RELATOS DE UM CURDISTAO LIBERTARIO

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   Uma revolução de mulheres: As Brigadas do YPG contra o Estado Islâmico  Os pilares da revolução Curda: Ecologia Feminismo e Revolução Social  Relatos de David Graeber D.Dirik do Movimento de Mulheres Curdas e outrxs  Murray Bookchin e o Eco-anarquismo plataformista

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  Uma revolução de mulheres: As Brigadas do YPG contra o Estado Islâmico

  Os pilares da revolução Curda: Ecologia Feminismo e Revolução Social

  Relatos de David Graeber D.Dirik do Movimento de Mulheres Curdas e outrxs

  Murray Bookchin e o Eco-anarquismo plataformista

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Você provavelmente já deve ter pensado que nasceu numa época errada, em que seja impossível fazer algo para impedir o

irreversível acinzentamento do mundo. “todos os grandes momentos da história já passaram e nós estamos num período

contemporâneo em que o fim da história é a nossa suja e amarga civilização, sendo ela inevitável” –  Quem não pensou

algo do tipo? Na verdade, a elite econômica, os donos do mundo, tem um grande interesse em que se pense que o estado

das coisas atuais (em que essa mesma elite encontra-se no topo da pirâmide social, numa posição de poder e conforto) é

imutável e inevitável, por razões óbvias. E já que as mídias, jornais meios de comunicação pertencem a essa elite, o

 Patriarcado Industrial Burguês, nenhum evento realmente importante de nossa época será divulgado no mainstrain . Por

isso precisamos das mídias alternativas. 

 Numa perspectiva anarquista, nossa época é marcada pela heróica resistência zapatista no México, os protestos e movidas

antiglobalização por todo o mundo em ações múltiplas e independentes, e por fim, à revolução que está acontecendo agora

mesmo no Curdistão. Sim, agora mesmo uma revolução anarquista de milhares de pessoas está sendo levada a cabo, algo

visto pela última vez somente na Revolução Espanhola de 1936. 

A batalha por Kobane vislumbra o novo modelo de democracia curda 

Ao passo que a batalha contra os combatentes do Estado Islâmico chama a atenção de espectadoresno mundo todo, atenção tem sido dada aos homens e mulheres que resistem a ele no norte daSíria. A parte síria do Curdistão, Rojava, como os curdos gostariam que fosse chamada, vemlutando contra os islamitas há mais de dois anos, mas somente recentemente a batalha pelasfronteiras da cidade de Kobane os trouxe à tona. 

É fácil caracterizar os povos curdos como uma barreira a esta nova ameaça, porém ele estão, narealidade, envolvidos em um processo muito mais profundo. Kobane é simbólica, e os conflitosocorridos lá tem uma significação universal. Os curdos não estão apenas combatendo os islamitas,estão também tentando criar um modelo de democracia que pode efetivamente trazer estabilidade à

uma região devastada pela guerra. 

A visão política curda não se baseia em nenhuma crença racial, étnica, regional ou religiosa, massim em uma ideia, ou um conjunto de ideias, que deveria ressonar nas pessoas de todos os cantos. 

Os combatente de Kobane reivindicam uma luta pela liberdade de todas as pessoas da região,sejam curdos, turcos, árabes ou quaisquer outros. O modo com o qual eles desafiaram estereótiposde gênero é somente um exemplo disto. 

No que diz respeito aos rumos das desavenças religiosas, Kobane desaprova tanto os islamofóbicos

que acreditam que o Oriente Médio é incapaz de progredir, e intenta corrigir os islamófilos queimpõem de forma paternalista a ideia de que a identidade religiosa é uma prioridade absoluta paraos muçulmanos. Em sua prontidão na defesa de uma minoria Yazidi contra a perseguição do IS, oscurdo tem, essencialmente, promovido um secularismo radical e uma visão de tolerância, em meio auma região devastada por contendas religiosas. 

O que é novo na luta curda por sua auto-determinação, é propriamente sua definição de auto-determinação. Este conceito, quanto aplicado à Nações, geralmente equivale ao direito das Naçõesde se separar e formar seus próprios Estados, mas os curdos veem isto de forma distinta. Muitosacreditam que uma experiência de confederalismo democrático é o que a região realmente precisa. 

Este é um princípio defendido pelo fundador do PKK, Abdullah Ocalan, uma figura moral e intelectualcentral para os curdos. O PKK, ou Partido dos Trabalhadores Curdos, tem lutado na Turquia pormaior autonomia desde 1978, além de ter treinado combatentes curdos em Kobane. Os escritos deOcalan, compilados de dentro de uma prisão turca onde ele definhou por cerca de 15 anos,consolidou uma sólida base ideológica para a luta curda. Ele defende que Estados-Nação são  

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inerentemente opressivos. Mesmo que grupos oprimidos possam ter um desejo legítimo em formarseus próprios Estados, estes serviriam somente para substituir uma forma de dominação por outra.Para ele, o Estado-Nação é inseparável de nacionalismos xenofóbicos, sexismos e fundamentalismosreligiosos. 

O confederalismo democrático é um sistema de governança que seria baseado em maior grau deconsenso coletivo e participação voluntária. Ecologia e feminismo são visto como pilares de umaauto-governança local. Ele envolve um sistema econômico que não deveria ser baseado nem naexploração da força de trabalho humana, nem no uso doentio dos recursos naturais. 

Kobane implementou esta teoria, na prática. As ideias podem parecer utópicas, e os realistaspodem, legitimamente, questionar a sustentação de comunas autônomas que não possuem o apoiopolítico ou militar de um Estado centralizado. Mas, como disse Oscar Wilde, o progresso é arealização da Utopia. O progresso de Kobane talvez esteja exatamente aí. 

A luta por Kobