJANO, 2012, p. 354).
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Outra consequência nefasta do modelo de desenvolvimento capitalista implantado
no campo brasileiro é a expulsão de milhares de camponeses que não podem mais viver
e trabalhar no campo e comporão as fileiras de trabalhadores assalariados nas cidades,
ou serão jogados às margens da sociedade sem perspectivas. O êxodo rural é um
fenômeno ocasionado por este processo de transformação da agricultura. É o que
podemos concluir do estudo de Wanderley (2011).
O êxodo rural visto em seu conjunto é, sabidamente, um antigo processo de mobilidade demográfica, porém a dimensão e a intensidade que alcançou no período representam, sem dúvida, um fato novo, resultado dos processos de expropriação e de marginalização dos trabalhadores e pequenos agricultores camponeses, em consequência das formas adotadas da modernização da agricultura (p. 45).
2.2 - TERRAS PÚBLICAS E ÁREAS DEVOLUTAS
Desde o início da formação do Brasil a terra tornou-se sinônimo de riqueza e poder.
Em consequência, as disputas pelo controle da terra sempre foram acirradas e violentas,
no intuito de garantirem o domínio da propriedade privada da terra. Foi após a criação da
Lei de Terras de 1850 que a terra passou a ser legalmente considerada uma propriedade
privada “e com ela, o mercado de terras, uma vez que a terra passa a ser acessível apenas
por meio da compra” (ALENTEJANO, 2012, p. 740). Com a criação do instituto legal de
aquisição da terra, os camponeses e pequenos agricultores foram mais uma vez excluídos
da possibilidade de serem donos de terra no país.
Porém, como antes já aconteceu no Brasil, a legislação possibilitou que os
latifundiários que detinham as terras de forma irregular pudessem regularizá-las,
comprovando que as ocupavam antes da promulgação da Lei de Terras. Nesse momento
foi “inaugurado uma verdadeira corrida mediante a grilagem20 de terras no Brasil, [...] isto
deu margem à falsificação de documentos artificialmente forjados como antigos, a fim de
assegurar o controle sobre as terras” (ALENTEJANO, 2012, p. 741).
Hoje, no Brasil, existem outras formas de acesso à terra além da propriedade
privada. Temos as terras tradicionalmente ocupadas por comunidades extrativistas e
quilombolas, terras da reforma agrária, áreas em que foram realizados assentamentos,
20 Os salvos proprietários de terras utilizavam-se da pratica de colocar papeis, títulos novos de terras forjados em cartório de registro, em gavetas com grilos, para que esses documentos envelhecessem com as secreções desses animais, para ficarem com a aparecem de documentos antigos, que serviam de prova da posse antiga dos falsários (WANDERLEY, 2011).
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terras indígenas, terras da marinha, terras de faixas de fronteiras e as terras devolutas21.
Todas essas terras compõem o patrimônio da União, ou seja, são terras públicas
destinadas a um uso social, especial ou não, “das terras públicas podem-se destacar as
devolutas, que pertencem à União, nos termos do art. 20, III, da Constituição Federal da
República” (GASPARINI, 2012, p. 1036).
As terras devolutas, “supostamente vagas”, que não estão “destinadas a qualquer
uso público nem legitimamente integradas ao patrimônio particular” (GASPARINI, 2012,
p. 1033), compõem por legitimidade o patrimônio da União. No entanto, as mesmas terras
são ocupadas de forma fraudulenta por grileiros que se apropriaram, em muitos casos,
por meio da força/violência privada e, por vezes, com o apoio e favorecimento de
funcionários dos órgãos públicos e dos cartórios de registro de imóveis.
Segundo estudo apresentado pelo INCRA do ano de 1999 (INCRA, 2014), em um
dossiê intitulado “O livro branco da grilagem de terras no Brasil” identificou um número
superior a 100 milhões de hectares de áreas devolutas que foram apropriadas por
particulares por meio de falsificação de documento. “A grilagem é um dos mais poderosos
instrumentos de domínio e concentração fundiária no meio rural brasileiro. Em todo o
país, o total de terras sob suspeita de serem griladas é de aproximadamente 100 milhões
de hectares” (INCRA, 2014, p. 2).
Do total das 100 milhões de hectares de terras devolutas identificadas pelo INCRA
em 1999, 22.779.686 estavam em Mato Grosso, referentes a 960 imóveis. O estado de
Mato Grosso apresentou a maior quantidade de hectares de terra e de imóveis que
estavam apropriados por particulares de forma ilegal, situação que está no cerne dos
graves conflitos sociais pela terra em Mato Grosso.
Estima-se que hoje esses números se multiplicaram, pois no ano de 2003 o INCRA
apresentou outro levantamento, no qual identificou que as terras devolutas
ultrapassavam um número superior a 400 milhões de hectares, segundo dados
apresentados por Oliveira, em estudos realizados sobre o tema, “Pelos dados disponíveis
no Incra, em 2003 a área ocupada pelas terras públicas devolutas era superior a 400
21 A Lei de Terras (1850), em seu artigo 3º define, por exclusão, o que são terras devolutas: “(...) § 1º As que não se acharem aplicadas a algum uso público; § 2º As que não se acharem no domínio particular por qualquer titulo legitimo; § 3º As que não se acharem dadas por sesmarias; § 4º As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em titulo legal, foram legitimadas por esta Lei” (Brasil, 2015).
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milhões de hectares, ou seja, quase a metade do território nacional” (OLIVEIRA, 2008, p.
2).
2.2.1 - Dados de MT
Das terras devolutas que foram arrecadas pelo INCRA, apenas foram destinados
um total de 37,9 milhões, o restante das áreas devolutas continua sem a devida
destinação, estando elas distribuídas da seguinte forma, conforme apresentado por
Ariovaldo Umbelino de Oliveira (VALOR ECONÔMICO, 2008), “67,8 milhões de hectares
assim distribuídos (em milhões): 4,9 em Rondônia; 6,29 no Acre; 20,9 no Amazonas; 9,2
em Roraima; 17,9 no Pará; 1,03 no Tocantins; 5,7 no Mato Grosso; e 1,7 no Maranhão”.
Estas terras não destinadas do INCRA estão “cercadas e apropriadas privadamente”, ou
seja, Mato Grosso tem, segundo os números do INCRA, 5,7 milhões de hectares
apropriados indevidamente por grileiros.
A não destinação das terras devolutas apropriadas ilegalmente apresenta-se como
um favor de extrema gravidade que impossibilita solucionar os conflitos existentes no
país relacionado à luta pela terra e território e potencializam a concentração da estrutura
fundiária brasileira.
Um dos exemplos desta situação foram os graves acontecimentos ocorridos no
município de Luciara ano de 2013, que envolveram uma erupção de conflitos e ameaças a
lideranças camponesas dos retireiros do Araguaia e apoiadores do movimento de criação
de uma unidade de conservação para uso destas comunidades tradicionais. A partir deste
conflito, no ano de 2014, foi identificada uma área da União entre os estados de Mato
Grosso, Goiás e Tocantins, com mais de 1,5 milhão de hectares, grande parte já destinada
a terras indígenas, áreas municipais e unidade de conservação no interior da Ilha do
Bananal.
Ficou claro assim, que parte dos conflitos naquela localidade envolvem a disputa
por áreas da União indevidamente tituladas pelo Estado de Mato Grosso, pois como
poderia a União, através de sua Superintendência do Patrimônio da União, identificar um
imóvel como seu, à luz do artigo 20 da Constituição Federal, sendo que o mesmo se
encontra titulado pelo próprio Estado de Mato Grosso? O que Estado e União têm a dizer
sobre isso?
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Vê-se que, além do próprio fato de que muitas áreas públicas têm sido
indevidamente apossadas por particulares, órgãos de estado legitimaram tais ocupações.
Além disso, se há de fato um conflito de interesses entre particulares, estado e União, e
mesmo entre os entes, estes últimos, é necessário a realização de um amplo diagnóstico
que aponte quais são e onde estão as terras públicas de Mato Grosso, de maneira a dar a
melhor destinação social e ambiental para as mesmas.
Se grande parte das terras públicas já foi apropriada por particulares
indevidamente, o atual modelo do agronegócio e com ele a expansão das fronteiras
agrícolas sobre a Amazônia e sobre as áreas pantanosas (como o Araguaia, Guaporé, rio
Das Mortes e Pantanal) também amplia a cobiça sobre as mesmas. Uma possível ameaça
a estas áreas se deve ao fato de que a necessidade de regularização ambiental das
propriedades rurais traz a exigência de manutenção de um determinado percentual das
propriedades em regime de reserva legal, no qual não é permitido o corte raso da
vegetação. As propriedades que não possuem este percentual (que varia de região a
região, dependendo da vegetação de ocorrência na propriedade) podem compensar esta
reserva legal em outras áreas privadas ou em unidades de conservação que carecem de
regularização ambiental.
Assim, este mecanismo de compensação de reserva legal poderia permitir a busca
por áreas rurais para compra e manutenção de reservas legais. Então, o agronegócio teria
a possibilidade de expandir seus territórios para além do núcleo de produção. Deste modo
cabe perguntar: são as áreas públicas indevidamente apropriadas alvo potencial de
proprietários mal-intencionados para compensação de reserva lega? Seriam as áreas
pantanosas nas margens de rios – de propriedade do Estado ou da União –, pouco
cobiçadas para a produção agrícola em função de seu baixo potencial para a produção de
grãos, um potencial produto no mercado de terras? Em outras palavras, estariam as áreas
dos camponeses, que sobrevivem da agricultura familiar, com menor tecnificação e
atendendo a mercados locais, ameaçadas por, agora, terem potencial de inserção no
mercado de terras, em função do mecanismo de compensação da reserva legal? Apenas
um claro diagnóstico e a correta destinação das áreas públicas, por parte do Poder
Público, pode ajudar a responder.
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2.3 - CONFLITOS NO CAMPO GERAM MORTES E AMEAÇAS DE MORTE DE CAMPONESES EM MATO GROSSO
As consequências negativas do processo de desenvolvimento no campo, por meio
da concentração da terra e das riquezas, potencializam o processo de conflitos no campo,
pois as forças populares resistem das mais variadas formas para permanecerem no meio
rural. A luta pela terra e pelo território sempre foi marcada pela violência dos
proprietários e pela violência Estatal e, de outro lado, pela luta, resistência e organização
dos camponeses, dos povos tradicionais, das comunidades indígenas, etc.
Dentre as formas de violência empregadas contra os povos do campo estão os
assassinatos, as tentativas de assassinatos, as ameaças de morte, a expulsão das terras, os
despejos e outras formas de violência física e psicológica, que são praticadas de forma
privada, quando os particulares as promovem, com suas mãos ou por meio de contratação
de milícias ou jagunços, e pelo Estado, que exerce de forma institucionalizada a violência,
por meio da polícia e do poder judiciário contra os trabalhadores. O Estado também é
detentor da forma de violência passiva, quando por omissão não evita que os povos do
campo sejam vítimas da violência física, psicológica ou até mesmo moral.
A atuação do Estado seja ela ativa, quando a violência é promovida pelos poderes
estatais constituídos, ou passiva, quando o Estado se omite em promover ações que
eliminem a violência, resultam na criminalização dos Movimentos Sociais de luta pela
terra e território, ocasionando assim o índice crescente de violência contra as pessoas e
organizações sociais no país.
Dados do caderno de conflitos organizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT)
demonstram que os povos do campo continuam sendo vítimas de violência. E a violência
no campo não atingem apenas os camponeses e sem terras, mas também os povos
indígenas, as comunidades ribeirinhas e quilombolas, que sempre foram e são vítimas da
ação violenta do Estado e das forças privadas. Os dados apresentados comprovam que os
números de casos de assassinatos no campo tiveram um aumento no ano de 2014, se
comparados com os anos anteriores, ou seja, “o número de assassinatos manteve-se
relativamente estável: de 38 em 2005, atinge seu ponto mais baixo em 2009, ponto de
inflexão para um novo aumento progressivo que redundará em 36 casos em 2014” (CPT,
2014, p. 27).
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O número de conflitos no campo em Mato Grosso no ano de 2014 foi de 39 e
envolveu um grupo bastante expressivo de pessoas, ou seja, foram 14.339 pessoas de
diferentes grupos sociais, segundo dados da CPT (2014) que estiveram envolvidos nestes
conflitos, potencializando assim a atuação privada de grupos de proprietários contra os
trabalhadores. A reação contrária à luta e organização desses trabalhadores é identificada
na ação violenta dos proprietários de terras, que promoveram 5 assassinatos de
camponeses, 1 tentativa de assassinato e 8 ameaças de morte no ano de 2014.
No estado de Mato Grosso o índice de violência contra os povos do campo também
teve aumento preocupante no último ano. Em apenas 8 meses houve o assassinato de 5
trabalhadores rurais; um dado ainda mais alarmante é que das 5 vítimas, 3 eram
lideranças, ou seja, a atuação das forças conservadoras está qualificada, pois ao atingir as
lideranças promovem uma desmobilização do grupo social organizado, enfraquecendo
assim a luta pela terra e território. Até o momento de conclusão deste relatório as
investigações ainda não tinham sido concluídas.
Os camponeses e as demais populações do campo sofrem com o descaso do Estado
ao não promover políticas públicas que garantam a efetivação de direitos fundamentais,
como o acesso à terra e ao território, a moradia digna no campo, a saúde, educação de
qualidade e outras políticas de fundamental importância para o desenvolvimento político,
social e econômico desses trabalhadores e trabalhadoras.
2.4 - CONCENTRAÇÃO DA TERRA EM MATO GROSSO
Vanderly Scarabeli
As condições jurídicas e políticas para concentração da propriedade da terra em
Mato Grosso vêm desde o período da colonização imperial, passando pela expansão da
fronteira agrícola capitalista até o advento do agronegócio. No Estado de Mato Grosso, um
dos principais polos do agronegócio no país, a má distribuição da terra é evidente e tem
se tornado uma das principais causas de conflitos sociais. No total, "3,35% dos
estabelecimentos, todos acima de 2.500 hectares, detêm 61,57% das terras. Na outra
ponta, 68,55% dos estabelecimentos, todos até 100 hectares, somente ficam com 5,53%
das terras".
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Na tabela 1 a relação da agricultura familiar com o agronegócio no Centro-oeste e
em Mato Grosso:
Região Agricultura Familiar (Lei 11.326)
Agronegócio
Estabelecimentos Área (há) Estabelecimentos Área (há)
Centro-oeste 217 531 9 414 915 99 947 94 382 413 Mato Grosso do Sul
41 104 1 190 206 23 758 28 856 741
Mato Grosso 86 167 4 884 212 26 811 42 921 302 Goiás 88 436 3 329 630 47 247 22 353 918 Distrito Federal 1 824 10 867 2 131 240 453
Tabela 1 - Fonte: IBGE - Censo agropecuário 2006.
2.5 - REFORMA AGRÁRIA CLÁSSICA E REFORMA AGRÁRIA POPULAR
2.5.1 - Reforma Agrária Clássica
O capitalismo, em distintos períodos históricos, deu ênfase a diferentes programas
de reforma agrária. Na transição do feudalismo europeu – até mesmo do modo de
produção asiático e das sociedades pré-capitalistas em geral – para o capitalismo
comercial, os camponeses lutaram pelo direito ao acesso à terra, contra as oligarquias
rurais e os senhores feudais. Essas lutas, restritas às demandas dos próprios camponeses,
ainda não se caracterizavam como lutas pela reforma agrária.
Somente a partir do desenvolvimento do capitalismo industrial no século XVIII é
que a expressão “reforma agrária” começou a ser utilizada. Nesse período, a Reforma
Agrária passou a ser uma política de governo e de Estado para mudar a estrutura da
propriedade e da produção agrícola de um país e, consequentemente, atender as
demandas das nascentes sociedades urbano-industriais.
A mudança na estrutura fundiária, a partir dessa perspectiva, atendia os interesses
imediatos dos camponeses que lutavam pela posse da terra e contra a espoliação dos
grandes proprietários. Mas ia além, era uma exigência para impulsionar os processos de
industrialização e para criar e consolidar o mercado interno das sociedades capitalistas.
Ao democratizar a propriedade da terra, desapropriando os senhores das terras e
superando os resquícios do feudalismo, o Estado burguês visava transformar os
camponeses em produtores de mercadorias para a indústria e de alimentos para a
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população urbana e, com isso, obter renda para serem compradores/consumidores de
origem industrial.
Esse tipo de Reforma Agrária, iniciado nos países da Europa Ocidental e nos
Estados Unidos, a partir de 1870, estendeu-se pelos países de todo o hemisfério norte até
a década de 1950, com a guerra da Coréia. A reforma agrária nos diferentes países e
tempos históricos serviu de apoio aos processos de desenvolvimento industrial
implantados pela burguesia.
Essas mudanças nas estruturas fundiárias, feitas pelo Estado burguês, nos
diferentes países são as chamadas reformas agrárias clássicas burguesas ou,
simplesmente, reformas agrárias burguesas. Em comum, elas têm as seguintes
características: eram realizadas pelas burguesias industriais; potencializavam o mercado
interno através da democratização da propriedade da terra; e buscaram transformar os
camponeses em produtores e consumidores de mercadorias.
2.5.2 - Reforma Agrária Popular
A ofensiva neoliberal sobre a agricultura brasileira, iniciada no governo de
Fernando Henrique Cardoso, se consolidou na década de 2000, implantando um novo
modelo de agricultura, não mais para atender prioritariamente as demandas do modelo
de desenvolvimento de uma indústria nacional (1930-1980) e da necessidade do mercado
interno. É um novo modelo de dominação do capital no campo, para atender as demandas
do mercado externo. Agora, é um modelo dos fazendeiros capitalistas em aliança com o
capital internacional e financeiro, que passa a acumular a riqueza produzida no campo.
O neoliberalismo inviabilizou qualquer possibilidade de uma reforma agrária de
natureza clássica burguesa; até mesmo a realização de assentamentos de forma pontual
tem diminuído drasticamente. É nesse contexto que se produziu um projeto de reforma
agrária popular para o brasil.
O conceito “popular” busca identificar a ruptura com a ideia de uma reforma
agrária clássica feita nos limites do desenvolvimento capitalista e indica o desfio de um
novo patamar de forças produtivas e de relações sociais de produção, necessárias para
outro padrão de uso e de posse da terra. Trata-se de uma luta e de uma construção que
estão sendo feitas desde já, como resistência ao avanço do modelo de agricultura
capitalista e como forma de reinserir a reforma agrária na agenda de lutas dos
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trabalhadores. Reforma Agrária popular significa também o atendimento da população
que mora nas cidades com alimentos saudáveis e não somente o atendimento
coorporativo de distribuição de terras para os camponeses.
2.5.3 - Fundamentos do Programa de Reforma Agrária Popular
a) Terra: A terra e todos os bens da natureza, em nosso território nacional, devem
estar sob o controle social e destinados ao benefício de todo o povo brasileiro
e das gerações futuras. Para isso devemos lutar para democratizar o acesso à
terra, às águas, à biodiversidade (florestas, fauna e flora), minérios e fontes de
energia, impedir a concentração da propriedade privada da terra, demarcar e
respeitar todas as áreas dos povos indígenas e das comunidades quilombolas,
ribeirinhas, extrativistas, de pescadores artesanais e tradicionais.
b) Bens da Natureza: As águas e as florestas nativas são bens da natureza e eles
devem ser tratados como um direito de todos os trabalhadores. Eles não podem
ser tratados como mercadorias e nem objeto de apropriação privada.
Reflorestar as áreas degradadas com ampla biodiversidade de árvores nativas
e frutíferas, assegurando a preservação ambiental.
c) Sementes: As sementes são um patrimônio dos povos a serviço da humanidade
e não pode haver sobre elas propriedade privada ou qualquer tipo de controle
econômico; preservar, multiplicar e socializar as sementes crioulas, sejam
tradicionais ou melhoradas, de acordo com a biodiversidade dos nossos biomas
regionais, para que todo o campesinato possa usá-las.
d) Produção: Toda produção será desenvolvida com o controle dos trabalhadores
sobre o resultado de seu trabalho. As relações sociais de produção devem abolir
a exploração, a opressão e a alienação. Assegurar que a prioridade seja a
produção de alimentos saudáveis, em condições ambientalmente sustentáveis,
para todo povo brasileiro e para as necessidades de outros povos. Utilizar
técnicas agroecológicas, abolindo o uso de agrotóxicos e sementes transgênicas
e promover as diversas formas de cooperação agrícola, para desenvolver as
forças produtivas e as relações sociais.
e) Energia: Devemos construir formas para que se desenvolva a soberania
popular sobre a energia em cada comunidade e em todos os municípios
brasileiros. Desenvolver de forma cooperativada a produção de energia a nível
local, com as mais diferentes fontes de recursos renováveis para atender as
necessidades de todo povo brasileiro.
f) Educação e Cultura: O conhecimento deve ser um processo de
conscientização, libertação e de permanente elevação cultural de todos e todas
que vivem no campo. Garantir à população que vive no campo o acesso aos bens
culturais e o direito à educação pública, gratuita e de qualidade, em todos os
níveis e combater permanentemente todas as formas de preconceito social,
para que não ocorra a discriminação de gênero, idade, etnia, religião,
orientação sexual, etc.
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g) Direitos Sociais: Os(as) trabalhadores(as) rurais sob regime de
assalariamento devem ter os mesmos direitos sociais, previdenciários e
trabalhistas garantidos e equivalentes aos trabalhadores urbanos e as relações
de trabalho devem ser construídas sobre base da cooperação, gestão social e de
combate a alienação. Combater de forma permanente e intransigente o
trabalho análogo à escravidão, desapropriando todas as fazendas e empresas
que fazem uso dessa prática, bem como de todas as formas de violência contra
as mulheres e crianças, penalizando exemplarmente seus praticantes.
h) Condições de vida para todos e todas: O campo deve se constituir num local
bom de viver. Onde as pessoas tenham direitos, oportunidades e condições de
vida dignas.
O programa de reforma agrária popular não é um programa socialista, embora os
objetivos estratégicos da nossa luta sejam os de construir uma sociedade com formas
superiores de socialização da produção, dos bens da natureza e um estágio das relações
sociais na sociedade brasileira. Uma Reforma Agrária socialista, que tem como alicerce a
socialização das terras, exige a execução de políticas de um Estado socialista e será
resultante de um longo processo de politização, organização e transformações culturais
junto aos camponeses, ou seja, de uma revolução social. Condições objetivas e subjetivas
que não estão na ordem do dia desse período histórico. A função da reforma agrária
popular é de contribuir ativamente com as mudanças estruturais necessárias e, ao mesmo
tempo, é dialeticamente dependente dessas transformações.
2.6 - A FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA
Vilson Nery
Os marcos objetivos que conceituam a “função social da terra” estão desenhados
na Constituição Federal (artigo 186), e dali se extrai que cumpre sua finalidade social a
propriedade rural que, simultaneamente, faça o aproveitamento racional e adequado do
espaço, inclusive dos recursos naturais, observe o direito dos trabalhadores e, ainda, que
a exploração econômica venha a favorecer o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores.
A rigor, o conceito jurídico da função social está presente em outros dispositivos
constitucionais, a saber: os que tratam de direitos e garantias individuais (art. 5º inciso
51
XXIII); trata-se de um princípio da atividade econômica a ser observado (art. 170 inc. III);
exige-se tal parâmetro na atuação das empresas públicas, como a Caixa Econômica
Federal, Correios e congêneres, como objeto de sua mercancia (art. 173, §1º inc. I); é um
dos pilares da propriedade urbana (art. 182 §2º) e permite desapropriação, quando
violada a função social da propriedade (art. 184 caput).
Entendemos que a terra e a propriedade cumprem a função social a partir do
momento em que, naquele quadrante, o homem obtenha um local para sua morada, e dali
seja capaz de extrair alimentos para a manutenção própria e de sua família.
No plano agrarista, a propriedade da terra está intrinsecamente ligada a quem nela
trabalha, pertence a quem produz, assistindo ao produtor rural o direito de estar e
permanecer, enquanto produz alimentos para a própria subsistência.
Tanto é verdade que a Carta Magna elencou a propriedade entre os direitos
fundamentais, mas desde que cumpra a sua função social, esta é a condicionante. Sob esse
prisma, percebemos que o direito à propriedade da terra não é absoluto, pois o dever de
cumprir sua função social é superior, não há colisão de direitos, mas sim uma
concordância prática: um só existe se presente o outro.
E, ademais, quando se trata de política urbana, o direito de propriedade está
situado na mesma hierarquia que o direito à moradia, presente no artigo 6º da Carta
Magna.
A reforma agrária é uma das formas mais eficazes para se reordenar a estrutura
fundiária, restabelecendo a função social da terra e da propriedade rural.
2.6.1 - O caso Jardim Gramado (Cuiabá, 2014)
Mas o caso é que a estrutura estatal, somados o Poder Judiciário e o Comitê de
Conflitos existente no Poder Executivo de Mato Grosso, não tem sido competente para
afastar as tensões na disputa de terras no campo, e menos ainda nas áreas urbanas de
ocupação de famílias carentes.
Recentemente, em 2014, ocorreu a reintegração de posse de 140 famílias
moradoras da região do Jardim Gramado II, em Cuiabá; na atualidade cerca de 40 delas,
com idosos e crianças incluídos, estão alojados em um centro comunitário situado no
Bairro Parque Geórgia (beira do rio Cuiabá). A posse da área do conflito foi concedida a
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uma empresa incorporadora, que pretende construir um prédio no local, no processo
judicial foram juntados documentos inidôneos, mas nada disso convenceu a magistrada
do feito e nem o promotor de justiça que atuam na Vara Especializada de Direito Agrário
de Cuiabá.
Em suas manifestações no processo em curso na vara agrária, os moradores
lembraram que os recursos orçamentários públicos foram utilizados para dar solução ao
direito de moradia dos juízes, com a criação do auxílio-moradia, pelo Conselho Nacional
de Justiça (Resolução nº 199). Deste modo cada um dos 16 mil juízes em atuação no Brasil
recebe pelo menos 4,3 mil reais ao mês, e não podem negar o mesmo direito, moradia
paga com recursos públicos, às famílias que são despejadas todos os dias graças à atuação
judicante.
A existência da Vara Agrária é prevista na Constituição Estadual de Mato Grosso, e
em 2007 um grupo de ativistas pediu ao Tribunal de Justiça que fossem criadas a Vara
Agrária e outra para tratar das questões de improbidade administrativa, ações populares
e para punir o crime organizado.
Em relação à Vara Agrária, se desejava que juízes e promotores, além do corpo
administrativo, os oficiais de justiça, escrivães, tivessem conhecimento da temática dos
conflitos agrários. Para atuar nesta espécie de controvérsia seria necessário conhecer de
sociologia, humanismo e política, além de apreender saberes da formação territorial de
Mato Grosso. Mas não foi isso que aconteceu, pode ser que o único curso que a juíza da
vara agrária tenha se inscrito no período seja o de tiro livre.
Talvez seja por essa razão – falta de efetividade – que o Tribunal de Justiça esteja
alterando a competência da Vara Agrária, que se transforma na 2ª Vara Cível da Comarca
da Capital.
2.6.2 - Artigo 928 do Código de Processo Civil: despejos arbitrários
No capítulo que trata do direito possessório, o Código de Processo Civil (art. 928)
prevê os casos “força nova” e “força velha”, onde se permite a concessão de liminar de
reintegração de posse, já no pedido inicial da parte. Quando um suposto proprietário
pretender a reintegração de posse de uma área, desde que anexe no processo alguns
documentos essenciais, como o título da área e o registro da ameaça à posse (recente), diz
a norma que o juiz pode conceder decisão favorável, inclusive sem ouvir a parte contrária.
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É a chamada liminar de reintegração de posse.
Entendemos que este dispositivo é flagrantemente inconstitucional e socialmente
injusto, uma vez que faz tábula rasa do direito de moradia (tratando-o como um papel em
branco). Moradia é direito constitucional, não se trata de norma inferior ao direito de
propriedade, e “jogar pessoas na rua” viola inclusive a dignidade da pessoa humana
(fundamento da República Federativa do Brasil), bem como a função social da
propriedade.
Na pior das comparações, poderia ser aplicada em tais casos a técnica de
ponderação de interesses, acolhida pelo Supremo Tribunal Federal em alguns casos em
que se registrou um aparente conflito entre direitos fundamentais (HC 71373-RS, Rel. Min
Marco Aurelio, j. 22-11-96; RCL 2040, j. 21.02.2002).
O Estado de Mato Grosso sempre foi injusto em relação às suas políticas fundiárias,
aí incluídas aquelas direcionadas a atender ao pequeno camponês da área rural, e os
moradores hipossuficientes das cidades, que não têm a sua casa própria.
No âmbito da Secretaria da Casa Civil do Governo foi criado o Comitê de Conflitos
Fundiários de Mato Grosso, integrado por diversos órgãos, tendo por função a mediação
e solução pacífica de conflitos agrários no Estado.
Na prática funciona com uma longa manus da propriedade e do capital para fazer
valer as ordens de desocupação e desintrusão de áreas, não se diferenciando em nada do
que vinha sendo feito ao longo do tempo. Em nada inovou para pacificar conflitos. O
Comitê de Acompanhamento de Conflitos Fundiários do Estado de Mato Grosso não foi
capaz de envolver outros atores sociais na busca de solução pacífica para os conflitos
agrários, prevalecendo como sempre a intervenção policial; não se fala em realocação de
famílias em programas sociais ou minimização das dores das famílias desalojadas.
A última notícia que se tem de atuação compatível com os direitos humanos por
parte do Estado ocorreu nos anos 1990, quando o ex-secretário de Justiça Hermes de
Abreu se recusava a autorizar a força policial a adentrar em reserva indígena para cumprir
um mandado de prisão contra cinco índios Pareci. Posteriormente o Superior Tribunal de
Justiça concederia a revogação da tal ordem de prisão contra os indígenas, restituindo o
direito de ir e vir, 15 anos após a expedição da ordem por um juiz estadual.
54
2.7 - MULHERES CAMPONESAS: A INVISIBILIDADE DO SEU COTIDIANO E DE SUA LUTA
Lucinéia Miranda de Freitas
Essas mulheres não são em nada inferiores a mim... Têm o rosto tisnado pelo brilho dos sóis e pelo sopro dos ventos,
Há na carne delas, antigas e divinas, agilidade, força, Elas sabem nadar, remar, montar, lutar, atirar, correr, bater,
recuar, avançar, resistir, defender-se sozinhas, São supremas por direito próprio –
são calmas, límpidas, donas de si mesmas. Walt Whitman
As mulheres sempre exerceram importante papel produtivo na reprodução social
do campesinato, porém seu trabalho sempre permaneceu subsumido dentro da unidade
familiar ou comunitária, sendo sempre considerado um apêndice dos trabalhos dito
masculinos, como um serviço (servir/doar-se) ou uma ajuda. Da mesma forma, subsumiu-
se no processo histórico a participação das mesmas nas lutas pela transformação da
sociedade.
Segundo Michelle Perrot (2005):
Há um projeto social, político e cultural de silenciar a história das mulheres, um recurso para esconder e invisibilizar suas ações, suas falas, ocultando e/ou excluindo do texto histórico esses sujeitos, acreditando ser o texto histórico a verdade absoluta e inquestionável dos fatos reais (PERROT, 2005).
Esse processo coloca-nos o desafio, enquanto mulheres camponesas militantes, a
necessidade do registro das lutas e dos cotidianos das mulheres, da reflexão teórica e do
debate coletivo do papel da mulher na sociedade de classe, o debate da divisão sexual do
trabalho, da constituição das relações de gênero, dentre outros assuntos que afetam
diretamente as mulheres e principalmente as camponesas. Essa reflexão ajuda também a
visibilizar seu cotidiano, considerando que seus afazeres e lutas são parte do
reconhecimento de que elas são sujeitos políticos, produtoras e detentoras de saberes
indispensáveis para reprodução do campesinato, para manutenção de formas de vida
(JALIL, 2015).
Essas necessidades impõem demandas que nos fazem refletir sobre as relações
sociais de gênero, e nas instituições públicas e privadas que reproduzem essas relações
que subalternizam as mulheres, e dentre as instituições tem-se de avaliar o papel do
Estado e debatê-lo para além da condição deste artigo. No entanto, é possível visualizar
55
sua ação nas políticas públicas voltada paras as mulheres. Embora sendo conquistas
importantes através das lutas, ainda estão extremamente aquém da necessidade real.
Fazendo um recorte aos assentamentos de Reforma Agrária ligados ao Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST no estado de Mato Grosso, os escassos
programas voltados para o público feminino não conseguem ser acessados, devido à
burocracia e ao valor proposto por unidade. Esses fatores têm se tornado grande
empecilho e por isso não despertam o interesse das empresas de Assistência Técnica.
Já as políticas e programas como o Programa de Aquisição de Alimentos - PAA e a
Política Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, apesar de serem as mulheres as
principais beneficiárias entre o público que produz e comercializa, não há linha específica
para atendimento às mulheres e, ao considerar a unidade familiar como um todo, a
construção de autonomia política e financeira das mulheres é limitada. Outro fator que
restringe essa construção é a falta de continuidade, uma vez que todos os anos as
mulheres passam um período considerável sem conseguir comercializar, esperando a
aprovação dos processos, que a cada ano ocorrem mudanças nas regras e a burocracia é
aumentada.
Outra política inexistente no campo é a de atendimento a mulheres vítimas de
violência doméstica, sendo que há uma considerável dificuldade até mesmo em obter
dados estatísticos sobre o índice de violência contra a mulher no campo, considerando o
baixo índice de registros em relação ao real número de casos devido a dificuldades como:
distância das delegacias, ausência das delegacias de mulheres, inexistência de Centro de
Referência em Assistência Social - CRAS Rural ou mesmo posto de saúde com profissionais
capacitados para o atendimento.
Na perspectiva da formação/capacitação, a maioria dos cursos voltados para as
mulheres podem ser considerados de âmbito doméstico, como: artesanato, corte e
costura, doces, farinhas. Ou seja, mesmo as mulheres podendo conquistar certa
autonomia econômica, não saem do âmbito da reprodução social familiar, do âmbito
privado. Na perspectiva da maioria desses cursos, as mulheres não assumem como sujeito
o espaço considerado produtivo ou público.
Refletir sobre essas insuficiências das políticas e programas não deslegitima a luta
de todas as mulheres e homens em sua conquista, mas mostra o quanto ainda precisamos
avançar em nossas organizações e ampliar as lutas, tanto as econômicas como as políticas
para romper com essa estrutura que legitima a submissão e a opressão feminina. Nessa
56
perspectiva, a organização de grupo de mulheres se torna essencial. Esses coletivos são
espaços de trocas de experiências, debates, estudos, fortalecem as mulheres, permitindo
que as mesmas iniciem processos de rompimentos familiares, que depois se reproduzem
em sua vida pública.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENTEJANO, Paulo. Terra. In: CALDART, Roseli Salete; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO Gaudêncio. Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012. BRASIL. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA. Livro branco da grilagem de terras. (02/06/2014). Disponível em: http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/servicos/publicacoes/livros-revistas-e-cartilhas/livro_branco_da_grilagem_de_terras.pdf Acesso em 23 mai 2015. CANUTO, Antônio; LUZ, Cássia Regina da Silva; COSTA, Edmundo Rodrigues (Coord.). Conflitos no Campo – Brasil 2014. Goiânia/GO: CPT Nacional – Brasil, 2014. DELGADO, Guilherme. Mudança Técnica na Agricultura na Agricultura, Constituição do Complexo Agroindustrial e Política Tecnológica Recente. Cadernos de Difusão de Tecnologia, v. v.2, p. 79-98, 1985. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 17ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. GORENDER, Jacob. Gênese e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro. In: STÉDILE, João Pedro. A questão agrária no Brasil, o debate na década de 1990. 2ª Edição. São Paulo: Expressão Popular, 2013. JALIL, Laetícia. Mulheres e agroecologia: saberes, autonomia e resistência. In: HORA, Karla; REZENDE, Marcela; MACEDO, Gustavo (orgs.). Coletânea sobre Estudos Rurais e Gênero, prêmio Margarida Alves, 4º Edição, Mulheres e Agroecologia, 2015. PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. São Paulo: EDUSC, 2005. VALOR ECONÔMICO. A grilagem de terras públicas na Amazônia. Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Publicado em 25 de julho de 2008. WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Um saber necessário: Os estudos rurais no Brasil- Campinas, SP: ed. da Unicamp, 2011. JALIL, Laetícia. Mulheres e agroecologia: saberes, autonomia e resistência. In: HORA, Karla; REZENDE, Marcela; MACEDO, Gustavo (orgs.). Coletânea sobre Estudos Rurais e Gênero, prêmio Margarida Alves, 4º Edição, Mulheres e Agroecologia, 2015. PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. São Paulo: EDUSC, 2005. VALOR ECONÔMICO. A grilagem de terras públicas na Amazônia. Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Publicado em 25 de julho de 2008. WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Um saber necessário: Os estudos rurais no Brasil- Campinas, SP: ed. da Unicamp, 2011.
57
RELATO DE CASO I
Paulo Cesar Moreira Santos
I CONFLITO EM NOVO MUNDO – FAZENDA ARAÚNA
Esta fazenda é parte da Gleba Nhandú, de propriedade da União, com área total de
211 mil hectares, conforme matrícula do Cartório de Registro de Imóveis, da comarca de
Peixoto de Azevedo – MT; destas o Sr. Marcelo Bassan e outros, detém sob regime de
grilagem 14.000 hectares. Conforme a lei 11.952/09, este fazendeiro já tem terra em outro
Estado, não podendo, assim, fazer regularização fundiária dessa propriedade. Tramita na
Justiça Federal de Sinop-MT a Ação Reivindicatória destas terras, proposta pela Advocacia
Geral da União em face do Sr. Marcelo Bassan.
Nesta área, viviam 100 famílias na posse, mais de ano e dia, produzindo no regime
de agricultura familiar para o próprio sustento e dos seus quando a magistrada Dra.
Adriana Sant’anna Coninghan realizou a vistoria na área, ocasião que a magistrada
estimulou a permanência dos trabalhadores emitindo parecer verbal favorável à causa
dos trabalhadores, contudo, na decisão da liminar decidiu por despejá-los, com isso os
trabalhadores vêm sofrendo violências, não só com os despejos, mas com diversas
violações dos direitos.
A imagem abaixo (figura 1) demonstra a comunidade que estava acampada em
lotes dentro da fazenda, comemorando o dia das crianças.
Figura 1 - Comunidade comemorando o Dia das Crianças. Fonte: Arquivo CPT.
58
Na imagem a seguir podemos constatar plantações que as famílias produziam para
a subsistência.
Figura 2 - Culturas de subsistência. Fonte: Arquivo CPT.
Lamentavelmente, a juíza tem emitido decisões com medidas desproporcionais e
descabidas, diríamos até reacionárias, sem análise factual, sem contraditório, formuladas
sob falsas denúncias feitas pelo autor. No último dia 09 de abril a juíza emitiu nova liminar
sem fundamentação, apenas por falácias trazidas aos autos pelo autor, de que os
camponeses haviam voltado para a área, o que de fato não ocorreu, e numa absurda
decisão, proibiu que estas famílias fiquem acampadas há menos de 10 km da fazenda.
Famílias de trabalhadores que não têm outras propriedades e nem tem onde morar, tendo
tolhidos vários direitos fundamentais.
Figura 3 - Moradia queimada por fazendeiros. Fonte: Arquivo CPT.
Por outro lado a violência contra os acampados e acampadas (adultos, crianças,
mulheres e idosos) se perpetua por parte do fazendeiro e seus jagunços, que já atearam
fogo em uma casa de família acampada, queimando todos os pertences, quebraram o vidro
de um automóvel e o gerente da fazenda, Ismael Arlindo de Acácio acompanhados de
59
jagunços, ameaçou diversas famílias usando o velho método conhecido como
coronelismo; ainda houve várias violências sofridas pelos trabalhadores que não
conseguiram tecer as queixas, porque a polícia de Guarantã do Norte-MT se negou a
registrar a ocorrência.
II CONFLITO EM NOVA MUTUM
Em junho de 2009, conforme acordos entre o Sindicato dos trabalhadores rurais
de Nova Mutum e com a autorização do Incra/MT algumas famílias indicadas pelo
Sindicato ocuparam a área do lote 40 na Gleba Ribeirão Grande, município de Nova
Mutum, com a promessa que em 15 dias a área seria demarcada para as famílias que
estavam e continuam acampadas até hoje. Passaram-se alguns meses e em fevereiro de
2010 o Juiz de Nova Mutum deu reintegração de posse do lote 40 ao fazendeiro que na
ocasião, ao efetuar o despejo com a presença policial, destruiu todas as plantações com
trator e grade, derrubou os barracos com um trator de esteira e muitas famílias não
conseguiram retirar os seus pertences.
Quatro dias depois as famílias retornaram para o lote 40 com nova liminar de
reintegração de posse emitida pelo mesmo Juiz. Durante estes anos recebemos as visitas
do Incra, na pessoa do superintendente Salvador Solterio e da Fetagri, nas pessoas do
Divino. Em certa esses afirmaram que a empresa de topografia já estava contratada para
efetuar a medição dos lotes, o que nunca aconteceu.
Em 17 de Outubro de 2013 houve uma emissão de reintegração de posse do lote
41 emitida pela Justiça Federal de Diamantino favorável ao Incra, no entanto, o fazendeiro
não foi retirado da área. Nesta mesma data foram queimadas casas e barracos de algumas
das famílias acampadas no lote 40. As famílias procuraram o Sindicato de Nova Mutum
para obter orientações e o Presidente relatou que não poderia fazer mais nada para as
famílias acampadas.
Com isso, as famílias procuraram ajuda do Fórum de Direitos Humanos e da Terra
e da Comissão Pastoral da Terra – CPT-MT. Em 30 de Outubro de 2014 foi emitida nova
reintegração de posse do lote 41 imitindo o Incra na posse da área em conflito. Com base
neste fato, as famílias solicitaram uma reunião no Incra, juntamente com representantes
60
do Fórum e da CPT e nesta ficou acordado que as famílias continuariam acampadas dentro
da área e o Incra retiraria o fazendeiro/grileiro e daria início à implantação do Projeto de
Assentamento. No entanto, o absurdo aconteceu quando o funcionário do Incra que foi
acompanhar a operação, Sr. Marco Antônio (Careca), Ouvidor Agrário Regional,
primeiramente despejou as famílias, que foram levadas para lotes de pessoas já
assentadas, sem autorização nem assistência para ali permanecerem, o que gerou
conflitos entre as famílias. Somente após diversas pressões no Incra as famílias foram
autorizadas e retornarem ao lote 40 e ficarem acampadas.
Enquanto ao fazendeiro, este foi retirado da área e logo retornou para o lote 41,
onde continuou normalmente o plantio de soja e sorgo.
61
CAPÍTULO 3
AGRONEGÓCIO E HIDRONEGÓCIO: APROPRIAÇÃO CAPITALISTA CPT/MT
MAB/MT
3.1 - VIOLÊNCIA NO CAMPO E A LUTA POR HUMANOS DIREITOS À VIDA, À TERRA E AO TRABALHO
Cristiano Cabral
Figura 4 - Maria Lúcia (esq.), Josias e Ireni (dir.), vítimas de assassinato.
O modelo de desenvolvimento econômico-político brasileiro é um modelo que prioriza,
entre outras, a exportação. Aproveitando assim a maior necessidade no mundo de matéria-prima
e manufaturado. Com isso, as políticas, leis, investimentos financeiros e humanos seguem esta
lógica de manter um superávit na balança comercial nacional, influenciada pela força do
agronegócio na comercialização de suas commodities.
E o Mato Grosso é peça fundamental nessa lógica, pois é o estado que mais produz soja,
milho e algodão e, ainda, é o maior criador de gado no país. E para manter esta força produtiva
e importância dentro do modelo econômico-político nacional, a concentração financeira é
essencial. De 2003 a 2014, o investimento no agronegócio elevou-se de maneira exorbitante,
principalmente em relação à agricultura familiar:
62
Tabela 2 - Investimentos no agronegócio x agricultura familiar. Fonte: Cristiano Cabral.
Na ganância de ter um pouco desse investimento é que muitos fazendeiros no Mato
Grosso invadem terras de camponeses, quilombolas e indígenas. Assim, a concentração
fundiária no estado aprofunda-se mais: 77,51% das terras agricultáveis estão nas mãos dos
latifundiários e apenas 5,53% em posse dos camponeses. Essa disparidade de concentração
financeira e concentração fundiária no estado faz fortalecer a já histórica concentração de poder
dessa oligarquia fundiária sobre o Poder Executivo, Legislativo e Judiciário.
Um exemplo perverso são as quantidades de famílias despejadas em 2014: 129, a
segunda maior em todo o centro-oeste do país. Sofrendo violência policial, humilhações,
destruição do próprio patrimônio como casas, roças e outros bens (conseguidos com enormes
esforços). Exemplo é o Acampamento Boa Esperança, em Novo Mundo, que tem mais de 100
famílias; ou o Acampamento União Cinco Estrelas, com 60 famílias. São tantos: como as 150
famílias em Novo Mundo, ainda outros despejos em Nova Mutum, Nova Ubiratam, Sorriso,
Santa Terezinha, na Gleba Carlos Pericioli, com 78 famílias. Se contarmos desde 2000 até 2014
foram 18.215 famílias despejadas no estado, demonstrando que estas ações não são pontuais,
mas parte de uma política de concentração de terra organizada a partir da violência do poder
público e a violência do poder privado.
Outro exemplo da perversidade efetivada no estado contra os humanos direitos à vida
são os assassinatos, em que o Mato Grosso ficou atrás somente do Pará. Foram 05 só em 2014:
Maria do Carmo Moura Ferreira Araújo e Gonçalo Araújo, em Campos de Júlio; Josias Paulino
de Castro e Ireni da Silva Castro, em Colniza; e Maria Lúcia do Nascimento, em União do Sul.
Desde 1985, já foram 124 assassinatos, com nenhuma prisão. A impunidade é a regra para que
o capitalismo no campo progrida sem nenhum empecilho. Transparecendo que o Poder
020406080
100120140160180
Agronegócio
Ag. Familiar
63
Judiciário impõe aos camponeses e camponesas, indígenas e quilombolas a total ausência de
direitos.
Há uma legalização do que não é legalizado, ou seja, existe no Mato Grosso um ‘estado
de exceção’ aos povos da terra e território: tudo é permitido quando se trata desses povos.
Motivados pela promessa real de lucros que a terra exerce - financiamento, produção,
especulação – empresários do campo aprofundam a territorialização monopolista do capital no
campo do Mato Grosso. Nessa territorialização estão inseridas as modernas mecanizações na
produção, a utilização de fertilizantes, agrotóxicos fazendo com que a produção no estado esteja
mais à frente na participação do PIB nacional. Mas o que existe é uma instrumentalização da
ciência, da técnica e da informação somente para a obtenção de mais lucros, com a consequente
minimização da vida humana, fauna e flora.
É nessa forma contraditória de ação do capital que atinge os humanos direitos à terra,
trabalho, alimentos e água. O desemprego no campo está cada vez mais crescente pela
mecanização. Em contrapartida, a superexploração de trabalhadores faz parte do cotidiano em
fazendas; e ainda mais o trabalho escravo, sendo que desde 2000 até 2014 foram denunciados
7.857 trabalhadores e trabalhadoras nessa condição de escravidão, no estado. A ânsia pelo lucro
supera qualquer anacronismo na exploração da força produtiva.
Já com a reorganização técnico-científica para o campo outras violências e controles
sobre a vida e a morte tornam-se estruturais para a maior obtenção de lucros. São exemplos os
fertilizantes, o agrotóxico, os transgênicos. Essas novas maneiras de se lidar com a produção e
de se produzir levam ao enfraquecimento da terra, impossibilitando que futuramente
camponeses, quilombolas e indígenas possam plantar, por não terem dinheiro suficiente para
enriquecer a terra já enfraquecida pelo agronegócio; leva ao envenenamento de rios, lençóis
freáticos, aquíferos, alimentos, animais e pessoas; leva à crise da soberania alimentar dos povos
de produzir seus alimentos, de ter suas próprias sementes crioulas, aprofundando a insegurança
alimentar e a dificuldade de acesso a alimentos condicionados por seus preços, pois no Mato
Grosso mais de 95% das terras agricultáveis estão direcionadas à criação de gado, produção de
soja, milho, algodão e cana-de-açúcar.
São estas e outras realidades que provocaram no estado, em 2014, 25 ocorrências de
conflito por terra, envolvendo 1.306 famílias, estando nesse contingente: sem-terra, indígenas,
assentados, posseiros, retireiros e pequenos proprietários. Situadas principalmente nas regiões
do Norte e Araguaia, ou seja, regiões fronteiriças de expansão dos interesses do Capital:
64
madeireiras, mineração, hidronegócio, agropecuária, especulação fundiária. É nesse histórico
de uma ‘terra de moer gente’ que desde 2000 até 2014 foram 110.416 famílias envolvidas em
conflitos por terra.
Já em relação aos conflitos por água, foram 06 ocorrências - a maior de todo o centro-
oeste - envolvendo 1.247 famílias, situadas principalmente no norte e na baixada cuiabana.
Desde 2004, já foram 5.527 famílias envolvidas no conflito pela água. A grande causadora são
os grandes projetos governamentais de Usinas Hidrelétricas - UHE e Pequenas Centrais
Hidrelétricas – PCHs, além das Hidrovias.
A violência pública e privada sobre toda a classe de camponeses e de trabalhadores
assalariados do campo demonstra a ação organizada para que a territorialização do capital no
campo se efetive. Contudo, não sem a luta, não sem o conflito. As manifestações são uma das
formas dessas classes não aceitarem as decisões de empresários e do estado sobre quem deve
viver, quem deve sobreviver e quem deve morrer no campo. Desde 2000, é um total de 187.211
famílias envolvidas em manifestações condicionadas pelas consequências da apropriação do
capitalismo no campo, sendo só em 2014, 3.469 famílias.
Os humanos direitos à vida, à terra e ao trabalho estão sendo negados por esta
territorialização do capital, facilitada e orquestrada pelos Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário. O que está acontecendo no Mato Grosso é o abandono dos povos da terra e território
pelo direito. Este é o estado de exceção, em que podem acontecer quaisquer coisas contra estes
povos, qualquer delito e nada acontecerá contra os violadores, ou seja, contra os empresários
do agronegócio. As vulnerabilidades desses povos à violência do estado, de milícias
organizadas por fazendeiros, à violência pela falta de investimento, à violência pela falta de
terra são, muito superficialmente, expostas nesses números acima.
É nesse estado de exceção que estes povos estão abandonados pelo direito por um lado
e por outro sofrem a pressão da normalização de sua luta pela sobrevivência, luta por dignidade
de dar a vida a si e à sua família. São os paradoxos de um estado capitalista que se organiza
para dar poder aos empresários do agronegócio. Assim, enquanto os povos da terra e território
e os trabalhadores assalariados do campo lutam ainda por direitos à vida, ao trabalho, à terra e
à dignidade os empresários do agronegócio mato-grossense lutam pelo privilégio de ter
exclusivamente a terra, o financiamento, os produtos, os lucros. O lucro está continuamente
acima da vida.
65
3.2 - CONCENTRAÇÃO DE FINANCIAMENTO, CONCENTRAÇÃO DE TERRA CONCENTRAÇÃO DE PODER: A BARBÁRIE FUNDIÁRIA DO MATO GROSSO
O Mato Grosso possui um histórico de acesso à terra que está intimamente
relacionado ao poder econômico, ao poder político e, por fim, ao poder sobre a vida e
morte de camponeses e trabalhadores assalariados rurais. É a terra – ou ausência dela -
que dita os rumos da história individual e de classe nos privilégios ou sobrevivência nesse
Estado.
É a terra que cria condições de riqueza pela exploração de trabalhadores ou pela
especulação (fortalecida pela concentração) ou pelo acesso a financiamentos. Tudo está
interligado, por isso o alto índice de grilagem, ocupações, despejos de camponeses,
corrupções de órgãos públicos, criações de documentos falsos, existência de violência
policial, assassinatos de trabalhadores assalariados e camponeses, exploração de
trabalhadores e existência de trabalho escravo. Tudo em nome da concentração de terra
e concentração de financiamentos, os quais são enormes para os ‘empresários’ do campo,
do assim chamado agronegócio.
Nos últimos anos a quantidade de dinheiro investido na produção capitalista no
campo foi e continua sendo enorme, principalmente em comparação à agricultura
familiar. Demostrando assim os rumos da política estatal no que diz respeito às
prioridades no desenvolvimento econômico.
Ano Agricultura Familiar
Agronegócio Total % da Agricultura Familiar sobre o total
2001/2002 4,19 16,00 20,19 20,75
2002/2003 2,30 19,40 21.7 10,6
2003/2004 4,50 27,15 31.65 14,22
2004/2005 7,00 32,50 39,5 17,72
2005/2006 9,00 44,35 53,35 16,86
2006/2007 10,00 50,00 60,00 16,6
2007/2008 12,00 58,00 70,0 17,14
2008/2009 13,00 65,00 78,0 16,6
2009/2010 15,00 93,50 108,5 13,82
2010/2011 16,00 100,00 116,0 13,8
2011/2012 16,20 107,21 123,41 13,12
2012/2013 22,30 115,20 137,5 16,2
2013/2014 39,00 138,00 177,0 22,03
2014/2015 24,10 156,00 180,1 13,38 Tabela 3 - Investimentos. Fonte: Cristiano Cabral.
66
Mas qual é o problema desse financiamento no Mato Grosso? Em que este
financiamento atinge aos humanos direitos de nosso povo? De nossa terra? De nossa
água? Por fim, o que é este financiamento para o desenvolvimento social do Estado? Estas
são questões que fogem à lógica intencional produtiva capitalista.
Primeiramente, sabe-se que para ter acesso a este financiamento, tem que ter terra
(ou ao menos o título dela), assim é a concentração de terra no Estado, onde 7,7% dos
proprietários latifundiários com mais de 1.000 ha concentram 77,51% de toda a terra
agricultável, enquanto os produtores que possuem até 100 ha, que são um total de 68,55%
do total de proprietários, têm acesso a somente 5,53% de toda a terra agricultável no
Estado, a contradição é visível e perversa.
Nesses números estão presentes as 124 pessoas do campo assassinadas pelo
motivo dessa concentração, a pobreza de camponeses, os baixos salários de trabalhadores
e a própria condição de sobrevida da população urbana condicionada por esta estrutura
fundiária.
A apropriação capitalista no campo e do campo por meio desses exorbitantes
valores cria condições para que o agronegócio mato-grossense crie condições em que o
próprio país concorra mundialmente com a produção agropecuária de outros países. Cria
condições para que o agronegócio seja mais ou menos um terço do PIB e mais ou menos
um terço da exportação do país. Mas o que nos interessa é o custo humano, social,
ambiental que o sentimento de ganância estruturada em um modelo econômico pode
causar.
Com este financiamento, que está voltado para commodities, produz-se e cria-se
quase que somente no Estado: soja, milho, algodão, cana-de-açúcar e gado. Estes produtos
concentram mais que 95% do território agricultável no Mato Grosso. O que resta é para a
0
10.000.000
20.000.000
30.000.000
40.000.000
50.000.000
60.000.000
1985 1996 2006
Produção
Empregos
Tabela 4 - Dados: Crescimento da produção x Geração de empregos. Fonte: Cristiano Cabral.
67
produção do que está verdadeiramente na mesa da população. Então, assim, por este
financiamento ser para a produção do grande mercado do agronegócio e voltada
prioritariamente à exportação, a inflação de preços de bens básicos de alimentação torna-
se pesada aos mato-grossenses. Um exemplo é a criação de gado, já que são mais de 28
milhões de cabeça para uma população de 3.035.122 habitantes e, ainda assim, pratica-se
um preço não acessível à população. O importante são os interesses do mercado e não os
da população.
Outro aspecto que se cria junto a este enorme financiamento para melhor
concorrência com o mercado externo é a tecnificação para aumentar a produção de forma
barata. A presença de maquinaria cria automaticamente a ausência de trabalhadores, os
dados nacionais da produção da soja são denunciativos diante de uma falsa propaganda
de desenvolvimento social.
Se se pega os dados de tratores na agropecuária de 1970 a 2006 vê-se que em 1970
havia 165.870 e em 2006 já tinha 820.718. O impacto dessa territorialização do capital é
o desemprego direto. Mesmo que aumente as lavouras ou a criação. E com esta enorme
massa de pessoas em situação de desemprego os salários são baixíssimos, sendo
necessário trabalhar horas a mais para ter o mínimo de sobrevivência.
O maior valor agregado e as maiores tecnologias aperfeiçoadas condicionadas pelo
alto investimento atingem não somente o que se pode ou não comer e o desemprego, mas
também a própria natureza com: fertilizantes, agrotóxicos, maquinários com maior
utilização de água e energia como os pivôs. O desgaste, desperdício, envenenamento de
terra e água atingem a vida no campo e a vida urbana.
Estas são as consequências diretas sobre a vida da terra, dos povos e dos animais.
O Mato Grosso está em momento de um crescimento econômico não visto em sua história.
Mas as consequências premeditadas aos humanos direitos dos povos, da terra e da água
estão se efetivando, como demonstrado acima, com cada Real a mais investido no setor
do agronegócio.
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3.3 - TRABALHO ESCRAVO: ATÉ QUANDO O ESTADO BRASILEIRO VAI CONTINUAR COMBATENDO ESTE CRIME?
Elizabete Fatima Flores
O Brasil é reconhecido internacionalmente por diversos órgãos e entidades, entre
as quais se destaca a OIT – Organização Internacional do Trabalho, como o país referência
na luta contra o trabalho escravo contemporâneo. Contudo, desde meados do ano de 2014
verifica-se um ataque orquestrado na luta contra este crime que assola milhares de
trabalhadores e trabalhadoras, crime este que se manifesta na coisificação do ser humano,
na supressão da sua dignidade, com o objetivo único de buscar o lucro a qualquer custo.
No Estado de Mato Grosso o descaso do governo permaneceu até se findar o
mandato em 2014, sem nenhuma ação para a prevenção e combate a este crime, nem
mesmo a retomada da COETRAE - Comissão Estadual de Erradicação ao Trabalho Escravo,
desativada desde 2012, que só foi reativada no início de 2015, com o novo governo.
Esse ataque está se dando em diversas frentes e por diversos atores, em especial
pelos grupos que deixam de lucrar com um efetivo combate a esta chaga (bancada
ruralista, agro-hidronegócio, construtoras, etc.), e vão desde a mudança do conceito do
trabalho escravo, até a ofensiva a um dos instrumentos mais efetivos nesta luta, a
chamada ‘Lista Suja’, perpassando pela retirada de direitos trabalhistas alcançados
através de muita luta e resistência (MPs 465 e 466) e a legalização da precarização das
relações de trabalho, através da aprovação do PL 4330, que libera a terceirização, sendo
estes sinais concretos de que estamos a caminho de um enorme retrocesso no combate
ao trabalho escravo.
A aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 438, conhecida como ‘PEC
do Trabalho Escravo’, que prevê a expropriação de imóveis urbanos e rurais onde for
constatada exploração de trabalho escravo, destinando-os para reforma agrária e
programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem
prejuízo das demais sanções legais, foi uma importante vitória. Entretanto, essa
aprovação somente aconteceu após um acordo nos bastidores do Legislativo quanto à
mudança no conceito do trabalho escravo constante no artigo 149 do Código Penal.
Essa mudança está contida na PLS nº. 432/2013, proposta pelo Senador Romero
Jucá (PMDB) e pretende retirar do conceito do trabalho escravo as condições degradantes
e a jornada exaustiva, sob o argumento de que é difícil conceituar o que sejam esses
69
elementos, o que geraria ‘insegurança jurídica’, com isso o conceito de trabalho escravo
contemporâneo ficaria restrito aos casos de trabalho forçado e servidão por dívida. Caso
essa mudança se concretize podemos afirmar que o Estado Brasileiro irá acabar com o
trabalho escravo ‘com uma canetada’!
Para a Procuradora do Trabalho Christiane Nogueira e o Procurador Renan Kalil, a
ideia que embasa este projeto de lei é que “tratar empregados como animais ou, pior,
como objetos, não deveria trazer maiores consequências para o empresário que adotar a
prática”.
Ainda, para os citados procuradores, caso haja a mudança no conceito de trabalho
escravo
Trabalhadores alojados em barracos de lona ou palha, expostos a intempéries e animais peçonhentos; que dormem no chão; que bebem água de locais onde animais defecam ou guardada em vasilhames de agrotóxicos; que recebem comida estragada e insuficiente; que desempenham suas tarefas sem qualquer proteção à saúde ou à segurança; [...] deverão ser considerados casos de irregularidades trabalhistas simples.
Um dos mais eficazes instrumentos de combate ao trabalho escravo, a chamada
‘Lista Suja’, eficiente por mexer no ‘coração’ dos escravagistas, o bolso, pois proíbe o
acesso a financiamentos públicos, sem o qual os mesmos não sobrevivem, também sofreu
um ferrenho ataque, a partir de decisão dada durante o recesso de final de ano (27 de
dezembro de 2014) pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Ricardo
Lewandowski, que suspendeu a publicação do Cadastro de Empregadores flagrados com
prática do trabalho escravo (‘Lista Suja’), onde constaria mais de 600 nomes de
escravagistas), atendendo a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela
Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias, leia-se, construtoras.
Várias construtoras foram flagradas diversas vezes com trabalho escravo nos
últimos anos, sendo que em 2013, pela primeira vez, o número de trabalhadores
libertados em atividades não agrícolas foi maior que no campo e a maioria destes
trabalhadores foram libertados no ramo da construção civil. Entre estas construtoras
destaca-se a MRV, que nos últimos anos foi flagrada 5 vezes escravizando trabalhadores,
sendo a mesma responsável por quase 70% das obras do Programa de Aceleração do
Crescimento-PAC.
70
A suspensão determinada pelo presidente do STF teve como consequência
imediata, além da privação da sociedade brasileira de conhecer quem utiliza mão de obra
escrava, a liberação de dinheiro público, através de financiamento, para os mais de 600
escravagistas constantes na lista, e, o Estado brasileiro, mesmo tendo acessado estes
dados, através da Lei de Informação, desde início de 2015, numa atitude no mínimo
omissa, até o presente momento não os divulgou.
Ainda, outra mudança na legislação trabalhista brasileira que, caso ocorra, irá
facilitar e/ou incentivar a utilização de mão de obra escrava, é o Projeto de Lei nº. 4330,
que permite a terceirização, de acordo com seu artigo 4º, para o “desenvolvimento de
atividades-fim, inerentes ou acessórias às atividades econômicas da empresa”. É a
precarização do trabalho sendo legalizada por quem deveria legislar para proteger os
trabalhadores, que são os que produzem a riqueza!
Um dos argumentos utilizados por quem defende a aprovação desse PL é que a
terceirização irá gerar e garantir empregos, o que de fato não irá acontecer. A realidade
que se vislumbra com a aprovação dessa lei é a retirada de direitos, são trabalhadores
cada vez mais explorados, quando não demitidos, recebendo menores salários, além de
prejudicar/impedir a organização dos trabalhadores, o que leva à desmobilização da luta
por seus direitos. Outra consequência sofrida pelos trabalhadores diz respeito aos
acidentes de trabalho, pois a maioria destes acidentes acontece com trabalhadores
terceirizados, consequência do alto grau de exploração a que os mesmos são submetidos.
Mato Grosso é o campeão nacional em morte por acidentes, proporcional ao número de
habitantes, e essa realidade certamente irá piorar caso haja a aprovação deste projeto de
lei.
Trabalho Escravo e terceirização estão relacionados e têm andado juntos, como se
depreende da análise dos dados das libertações, pois segundo informações da Comissão
Pastoral da Terra “3000 dos 3553 trabalhadores resgatados nos dez maiores flagrantes
de trabalho escravo contemporâneo, ocorridos entre 2010 e 2013, eram terceirizados:
90%!” (PLASSAT, 2015). Ainda no setor da construção, 19 dos 22 flagrantes ocorridos nos
anos de 2011 e 2012, se deram em empresas terceirizadas.
Ao analisarmos os dados dos trabalhadores libertados desde o reconhecimento
pelo Estado Brasileiro da existência do trabalho escravo contemporâneo no Brasil, que se
deu em 1995, constatamos que depois de um aumento significativo no número de
71
trabalhadores libertados, nos últimos anos ocorreu uma diminuição, pois segundo dados
compilados pela Comissão Pastoral da Terra – CPT, 731 é a média anual de libertados
entre 1995 e 2002, 4.340, a média anual entre 2003 e 2009, sendo que esta média ruiu
para 2.630 nos anos de 2010-2014.
Outra conclusão que se chega ao analisar tais dados é que a maioria dos
trabalhadores foram libertados no campo, em atividades agrícolas, dentre as quais se
destacam a pecuária/desmatamento e lavouras, o que demonstra que o trabalho escravo
segue o caminho do agronegócio, o qual é apoiado e financiado pelo Estado Brasileiro, em
especial em Mato Grosso, que possui o maior rebanho bovino do país e tem a maior
produção de grãos, que na última safra chegou a mais de 28 milhões de toneladas somente
de soja, em detrimento da agricultura camponesa, sendo a prática deste crime, mais uma
entre as inúmeras consequências desse modelo de ‘desenvolvimento’ imposto ao Brasil
pelo sistema capitalista.
O Estado de Mato Grosso, que nos períodos de 1995/2002 e 2003/2009 ocupara
o 2º lugar no ranking de número de trabalhadores libertados, teve uma queda brusca no
número de libertações, caindo para o 12º lugar no período de 2010/2014, fechando o ano
de 2014 com a libertação de apenas 1 trabalhador.
Devemos pensar que o Estado de Mato Grosso erradicou o trabalho escravo?
Acredito que não! Temos vários indícios de que a razão pela qual não houve a libertação
de mais trabalhadores escravizados no nosso Estado não é a erradicação deste crime
bárbaro, nem mesmo ‘pela conscientização dos empregadores’, como afirma a auditora
fiscal Maria Conceição de Melo, chefe da Seção de Inspeção do Trabalho da SRTE de MT
da SRTE, em documento enviado ao Fórum de Direitos Humanos e da Terra, reagindo à
Carta Denúncia (anexo) que o mesmo publicitou após divulgação dos dados das
libertações em Mato Grosso e manifestação da auditora fiscal e chefe da fiscalização
móvel, Alessandra Luz de Souza Nunes Andrade, em reunião da COETRAE-MT, na qual a
mesma, ao ser questionada sobre o que a SRTE entende por trabalho escravo, afirmou que
“não conseguia visualizar indícios de privação de liberdade ou locomoção e que, portanto,
considerava correta a decisão dos auditores de não classificar como condições análogas à
escravidão”, referindo-se a uma fiscalização realizada no município de Castanheira-MT.
No relatório oficial desta fiscalização, que foi disponibilizado pela mesma auditora
chefe da SEINT para a Comissão pastoral da Terra, consta que os auditores fiscais
72
encontraram 7 trabalhadores alojados em dois quartos, sendo que um ‘tinha chão batido,
ambos com falta de armários, alguns dormindo em redes outros em camas precárias’.
Insta salientar que na identificação da foto do alojamento consta que as camas eram
‘improvisadas: tábua em cima de tocos de madeira’. Ainda, neste mesmo relatório conta
que os fiscais tiveram acesso ‘ao caderno onde eram feitas as anotações dos dias
trabalhados (diárias) pelos obreiros e dos descontos relativos a itens adquiridos, como
botina, rede para dormir e artigos de higiene (sabão, pasta dental, escova, papel higiênico
e etc.).
A realidade encontrada pelos auditores fiscais configura, sem sombra de dúvidas,
trabalho escravo. Contudo, não houve a libertação dos trabalhadores, pois no entender
dos ficais e, como dito acima, até mesmo pela chefe do grupo móvel de MT, por não haver
restrição de liberdade não ocorreu o crime. Um absurdo e descabido entendimento, já que
o artigo 149 do Código Penal traz de forma inequívoca quais as condições que configuram
trabalho escravo. E este é somente o caso de uma fiscalização que chegou ao
conhecimento da sociedade civil, quantos outros podem ter ocorrido? Quantos
trabalhadores continuam escravizados nos rincões de Mato Grosso?
Além desse episódio que deixa claro o descaso e omissão de alguns auditores
fiscais frente à prática do crime de trabalho escravo, um dos motivos pelos quais podemos
ter certeza de que o trabalho escravo não foi erradicado neste Estado é que não ocorreu
nenhuma mudança na estrutura que mantém essa prática. Continuam existindo milhares
de trabalhadores vivendo em situação de vulnerabilidade, devido ao estado de pobreza,
ao desemprego, não tendo o Estado realizada nenhuma ação para diminuir a desigualdade
social, como uma política pública efetiva de Reforma Agrária ou qualquer outra que
possibilite uma vida digna aos trabalhadores vulneráveis, para que os mesmos não sofram
a prática deste crime perverso.
Assim, percebemos que a luta contra o trabalho escravo deve continuar, ou
corremos o sério risco de ver a prática desse crime acabar na teoria, como querem os
escravagistas e seus defensores, com a mudança do seu conceito e a dissimulação do
número de libertos, enquanto que na prática continuam a existir milhares de
trabalhadores escravizados.
73
3.4 - AGROTÓXICO: LUCRO E BIOCÍDIO
Cristiano Cabral
Nas últimas décadas, a estrutura político-econômica global e nacional expandiu-se
territorial e logisticamente, influenciando uma área ainda pouco transformada pelo
Capital: o campo. Assim, o capitalismo se territorializa e o próprio território se capitaliza.
Para capitalização de um espaço é preciso, entre outras, a exploração e
intensificação da força de trabalho e, simultaneamente, uma crescente utilização de
técnicas e tecnologias com um único interesse: o maior lucro possível. Assim aconteceu e
acontece nos campos do Brasil. E nas últimas décadas, no Mato Grosso: com enormes
explorações de trabalhadores, crescente utilização e evolução de máquinas tal como de
fertilizantes químicos e agrotóxicos.
E o agrotóxico, entre as outras formas de manipulação e condicionamento dos
saberes científicos somente para a obtenção de lucro, é um dos pontos chave para a
evolução do capitalismo no campo. Com este veneno, a morte sobre a vida (biocídio) que
limita o lucro torna-se mecanismo de uma economia crescente: na última década o
mercado do agrotóxico crescera 190%, movimentando, no Brasil, em 2013, US$ 11,454
bilhões.
Como faz parte da natureza do Capital (lê-se, do capitalista) não levar em conta os
estragos feitos sobre a vida, as relações, as coisas e a sociedade, as consequências nocivas
de seus inseticidas, fungicidas e herbicidas sobre as pessoas, a água, o ar, as plantas, os
animais, a terra e outros são apensas efeitos colaterais, detalhes de um modo de produção.
Hoje o Brasil é o maior consumidor e importador de agrotóxico do mundo e o Mato
Grosso, entre os Estados, é o maior. A intensificação de produção de soja, milho, algodão
– e agora a cana-de-açúcar – nessa região de cerrado fez com que houvesse
simultaneamente a intensificação desses venenos. Essa intensificação de utilização chega
a números exorbitantes e denunciativos em que cada habitante no Brasil consumia, em
média, 5,2 litros de veneno; no Mato Grosso, 46,4 litros; e em uma das cidades onde se
tem a maior produtividade, Lucas do Rio Verde, são 120 litros, em média, por pessoa.
O agrotóxico tem por finalidade última a morte de uma vida – insetos, fungos e
ervas – que atrapalham a produtividade e o lucro. Contudo, o humanicídio está cada vez
mais presente nesses cálculos. As vias são diretas, com o próprio produto, ou indiretas,
74
por alimentação, ar e água, etc. E as consequências com estes venenos podem ser
intoxicação aguda, doenças crônicas, problemas reprodutivos, canceres, mal de
Parkinson, má formação fetal e até a morte. No Mato Grosso, apesar de quase ausência de
dados oficiais sobre doenças e mortes, vê-se, em contatos com trabalhadores rurais e
populações urbanas em municípios que existem uma intensificação produtiva com
agrotóxico que o envenenamento é presente: suicídio, envenenamento do leite de mama,
aumento de câncer, irritação na pele, dores de cabeça.
Outra maneira utilizada por fazendeiros na região é o envenenamento de
populações não desejadas: como indígenas, ribeirinhos, camponeses. Uma delas ocorre
sobre os povos Xavantes da aldeia Marãiwatsédé no noroeste do Estado, por pulverização
com aviões. Outro caso é o derramamento de veneno em riachos e casas utilizados por
populações ribeirinhas e camponesas no norte e noroeste do Estado.
As consequências sobre o corpo acontecem de maneira variada no tempo – a curto,
médio e longo prazo – e muitas vezes não são nem relacionadas com estes produtos
industrializados. Assim são os efeitos dos agrotóxicos cancerígenos (os quais são 50% dos
utilizados no Estado) como o Glifosato, Endossulfan, 2,4 D e Tebuconazol ou os contatos
por via da alimentação e pela água. Sabe-se que ao menos um terço dos alimentos comuns
na mesa da população está contaminado. Outro fato são os problemas respiratórios, como
na população de Primavera do Leste.
Contudo, é o trabalhador rural que está mais exposto ao envenenamento pelo
manuseio, alimentação, água e ar. Nessa realidade, o capitalismo aprofunda
perversamente sua natureza de descartabilidade da sua força de trabalho, motivado ainda
pelo grande exército de reserva, criado pela expulsão de camponeses de suas terras.
Com o crescimento da produtividade no cerrado do Mato Grosso em extensões de
milhões de hectares, com a soja, milho, algodão, cana-de-açúcar etc., aumenta-se a
utilização do agrotóxico no mesmo bioma. Este é outra consequência biocida do
capitalismo no campo: a morte, desestruturação, envenenamento, degradação do mais
antigo bioma brasileiro, com riquíssima diversidade biológica, com as maiores áreas de
recarga e reserva hídrica do país. Mais uma vez, o capitalismo se apropria da vida,
levando-a à morte.
75
Estes produtos produzidos pelo agronegócio têm como espaço territorializado o
cerrado: as terras planam, o clima e o excesso de água são favoráveis à alta produtividade.
Assim, no Mato Grosso, em que este bioma se estende a mais ou menos 40% do território,
os efeitos são desesperadores à fauna e flora. Com a degradação do solo provocada pelo
veneno, esteriliza esta fauna e flora tão singular no mundo: morte de pequenos animais,
pássaros, peixes, plantas.
Outra consequência, com o envenenamento de insetos e fungos, é a sua contínua
resistência, necessitando ainda de mais veneno sobre estas vidas e solo. Com fungos e
insetos resistentes, a vida de pequenos produtores camponeses torna-se mais difícil em
regiões onde o agronegócio é dominante. Exemplo são os camponeses de Rondonópolis,
que já estão sentindo em sua produção os efeitos de ter suas terras muito próximas às
grandes lavouras, especialmente devido ao aparecimento de novas pragas.
Além do solo e da vida a ele relacionada, há a contaminação da água: chuva, poços
de água potável, lençol freático, aquíferos. O cerrado é riquíssimo em água. É nesse bioma
onde estão os berçários das nascentes das principais bacias do país. É nesse mesmo bioma
onde se encontram as chapadas que são áreas de recarga hídrica, até para os aquíferos e
lençóis freáticos. E quando se vê a utilização de 140,8 milhões de litros de agrotóxicos
sendo despejados somente em 2012, no Mato Grosso, vê-se o perigo do aceso à água, para
humanos, plantas e animais.
A apropriação sobre a vida e a morte é o fundamento político dessas atividades e a
maior produtividade seu fundamento econômico. Assim, não pagamentos de impostos,
isenção ICMS torna a utilização dessa mercadoria biocida mais acessível. E mais vendável.
É sobre esta perspectiva de maiores lucros sobre a vida-morte que se intensifica a
presença de um pacote tecnológico para o agronegócio mato-grossense. E grandes
empresas dominam e monopolizam no mundo e Brasil este biocídio: Syngenta, Bayer,
Basf, Dow, Dupont e Monsanto. Estas empresas determinam os rumos da produção no
campo, da produção da ‘saberes’ para o campo e o que deve e como devem chegar os
alimentos às mesas da população.
76
3.5 - A COMPLEXA CONJUNTURA DO DIREITO HUMANO À ÁGUA, BEM PÚBLICO E PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE
3.5.1 - O hidronegócio no mato grosso: lucro, privação e descartabilização da água
O Estado do Mato Grosso traz em si o privilégio de possuir uma grande extensão
para a produção agrícola e criação de gado juntamente com uma quantidade relevante de
águas em suas bacias e águas subterrâneas. Contudo, este privilégio é a causa de sua
fatalidade.
Na divisão internacional de produção, o Brasil é o responsável pela produção
agrícola e pecuária, e o Mato Grosso é um dos seus maiores produtores e criadores; o
agronegócio é o carro chefe da economia do Estado, reduzindo esta economia capitalista
monocultural entre gado (mais que 70% do território agricultável) e soja, milho, algodão
e cana (mais que 25% do território agricultável). E para manter esta criação e esta
produção a água é um produto essencial.
A água, na lógica do capitalismo no campo, vai deixando de ser um bem público,
um patrimônio da humanidade para ser um produto que aumenta a produtividade e,
assim, o lucro – uma produção irrigada produz mais que a não irrigada – e, por fim, uma
valiosa commoditie. Assim, o bem comum, a água, torna-se hidronegócio. E ao saber que o
Brasil é o país com o maior território agricultável do mundo, com 360 milhões de hectares
e o país com a maior quantidade de água doce do mundo (13%), e o Mato Grosso tendo
em sua enorme relevância nessas informações – a barbárie está formada: 70% de toda a
água é utilizada no agronegócio.
Esta água utilizada para a maior produtividade, cuja intenção é somente o lucro,
finalizada na exportação dos referentes produtos não é contabilizada na própria
exportação. Para se ter uma ideia, na produção anual do algodão, gasta-se 5.208 m3/ha,
para o milho são 6.057 m3/ha, para a soja são 2.824 m3/ha, e para cada quilo de carne de
gado são necessários 17.000 litros de água. A exportação desses produtos não é
contabilizada na perda de nossa soberania hídrica. O peso dessa exportação vê-se quando
a China comprou 18 milhões de toneladas de soja no ano de 2004; para essa quantidade
é necessário ter gasto 45 km3 de água doce, assim, a população mato-grossense não tem
ideia de quanto é retirado de água nessas exportações.
77
Pela crise hídrica que diversos países estão passando, a relação produtiva do
agronegócio e do hidronegócio somente beneficia a territorialização do capitalismo no
campo para capitalistas nacionais e internacionais. Pois com a diminuição de regiões que
se beneficiam de uma maior presença de água doce, o Brasil e, especificamente, o Mato
Grosso torna-se o local ideal para grandes explorações e devastações. É nesse quadro que
o Brasil é o 4º maior exportador de água virtual do mundo, saindo pouco mais de uma
centena de trilhões de água na produção dos produtos.
A territorialização do capitalismo no campo pelo agronegócio e hidronegócio é a
causadora antrópica da crise nacional e internacional da água. A disponibilidade da água
no Mato Grosso é o grande estímulo para os empresários nacionais e internacionais (no
mundo existe aproximadamente 1,5 bilhão de hectares agricultáveis para alimentar 6,5
bilhões de pessoas: 0,23 hectares por pessoa).
Esta barbárie torna-se mais perversa ao notabilizar que o agronegócio que
sustenta esse hidronegócio se localiza, prioritariamente, no cerrado: o berço das águas. É
o caso do Aquífero Guarani, que alimenta a Bacia do Paraná, no Pantanal, sul do Estado;
do Sistema Aquífero Parecis, que alimenta toda região centro-norte, onde se localizam os
principais municípios do agronegócio: Sorriso, Lucas do Rio Verde (Aquífero Salto das
Nuvens); Juína, Tangará da Serra, Campo novo do Parecis, Comodoro, Sapezal (Aquífero
Utiariti); Sinop, Querência (Aquífero Ronuro). São estes Aquíferos que alimentam as
Bacias e rios do Estado.
O grande problema para o direito da humanidade à água nessa lógica do
hidronegócio no agronegócio capitalista é a privação e descartabilização dessa água. A
formação vegetal com raízes profundas e do solo no cerrado mato-grossense é própria
para a infiltração, absorção de água pelo solo com seus atributos naturais, com textura,
estrutura, mineralogia, umidade, porosidade, os quais são chamados áreas de recarga,
situados nos chapadões.
Porém, com a monocultura própria do agronegócio mato-grossense tanto o solo
quanto sua vegetação nativa são devastados: a sua vegetação tem raízes superficiais e o
seu solo é empobrecido e modificado, assim, não permitindo a infiltração das águas. A
consequência desse modelo econômico é a diminuição das águas dos Aquíferos e a
consequente diminuição das águas de suas Bacias, rios e para consumo da água mineral.
Um exemplo devastador é a transformação do pantanal em uma área de deserto arenoso.
78
Então, com o desmatamento feito pelo agronegócio para obter lucro, o solo do cerrado
perde sua função de manutenção do equilíbrio hidrológico, fragilizando a regulação dos
mananciais superficiais e subterrâneos.
As consequências já estão sendo sentidas por diversos camponeses e ribeirinhos,
principalmente do centro-norte do Estado, localizados no Sistema Aquífero Parecis e ao
mesmo tempo no centro principal do agronegócio no Estado. As Bacias Hidrográficas que
têm por função drenar por um rio principal seus afluentes e subfluentes estão sendo
modificadas antropicamente pelo modelo produtivo capitalista no campo. Isso é visível,
para camponeses e ribeirinhos, nas principais Bacias no Estado: Amazônica, Tocantins-
Araguaia e Paraguai, as quais drenam água para diversos rios.
Contudo, não são somente os Aquíferos que correm sérios riscos da força do agro-
hidronégocio no Estado, mas os lençóis freáticos sofrem da mesma causa e consequência.
Por ser um depósito subterrâneo, fonte de abastecimento, a preocupação com seu
desaparecimento é real. Pois, com o desmatamento, as águas das chuvas não
permanecerão na superfície do solo, evaporando. As erosões do solo provocadas pelo seu
mau uso provocam as mesmas consequências. Então, para que as águas das chuvas
permaneçam na superfície do solo, para a sua infiltração e abastecimento dos lençóis
freáticos, é necessária a sua vegetação nativa: a qual está em quase desaparição no
cerrado mato-grossense.
Com a diminuição e desaparição desses lençóis, e com a desregulação da estação
chuvosa, os pequenos cursos d’água, necessários à sobrevivência de camponeses, e os de
médio porte, necessários à sobrevivência de ribeirinhos, são os primeiros a serem
afetados.
Nesse mesmo contexto de depredação e descartabilização dos Aquíferos e lençóis
freáticos que dão vida às bacias e diversos rios e água mineral está o seu envenenamento,
contaminação por agrotóxico. Esta contaminação do sistema hídrico do Estado já foi
detectada em Lucas do Rio Verde, em Primavera do Leste e sendo pesquisada na região
do Araguaia. A presença de agrotóxicos em águas subterrâneas e superficiais,
impossibilitando o consumo humano, está cada vez mais comum nesse Estado, o maior
consumidor de veneno no País.
79
A irrigação do plantio, a irrigação por pivô e o envenenamento da água da chuva
pela pulverização são maneiras do envenenamento do solo, e com a infiltração da água
pelo solo, levando esta água aos lençóis freáticos e Aquíferos, a consequência lógica é o
envenenamento. Já existem pesquisas que confirmam esta descartabilização de suas
águas para consumo humano.
Por fim, é a partir dessas condições de privação e descartabilização da água com o
intento do lucro que houve em 2014 no Mato Grosso 06 manifestações com 1.247 famílias
envolvidas em cidades como Chapada dos Guimarães, Sinop, Paranaíta, Colíder, Nova
Canaã do Norte, Cláudia etc. No centro-oeste brasileiro, o Mato Grosso é líder nessas
manifestações de conflito pela água por expropriação, destruição e poluição. Denunciando
um caminho de desrespeito ao direito humano à água que está só começando. Onde existe
esta commoditização da água, o direito a seu acesso como patrimônio da humanidade
passa pela vontade do Mercado.
3.6 - CONFLITOS RELACIONADOS AOS GRANDES PROJETOS: HIDROELÉTRICAS, HIDROVIAS E MINERAÇÃO
Coordenação MAB/MT
O complexo teles pires que está sendo implantado na região norte de Mato Grosso
compreende cinco barragens, sendo quatro no rio Teles Pires e uma no rio Apiacás.
Desde 2010 esses projetos começam a ser implantados da região, o que se verifica
pelo andamento dessas obras é a reprodução perversa do setor elétrico brasileiro, que
vem pra atender as necessidades do capital e não dos trabalhadores, sejam eles atingidos
diretos, os trabalhadores das obras, até o trabalhador que paga a terceira tarifa elétrica
mais cara do mundo, que é a tarifa brasileira.
Hoje são quatro barragens em construção. A UHE Colíder está sendo construída no
município de Colíder e nova Canãa e atingira Itaúba também; essa obra está prevista para
entrar em operação em 2016. A grande violação dos direitos dos atingidos dessa obra de
propriedade da Copel (Companhia Paranaense de Energia Elétrica) está sendo com os
pescadores, a empresa não reconhece o impacto na vida desses trabalhadores. Hoje o
processo encontra-se na Justiça e sem previsão de conclusão. A obra ficou marcada por
80
uma revolta dos trabalhadores, que incendiaram os alojamentos reivindicando direitos
trabalhistas.
A UHE Teles Pires atingirá os municípios de Paranaíta, Alta Floresta e Jacareacanga
(PA). Esse consórcio é formado por Furnas, Eletrosul, Odebrecht e Neoenergia, que é
acionista majoritária. A operação dessa UHE está prevista para fins de 2015. Essa obra
trouxe um impacto muito grande para as populações urbanas principalmente de Alta
Floresta, entre eles, o aumento de violência e os preços exorbitantes de aluguéis.
No início desse ano foi denunciada pelo site Olhar Direto, que sobrevoou a área e
verificou que as comportas da usina foram fechadas e a vegetação não teria sido
suprimida, gerando um problema ambiental imenso.
A UHE São Manoel atingirá os municípios de Apiacás, Paranaíta, Jacareacanga (PA).
Essa obra teve início em dezembro de 2014 e o consorcio é formado por Furnas e EDP
(energia de Portugal). Em janeiro deste ano houve um incêndio no canteiro de obras;
trabalhadores colocaram fogo num dos barracões, alegando problemas trabalhistas.
A UHE Sinop atingirá os municípios de Sinop, Cláudia, Ipiranga do Norte, Itaúba e
Cláudia. O consórcio é formado por Eletronorte, Chesf e EDF (Électricité de France) que é
a maior acionista do empreendimento, e a maior empresa de energia mundial. A UHE
Sinop se destaca dentro do complexo por ser uma barragem com reservatório de
acumulação, ou seja, retém as águas na época da chuva e vai soltando aos poucos na época
da estiagem. Em outras palavras, ela regulariza a vazão mantendo a produção de energia
para todo o complexo. O reservatório atingirá 40.000 hectares, e desses, 35.000 hectares
são áreas de floresta. Serão mais de 1.000 famílias atingidas, dentre elas dois
assentamentos do INCRA: assentamento 12 de outubro e gleba Mercedes, além de 90
pescadores, diversos chacareiros, ceramistas e fazendeiros.
A obra está em seu segundo ano de construção e tem previsão de entrar em
operação em fins de 2017, essa UHE é marcada por uma série de irregularidades, desde
os péssimos estudos feitos no EIA/RIMA, os quais não consideravam o assentamento 12
de outubro, até a elaboração do PBA, o qual não contempla por completo os impactos
gerados e também o próprio descumprimento do PBA. A partir disso o MPF moveu ação
civil pública, na qual a obra ficou embargada durante 50 dias no primeiro semestre de
2014, pois não cumpriu as condicionantes da LP (Licença Prévia), que exigia a
81
apresentação do projeto de reassentamento e agroindústria para atingidos dos dois
assentamentos.
Uma característica desse empreendimento é a troca de pessoas dentro da empresa,
desde diretores, gerentes e técnicos. Isso atrasa em muito o processo, pois os atingidos
estabelecem um diálogo com um diretor/gerente/técnico e, de repente, essa pessoa é
substituída por outra que alega não saber de nada. Um ano se passou desde o início das
obras, que por sinal estão muito avançadas, mas em relação ao direito dos atingidos não
se tem nada ou quase nada até o momento, embora os meios de comunicação local, seja
rádio, TV, sites, jornais impressos, estejam sempre divulgando notícias em favor da
empresa, pintando de verde e de socialmente responsável.
O que se está impondo na região do Teles Pires é a lógica mais voraz que o setor
elétrico vem impondo em todo o território nacional há décadas, deixando um rastro de
violação de direitos, destruição do meio ambiente, injustiças e problemas irreversíveis,
numa combinação que envolve transnacionais, empresas estatais e recursos públicos, sem
participação alguma da sociedade em geral e criminalização das organizações que lutam
pelo direito do povo brasileiro, com fortes ataques ao MAB.
Todos esses crimes cometidos tanto contra o meio ambiente e as populações que
vivem nas proximidades do rio, ou dependem dele para seu sustento financeiro, são
praticados com a permissão do Estado brasileiro, que financia grande parte dos
empreendimentos e não busca discutir junto às organizações dos trabalhadores e
populações atingidas uma Política Nacional para os Atingidos por Barragens, cabendo aos
atingidos a ação direta e a pressão popular para não perder suas terras, suas casas, seus
meios de vida e sua dignidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL DE FATO. 28 de janeiro: dia de (quem?) comemorar o combate ao trabalho escravo no Brasil. Disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/31168 PLASSAT, Xavier. CPT: 30 anos de denúncia e combate ao Trabalho Escravo. Campanha nacional da CPT contra o trabalho escravo, maio de 2015. Disponível em: http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/noticias/trabalho-escravo/2634-cpt-30-anos-de-denuncia-e-combate-ao-trabalho-escravo
82
RELATO DE CASO II
I ASSASSINATO DE MARIA LÚCIA DO NASCIMENTO
Zilma Porfiro Presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de União do
Sul-MT
O ano de 2014 colocou o Estado de Mato Grosso no ranking do 2º maior em número
de assassinatos no campo no Brasil. Foram 05 assassinatos de lideranças e, dentre essas,
destacamos abaixo o caso de Maria Lúcia do Nascimento (48 anos), alvejada com 03 tiros, no
município de União do Sul.
Maria Lúcia era assentada na Gleba Macaco, no Assentamento Nova Conquista 2, área
reconhecida legalmente como terra pública da União e objeto de uma série de violências
contra as famílias, como queimas de casas e plantações, perpetradas por um fazendeiro que
intencionava grilar a área. Neste cenário Maria Lúcia coordenava a luta pela regularização do
Assentamento que conta com 25 famílias e foi presidenta do Sindicato dos Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais, onde atuou na defesa intransigentemente dos direitos das famílias.
Este conflito gerou graves ameaças também a outras pessoas envolvidas, como a
Cleirton Alves Braga, que é ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de União do
Sul e também assentado na Gleba Macaco, no Projeto de Assentamento Nova Conquista 2 e à
sua irmã Zilma Porfírio, quem escreveu o depoimento abaixo.
“Relatório sobre o assassinato da Maria Lucia do Nascimento no qual no dia 13 de agosto de 2014 ela foi chamada para ir atender o seu gadinho lá no sitio dela qual tinham colocado fogo no pasto ai ela foi estava apagando o fogo quando chegou no local o Fazendeiro Gilberto de Miranda e seu capanga por nome de Altair Borges de brito no qual ela tinha sido reintegrada pela justiça no seu lote dentro do assentamento nova conquista gleba macaco terras da união federal ai o próprio Fazendeiro começou acusar ela de colocar fogo no próprio pasto ai ela disse que o capanga quem andava colocando fogo nas casas dos reintegrados pela justiça e ai ele disse vou te mostrar como coloca fogo foi ate a caminhonete do Fazendeiro e pegou o revolver e chegou atirando nela sem deixar espaço pra ela se defender logo depois o próprio Fazendeiro tirou seu capanga do local para poder fugir do flagrante no qual ele capanga foi preso mais não ficou nem sessenta dias prezo ai foi marcado audiência para dia 01/04/2015 ai foi adiada para 10/07/2015 ele continua solto e fazendo ameaças ate encima de mim no qual já fiz varias denuncias na policia e também na ouvidoria agraria nacional para o DR Gercindo na FETAGRI-MT na CONTAG mais está muito difícil pra mim pois ela também foi presidente do Sindicato e agora sou eu a presidente do Sindicato e tem mais informações na Contag sobre isso e também na CTB por isso também estou a disposição para qualquer esclarecimento vou estar na FETAGRI dia 23 e 24 de Junho e o esposo dela também vai estar lá comigo. Meu nome Zilma Porfiro Presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de União do Sul-MT.”
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Vale destacar que este conflito se acirrou logo após a realização de uma reunião
com a Ouvidoria Agrária Nacional e a Comissão Nacional de Combate à Violência, no dia 5
de agosto de 2014 em Cuiabá, onde as vítimas desse e outros conflitos apresentaram suas
denúncias, demonstrando o descaso e o desrespeito dos agressores.
No atual momento, o assassino de Maria Lúcia está solto, gozando da total
liberdade e as ameaças à vida da Zilma Porfirio continuam...
II O ASSENTAMENTO ROSELI NUNES E O PROCESSO DE RESISTÊNCIA À ATIVIDADE MINERADORA: DO SONHO DA CONQUISTA DA TERRA AO PESADELO DA AMEAÇA DE EXPROPRIAÇÃO
José Gomes Lucineia Miranda de Freitas
O Assentamento Roseli Nunes, localizado no município de Mirassol D’Oeste-MT,
antes era uma fazenda por nome de Agrossilvopastoril “Prata”, uma área de
aproximadamente 12 mil hectares de dois sócios proprietários, que tinha por atividade
básica a pecuária extensiva.
Em 1998 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Sindicato
dos Trabalhadores/as Rurais de Cáceres solicitaram ao INCRA vistoria da fazenda para
avaliar sua função social e produtiva, e o resultado da análise considerou a área
improdutiva. Ou seja, a área estava apta para fins de reforma agrária. Antecedendo a
vistoria da propriedade constituiu-se na região o acampamento Roseli Nunes numa área
de 40 hectares, cedida em forma de comodato para acomodar as famílias. Em 2000, a
fazenda foi desapropriada para fins de Reforma Agrária e, no mesmo ano, foi realizado o
parcelamento da área e até 2002 foram assentadas 331 famílias, que receberam uma área
de 25 hectares cada.
O assentamento Roseli Nunes é um bom exemplo de como a reforma agrária no
Brasil é necessária para distribuição de riqueza, para semear o bem estar social, cultural,
produzir alimentos e gerar a vida. O assentamento trouxe muitos benefícios para o
município de Mirassol D’Oeste e para a região, principalmente para o comércio, pois estas
331 famílias receberam recursos do Programa Nacional da Agricultura familiar (Pronaf)
e do crédito habitação, além de outros créditos. Mas importante mesmo é a produção, que
é comercializada no município e no entorno, e até mesmo em Cuiabá, e que ao contrário
84
do agronegócio, que tem isenção de imposto, a agricultura familiar camponesa paga
diversas taxas. Portanto, são muitos recursos financeiros que circulam e geram renda
para o município e para a região.
O assentamento hoje produz alimentos diversificados, como hortaliças em geral
(folhosas e caixaria), frutas, feijão, cana, leite e animais de pequeno porte, sendo que uma
das associações do assentamento tem certificação de produto agroecológico. Essa
produção é comercializada por meio do comércio institucional PAA e PNAE e dessa forma
garante produção saudável em diversas escolas do município e da região, além de atender
a aproximadamente 750 famílias anualmente em situação de vulnerabilidade social,
também são comercializadas nas feiras e nos mercados locais.
II.I AMEAÇAS DA MINERAÇÃO
Desde o início de 2012 começou a circular notícia de jazidas de fosfato e outros
minérios na região sudoeste, no entanto, no primeiro semestre de 2013 uma técnica do
INCRA chegou no assentamento acompanhada de pessoas que se diziam representantes
da empresa que já havia requerido o subsolo do assentamento e já falando em ordem de
desapropriação das famílias. O desrespeito com as famílias foi tanto que a referida técnica
chegou a afirmar que o subsolo do assentamento é da União e que ali as terras também
eram, e por isso as famílias não teriam nenhum direito sobre o solo, ou benfeitorias.
Alegava que o governo cedeu a terra para reforma agrária, forneceu os recursos do
PRONAF para a produção e crédito habitação para a construção das casas, portanto, todas
as famílias seriam despejadas sem direito a indenização. Bateu um desespero no
assentamento inteiro. Estas ameaças causaram crises, problemas de saúde, muitas
pessoas ficaram depressivas e outras abatidas psicologicamente. Imagina uma história de
luta e de sonhos desabando em um enorme pesadelo.
II.II DO SUSTO À REAÇÃO, AS FAMÍLIAS DIZEM NÃO À MINERAÇÃO
Depois do susto veio a reação das famílias, que primeiro fizeram uma assembleia
geral no assentamento na escola Madre Cristina. As famílias assentadas se posicionaram
contrárias às pesquisas e às atividades de mineração na área do assentamento,
posteriormente foram realizados dois amplos seminários envolvendo todos os
assentamentos e comunidades em torno para debaterem sobre os impactos da mineração,
85
além de uma sequência de estudo e debates por núcleo para aprofundar os elementos de
enfrentamento.
Por que NÃO queremos Mineração em nosso Assentamento e em nossas vidas?
Porque a Mineração faz parte do projeto do capitalismo, que só visa o lucro para
algumas empresas, e causa a miséria e exclusão para muitos. A água, a terra, a floresta e
o subsolo (minério) são BENS COMUNS criados pela própria NATUREZA para dar vida ao
planeta.
E o que deve CAUSAR a MINERAÇÃO no Assentamento Roseli Nunes?
As empresas mineradoras primeiro devem exigir a saída de todas as famílias
assentadas, ou seja, EXPULSAR os habitantes da área, para EXPLORAR o
subsolo (recursos naturais) e obter lucros exorbitantes deixando rastros de
destruição socioambiental;
As famílias do PA Roseli Nunes perderão seus lotes com todas as suas
plantações e suas benfeitorias (qual garantia de assentar em outra área?) já que
a terra é da União;
A Prefeitura do município de Mirassol D’Oeste - MT está priorizando a
mineração por conta dos royalties que receberá e não quer valorizar mais a
agricultura familiar e camponesa, como é o caso do assentamento Roseli Nunes;
O assentamento Roseli Nunes, tornando-se área de mineração, corre o risco de
tornar-se um cenário de prostituição infanto-juvenil e violência, seja criminal,
social e trabalhista como ocorrem em outros locais de mineração;
As áreas de mineração causam problemas de saúde: respiratórios
(pulmonares), intoxicações, físicas, moléstias, etc.;
Causam desastres ambientais: desmatam a vegetação, escavam grandes
crateras no solo, poluem e interferem na água superficial e subterrânea, além
de poluir o AR com emissão de gases, óleos, graxas e elementos químicos. Causa
ainda EROSÃO dos solos e ASSOREAMENTO das águas.
Em razão destas graves causas, NÃO permitimos realizar pesquisas e muito menos
liberar licenças para mineração em nosso assentamento. Nossa intenção é continuar em
nossos lotes vivendo nossa vida e produzindo alimentos. Para isso, nesta assembleia geral
do assentamento oficializamos nossa proposta e exigimos que o ministério de Minas
Energia, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e a secretaria do Estado
de Mato Grosso de Minas e Energia devem:
Garantir o direito à consulta direta, consentimento e veto sobre os
empreendimentos minerais às famílias ameaçadas e afetadas do PA Roseli
Nunes.
86
Delimitar o assentamento Roseli Nunes como ÁREA LIVRE DE MINERAÇÃO
respeitando as famílias assentadas com sua história de 12 anos de produção e
vivencia social e cultural.
87
CAPÍTULO 4
VIOLÊNCIA E POVOS INDÍGENAS CIMI/MT
Mario Bordignon
Figura 5 - Imagem de área aberta para extração ilegal de madeira na TI Kayabi (Juara). Fonte: CIMI/MT.
RESUMO
De 2013 aos dias de hoje a situação dos povos indígenas no Brasil e no Mato Grosso está se agravando cada vez mais. Os Direitos indígenas adquiridos na Constituinte de 1988 estão sendo violados e projetos de lei querem legalizar estas violações. Após 515 anos continua o mesmo objetivo: a posse ou o uso das terras indígenas. Políticos eleitos com financiamentos privados com compromissos escusos, crise do Estado que não consegue garantir os direitos fundamentais, crise econômica, enfraquecimento e fragmentação dos movimentos populares e avanço do conservadorismo são as principais causas. O agronegócio, carro chefe da economia de Mato Grosso, para alcançar seus objetivos, com seus recursos elege muitos políticos no Poder Legislativo, condiciona o Poder Executivo e há fortes indícios que condicione até o Judiciário. Nas aldeias chegam os reflexos destas políticas: demarcações de terras indígenas paralisadas, plantios de soja regados com agrotóxicos cercando as áreas indígenas, poluindo rios, ar e intoxicando pessoas, arrendamentos ilegais, madeireiras e mineradoras praticando o extrativismo também ilegal, aliciamento de lideranças para arrendar suas terras ou executar obras de logística como hidroelétricas, linhões, hidrovias e rodovias rasgando os territórios indígenas, a proposital fragilização política e econômica da FUNAI e o mau uso dos recursos para a saúde e educação indígenas. Além da violência politicamente organizada há a violência do dia a dia nas aldeias, provocada por fazendeiros, madeireiros, mineradoras, por avanços tecnológicos da mídia também entre os índios que com suas vantagens levam junto consequências devastadoras da cultura criando dependentes da lógica consumista individual.
88
4.1 - VIOLÊNCIA POLÍTICA
4.1.1 - Poder Legislativo
Há vários projetos de lei declaradamente anti-indígenas apresentados pela
numerosa bancada chamada de ruralista. Nela se destacam a fazendeira Ministra da
Agricultura, Kátia Abreu e de Mato Grosso o senador Blairo Maggi e o deputado Nilson
Leitão, investigado pelo STF por envolvimento na invasão da terra indígena Marãiwatsede
dos xavante, presidente da comissão da PEC 215 que quer tirar do Poder Executivo a
competência para a demarcação das terras indígenas e passá-la para o Legislativo.
As lideranças indígenas de todo o Brasil conseguiram em 2014 fazer arquivar este
projeto de lei e logo a nova legislatura instalou novamente a Comissão da PEC 215. Caso
esta seja aprovada nenhuma terra indígena será mais demarcada, tendo em vista a atual
composição do Congresso. Como diz o povo: é entregar à raposa o cuidado do galinheiro.
Outros projetos de lei estão em pauta no Congresso destinados a flexibilizar a legislação
indigenista, ambiental e de proteção do patrimônio genético e dos conhecimentos
tradicionais associados:
A PEC 237/13 que visa legalizar o arrendamento das terras indígenas;
O PL 1610/96 quer legalizar a mineração em terras indígenas;
O PL 7735/14 dá acesso ao patrimônio genético; e
O Projeto de Lei Complementar 227/12 que declara relevante interesse público
da União os interesses privados do agronegócio e de outros segmentos
poderosos do país.
4.1.2 - Poder Executivo
Estão praticamente paralisadas as demarcações das terras indígenas. São cinco as
etapas da demarcação: identificação, delimitação ou declaração, demarcação,
homologação e registro no Departamento do Patrimônio da União e no cartório da
Comarca. É competência do Ministério da Justiça, através da FUNAI, demarcar as terras
indígenas. O estudo é feito por um amplo grupo de trabalho composto por antropólogos,
agrimensores, ambientalistas, técnicos especialistas e lideranças indígenas. Feita a
Portaria Declaratória, todas as pessoas envolvidas na propriedade da terra têm direto de
ampla defesa pelo Decreto Contestatório 1775/96. Uma vez julgadas todas as
contestações, acontece a demarcação da terra indígena. Ainda assim, o Poder Executivo,
pressionado pelos ruralistas, não decreta as demarcações, mesmo com todas as etapas
legais resolvidas.
89
Em todo o Brasil 30 áreas estão há anos na espera do decreto de demarcação e
homologação. Enquanto o decreto não é assinado, os ocupantes aproveitam para
depredar ao máximo as áreas. É o que está acontecendo em Mato Grosso com a terra
indígena Manoki dos Iranxe e Cacique Fontoura dos Karajá. Além disso, os Pareci da terra
Estação Parecis e os índios isolados Kawahiva do Rio Pardo estão há tempos esperando a
Portaria Declaratória. Mesmo as terras regularizadas não ficam livres de invasões de
madeireiros, especialmente no Norte do Estado, ou de posseiros como em Jarudori,
município de Poxoréo e no Urubu Branco, município de Confresa. Fazendeiros
convenceram os Pareci a desmatar e plantar soja e milho, a arrendar ilegalmente a própria
terra. Outros índios estão sendo aliciados neste sentido.
Hoje, em Mato Grosso, observando as fotos via satélite, pode-se observar que as
únicas áreas bastante preservadas são as áreas indígenas e as de Proteção Ambiental. Vê-
se claramente também que o Código Florestal muitas vezes não é respeitado. Todos
ouvem falar de mudanças climáticas, de preservação ambiental, de falta de água e de
desenvolvimento sustentável defendido até pelos grandes produtores rurais, mesmo se a
prática deles mostra o contrário. Preservar a natureza nas áreas indígenas é bom para
todo mundo, não somente para os índios.
4.1.3 - Poder Judiciário
O Supremo Tribunal Federal tem ministros que ultimamente trabalham em duas
turmas. Recentemente aconteceram decisões jurídicas assustadoras nunca antes vistas.
Apelando às condicionantes usadas na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
em Roraima e válidas somente para esta terra, o STF cancelou decisões do Poder
Executivo, criando assim conflito de Poderes. Anularam a Portaria Declaratória de terra
Guiraroká dos Guarani Kaiowá, o decreto presidencial de homologação da terra Limão
Verde dos Terena, as duas áreas em MS, e a portaria da terra Porquinhos dos Kanelas do
Maranhão. No Pará a Justiça Federal anulou o relatório de identificação da FUNAI da Terra
Indígena Maró negando assim a existência de 200 índios Borari e Arapium. Nas terras
indígenas de Mato Grosso há processos de reintegração de posse e de demarcação
juridicamente emperrados faz muitos anos.
Lembramos aqui Jarudori, com processo de reintegração de posse na última
instância, há muitos anos parado na Procuradoria da República de Rondonóplis
esperando a sentença. O Procurador Dr. Paulo Taek Keun Rhee não demonstrou nenhum
90
interesse em terminar o processo, pelo contrário, se depender dele, como declarou à
cacica, a sentença não sairá tão cedo. Na terra indígena Urubu Branco dos Tapirapé o
fazendeiro Rui Atiaga da fazenda São Francisco alega ter uma liminar da justiça que
garante a posse da propriedade. Isso é completamente ilegal dentro de uma terra
demarcada e homologada há muito tempo atrás.
4.2 - TERRAS
Quanto às várias demarcações paradas ou que nem sequer iniciaram o processo de
demarcação, podemos lembrar: “As terras tradicionalmente ocupadas” (C.F./1988, Art.
231, § 1º) de tempo imemorial dos cerca de 2.500 chiquitanos na fronteira com a Bolívia,
onde há um conjunto de forças articuladas abertamente pelos latifundiários hostis à
demarcação. ”Aqui fazendeiro manda mais que o Governo”. Esta é a frase que corre na
região.
Por serem terras de fronteira elas são patrimônio da União e foram recentemente
ocupadas em parte legalmente através do INCRA e a maior parte griladas ou com
“laranjas” recebendo títulos do mesmo INCRA. Poderia até ser mais fácil pelo Poder
Judiciário abrir o processo de demarcação porque também as terras indígenas são
patrimônio da União com usufruto exclusivo dos povos indígenas. Não é assim que
acontece. Só há uma terra deles declarada, não demarcada, o Portal do Encantado que
sofre invasões e desmatamento. As demais não têm nenhuma providência mesmo com
estudos histórico-antropológicos já feitos. São elas: Vila Nova Barbecho, onde 15 famílias
ficam confinadas numa área de 25 ha, cercadas por arame farpado, sofrendo violência do
fazendeiro Edir Luciano Martins Manzano, que jogou serragem na cabeceira do córrego
que passa na aldeia e depois soltou por lá o seu gado. Não bastasse, mandou parar o poço
e a distribuição da água feita pelo DSEI, Distrito de Saúde Indígena. Depois disso, o juiz
federal de Cáceres, Dr. Mauro Cesar Garcia Patini, deu a ele ganho de causa no processo
sobre a água.
Há ainda a aldeia Aparecida, onde o fazendeiro paga os índios para eles não se
assumirem como tais e, assim, ganhar um emprego barato na fazenda. Não bastasse a
divisão interna, a prefeitura de Vila Bela da Santíssima Trindade com o prefeito,
vereadores e o secretário de educação, o Sr. Félix Rodrigues, hostilizaram a criação de
uma escola na aldeia. E o que dizer das áreas da Baia Grande, Santa Mônica, São Simão e
91
Fortuna, onde os Chiquitanos lá moravam antes da chegada de portugueses e espanhóis e
que de lá foram expulsos, acabando na periferia de Vila Bela?
Das terras dos outros povos indígenas a serem demarcadas, lembramos só
algumas, como o Batelão, terra kayabi, onde fica o salto sagrado, lugar da origem
mitológica deste povo que há trinta anos está lutando pela sua demarcação. No Vale do
Araguaia há tempos que os Karajá cobram a demarcação do Lago Grande. Na região temos
indígenas que, para salvar suas vidas, há muito tempo se refugiaram em Mato Grosso
muito antes da chegada dos fazendeiros. Os Kanela lutam para demarcar a área Porto
Velho, os Maxakali a do Rio Preto e os Krenak a Krenrehé.
Figura 6 - Caminhão sobre balsa para transporte de madeira da TI Kayabi (Juara) e detalhe do transporte.
Fotos: CIMI.
Na mesma região, a área xavante Marãiwatsede, demarcada e homologada, sofreu
quatro invasões apoiadas por políticos, prefeituras, latifundiários locais e multinacionais
que acabaram com 80% da vegetação, deixando terreno e córregos poluídos com
agrotóxicos. Várias crianças morreram após ter bebido estas águas. As invasões
aconteceram de maneira perversa, jogando pequenos posseiros na beira das estradas,
cada qual com seu pequeno lote, enquanto os mandantes ocupavam lotes de um, dois ou
três mil hectares. Isso se deu também com o apoio de uma incrível disputa jurídica onde
decisões judiciais eram simplesmente anuladas com outras à revelia da lei. Foi preciso a
intervenção da Força Nacional, da Polícia Militar e Rodoviária para se resolver de vez a
disputa da terra. Hoje os xavantes vivem uma relativa paz territorial quebrada às vezes
por ameaças de morte ou tentativas de retorno dos invasores. Os pareci, mesmo tendo
boa parte de suas terras demarcadas, aguardam há anos a demarcação da Estação Paresi
fundada por Rondon, a Ponte de Pedra e a Uirapuru.
92
No Noroeste do Estado de Mato Grosso há pelo menos seis grupos de indígenas não
contatados, chamados também de arredios porque fogem do contato com os não
indígenas porque sabem que os matariam. Há tentativas da FUNAI de reservar uma área
de perambulação para eles, mas há muita perseguição de fazendeiros, madeireiros e
mineradoras. Estes, devido às dificuldades de acesso e de comunicação, se aproveitam
para explorar o quanto puderem a região, especialmente as madeireiras. Vez por outra o
IBAMA e a Polícia federal atuam e prendem os madeireiros.
Figura 7 - Abertura na TI Kayabi para entrada de caminhão e placa indicando Terra Protegida. Detalhe da placa (dir.). Fotos: CIMI/MT.
4.3 - VIOLÊNCIA COTIDIANA
Mesmo os índios que têm suas terras demarcadas, e são a maioria em Mato Grosso,
sofrem, alguns mais e outros menos, várias formas de violência no dia a dia. Vez por outra
ainda aparecem formas de discriminação cultural, especialmente nas cidades próximas às
aldeias.
São preocupantes, nestes últimos tempos, as diversificadas formas de aliciamento
por parte de alguns comerciantes e narcotraficantes para os índios consumirem álcool e
drogas. Sabendo que vários índios recebem seus salários, estas pessoas se aproveitam da
ingestão de álcool e drogas para explorá-los ou até roubá-los. Preocupa-nos também a
indiferença de policiais com essas questões.
Outro fenômeno recente que chama a atenção é o aumento relevante de índios se
mudando para morar nas cidades ou por falta de atendimento de saúde adequado, ou
mesmo pelo fascínio que a mesma cidade exerce sobre eles. Não temos no momento dados
específicos sobre o assunto, mas preocupa porque eles acabam morando geralmente nas
93
periferias, buscando meios nem sempre lícitos de sobrevivência. Reconhecemos que estas
questões merecem ser avaliadas e estudadas adequadamente para ver se há a
possibilidade de reverter a situação.
4.4 - SAÚDE
A nível nacional existe, há quatro anos, a SESAI - Secretaria de Saúde Indígena
ligada ao Ministério da Saúde, coordenando os DSEI - Distritos de Saúde Estaduais
Indígenas, com seus CONDISI - Conselhos Distritais de Saúde Indígena e CASAI - Casa de
Atendimento à Saúde Indígena, e nas aldeias os Conselhos locais com as equipes de
atendimento.
Aparentemente bem estruturada, a saúde indígena sofre altos e baixos devido à
sua burocratização, desvios de recursos públicos e interferências políticas. Vários DSEI
por protestos foram tomados pelos índios, inclusive em Mato Grosso, em São Félix do
Araguaia, Barra do Garças, Colíder e Vilhena pelos Nambikuara de Mato Grosso e de
Rondônia. A grande diversidade de aldeias quanto às suas localizações e número de
componentes nem sempre permite um atendimento adequado e emergencial,
especialmente às crianças, que facilmente acabam falecendo.
Ultimamente temos dificuldades de ter números disponíveis. Acontece que, devido
a problemas internos de administração e concursos públicos, a SESAI quer montar o INSI
- Instituto Nacional de Saúde Indígena, visando privatizar mais o atendimento. Há
lideranças indígenas e ONGS abertamente contrárias à criação do INSI e por isso sofrem
retaliações e sonegação de informações. Com isso os índios passam às vezes períodos sem
atendentes, sem remédios, sem condução e com exames médicos marcados para longo
prazo, mesmo em casos de emergências.
4.5 - EDUCAÇÃO
As numerosas escolas indígenas no Brasil em 2010 eram 1.508 municipais e 1.308
estaduais, com um total de 194.449 alunos. A Lei de Diretrizes e Bases, a Constituição
Brasileira, Decretos, Resoluções e Portarias garantem aos índios uma “Educação
específica, diferenciada, bilíngue e intercultural”. As municipais dependem muito da
política da prefeitura local, que pode ser favorável ou, na maioria das vezes, contrária aos
índios, especialmente onde há conflitos de terras. Para evitar isso tudo, desde 1999 todas
94
as escolas indígenas deveriam depender do Sistema Estadual de Ensino. Na prática não
aconteceu.
Também em Mato Grosso há ainda escolas indígenas não regularizadas. As escolas
indígenas estaduais têm um funcionamento mais estável. O número de professores
indígenas formados é cada vez maior. Passou da metade do total de 14 mil. Em Mato
Grosso a maioria das escolas tem professores indígenas. Nem por isso faltam problemas.
O principal é a burocratização das escolas à revelia de toda a legislação existente favorável
às escolas indígenas. Em várias escolas não há energia elétrica nem internet, mesmo assim
a Secretaria de Educação exige prestações de conta, relatórios, diários de classes, etc., tudo
on line. Muito professores são apenas contratados, interinos. A mesma contratação
submete a dura prova a paciência deles. Nem sempre a merenda escolar chega e quando
chega é atrasada. Rituais comunitários, migrações periódicas, funerais e acontecimentos
relevantes onde toda a comunidade indígena participa nem sempre são aceitos como
aulas formativas.
4.6 - AGROTÓXICOS
Dados recentes levantam sérias preocupações sobre o uso de agrotóxicos no Brasil
e de modo especial no Mato Grosso, estado líder do agronegócio. 64% dos alimentos é
contaminada, segundo a ANVISA/2013. 12 bilhões de dólares foi o faturamento da
indústria de agrotóxicos no Brasil em 2014 segundo a ANDEF. Foram registradas 34.147
notificações de intoxicação de 2007 a 2014 segundo o Ministério da Saúde. Outros dados
alarmantes podem ser acessados no dossiê ABRASCO e, em Mato Grosso, por meio dos
rigorosos estudos da UFMT liderados pelo Prof. Pignati e pela Fiocruz.
Antes do plantio vem o desmatamento do cerrado e da mata amazônica,
ameaçando seriamente a biodiversidade. Madeireiros e fazendeiros não respeitam Planos
de Reflorestamento e Código Florestal. Depois vem a preparação do terreno e o plantio
com o uso intensivo da pulverização de enorme quantidades de agrotóxicos. Agrotóxicos
proibidos em outros países são liberados no Brasil. No Mato Grosso muitas destas
fazendas fazem limites com quase todas as áreas indígenas. Temos casos de aviões
passando veneno até em cima de aldeias, como aconteceu em Marechal Rondon,
Município de Paranatinga e em Volta Grande-Sangradouro, Município de Novo São
Joaquim.
95
Muitos rios que passam nas aldeias onde os índios se banham e bebem água têm
suas nascentes fora da terra indígena. O caso mais evidente é o caso do Parque do Xingu.
Nascentes cercadas por plantios de soja, milho, algodão e cana de açúcar contaminam suas
águas que acabam descendo nas aldeias causando doenças e até morte, como aconteceu
em Marãiwatsede.
4.7 - USINAS HIDROELÉTRICAS
É notório a todos o que aconteceu com o Povo Enawenê-Nawê com a construção
da usina no Rio Joruena: a rápida transformação ambiental provocada pela barragem não
abalou somente o ciclo natural do rio, mas também o sistema existencial, religioso, social
e cultural deste povo. Os Enawenê-Nawê se alimentam exclusivamente de peixe, que não
é só alimento. É moeda de troca, é oferenda aos Espíritos. É calendário de atividades
anuais cíclicas, míticas, religiosas. Vamos citar aqui algumas das palavras de outros índios
sobre os impactos das usinas hidroelétricas.
MANIFESTO DA ALIANÇA DOS POVOS INDÍGENAS APIAKÁ, KAYABI, MUNDURUKU E RIKBAKTSA
(Aldeia Teles Pires, 24 de abril de 2015).
“As usinas Sinop, Colíder, Teles Spíres e São Manoel... estão afetando nosso modo de vida
tradicional... Peixes e animais morrendo aos milhares... com cheias e baixas repentinas do
rio descontrolado que já levou muitas canoas... Com a água suja das barragens não
conseguimos mais pescar com arco e flecha... Aumentam os problemas de saúde... fruto das
construções de barragens com estudos apressados e incompletos... sem ouvir os povos
indígenas como garantido na Constituição Federal e pela Convenção 169 da OIT... Nós somos
responsáveis pela conservação de milhares de hectares de floresta e biodiversidade que o
não índio tem se mostrado incapaz de governar e cuidar... Considerando os grandes
atropelos de nossos direitos que já aconteceram, exigimos a imediata suspensão da
construção da usina São Manoel, e que nossos direitos sejam respeitados.”
96
CAPÍTULO 5
“QUEREMOS MATO GROSSO LIVRE. LIVRE DAS DERRUBADAS, LIVRE DO SOJA!”
ICARACOL REMTEA
Michelle Jaber-Silva Regina Silva Michèle Sato
Neste capítulo abordaremos um relato de caso vivenciado no município de Poconé
no Estado de Mato Grosso (MT), trata-se de uma denúncia de derrubadas de árvores de
Cumbaru para o enfraquecimento dos grupos sociais vulneráveis que ali vivem. A escolha
por esse relato, dentre tantos outros existentes, não foi ao acaso, deve-se a recorrência
desse mesmo cenário de re-existência em tantos outros rincões mato-grossenses, assim,
transitaremos entre a singularidade do caso e a generalidade da vivência apresentada.
Nos múltiplos territórios existentes no Estado, há muitos modos de vidas, muitos
valores e muitos sentidos imbricados, muitas percepções diferentes sobre um mesmo
espaço. Como, por exemplo, é muito distante o valor da floresta para um seringueiro ou
camponês, em face ao valor dado por um madeireiro ou por um pecuarista. Tão
equidistante, é o significado que um rio tem para um ribeirinho ou para um empresário
do setor hidrelétrico (LEROY et al., 2002; SILVA, 2006). Cada uma dessas perspectivas
traz diferentes modos de convivência com a natureza. Há que se optar por aqueles que
tornam possível uma vida mais sustentável (SILVA, 2011, p.161).
De acordo com o histórico de uso e ocupação dos territórios mato-grossenses,
apresentados nos capítulos anteriores deste relatório, percebemos uma ocupação
desordenada e uma perpetuação da política desigual destinada à grande maioria dos
cidadãos deste Estado. Nota-se que a busca incessante pelo controle dos bens naturais é
imprescindível para que as práticas capitalistas de dominação e usurpação vigorem, pois,
para que o latifundiário lucre com a produção monocultural é preciso dominar e devastar
extensas áreas; para que o empresário do setor elétrico garanta sua rentabilidade é
necessário privatizar quedas e cursos d’água; para o progresso da indústria madeireira é
preciso garantir grandes áreas florestais para a seleção das madeiras nobres; assim, para
a prevalência dessas e de outras práticas econômicas faz-se necessária a dominação
privada que degradam os territórios, e, consequentemente, afetam as identidades
historicamente construídas nesses espaços.
97
Para Bourdieu (1997, p. 164), “a capacidade de dominar o espaço, sobretudo,
apropriando-se (material ou simbolicamente) de bens raros (públicos ou privados) que
se encontram distribuídos, depende do capital que se possui”. Segundo o autor, o capital
permite manter à distância as pessoas e as coisas indesejáveis, ao mesmo tempo,
aproxima-se as pessoas e as coisas desejáveis. Inversamente, os que não possuem capital
são mantidos a distância, seja física ou simbolicamente, dos bens naturais e sociais mais
raros.
Exemplos dessa situação de dominação dos bens naturais e sociais exercida pelo
capital foram, insistentemente, citados neste relatório. Essa situação, se repete com os
agricultores familiares da Baixada Cuiabana, conforme assinala a narrativa do Seu Pedro
Ponce, agricultor familiar que mora no município de Poconé-MT,
"O Estado de Mato Grosso está todo cortado. Não tem mais para onde ir. O governo Lula fortaleceu nós da agricultura familiar, pois começamos a distribuir alimentos para as escolas. Quando eles viram que nós crescemos e nos organizamos eles pensaram assim: vamos lá derrotar aquele povo da baixada cuiabana. Os grandes capitalistas entram com soja, porque a vida deles é eliminar o trabalhador e a trabalhadora. Eles querem dominar o mundo. Por isso, que nós temos que fazer um informe muito fortíssimo pra gente dá um basta nessa questão".
De acordo com Silva (2011), o agronegócio em MT vem impondo um ordenamento
dos territórios que forjam os espaços como “vazios demográficos”, invisibilizando os
povos e grupos sociais que são ignorados pelo sistema hegemônico. É exatamente dessa
maneira que vem acontecendo nesse microcosmo em Mato Grosso.
Os/as agricultores/as familiares do município de Poconé-MT, vinculados a
Cooperativa Mista de Produtores Rurais de Poconé (COMPRUP), por meio do seu
representante Seu Pedro Ponce, denunciam a derrubada das árvores de Cumbaru, que
durante muito tempo foi o sustento de muitas famílias, tanto na dieta alimentar quanto
na comercialização deste produto.
"Em Poconé, por exemplo, tem o cumbaru, que é um produto que gera todo tipo de alimentação e está sendo devorado no nosso município. Nós começamos com cumbaru em 2005, aí tinha fazenda que deixava os pés para nós coletar, mas agora com a entrada do soja arrancaram tudo. Passaram máquina lá e agora só tem terra e os cumbarus queimando. Eles perceberam que o cumbaru fortalecia a gente e derrubaram tudo. Estamos pedindo aos companheiros dos direitos humanos que verifique essa nossa história para levar para as autoridades brasileiras. [...]
98
Antigamente, quando iam abrir uma fazenda eles deixavam 08 a 10 árvores por hectare. Agora não deixam nenhuma mais. Estão ofendendo demais a natureza. A gente se preocupa muito e quer passar esse informe para os direitos humanos e todos os professores e professoras dessa universidade para ver se ajuda a nós".
Segundo o IBGE (2006), é precisamente nas áreas de domínio do Bioma Cerrado,
que a produção em grande escala de grãos, como a soja e o milho, além da expansão
modernizada do algodão, vem potencializando o processo de concentração agrária.
“Pode-se afirmar que a monocultura da soja ou do binômio soja-milho, além do algodão,
fez por reforçar a desigualdade que marcava a propriedade da terra em uma região
historicamente ocupada por uma pecuária ultraextensiva” (IBGE, 2006, p.111).
O município de Poconé está em uma área de transição entre os biomas Cerrado e
Pantanal. Ambos, sofrem com a presença ostensiva do agronegócio. É reconhecido que no
Cerrado a expansão da fronteira agrícola é muito maior, contudo, destacamos que no
Pantanal o agronegócio também se faz presente e com as mesmas práticas não
sustentáveis que em devastando esses biomas. Além disso, o Pantanal está intensamente
suscetível aos impactos provocados, pois, com sua dinâmica de inundação e em função do
declive, coleta uma grande parte dos sedimentos que são produzidos na região de
planalto, principalmente pela urbanização e a industrialização no lançamento de esgotos,
de metais e minerais; o processamento de produtos agroindustriais como álcool, produtos
lácteos e carne; e a ocupação de áreas residenciais sem adequado tratamento das águas e
dos resíduos sólidos (ANA/GEF/ PNUMA/OEA, 2003).
O bioma Cerrado, erroneamente, é visto como um “embaraço de árvores tortas”
que deve ser superado. É divulgado como um bioma de solo pobre que pode ser
“corrigido” para ser útil à monocultura e é, amplamente, apresentado como o “celeiro do
mundo”. Nessa expansão da fronteira agrícola, normalmente, desconsidera-se as riquezas
da biodiversidade deste bioma, os importantes serviços ecossistêmicos fornecidos,
especialmente, nos aspectos hidrológicos. Além disso, ignoraram e desprezam a
população local com seu modo peculiar de vida. Concordamos com Leroy (2005, p. 35)
quando afirma que “estamos praticando genocídios culturais neste País. Despir as pessoas
de sua cultura também é uma forma de exclusão da condição humana”.
O modelo agroexportador alia as mais severas atividades, como o desmatamento,
as queimadas, o uso abusivo de agrotóxicos, a prática do trabalho em condições análogas
99
a escravidão, dentre outras práticas truculentas tanto para a sociedade quanto para a
natureza.
Sobremaneira, essa dita modernização no campo provocou e provoca intensas
degradações ecológicas, acarretando alterações extremas na paisagem natural do Estado.
Vegetações originárias convertidas principalmente para uso da pecuária e produção de
grãos (milho, arroz e, nos últimos anos, de forma dominante e progressiva, a soja).
Comprovando que “a ideia de progresso [da modernização] – e sua versão mais atual,
desenvolvimento – é, rigorosamente, sinônimo de dominação da natureza” (PORTO-
GONÇALVES, 2004, p. 24). Acrescentaríamos de dominação e de expropriação também de
grupos sociais vulneráveis, pois o mesmo subalterniza, atropela, e, por vezes, destrói
outras formas singulares de apropriação da natureza.
Essas questões são ressaltadas na narrativa do Seu Pedro Ponce:
"Estamos sendo ameaçados pelo agrotóxico porque está tendo muito soja na região. Vai ficar muito difícil produzir alimentos orgânicos para as escolas e para as famílias se alimentarem. Já estão passando os agrotóxicos em tudo aqui na baixada cuiabana. É muito difícil falar isso aqui dentro da universidade, porque aqui formam alunos para crescimento de lavouras perigosas, que eu chamo de: algodão, milho, soja... Pra se ver, o milho antigo nem se usa mais. É uma semente transgênica. É no Brasil todo isso, eles estão alastrando, na Bahia também é assim. Em outros Estados também".
Os impactos ambientais provocados pela presença massiva da monocultura são
sentidos tanto na escala regional e local quanto na escala global. Na escala global, essas
alterações são percebidas com as mudanças climáticas, como o aumento da temperatura
do planeta, mudanças na composição química da atmosfera (aumento da concentração de
CO2 e outros gases), mudanças no ciclo hidrológico, entre outras. No Brasil, o
desmatamento, juntamente com as queimadas, são os responsáveis pela maior parte de
emissão de CO2 na atmosfera, emissões maiores do parque industrial e da frota de veículos
do País (BERNARDES, 2004).
A expansão do agronegócio vem mascarada com a faceta de melhoria na qualidade de
vida. Nos municípios em que as atividades como a extração de madeira, a pecuária
extensiva e a monoculturas são mais intensas, por certo, o Produto Interno Bruto (PIB) e
o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) são maiores. Contudo, esse aumento é
ilusório, afinal, nestes mesmos locais, o índice que reflete a desigualdade de renda (GINI)
100
também é maior. Além de receberem uma maior carga de aplicação de agrotóxicos que
contaminam a natureza e a população local.
As pesquisas também comprovam que o desmatamento não é a solução. Rodrigues
et al. (2009, p. 1435) analisando diferentes estágios do desmatamento em 286 municípios
brasileiros, encontraram um “boom-and-bust” nos níveis do IDH. Comprovaram que o
índice aumenta quando o desmatamento inicia, todavia, tem um forte declínio na medida
em que o ciclo evolui para outras etapas. Após essa etapa de desmatamento, os níveis de
desenvolvimento humano são similarmente baixos, como antes de se iniciar a exploração
madeireira e, em alguns casos, ainda mais baixos.
A implicação dessa dinâmica tem sido a homogeneização econômica e o
autoritarismo social no processo de ocupação do território mato-grossense. O modelo de
desenvolvimento implantado não é sustentável, é concentrador de renda e recursos
favorecendo um pequeno segmento da população e deixando um grande contingente
populacional que fica à mercê dos benefícios e das políticas públicas. Os que permanecem
em seus territórios resistem e enfrentam conflitos socioambientais extremos, os que são
expulsos vão para os grandes centros urbanos e, muitas vezes, passam a residir nas áreas
de periferias.
Em mais um recorte da denúncia essas questões são suscitadas com bastante
veemência pelo seu Pedro:
"Nas cooperativas temos juntos: as comunidades tradicionais, os ribeirinhos, os indígenas e os quilombolas que necessitam dessa questão do cumbaru, da bocaiuva, da mangada e outras espécies do Cerrado, porque existia algum Cerrado em pé. Agora com a entrada do soja está ficando tudo derrubado e a terra vai ficar nua. O problema vai ser muito mais sério. Porque o homem do campo não vai poder permanecer na terra. Quando retira as árvores da natureza a consequência já chega. A chuva não chega, os rios estão secando, ninguém aguenta mais o calor, as águas das nascentes estão terminando. Por exemplo, o Pantanal com a entrada do soja vai ser muito afetado. Por isso, que preciso passar esse informe aqui. Para ver como vamos dar um basta dessa história de soja dentro do Estado de Mato Grosso".
Este modelo, dominante e usurpador dos ecossistemas e das culturas locais,
apresenta-se como “novo”, entretanto, configura-se muito semelhante (para não dizer
igual) com os princípios e práticas do antigo sistema colonial de extração de matérias-
primas, centrado na produção de monocultura, privilegiando ações de curto prazo para
obter lucro (com a mesma velocidade) e expropriando os povos originários.
101
Oliveira e Stédile (2005, p. 08) descrevem que o capitalista-colonizador organizou
uma forma particular de produzir dentro das fazendas. E impuseram a chamada fazenda
plantation, que tem as seguintes características: “grandes extensões de terra,
monocultura, venda para mercado externo e o principal: a utilização do trabalho escravo!
”. Em MT é propalado como a modernização do campo. Entretanto, a dita modernização
não passa de uma re-produção do modelo de mundo-moderno-colonial. Pois, foi e ainda é
promovida sem alterar a estrutura fundiária.
Pelo contrário, todo esse movimento pró-agronegócio reforçou a estrutura agrária
dominante em latifúndios, que, além das medidas jurídicas que os favoreceram, contaram
ainda com um vasto conjunto de incentivos financeiros e fiscais que garantiu a
prosperidade da agropecuária em MT. Vários programas abonaram (e ainda abonam) os
grandes produtores rurais deste Estado, desde assistências técnicas, financiamentos para
agrotóxicos potentes e tecnologias de última geração (maquinários e transgênicos), que
somados às boas condições do solo, relevo e clima cravaram em MT a monocultura,
aumentando a concentração de terras e acirrando, ainda mais, os conflitos
socioambientais.
Outro fator alarmante na produção do agronegócio é que com o uso de
maquinários a necessidade de funcionários é muito menor, com isso, certamente o lucro
é maior e mais centralizado. Para termos uma noção, a produção mecanizada de grandes
extensões “gera um emprego para cerca de 200 ha, em contraposição, a agricultura
familiar que gera um emprego para cada oito ha” (MAZZETTO, 2006, p. 58). Para ratificar
essa afirmação recorremos ao último censo agropecuário brasileiro publicado no ano de
2006 pelo IBGE: segundo este censo, os pequenos estabelecimentos (área menor de 200
ha) utilizam 12,6 vezes mais trabalhadores por hectare que os médios (200 a 2.000 ha) e
45,6 vezes mais que os grandes estabelecimentos (superior a 2.000 ha). Assim, se por um
lado os pequenos estabelecimentos detinham apenas 30,31% das terras, responderam
por 84,36% das pessoas ocupadas até 31/12/2006 (IBGE, 2006, p. 129). Esses números
contribuem para desqualificar o discurso falacioso de que o agronegócio é o grande
gerador de empregos em MT, pelo contrário, o modelo tem diminuído a oferta de trabalho
no Estado.
102
O registro da narrativa do agricultor familiar reforça essa compreensão da
diversidade de espécies cultivadas e a necessidade de muitas pessoas envolvidas no
processo de produção:
"Com esse crescimento da agricultura familiar que teve para alimentar as escolas, nós produzimos: rapadura, açúcar mascavo, melado, mandioca, abóbora verde, madura, queijo, requeijão, leite...e outros alimentos, todos sem agrotóxicos. E eles não preocupam com isso, querem só soja que alimenta animais fora do país. Nós somos 16 associações em Poconé que alimentam uma cooperativa chamada de Comprup, que trabalha para alimentar as escolas. Agora estamos formando uma central aqui na cidade de Várzea Grande, para comercializar os nossos produtos e se fortalecer para essa questão das derrubadas que estão acontecendo no município de Poconé. Nós éramos uma só cooperativa agora estamos em cinco, quanto mais melhor para gente ter mais força". "Outras espécies também estão sendo afetadas, e prejudicando várias questões como a dieta das pessoas, a produção de artesanatos e outras questões que mexem com as nossas vidas. Precisamos de lei que nos ampare de verdade. Porque tem as leis ai, mas elas não amparam a gente não. Queríamos que criassem uma lei igual do babaçu livre, aqui tínhamos que ter lei do Cumbaru livre. Livre das derrubadas, livre do soja!"
Lamentavelmente, o aporte jurídico clamado pelo Seu Pedro Ponce negligência,
muitas vezes, o chamado direito coletivo. Conforme ressalta Souza-filho (2003) a noção
individualista do direito negou aos povos indígenas, aos tribais e às populações
tradicionais qualquer direito coletivo, fazendo valer apenas os direitos individuais,
cristalizados na propriedade e no direito privado. As disputas judiciais por terra no Brasil
continuam fortemente influenciadas pelos direitos individuais estruturados no século
XIX, que têm uma opção preferencial pela propriedade individual da terra. No entanto, a
distribuição de terra, individualmente, não dá conta do que é necessário para a garantia
de direitos coletivos a estes grupos sociais. Portanto, a defesa do território dos povos
constitui-se na contra-hegemonia à visão dominante da individualização da posse e do
direito (SILVA & SATO, 2010, p. 179.). E os direitos coletivos não se limitam à questão do
território, ultrapassam-no e atingem o âmago do direito a autonomia, aos direitos
humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais, etc. (SOUZA-FILHO, 2003), fatores
importantes para a garantia da justiça ambiental, da inclusão e do fortalecimento dessas
diversas identidades coletivas.
Reconhecemos que a denúncia aqui apresentada, assim como, todo esse relatório
estadual, é ainda uma pálida realidade do estado de Mato Grosso, pois muitas outras
103
violações existem e não foram aqui citadas. Contudo, o cenário descortinado evidencia
tamanhas injustiças socioambientais, concomitante contribui dando visibilidade aos
riscos a que estão subjugados os grupos sociais e os ecossistemas mato-grossenses.
Vale destacar, o esforço do Fórum de Direitos Humanos e da Terra (FDHT-MT) em
desvelar tantas mazelas, e buscar insistentemente criar espaços de debates e de diálogos,
para assim corroborar na luta dos diversos grupos sociais pelos seus direitos coletivos,
seus diversos modos de vida e suas diferentes significações, na resistência da defesa de
suas identidades e dos seus habitats. Dessa maneira, reconhecem a importância destes
grupos para a conservação da biodiversidade. De igual modo, reconhecem a importância
da conservação da biodiversidade para fortalecimento estes grupos.
Assim como Seu Pedro Ponce deseja o Cumbaru livre nós desejamos
veementemente um Estado livre. Caminhamos lutando por Mato Grosso Livre! Livre das
derrubadas, livre do soja!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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104
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105
RELATO DE CASO III
Prelazia de São Félix do Araguaia/MT
I RETOMADA DE TERRAS PÚBLICAS NA REGIÃO DO ARAGUAIA
Rita de Cassia de Azevedo Diácono José Raimundo Ribeiro da Silva
Paulo Cesar Moreira Santos
I.I Sobre os Retireiros do Araguaia
Há mais de um século, os Retireiros vivem da criação coletiva de gado em Mato
Verdinho, uma terra da União na beira do rio Araguaia. Em 1999, um grupo de famílias
criou a Associação dos Retireiros do Araguaia (ARA) para garantir a permanência no local
e frear o avanço de pecuaristas que começaram a chegar do Paraná e do Rio Grande do
Sul. Atualmente, a entidade defende direitos de 97 famílias, num total de 450 pessoas, que
seriam beneficiadas pela criação da reserva. Por volta do ano de 2004 foram vítimas da
ganância de uma imobiliária chamada Itapoã s/c Limitada; em 10/8/2006 – processo nº
206/81, acesso ao processo pela Internet nº 1883 –, através do senhor Valmo, (vulgo
Polocha), morador de Luciara na época, chegaram até os retireiros e com documentos
falsos (porque se trata de terra pública) conseguiram pagar impostos na prefeitura, na
época tendo como prefeito o senhor Nagib Elias Quedi.
Os Retireiros se juntaram em parceria com a Prelazia de São Félix do Araguaia, a
UNEMAT (Universidade Estadual do Araguaia), contou com a assessoria dos professores
geógrafos Carlos Walter, Alexandre, Ariovaldo Umbelino e alguns alunos engajados na
luta, formando uma grande frente de combate à grilagem.
A comunidade retireira participa como membro da Comissão Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT)
representando a sociedade civil. Dentre os membros da sociedade civil da CNPCT estão
representantes dos povos faxinalenses, povos de cultura cigana, povos indígenas,
quilombolas, catadoras de mangaba, quebradeiras de coco-de-babaçu, povos de terreiro,
comunidades tradicionais pantaneiras, pescadores, caiçaras, extrativistas, pomeranos e
comunidades de fundo de pasto.
A luta pela constituição de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) no
território onde vivem as famílias retireiras provocou graves conflitos e sitiamento da
cidade de Luciara em 2013, envolvendo ameaças às lideranças retireiras Rubem Taverny,
106
Lidiane Taverny (bióloga, irmã do Rubem) e o vereador Jossiney, tendo suas casas
incendiadas, como também ameaças ao diácono da Prelazia de São Félix do Araguaia, José
Raimundo, que teve a casa alvejada por tiros. Vale lembrar que a história de Luciara se
reporta ao velho coronelismo e, agora, ao mandonismo numa perspectiva violenta. Existe
um precedente forte, com um linchamento que aconteceu no mês de julho de 1998.
Os ataques tinham como alvo qualquer pessoa ou instituição que apoiasse a causa
das famílias retireiras. Em redes sociais publicaram ofensa à Igreja local com a frase:
Maldita Prelazia, o câncer dos trabalhadores rurais do Araguaia. Grupos em passeata,
utilizando palavras violentas e incitando ao crime saíram às ruas com faixas, dentre elas
uma que estava escrito: Rubem e Zecão mentem para o povo de Luciara a mando do governo
(PT).
Na onda das manipulações ideológicas estava se disseminando a ideia de que a
cidade iria se tornar uma reserva indígena, afirmação desmentida pelo SPU. Após várias
investigações realizadas pelo Ministério Público Federal se constatou o seguinte fato,
publicado no jornal Mídia News:
Oito integrantes da Associação dos Produtores Rurais (Aprorurais), do município de Luciara (MT), foram denunciados pelo Ministério Público Federal de Barra do Garças pelos crimes de associação criminosa, sequestro e cárcere privado e ameaça contra a comunidade tradicional Retireiros do Araguaia, professores e estudantes da Universidade Federal de Mato Grosso, por conta de uma disputa fundiária na região. De acordo com a denúncia oferecida no dia dois de maio, a investigação conduzida pela polícia e pelo Ministério Público Federal possui elementos que comprovam que as manifestações contra a comunidade tradicional da região do rio Araguaia não decorreram da manifestação espontânea e de pessoas insatisfeitas com a proposta de constituição da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mato Verdinho, destinada a assegurar o modo de vida retireiro. “As manifestações e os crimes delas decorrentes foram efetivamente orquestrados, coordenados, financiados e estimulados pela associação criminosa da qual fazem parte todos os denunciados”, afirma o procurador da República Wilson Rocha Assis, na denúncia.
Na mesma matéria se pode ler:
Em parecer do ano de 2010, o ICMBio afirma que “entre os principais conflitos e ameaças ao ambiente e à cultura local dos retireiros do Araguaia, situa-se a grilagem de terras, que historicamente tem contribuído para o aumento da pressão sobre as áreas de retireiros e posseiros locais. Em geral, a grilagem de terras é feita para a aquisição de financiamentos bancários dando a terra como garantia. Nos últimos tempos, no entanto, a pressão da grilagem tem
107
cada vez mais penetrando as áreas inundáveis do Araguaia no sentido oeste-leste, ou seja, vinda do eixo da BR 158 em direção ao rio Araguaia”.
Os estudos técnicos realizados por vários órgãos para comprovar a necessidade da
criação da reserva foi concluído e fundamentou o lançamento da Portaria de Declaração
de Interesse do Serviço Público (PDISP) nº 294, editada pela Superintendência do
Patrimônio da União, SPU, publicada no Diário Oficial da União em 27/11/2014.
Diante da gravidade da situação e do alto teor de manipulação dos fatos, o SPU
publicou nota de esclarecimento contendo 11 pontos sobre a Portaria. Nesta, pode-se
constatar em dois pontos:
1. Esta nota destina-se a esclarecer boatos maldosos, segundo os quais toda a área do Vale do Araguaia será entregue aos “povos originários”, com expulsão de famílias camponesas e o esvaziamento de cidades. Tais afirmações não possuem nenhum fundamento. Têm apenas o objetivo de difundir a insegurança e o medo, em prol de interesses escusos.
4. A SPU delimitou uma gleba de cerca de 1 milhão e 600 mil hectares de terras de propriedade da União, na divisa dos estados de Mato Grosso e Tocantins, sujeita a inundações periódicas do rio Araguaia, que se constitui como área da União, conforme o Art. 20 da Constituição Federal, e estende-se pelos municípios de Canabrava do Norte, Luciara, Novo Santo Antônio, Porto Alegre do Norte, Santa Terezinha e São Félix do Araguaia, todos no estado de Mato Grosso. No estado do Tocantins, alcança parte dos municípios de Formoso do Araguaia, Lagoa da Confusão e Pium.
A Portaria criou uma reação imediata e, novamente, violenta por parte de várias
pessoas e grupos interessados na área. Diversos prefeitos da região Araguaia e deputados
de Mato Grosso convocaram a SPU para reunião e diante das pressões o órgão retrocedeu
e emitiu uma Portaria (nº 10 de 30 de janeiro de 2015) revogando a primeira. Frente a
isso, criaram um Grupo de Trabalho (GT) para continuar os trabalhos e averiguar os
problemas levantados pelos políticos.
II CONFLITO EM SANTA TEREZINHA Paulo Cesar Moreira Santos
Este conflito parte das ações ilegais da AGROPECUÁRIA SÃO SEBASTIÃO DO
ARAGUAIA S/A, Fazenda Fartura, de propriedade do Sr. Wilson Lemos de Moraes Junior,
que é morador do Rio de Janeiro. O mesmo é proprietário de vários outros latifúndios,
deixando clara suspeita de que essa terra em nome de sua empresa é para especulação
financeira, fugindo dos princípios norteadores da sua função social. A área total é de 6.103
108
hectares, na qual a empresa nem a posse exerce da área, utilizando um título deslocado,
sendo realizado estudo cadastral nos órgãos competentes.
Para provar a “posse”, o fazendeiro que detém a área em regime irregular, juntou
fotos da sede e de infraestrutura de outra área pertencente a ele. Contudo, o grupo de 80
famílias, mesmo provando com fotos, documentos, espelhos, laudos emitidos por entes
públicos, bem como as matrículas do CRI da Comarca de São Félix do Araguaia, Barra do
Garças e Vila Rica, as famílias foram despejadas no ano de 2008 de forma violenta, não
obedecendo o prazo previsto na liminar, para retirada dos pertences.
Mesmo restando comprovado através dos documentos que a agropecuária São
Sebastião não tem a posse, nem o domínio da referida área em disputa, as famílias foram
despejadas seguindo decisão da juíza da Vara Agrária, Dra. Adriana Sant’anna Coninghan.
Figura 8 - Barraco e bicicleta queimados durante o despejo. Fontes: http://www.revistasina.com.br/var/www/html/revistasina.com.br/web/portal/index.php?option=com_k2&view=item&id=10176:incendiada-a-casa-de-mais-um-retireiro-em-luciara/mt&Itemid=58 e Arquivo CPT, respectivamente.
109
Figura 9 - Buracos feitos à bala nas panelas. Fonte: Arquivo CPT.
Na esteira das injustiças, a violência contra as famílias acampadas (adultos,
crianças, mulheres e idosos) se perpetua por parte do fazendeiro e seus jagunços,
inclusive com braço militar através da Polícia Militar do Estado do Pará- PA, que faz
trabalhos de pistolagem para a agropecuária. Já atearam fogo, queimando todos os
pertences, tiros contra o acampamento, ameaçou diversas famílias e as lideranças do
Movimento.
Os policiais do Pará chegaram a fazer fortes ameaças, deixando claro que todas
famílias e, principalmente, as lideranças deste movimento da luta pela terra correm sérios
risco de vida. Fatos que foram levado ao conhecimento do Escritório de Direitos Humanos
da Prelazia de São Félix do Araguaia, do Fórum de Direitos Humanos e da Terra e da
Comissão Pastoral da Terra, CPT MT, que por sua vez tornaram a denúncia pública nos
principais Jornais. O caso também foi levado ao conhecimento do Ministério Público
Federal de Barra do Garças.
110
Figura 10 - Policiais Militares do Pará atuando ilegalmente no Acampamento em Santa Terezinha, MT.
Devido à repercussão das denúncias as ameaças continuaram. Um dos policiais
novamente foi até os acampamentos à paisana, mas armado, acompanhado de outra
pessoa na garupa de uma moto afirmado que, caso o movimento conquiste judicialmente
a área de terra em questão, as lideranças pagarão com a vida.
111
CAPÍTULO 6
TERRITÓRIOS LIVRES! POR AGROECOLOGIA, BIODIVERSIDADE E SOBERANIA ALIMENTAR
FASE FORMAD MST/MT
Francileia Paula de Castro Devanir Oliveira de Araujo
João Inácio Wenzel
“A utilização do território pelo povo cria o espaço” (SANTOS, 1978)
INTRODUÇÃO
Com o avanço do agronegócio e sua expansão territorial ao longo dos anos, a
agricultura familiar camponesa possui o desafio de sobreviver e garantir a produção de
alimentos.
O último censo agropecuário realizado pelo Instituto brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE mostra que a concentração de terra vem crescendo no país. Enquanto
os estabelecimentos rurais de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área total,
a área ocupada pelos estabelecimentos de mais de 1.000 hectares concentra mais de 43%
da área total. No mesmo censo foram identificados 4.367.902 estabelecimentos de
agricultura familiar. Eles representavam 84,4% do total, mas ocupavam apenas 24,3% (ou
80,25 milhões de hectares) da área dos estabelecimentos agropecuários brasileiros. Já os
estabelecimentos não familiares representavam 15,6% do total de estabelecimentos e
ocupavam 75,7% da sua área.
A cultura da soja, principal produto agrícola na pauta das exportações brasileiras,
é cultivada em 215.977 estabelecimentos. E Mato Grosso é o maior produtor nacional de
soja, com 10,7 milhões de toneladas, o que representou 26,2% da produção brasileira em
2006 (IBGE, 2006). Apesar de ocupar apenas 24,3% das terras, a contribuição da
agricultura familiar para o abastecimento do mercado interno de alimentos no Brasil
chega a 70% (IBGE, 2006). A disputa pelos territórios vai além dos limites geográficos; o
que está em jogo é a segurança e a soberania alimentar dos povos.
Com o propósito da reprodução da vida e cultura da produção de alimentos por
meio do uso da terra, a “agricultura” se encontra ameaçada por um modelo agrícola
impugnado desde a década de 1970 que concentra a terra, é quimicamente dependente
112
de agrotóxicos e transgênicos, não produz alimentos, expulsa o camponês do campo e
causa injustiças.
6.1 - BIODIVERSIDADE E SOBERANIA ALIMENTAR
A sustentabilidade do planeta, concebida em seus mais amplos limites, principia
com o respeito e a proteção da agrobiodiversidade. Isso implica que as técnicas utilizadas
no processo de produção agrícola devem começar pela proteção à biodiversidade: rotação
de cultura, plantio direto, respeito às culturas locais, ausência de agrotóxicos, proteção do
solo contra erosão, sucessão animal-vegetal.
A questão que se apresenta é: como produzir na escala mundial sem as
monoculturas?
A soberania alimentar é a capacidade que um país tem de alimentar a sua
população com produtos provenientes de sua agricultura – animal e vegetal, importando
apenas um ou outro alimento que, mais por razões culturais que agrícolas, não são
produzidos.
A soberania alimentar é precondição para a soberania política. Nesse sentido, a
situação do Brasil é delicada e vulnerável. O governo brasileiro favorece, com a Lei Kandir,
a isenção de operações das multinacionais de impostos, e a CTNBio facilita o registro e
uso de venenos concedidos pelo BNDES a empresas estrangeiras. Talvez o mais grave em
relação ao controle das multinacionais sobre a produção e o comércio das sementes seja
a perda da soberania alimentar e, por consequência, da soberania política.
É nessa correlação de forças que surge a necessidade de frear o rolo compressor
do agronegócio e fortalecer a agricultura familiar camponesa garantindo um modelo de
produção e consumo de alimentos orientados pelo princípio da vida, promovendo a saúde
da população. A Agroecologia aponta para esse caminho.
Os agroecossistemas agroecológicos promovem a segurança alimentar e a
soberania dos agricultores/as familiares, na medida em que os aproxima do vínculo com
a terra, com a prática da produção de alimentos saudáveis, das sementes crioulas, da
diversidade alimentar, resgatando a cultura e identidade camponesa e das relações
sociais estabelecidas nesse espaço de produção da vida.
113
6.2 - A AGROECOLOGIA COMO INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA
A partir dos anos 1960 e 1970, a Agroecologia ganha espaço no debate acadêmico
através de pesquisas nos diversos campos, por tratar de processos econômicos e de
agroecossistemas sustentáveis do ponto de vista do próprio sistema, considerando a
diversidade ali existente. É possível, com isso, dizer que a Agroecologia pode e deve se
tornar uma nova Matriz tecnológica para o campo, fazendo contraponto ao modelo
vigente, o agronegócio. A Agroecologia deve ser desenvolvida como um fator a favor da
vida.
A Agroecologia é o processo de protagonismo dos próprios camponeses, trazendo
de volta as técnicas que ao longo da história foram utilizadas, mas que de uma forma
muito devastadora a “Revolução Verde” destruiu. Esse protagonismo é fundamental para
a construção e disseminação deste “novo” projeto para o campo brasileiro. Segundo Luiz
Carlos Pinheiro Machado:
a agroecologia deve ser entendida como um método, um processo de produção – animal e vegetal – que resgata os saberes que a “Revolução Verde”22 destruiu ou escondeu, incorporando-lhes os extraordinários progressos científicos e tecnológicos dos últimos 50 anos, configurando um corpo de doutrina que viabiliza a produção de alimentos e produtos limpos, sem venenos, tanto de origem vegetal como animal, e, que é fundamental, básico e indispensável em qualquer escala. (MACHADO, 2014, p. 36).
O fundamento principal da Agroecologia está na capacidade da ação dos próprios
ciclos da natureza, como captação da energia solar, da chuva, do ar e especialmente da
atividade biológica do solo. Isso sim pode proporcionar uma agricultura verdadeiramente
sustentável.
A Associação Regional de Produtores Agroecológicos – ARPA, ao longo das
experiências vivenciadas em seu conjunto de filiados, compreende que a Agroecologia é
um processo de acúmulo de saberes, e que toda a ação desses grupos deve ser realizada
de forma que propicie o equilíbrio dos elementos essenciais do ciclo da natureza (cartilha
da ARPA, p. 3, [S/D.]).
22Por “Revolução Verde”, inspirada pela FAO e pelo Banco Mundial (Londres, 2011), se entende o processo de interiorização do capitalismo no campo, a partir dos anos 60, com a introdução das monoculturas e destruição da biodiversidade, para facilitar o uso de máquinas de grande porte nos “tratos culturais” e pôr em prática a tríade capitalista: tempo, custo, lucro.
114
A agricultura familiar camponesa historicamente vem sendo mal compreendida.
Segundo Petersen, Dal Soglio e Caporal:
Ela vem sendo comumente definida como um anacronismo histórico, uma vez que não possuiria meios para superar os limites técnicos subjacentes aos recursos que têm à disposição para trabalhar. Com base nessa suposição, acredita-se que o seu futuro está condenado a ser uma repetição ininterrupta do seu passado. Por essa razão, o desaparecimento do campesinato, como vem sendo profetizado há mais de um século, seria uma consequência lógica do avanço da agricultura capitalista e da modernização tecnológica a ela associada. No entanto, os camponeses não só vêm contrariando esses prognósticos com a sua permanência durante todo o período da modernização, como os desafia com o desenvolvimento de novas formas de auto-recriação diante do avanço físico e político-ideológico da agricultura empresarial capitalista em pleno século XXI (2009, p.92).
As condições são adversas. É só observar ano a ano o montante de valor que foi
aprovado pelo Governo Federal para o Plano Safra. Em 2012/2013 o valor para a
agricultura familiar foi de R$ 22,3 bilhões, segundo dados do Ministério do
Desenvolvimento Agrário –MDA, enquanto que para a Agricultura capitalista moderna o
valor foi de 115,2 bilhões, dados do Ministério da Agricultura e do Abastacimento – MAPA.
Os reflexos disso são sentidos diretamente pelos assentados cercados pelas lavouras de
soja. Seu Alvaristo Rodrigues23, por exemplo, do assentamento Ribeirão Grande, do
município de Nova Mutum, o expressa com todas as letras:
Já plantei abacaxi com a esperança de vender. Precisa ter uma política pública voltada a agricultura familiar. Se não continua na soja, no milho transgênico. O desenvolvimento está para o grande e não para o pequeno. É difícil, bem difícil. Quando chega ao banco do Brasil, enrosca com um monte de coisa. Mas se vai uma cooperativa pedir para plantar soja, sai na hora. Pra soja tem tudo. É isso que me revolta: porque para a soja tem e para outro não. O próprio banco do Brasil vem aí e diz que tem 180 mil para financiar, colheitadeira...
Além desta dificuldade há ainda o prejuízo causado pelos agrotóxicos utilizados
nas plantações vizinhas, como explica seu Alvaristo:
O avião vinha pulverizando até 1500m. Daí fazia a volta em cima de nós para retomar o alinhamento. Com isso não dava mais mamão, nada...
23 Entrevista concedida ao Fórum Mato-Grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento por ocasião da pesquisa sobre os impactos socioambientais dos agrocombustíveis no Mato Grosso, divulgada em 2013.
115
Por isso, a obtenção e manutenção dos territórios livres dos impactos e injustiças
causadas pelo agronegócio é um fator condicionante para a promoção da Agroecologia e
a sobrevivência do campesinato.
6.3 - TERRITÓRIOS LIVRES: RESISTÊNCIA E LUTA
Compreender o território é analisar dimensões: política, econômica, social,
ambiental e cultural, de forma imprescindível, bem como todas as relações e inter-
relações que se estabelecem nesse espaço e para além dele.
A determinação de territórios livres surge da necessidade de anulação das
injustiças promovidas pelo modelo de produção hegemônico, fundamentada na
necessidade de uma transição e mudança deste modelo. Grupos ou comunidades ilhadas
em meio a desertos verdes resistem o quanto podem, mas constantemente são
pressionadas e inviabilizadas nesse território.
O Assentamento Roseli Nunes, localizado no município de Mirassol D’Oeste ao
sudoeste de Mato Grosso, luta pelo território livre de agrotóxicos e transgênicos. Luta
contra o avanço do agronegócio.
O Assentamento tem 15 anos de existência, surgiu do processos de luta e
organização do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra. Criado a partir
da desapropriação de um latifúndio improdutivo ocorrida em 2000, com seu
parcelamento em 2002.
Com o avanço do agronegócio no entorno do assentamento, garantir a saúde do
território e a produção de alimentos se tornou um desafio para os assentados/as da
reforma agrária.
As pequenas propriedades rurais, sejam elas do recente Assentamento Roseli
Nunes (MST) com 331 lotes, detalhado neste texto, ou das remanescentes da Colonização
governamental da década de 1960 e 1970, estão localizadas (“rodeadas”) dentro das
pastagens e plantações de monoculturas de cana ou, em menor número, vizinhas das
lavouras de soja ou de milho. Como essas lavouras são quimicamente dependentes de
fertilizantes químicos e agrotóxicos, bem como de sementes e mudas “melhoradas”
(híbridas e/ou transgênicas), elas necessitam de pulverizações periódicas de agrotóxicos
para combater o que o agronegócio tipificou de “pragas da lavoura” (AUGUSTO et al, 2015,
p. 117).
116
Figura 11 - Divisa do Assentamento Roseli Nunes e áreas de Monocultivos de cana. Foto: Fran Paula.
Nos últimos 10 anos os agricultores/as reconhecem a mudança no contexto
territorial e os agravantes e insegurança geradas a partir destas. Associam as injustiças
socioambientais ao avanço do agronegócio no território.
Tais injustiças não conhecem limites e fronteiras. Seja pela contaminação da água,
do ar, do solo por agrotóxicos que são constantemente pulverizados por avião nas áreas
dos monocultivos de cana, pelo plantio de milho transgênico nas fazendas ao lado,
contaminando as variedades crioulas dos agricultores guardiões de sementes, ou seja,
pelos agravantes nas mudanças climáticas e diversidade local, gerando insegurança sobre
o que e como produzir, e com isso a extinção do saber tradicional na produção de
alimentos.
Desde 2004 famílias agricultoras do assentamento Roseli Nunes se organizam na
produção coletiva de alimentos agroecológicos.
O conflito posto entre dois modelos antagônicos - de um lado o agronegócio e de
outro a agricultura familiar agroecológica - mostra a impossibilidade da convivência e
sobrevivência explicitada em um mesmo território.
A Associação Regional de Produtores Agroecológicos – ARPA se tornou uma
referência na produção de alimentos saudáveis e exemplo de resistência ao capital
agrícola e ao pacote tecnológico do agronegócio. Adota princípios agroecológicos de
produzir para se alimentar e depois comercializar o excedente, da diversificação da
117
produção para manutenção do equilíbrio ecológico e banimento de agrotóxicos e
transgênicos em suas lavouras.
Figura 12 - Hortas agroecológicas e coletivas da ARPA. Foto: Fran Paula.
Atualmente a associação garante a produção de alimentos saudáveis que
beneficiam através de políticas públicas de comercialização mais de 12.000 alunos da
rede pública de ensino em 03 municípios na região e 700 famílias em situação de
insegurança alimentar.
Figura 13 - Entrega de cesta agroecológica em bairros carentes do município de Mirassol D’Oeste, MT. Foto: Fran Paula.
118
6.4 - REFORMA AGRÁRIA E AGROECOLOGIA PROMOVENDO SEGURANÇA E SOBERANIA ALIMENTAR
Em 2012 a ARPA escreveu uma carta denunciando os impactos dos agrotóxicos e
do agronegócio em seu território, reforçando a demanda por um território livre e
saudável para a promoção da Agroecologia. Na prática, a produção agroecológica está
sendo inviabilizada pela contaminação e apropriação do território por parte do
agronegócio, pela expansão dos monocultivos de cana de propriedade das usinas da
região.
A carta representa mais que um pedaço de papel escrito pela comunidade e
redigido em um dossiê. Ela se torna a voz daquelas famílias que trazem ao conhecimento
do país os conflitos vivenciados em suas comunidades e em seu território. Um pedido de
socorro, um sinal de esperança (CASTRO; MIRANDA; REIS, 2014).
... A gente percebe que, quando a pessoa se alimenta da produção sem veneno, da agroecologia, tem mais vida, se alimenta melhor; comendo comida saudável, a alimentação melhora em um tanto. É muito bonito ver tudo diversificado, é a quantidade de pássaro que vive beirando a horta, a anta, o tatu. Lá tem minhoca, tem tudo o que ele precisa ali, muito anu, marfim. A gente vê mais inseto; até a anta passa no meio da nossa horta. Cutia é a coisa mais linda na horta.
Pedimos a ajuda e o apoio dos órgãos públicos da área da saúde, agricultura e meio ambiente para atender as necessidades do campo, mais forças para estarmos na luta. Precisamos de apoio; nós, que lutamos pela agroecologia, pela produção natural do alimento. “Não diz respeito só a mim; é meu espacinho da horta, é minha vida na agroecologia, na minha família e na nossa comunidade” ...
(Trecho da carta vozes do território – Assentamento Roseli Nunes, MT.2012)
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS AUGUSTO, Lia Giraldo da Silva. Saúde, ambiente e sustentabilidade. In: CARNEIRO, Fernando Ferreira; AUGUSTO, Lia Giraldo da Silva; RIGOTTO, Raquel Maria; FRIEDRIC, Karen; BÚRIGO, André Campos. Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Parte III. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015. CASTRO F.P.; MIRANDA L.F.; REIS. V. A construção partilhada do conhecimento: o uso da Carta-processo dando vozes aos territórios. In: 2º Simpósio Brasileiro de Saúde & Ambiente - Desenvolvimento, Conflitos Territoriais e Saúde: Ciência e Movimentos Sociais para a Justiça Ambiental nas Políticas Públicas. Belo Horizonte, 2014. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Agropecuário 2006. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/51/agro_2006.pdf Acesso em 14 mai. 2015. RIGOTTO et al. Conhecimento científico e popular: construindo a ecologia dos saberes. In: CARNEIRO, Fernando Ferreira; AUGUSTO, Lia Giraldo da Silva; RIGOTTO, Raquel Maria;
119
FRIEDRIC, Karen; BÚRIGO, André Campos. Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Parte III. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015. MACHADO, Luiz Carlos Pinheiro. Dialética da agroecologia./Luiz Carlos Pinheiro Machado Filho – 1 ed.- São Paulo: Expressão Popular, 2014. ______. Pastoreio Racional Voisin: Tecnologia agroecológica para o terceiro milênio. Porto Alegre: Cinco Continentes, 2004. PETERSEN, Paulo; DAL SOGLIO, Fábio Kessler; CAPORAL, Francisco Roberto. A construção de uma ciência a serviço do campesinato. In: PETERSEN, Paulo (Org.). Agricultura Familiar camponesa na Construção do Futuro. Rio de Janeiro: AS-PTA, 2009. SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. São Paulo: Hucitec, Edusp, 1978.
120
Figura 14 - Infográfico da Batalha Contra os Agrotóxicos.
121
CAPÍTULO 7
ESTADO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS E OS DESAFIOS PARA O FUTURO BREVE CDHHT
Teobaldo Witter
SUBSECÇÃO 7.1 - ESTADO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS E OS DESAFIOS PARA O FUTURO BREVE
Minha primeira constatação é: para avaliar direitos humanos, Mato Grosso precisa,
no mínimo, ter o Plano Estadual de Direitos Humanos como, por exemplo, o Plano
Nacional de Direitos Humanos. Mas não tem. E considera o plano nacional apenas quando
convém ao Estado, não à população. No seu dia a dia, faz remendos em termos de políticas
públicas de direitos humanos. Isso é desastroso já na origem. No relatório abaixo,
encontramos alguns focos de remendos malfeitos ou nem foram feitos. As feridas
continuam abertas. Além de doloridas, elas são muito precisas e valem nosso olhar atento.
Por isso, convido para a leitura deste relatório. Ele foi escrito para ser lido, criticado,
refletido, amado, “xingado” e continuado.
A luta por direitos é uma construção histórica, universal, em todos os tempos e
lugares. São conquistados por pessoas que vivem em situações de invisibilidade social e
violação, ou por pessoas solidárias na busca por direitos humanos. A sua ênfase não está
na caridade ou na filantropia, mas na autonomia e sustentabilidade das pessoas, grupos e
classes sociais. As instituições públicas são criações humanas que têm obrigação de
defender, promover, apoiar e garantir direitos humanos para todos e todas. A vida digna
se realiza em espaços e territórios cuja sustentabilidade deve ser assegurada pelo Estado
e pela Sociedade.
Uma pergunta, há tempo, nos perturba: o que as vítimas recebem da Justiça? Ora,
se forem ao judiciário, elas servem somente como prova material de um ato infracional
como, por exemplo, no caso de um crime. O Sistema de Segurança, por sua vez, busca nelas
apenas as provas materiais do crime. Sendo assim, elas são apenas “coisas” descartáveis.
As vítimas violadas em seus direitos humanos vivem na amargura do desamparo. O
Sistema de Justiça e de Segurança não as trata como seres vivos que necessitam de
cuidados para que a sua vida possa ser digna e feliz.
Quando houve a ameaça de despejo de famílias, na área urbana, em Tangará da
Serra, verificamos que elas nem foram ouvidas pelo judiciário, autor da ordem. Fizemos
122
gestão para que a juíza, ao menos, as ouvisse. Dialogamos com o presidente do tribunal.
Apesar disse, ainda antes do Natal, famílias, com suas crianças pequenas (que, por isso,
tiveram dificuldades com o ano letivo), foram colocadas para fora de suas casas e de seu
território. As famílias não foram ouvidas pela justiça. Ao pensarmos sobre a real situação
dos direitos humanos, nossa pergunta se volta sobre o funcionamento da Justiça.
O retrato sobre o funcionamento da Justiça, em Mato Grosso, está expresso em
monumentos colocados, em 1998 e 1999, pelo movimento social de direitos humanos.
Trata-se de um monumento lembrando adolescentes, no Beco de Candeeiro, e outro da
Deusa Themis, na praça da República. Ambos os monumentos estão no espaço central de
Cuiabá. Ligam movimentos antigos e modernos. Retratam histórias de tragédias humanas.
Sintetizam aspectos da história do não comprometimento com direitos humanos do poder
público nas três esferas e da sociedade.
O monumento dos adolescentes foi feito pelo escultor Jonas Correa, em parceira
com o Centro de Direito Humanos Henrique Trindade, em 1999. Traz na sua memória a
história da vida e da morte de adolescentes, no Beco do Candeeiro. Retrata o fato ocorrido
no dia 10 de julho de 1998, quando, numa noite cuiabana fria, os adolescentes Adilei
Araújo, de 13 anos, Reginaldo de Magalhães (conhecido como Nado), 16, e Edgar de
Almeida, 12, foram baleados na cabeça, enquanto dormiam na pracinha do Beco do
Candeeiro. Nado foi executado com cinco tiros de pistola disparados à queima-roupa.
Adilei e Edgar chegaram a ser levados para o Pronto Socorro Municipal de Cuiabá, onde
morreram.
Na denúncia apresentada pelo Ministério Público Estadual, Jair Cândido da Cruz foi
acusado de ter tentado matar a testemunha, dois dias depois da chacina do Candeeiro, o
andarilho Silvio Magrão, que teria presenciado os crimes. O processo correu na 13ª Vara
Criminal de Cuiabá.
Magrão foi ouvido durante a fase de inquérito, mas não foi localizado para depor
no processo judicial. Sob proteção da Divisão de Operações Especiais (DOE), Magrão
forneceu detalhes do pintor que só foi preso cerca de um ano depois. No entanto, por falta
de provas ele foi liberado.
Enquanto a Justiça amassa barro e não sai do lugar, foi colocado o monumento em
sinal de grito por justiça. Mas parte da sociedade não concorda, porque destruiu o
123
monumento por duas vezes. No entanto, o movimento o reconstruiu. Hoje, o signo está lá,
em posição fetal, de morte e de clamor. Resiste o signo, como resiste a vida ameaçada.
Na Praça da República, em Cuiabá - MT, há um monumento que foi colocado em 10
de dezembro de 1998, lembrando os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Ele é de autoria do escultor Jonas Correia Neto e foi colocado lá pelo Centro de
Direitos Humanos Henrique Trindade. Trata-se da Deusa Themis, símbolo da Justiça. Ou
seja: ela é a Deusa grega da Justiça. O projeto foi elaborado em 1996, mas colocado na
praça dois anos mais tarde.
A Deusa Themis simboliza a justiça, julga pelas leis, pesa os crimes pela balança e
executa a sentença pela espada.
Na praça, o símbolo da Justiça é uma mulher alta, imponente, de salto alto, mas tem
sobre os joelhos um Cristo em estilo La Pietà. Além disso, ela é um tanto sensual, com
pernas grossas e sapato de salto alto. Aos seus pés, pessoas estão prostradas no chão e um
dos pés esmaga uma pobre figura desmaiada e indefesa deitada no chão.
É uma escultura imponente, de ares pomposos, que tem os olhos vendados, na mão
esquerda ergue uma balança e na direita traz um punhal. Ao redor há esculturas menos
importantes, tristes e miseráveis, esperando por justiça. São pessoas idosas, negras,
mulheres, indígenas, deficientes, empobrecidas, prisioneiras, adolescentes, jovens,
crianças, gente violentada de diversas formas, também, pela polícia.
A Justiça, em alguns casos, tem se pautada pela imparcialidade ou pela
superficialidade nos julgamentos. Houve casos em que num dia famílias foram despejadas
por ordem judicial. Poucos dias depois, foram reintegradas, também, com ordem judicial.
E como fica a vida das pessoas? Outro exemplo é a aproximação exagerada do Judiciário
com o agronegócio. Segundo a desembargadora e diretora da Escala Superior da
Magistratura do Mato Grosso, “Magistrado deve sair do gabinete, conhecer a realidade e
as questões relativas ao agronegócio”. O judiciário leva magistrados para conhecer a
realidade do campo que se resume ao agronegócio.
A escultura já foi tema de debate em escolas, fez parte de temas em discussão em
faculdades. Fotos dela viajam pelo mundo nos mais diferentes meios de comunicação. Ela
é aplaudida, criticada e combatida, como são as coisas significativas e populares. Quem
passa por lá não fica indiferente. Uns dizem: ‘É o retrato real da violência e impunidade
124
que temos em nossa cidade’. Outros dizem: ‘Ela desvaloriza nossa cidade e a sociedade.
Isso não se deve mostrar’.
Seja como for, a realidade está lá, não permite que nos calemos diante da violência.
Mais cruel do que a situação que ela mostra, é a própria vida cotidiana das pessoas que
sofrem na sua própria pela a dor da exclusão social, da desigualdade econômica, de
oportunidades, de indiferença, de violência e da vingança do Estado e da Sociedade. A
respeito desta realidade testemunhada pela escultura, o jornalista João Negrão escreve:
Não haverá justiça neste país, enquanto a mão que deveria empunhar a espada da verdade, pender ao ouro e abandonar as leis que devem proteger a dignidade humana. Justiça nunca haverá por aqui enquanto os olhos, que deveriam velar pela imparcialidade, continuarem distinguindo raças e condições sociais, vedados à miséria e atentos a opulência (VV.AA., 1998, pág. 19).
Arbitrariedade, parcialidade e impunidade são realidades que a escultura
denuncia. Muitas vezes, o movimento de direitos humanos da baixada cuiabana se reúne
ao redor deste local para denunciar violência e morte e para promover espiritualidade e
solidariedade na luta por vida, justiça e paz. Nestes encontros, se traz à memória centenas
de casos em que participam familiares de vítimas de violência. Os momentos privilegiados
são o dia 10 de dezembro, dia da Declaração Universal dos direitos Humanos, e dia 05 de
abril, dia da morte de dois cadetes, Sergio e Evaldo, em treinamento da Polícia Militar. A
declaração é um referencial significativo para a superação da violência. A morte dos
cadetes em treinamento denuncia a violência no treinamento e, ao mesmo tempo, é
referencial por uma educação melhor e mais humana dos policiais. A violência policial na
abordagem e em ações de liminar de despejo se pauta, entre outros, pela qualidade e pelos
objetivos da formação policial. Ainda não conseguimos formação e postura policial que
garanta a defesa e promoção de direitos humanos nas práticas da Segurança e Justiça.
Constatamos, também, a violência policial que ocorre no cumprimento de ordens de
despejo e/ou outras abordagens policiais.
Fazemos nossas as palavras de Pedro Demo, pois todos estão embutidos de
Instaurar o Estado de direito contra o Estado de impunidade, de exceção, de privilégios, e impunidades. Institucionalizar o controle de baixo para cima, de tal sorte que o Estado sirva à Sociedade, não o contrário. Garantir um nível mínino de direitos iguais, abaixo do qual se instalam a selvageria e a violência incontrolável’ (DEMO, 1999, p.34).
125
Lembramos, no entanto, que colocar direitos humanos nos ordenamentos jurídicos
tem sido uma luta importante. É possível afirmar que, até certo ponto, tivemos êxito. Já
temos o Plano Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3. Temos conferências diversas que
afirmam o significado dos direitos humanos para a Justiça e Segurança, no Estado Social
de Direito. Já é pela terceira vez que aprovamos o Plano Estadual de Direitos Humanos,
sendo que a 1ª vez foi em 1999, depois em 2008 e, agora, nos dias 10 a 12 de dezembro
de 2014. No entanto, nestes três momentos importantes, ocorre o que Sigmund Freud
chama de mal-estar da civilização.
O movimento e o Conselho de Direitos Humanos se empenham para realizar as
conferências, para debater e reunir. Até conta com boa participação e apoio dos três
poderes públicos estaduais. Os poderes públicos municipais estão ausentes no processo.
Exceções explicam a regra. E as conferências se realizam. Um dos problemas são os
resultados das conferências. Para a abertura, secretários, prefeitos e outros
representantes dos poderes vêm, falam, propõem e afirmam compromissos. Mas, na hora
de receber os resultados das conferências, que são as propostas e programas de direitos
humanos, a sociedade se sente abandonada.
O gesto do Secretário Adjunto de Direitos Humanos de Mato Grosso no
encerramento da Conferência de Direitos Humanos, em dezembro de 2014, é sintomático.
Ele veio, abriu a porta, olhou a plenária, fechou a porta e sumiu. Para mim, como em outros
tempos, igualzinho, convidados do Legislativo, Judiciário e Executivo não vieram às
conferências e, em especial, no encerramento, pois teriam de se comprometer com os
resultados. Para isso não têm nenhuma vontade. Suas falas nas mídias e nas campanhas
eleitorais não passam de um palavreado vazio. Preferem não se indispor com as pessoas
matadoras de adolescentes e indiferentes aos direitos humanos de crianças, adolescentes,
mulheres e homens, jovens, pessoas idosas, doentes e violentados em sua indignidade
humana, tal qual denuncia o monumento do Beco do Candeeiro e da Praça da República,
em Cuiabá - MT.
Neste sentido, o nosso problema fundamental é fazer com que os direitos humanos
sejam respeitados e promovidos no cotidiano das pessoas, no conjunto da sociedade
brasileira. Direitos humanos não são privilégios de alguns: ou eles são de todos ou não são
de ninguém.
126
Um dos problemas para resolver o assunto dos direitos humanos é a pobreza
política. A boa qualidade de vida pode ser identificada com o fenômeno participativo, que
é o cerne da invenção política e do estado.
Salvo pequenos esforços sociais e das políticas governamentais no sentido de
enfrentar a pobreza e a miséria, o cotidiano da maioria do povo do Mato Grosso é - e tem
sido historicamente - marcado pelo contexto que limita a produção e a reprodução da
vida, dificulta a manifestação e a expressão necessárias à participação, ainda criminaliza
lideranças e movimentos sociais e ignora sujeitos e seus territórios de vida. Estes fatos
acontecem, às vezes, abertamente, mas outras vezes em forma de currículo oculto,
confirmado pelo senso comum.
Direitos humanos dizem respeito ao direito de viver, direito de lutar, direito de
morar, de se alimentar, de viver sem violência... de ser feliz. É um termo político, jurídico,
mas, também, da utopia do bem viver na plenitude.
Convém lembrar que, do ponto de vista normativo, pode-se dizer que o
fundamento político e jurídico dos direitos humanos deriva do art. 1° da Declaração dos
Direitos Humanos, que define que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade
e direitos”. Essa ideia de dignidade humana se expressa não só na existência e gozo dos
direitos civis e políticos, previstos nos artigos 5° e 14° da Constituição Federal, mas,
também, dos direitos sociais, econômicos, culturais, ambientais, sexuais e produtivos
previstos nos artigos 6°, 7° e nas seções especiais da Constituição, bem como em outras
normas nacionais e internacionais.
A concepção dos direitos humanos diz respeito a um conjunto de direitos
internacionalmente reconhecidos, sejam eles individuais, coletivos, transindividuais ou
difusos, que se referem à necessidade de igualdade e defesa da dignidade humana.
Atuando como linguagem internacional, estabelece a sua conexão com os estados
democráticos de direito social. Quer fazer cumprir:
a) Os direitos humanos inerentes aos seres humanos, promover e garantir a sua
universalização; e
b) Os princípios da solidariedade, da fraternidade, da singularidade, da
coletividade, da igualdade e da liberdade. Trata-se do desejo e da necessidade
de viver num mundo justo.
127
Devemos observar que o cumprimento dos direitos humanos não está à mercê da
sorte ou da vontade do legislador, ou do juiz, ou do executor das políticas públicas. O
Estado ganha sua legitimidade se garantir a promoção e o respeito aos direitos humanos
de todas as pessoas. O conceito de direitos humanos é universal, porque são direitos de
todos os seres humanos, independentemente de sua condição; indivisível, porque eles
somente se materializam como direito se os seres humanos tiverem acesso a todos os
direitos; exigível, porque não são apenas uma declaração de vontade, mas um direito real
e material que deve ser exigido por parte de qualquer pessoa e cumprido por parte de
qualquer estado ou entidade privada. Garantir estes direitos não é uma opção, mas uma
obrigação de legitimidade civilizatória.
A igualdade é um dos princípios fundamentais que compõem o conceito de direitos
humanos. No entanto, na desigual sociedade brasileira, o patriarcado e o preconceito
ainda persistem. Isso faz com que as mulheres, indígenas, negros/as, população LGBT e
pobres tenham maiores dificuldades de acessarem direitos em razão dos preconceitos e
de um histórico de discriminação e exclusão.
Política pública é entendida como conjunto de decisões e resultados articulados
em ações coordenadas pelo Estado, que mobilizam conhecimentos, energias e resultados
(físicos e financeiros) com o objetivo de alcançar metas e transformar realidades, fornecer
bens e serviços, solucionando problemas, ações e atividades que visam assegurar
determinado direito de cidadania, de forma difusa ou para determinado segmento social,
cultural, étnico ou econômico.
A ideia de que Mato Grosso é um estado de produção de alimentos para o mundo é
amplamente divulgada. No entanto, o tipo de desenvolvimento que temos viola os direitos
humanos. Primeiramente, a maior parte da população nem pode escolher que tipo de
desenvolvimento precisa para viver vida digna e ser feliz. Segundo, é um desenvolvimento
predador por agredir, ferir e matar terra, florestas, águas e ar. Terceiro, a maioria do povo
não tem acesso aos bens produzidos com o trabalho, o conhecimento e o esforço de todos
e todas. Quarto, povos estão sendo privados do seu direito ao espaço, ao território como,
por exemplo, quilombolas, retireiros, indígenas e outros.
Aqui se entrelaçam campo e cidade e o viver com dignidade. Viver em território
seguro significa mais do que ter um pedaço de chão. Vejamos a reflexão sobre saneamento
básico, tema da CF-Ecumênica 2016. “Direitos humanos: viver com dignidade num
território seguro. Estar num território seguro é condição para viver com dignidade, no
128
campo ou na cidade. Os indicadores de saneamento básico, por exemplo, são a condição
mínima necessária para a qualificação do território enquanto moradia digna e do viver
adequado. Do terreno onde a casa se encontra ninguém virá despejar-me. Não há esgoto
a céu aberto na rua onde moro e a coleta de lixo é feita todos os dias. Minha casa é limpa.
A qualidade do material utilizado no teto, piso, banheiro não é de luxo, mas é bom. A água
encanada, de boa qualidade chega, até a torneira da pequena cozinha. O acesso à energia
elétrica e aos canais de comunicação - transporte, correio, telefone - expressam o meu
padrão de vida de cidadão a quem são garantidos os direitos fundamentais para viver com
dignidade”.
Querer um Mato Grosso justo e solidário requer lutas populares que tenham na sua
agenda políticas emancipatórias de respeito e promoção dos direitos humanos. Requer
uma agenda comum, com a realização das ações que modifiquem relações, valores e
construam uma cultura de respeito comum, mútuo e em conjunto. Isso significa, também,
reorientar o modelo de desenvolvimento, colocando na pauta de debates o sentido de
projeto de estado que Mato Grosso vem construindo há anos, quem faz, quem se beneficia
e sua relação com a vida humana de todos e todas e com a vida da terra.
Diante do acima debatido, propomos ao Estado e à Sociedade do Mato
Grosso:
I. Plano Estadual de Direitos Humanos: Valorizar e fortalecer a Secretaria de
Estado de Justiça e de Direitos Humanos - SEJUDH. Que a secretaria ouça mais e
melhor os clamores, organize o rico debate e conteúdo aprovado durante a V
Conferência Estadual dos Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso, em 10 a 12
de dezembro de 2014. Organize uma equipe e dê a ela condições de trabalho de
sistematização e organização do plano. Tome as medidas políticas e financeiras
necessárias para o funcionamento do plano. Viabilize, junto com a sociedade
organizada, o Sistema de Direitos Humanos, crie e viabilize condições para o
funcionamento da Ouvidoria de Direito Humanos, de controle social, com
ouvidor/a com autonomia e eleito pela sociedade de direitos humanos organizada.
Valorize o conselho Estadual de Direitos Humanos, dando a ele condições de
funcionamento, com comprometimento e autonomia.
II. Plano Estadual de Segurança Pública: Sugerimos que o Estado crie seu Comitê
de Prevenção e Combate à Tortura e faça um plano de ações integradas para
prevenção à tortura, com objetivos e medidas a serem executadas. Sugerimos,
igualmente, criar um mecanismo de pesquisa para estatística e avaliação das
atividades policiais que resultam em feridos e/ou mortes de pessoas abordadas e
de policiais em atividade. Assegurar a efetiva valorização com prática real da
disciplina de direitos humanos no concurso público em qualquer área de
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profissionais para segurança e justiça, na formação inicial e continuada com
professores com formação e prática adequada comprovada.
III. Programas de proteção: 1. Colocar em funcionamento o PROVITA; 2. Criar e
implantar o Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos Ameaçados;
3. Criar e implantar o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados.
IV. Justiça e Direitos Humanos: Que o legislador e o Poder Judiciário pautem suas
ações fundamentadas nos direitos humanos, no princípio da democracia, onde se
valoriza as pessoas envolvidas, em caso de ações de reintegração. Que os
inquéritos policiais e as denúncias do Ministério Público não sejam considerados
peças desconectadas, únicas, mas que o Estado os considere como parte
importante do diagnóstico para identificar problemas e buscar soluções na
promoção da Justiça e Paz.
Para não esquecer. Na praça da República e no Beco do Candeeiro, em Cuiabá, há
dois monumentos que lembram a falta de Justiça e de Segurança, isto é, a prática real dos
direitos humanos. Na rua, nas casas, na cidade, no campo e na floresta há dores e clamores.
Vida ameaçada pelo poder Político e Econômico. Quanto vale uma vida? Não tem preço,
pois, vida não se compra, nem se vende. Vida não é coisa.
A vala aberta no coração e na vida das pessoas, mesmo que fechada, tem a sua
cicatriz. Por isso, nossa missão se veste de especial atenção, concentração e cuidado com
a vida humana e da terra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DEMO, Pedro. Participação é conquista. São Paulo: Cortez, 1999. VV. AA.. Cartilha de Direitos Humanos: Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade. Masiero Impressões Gráficas. Cuiabá, MT, 1998.
130
APÊNDICE 1
Princípios do Fórum de Direitos Humanos e da Terra
CARTA DE PRINCÍPIOS DO FÓRUM DE DIREITOS HUMANOS E DA TERRA DE MATO GROSSO
O Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso (FDHT-MT) configura-se como um espaço permanente, aberto, plural e diversificado, é um movimento comprometido com os grupos sociais vulneráveis e povos e comunidades tradicionais feridos nos princípios da cidadania e dignidade, vítimas, principalmente, do processo capitalista hegemônico em suas diferentes expressões em Mato Grosso.
O FDHT-MT articula-se de forma autônoma, independente e transparente. Tem como objetivo central combater às várias formas de violações de direitos humanos e da Terra presentes nos territórios mato-grossenses; e exercer o controle social participativo à construção, acompanhamento e revisão das políticas públicas. Os membros do fórum lutam por uma sociedade justa e igualitária, para que Direitos Humanos e da Terra sejam, efetivamente, universais, indivisíveis e inalienáveis.
O fórum requer abertura propositiva na liberdade de articulação de seus participantes, assegurando-lhes meios de participação ativa e democrática, com co-responsabilidade. O debate, as trocas de experiências, as reflexões e as deliberações promovidas são pautadas por um princípio dialogal, aberto e democrático, sendo as decisões tomadas coletivamente de responsabilidade de todos os membros/entidades. Além disso, opõe-se a quaisquer visões totalitárias, exclusivistas e reducionistas.
Para cumprir seus compromissos, o FDHT-MT organiza-se em grupos de trabalho e guia-se pelos seguintes princípios:
1. Garantia da justiça ambiental e a emergência de um compromisso coletivo de fortalecimento das sociedades sustentáveis, que evidenciem seres mais comprometidos e solidários na luta pela vida com dignidade para todos os povos e para a integridade planetária;
2. Defesa e promoção incondicional dos direitos fundamentais: humanos, sociais, culturais, civis, ambientais, políticos e econômicos, especialmente, os direitos à saúde, educação, habitação, emprego, trabalho digno, comunicação e alimentação (soberania alimentar);
3. Acesso universal aos bens comuns da humanidade e da natureza de forma a promover a justiça social e a proteção ecológica;
4. Garantia da dignidade, diversidade, igualdade de gênero, raça, etnia, geração, orientação sexual e eliminação de todas as formas de discriminação;
5. Garantia da soberania, da autodeterminação e dos direitos dos grupos sociais vulneráveis, povos e comunidades tradicionais que exigem seus territórios, identidades, línguas, culturas, justiça ambiental, liberdade de escolha e bem viver.
6. Democratização e descolonização do acesso à justiça; 7. Relação de convergência com outros espaços e iniciativas sociais e políticas de caráter
alternativo, segundo a natureza, objetivos e os princípios desta carta: estimular o reconhecimento mútuo da pluralidade de saberes que colaboram e promovem a capacidade de resistência ao processo de desumanização que o mundo está vivendo e à violência institucionalizada, reforçando as iniciativas de práticas libertadoras em curso. Pessoas ou entidades da sociedade civil organizada que desejarem participar do
FDHT/MT poderá fazê-lo, desde que aceito pela maioria dos atuais integrantes e desde que assumam os compromissos expressos nesta Carta de Princípios.
131
APÊNDICE 2
NOTA DE APOIO À OPERAÇÃO “TERRA PROMETIDA” DA PF E REPÚDIO AOS QUE QUEREM IMPEDIR A APURAÇÃO DA GRILAGEM DE TERRA NO ESTADO DE MATO
GROSSO O Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso – FDHT/MT e as
organizações abaixo assinadas, vêm por meio desta apoiar a operação TERRA PROMETIDA
realizada pela Polícia Federal e repudiar ações que impeçam a apuração da grilagem de
terras públicas em Mato Grosso.
Fatos como o ocorrido no dia 1/12/2014 em Lucas do Rio Verde, quando políticos
(prefeitos, deputados estaduais e o futuro vice-governador) e lideranças sociais, realizaram
manifestação na câmara municipal no intuito de inibir a apuração da grilagem de terra em
nosso Estado em nada contribuem para o benefício da população e só depõem contra elas.
Ainda, cobramos dos órgãos públicos como INCRA e INTERMAT que apurem com rigor
o envolvimento de funcionários públicos na prática destes crimes que impedem que a terra
chegue aos que dela precisam para produzir alimentos saudáveis para a população.
Há décadas que a violência no campo contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais,
indígenas, quilombolas, retireiros e os/as que defendem suas causas vem aumentando, ao
mesmo tempo em que a impunidade impera na maioria gritante dos crimes. Neste sentido,
expressamos a nossa total solidariedade e apoio aos povos da terra e à todos lutadores e
lutadoras da reforma agrária e justiça social no campo.
Se não mudarmos as práticas, de forma convicta, não mudaremos o mundo,
transformando-o em lugar de respeito aos Direitos Humanos e bem viver entre todos e todas.
Abaixo assinado por: Fórum de Direitos Humanos e da Terra Mato Grosso – FDHT/MT
Associação Brasileira de Saúde Popular -ABRASP/BIO SAÚDE
Associação Dando as Mãos
Associação Kanela do Araguaia - ACIKAN
Articulação de Mulheres Brasileiras - AMB
Associação Brasileira de Homeopatia Popular - ABHP
Associação dos Retireiros do Araguaia
Associação Mato-grossense Divina Providência - AMDP
Centro Burnier Fé e Justiça - CBFJ
Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Bienes CDHDMB
132
Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade - CDHHT
Centro de Pastoral para Migrantes CPM
Centro de Tecnologia Alternativa CTA
Comissão Pastoral da Terra – CPT/MT
Comitê Popular do Rio Paraguai
Comunidades Eclesiais de Base - Cebs- MT
Conferencia dos Religiosos do Brasil de Mato Grosso - CRB
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil OESTE 2 - CNBB OESTE 2
Conselho Regional das Pastorais em Mato Grosso - CRP
Conselho Indigenista Missionário – CIMI/MT
Conselho Nacional do Laicato do Brasil - CNLB/MT
ECOPANTANAL- Instituto de Ecologia e de povos tradicionais do Pantanal
Escritório de Direitos Humanos da Prelazia de São Félix do Araguaia
Fórum Matogrossense de Meio ambiente e Desenvolvimento - FORMAD
Federação de Assistência Social e Educacional -FASE
Grupo de Estudo Educação Merleau-Ponty – GEMPO UFMT/IE
Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação – GPMSE UFMT/IE
Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte – GPEA/UFMT
Grupo Raízes
Instituto Caracol -IC
Instituto Gaia
Instituto Floresta
Instituto Humana Raça Fêmina - INHURAFE
Movimento 13 de Outubro
Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia - MAMA
Movimentos dos Trabalhadores Acampados e Assentados - MTA
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST/MT
Movimento Nacional de Direitos Humanos - MNDH
Rede de Educação Cidadã Matogrosso
Rede Mato-Grossense de Educação Ambiental- REMTEA
Sociedade Fé e Vida
Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso – FDHT/MT Centro Burnier Fé e Justiça - Fone (65) 3023-2959
Rua do Ouro nº 64, Bairro Araés - Cuiabá / MT CEP:78.005-675
E-mail: [email protected] // http://direitoshumanosmt.blogspot.com/
133
APÊNDICE 3
CARTA DENÚNCIA Cuiabá-MT, 26 de fevereiro de 2015.
O Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso (FDHT) e as entidades abaixo relacionadas vêm a público manifestar sua preocupação com os números oficiais de resgatados do trabalho escravo no Estado de Mato Grosso em 2014 e com a mudança de atuação da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego - SRTE de Mato Grosso, principalmente em relação ao combate do Trabalho Escravo. Vêm, ainda, denunciar fato ocorrido na reunião da Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAE-MT), do dia 11 de fevereiro do corrente ano, e exigir providências por parte do Ministério de Trabalho e Emprego - MTE.
As entidades da Sociedade Civil que participam do FDHT, de forma especial as que compõem a COETRAE-MT, estão preocupadas com os desdobramentos decorrentes das mudanças da SRTE/MT ao longo de 2014, principalmente no tocante ao combate ao trabalho escravo, pois segundo dados da SRTE de MT, no ano de 2014, foi libertado somente 1 trabalhador. Na retomada da COETRAE-MT, as entidades da sociedade civil levantaram questionamentos sobre o que os órgãos responsáveis pelas fiscalizações, em especial a SRTE/MT, entendem por trabalho escravo, haja vista que, em uma fiscalização de denúncia de Trabalho Escravo, ocorrida em uma fazenda, cujo Relatório de Fiscalização foi disponibilizado pela chefa da SEINT, evidenciou-se a situação degradante em que viviam 07 (sete) trabalhadores, em alojamento de chão batido, camas improvisadas em cima de tocos de madeira, sem forros, outros dormindo em redes, todos em um pequeno alojamento de tábua, sem local para realização das refeições, além de sistema de barracão, em que os trabalhadores eram obrigados a comprar desde equipamento de proteção, como botinas, até a rede para dormir, e artigos de higiene, como sabão, papel higiênico, pasta dental, escova, tudo descontado em suas diárias, conforme caderno de anotações encontrado pelos auditores fiscais de posse do encarregado da fazenda. Apesar de todas essas características, não houve, no caso concreto, a configuração de trabalho escravo e com isso, os trabalhadores não foram resgatados.
Para surpresa dos presentes na reunião, a auditora fiscal e chefe da fiscalização móvel, Alessandra Luz de Souza Nunes Andrade, após leitura do relatório em questão, afirmou que não conseguia visualizar indícios de privação de liberdade ou locomoção e que, portanto, considerava correta a decisão dos auditores de não classificar como condições análogas à escravidão, afirmando que, no caso das fiscalizações, está ao arbítrio dos auditores decidirem o que é trabalho escravo.
Afirmou que, em muitos casos, é melhor que os trabalhadores permaneçam trabalhando, mesmo em condições precárias, do que os libertar, posto que, com o resgate, eles teriam garantidos somente os 03 (três) meses de “seguro resgate” no valor de um salário mínimo mensal - o que somente seria concedido após um longo período de espera - para, posteriormente, ficarem sem trabalho.
Por fim, disse que, no caso em questão, os trabalhadores “nem trabalhavam tanto assim”, questionando os presentes para onde deveriam ser encaminhados os trabalhadores resgatados.
Com sua fala, a auditora descaracterizou o conceito de trabalho escravo trazido pelo artigo 149 do Código Penal, colocando em xeque a atuação da SRTE no combate ao trabalho escravo no Estado de Mato Grosso, que até então sempre foi comprometida com a
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erradicação dessa chaga que assola milhares de trabalhadores e trabalhadoras, retirando-lhes sua dignidade.
Diante dessa situação de atentado contra a luta pela erradicação do trabalho escravo e a sua configuração legal, o Fórum de Direitos Humanos e da Terra de MT – FDHT e as entidades abaixo assinadas vêm denunciar e exigir que sejam tomadas as devidas providências por parte do MTE, para que a SRTE/MT possa cumprir com o seu protagonismo histórico no combate ao Trabalho Escravo e não dificulte as ações, como está acontecendo neste momento.
Abaixo assinado por: Fórum de Direitos Humanos e da Terra Mato Grosso – FDHT/MT
Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB
Centro de Direito de Humano Henrique Trindade - CDHHT
Associação Brasileira de Saúde Popular -ABRASP/BIO SAÚDE
Associação Brasileira de Homeopatia Popular - ABHP
Centro Burnier Fé e Justiça - CBFJ
Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade - CDHHT
Centro de Pastoral para Migrantes CPM
Comissão Pastoral da Terra – CPT/MT
Conselho Indigenista Missionário – CIMI/MT
Escritório de Direitos Humanos da Prelazia de São Félix do Araguaia
Fórum de Articulação de Mulheres de Mato Grosso – FAMMT
Fórum Matogrossense de Meio ambiente e Desenvolvimento - FORMAD
Grupo de Estudo Educação Merleau-Ponty – GEMPO UFMT/IE
Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação – GPMSE UFMT/IE
Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte – GPEA/UFMT
Instituto Caracol -IC
Instituto Humana Raça Fêmina - INHURAFE
Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia - MAMA
Movimento 13 de Outubro
Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral - MCCE/MT
Movimento dos Trabalhadores Acampados e Assentados MT - MTA
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MTS
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST/MT
Movimento Nacional de Direitos Humanos - MNDH
Rede Mato-Grossense de Educação Ambiental- REMTEA
Sindicato dos Trabalhadores do Ensino Público de Mato Grosso - SINTEP
União Brasileira de Mulheres - UBM/MT
Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso – FDHT/MT Centro Burnier Fé e Justiça - Fone (65) 3023-2959
Rua do Ouro nº 64, Bairro Araés - Cuiabá / MT CEP:78.005-675
E-mail: [email protected]// http://direitoshumanosmt.blogspot.com/
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APÊNDICE 4
Ao Exmo. Sr. DJALMA SABO MENDES JÚNIOR Defensor Público Geral de Mato Grosso Rua 04, Quadra 10, Lote 01, Setor A, Centro Político Administrativo Cuiabá/Mato Grosso CEP: 78.049-040 Assunto: Pedido de Providências do Fórum de Direitos Humanos e da Terra, CPT/MT e diversas entidades junto à Defensoria Pública de MT.
PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS JUNTO À DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MATO GROSSO
O Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso-FDHT, a Comissão Pastoral
da Terra-CPT e demais entidades abaixo assinantes, vem, através da presente, denunciar e requerer o que segue:
Muito nos preocupa a atuação desta Defensoria no que atine ao Núcleo de Regularização Fundiária, haja vista a constante mudança de defensores que atendem os processos em trâmite na Vara de Direito Agrário. Constatamos que em poucos meses passaram três defensores públicos e fomos informados que o atual já está designado para a Comarca de Guarantã do Norte. Esta situação tem prejudicado muito os grupos vulneráveis que dependem de seu atendimento e tem lhes causados enormes prejuízos, não só na defesa de seus direitos como também de ordem financeira, posto que por várias vezes estes grupos se deslocam do interior do Estado e não são atendidos.
Diante da complexidade que envolvem os processos sobre a questão agrária, considerando que a maioria dos casos são conflitos latentes que envolvem muitas pessoas, demandam tempo e conhecimento para se apropriar das informações contidas nos processos e este Núcleo atende não somente as questões fundiárias dos municípios de Mato Grosso, mas também os processos que envolvem questão agrária de todo o Estado, o que requer de um atendimento de qualidade e continuado.
A situação é tão séria que, conforme Certidão feita pelo Gestor Judiciário da 2ª Vara Cível - Especializada em Direito Agrário, na primeira quinzena do mês de março do corrente ano, haviam 64 (sessenta e quatro) processos de conflitos agrários aguardando carga para a Defensoria Pública. Além disso, em procedimento aberto pela Juíza responsável pela citada Vara constam atas de diversas audiências que não se realizaram diante da ausência de Defensor Público. Assim, essa troca constante muito tem prejudicado o andamento de dezenas de processos, gerando como consequência o acirramento dos conflitos no campo em Mato Grosso, bem como a violação de vários direitos dos camponeses.
Toda esta realidade já é de conhecimento de Vossa Excelência, haja vista que a mesma foi informada pela MM. Juíza da Vara de Direito Agrário, conforme ofício encaminhado no mês de março do corrente ano, acostado em procedimento de pedido de providência aberto pela mesma, cuja cópia segue em anexo.
Ainda, cópia desse procedimento aberto pela magistrada foi protocolado na Corregedoria da Defensoria Pública, conforme protocolo nº. 232897/2015, em 13 de março do corrente ano, após conversa destas entidades com o respectivo corregedor, onde solicitamos providências.
Frente ao todo aqui relatado, bem como às informações que são de conhecimento de Vossa Excelência e, principalmente, pelo fato de que esta instituição é indispensável para o
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atendimento dos menos favorecidos e excluídos e que foi criada para ampliar o alcance da cidadania, com o acesso à justiça, a fim de assegurar igual possibilidade de tutela jurisdicional a todos os cidadãos brasileiros, garantindo o direito à assistência jurídica integral e gratuita, requeremos:
A criação de um Núcleo Agrário separado do Núcleo de Regularização
Fundiária, haja vista tratarem de realidades distintas;
Que o defensor Danilo Augusto Rocha Pinheiro permaneça no Núcleo
Fundiário, portanto não seja transferido para o interior até que se resolva
definitivamente o atendimento às questões agrárias, uma vez que está
inteirado de vários processos em andamento;
Que sejam designados, no mínimo, dois defensores fixos para o atendimento,
sendo que os mesmos devem ter aptidão para tratar de assuntos agrários;
Que seja providenciada uma estrutura compatível com a demanda deste
Núcleo, não somente em termos de pessoal, mas também de espaço e
equipamentos.
Certos de vosso pronto atendimento, desde já agradecemos. Abaixo assinado por: Fórum de Direitos Humanos e da Terra Mato Grosso – FDHT/MT
Associação Brasileira de Saúde Popular -ABRASP/BIO SAÚDE
Articulação de Mulheres Brasileiras - AMB
Associação Brasileira de Homeopatia Popular - ABHP
Central Única dos Trabalhadores – CUT- MT
Centro Burnier Fé e Justiça - CBFJ
Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Bienes CDHDMB
Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade - CDHHT
Centro de Pastoral para Migrantes CPM
Comissão Pastoral da Terra – CPT/MT
Comitê Popular do Rio Paraguai
Conselho Indigenista Missionário – CIMI/MT
Conselho Nacional do Laicato do Brasil - CNLB/MT
Escritório de Direitos Humanos da Prelazia de São Félix do Araguaia
Fórum Matogrossense de Meio ambiente e Desenvolvimento - FORMAD
Grupo de Estudo Educação Merleau-Ponty – GEMPO UFMT/IE
Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação – GPMSE UFMT/IE
Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte – GPEA/UFMT
Grupo Raízes
Instituto Caracol -IC
Instituto Floresta
Instituto Humana Raça Fêmina - INHURAFE
Movimento 13 de Outubro
Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia - MAMA
Movimentos dos Trabalhadores Acampados e Assentados - MTA
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST/MT
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MTS/MT
RuAção- Núcleo Interinstitucional Merleau-freiriano (UFMT)
Rede de Educação Cidadã Matogrosso
Rede Mato-Grossense de Educação Ambiental- REMTEA
Sociedade Fé e Vida
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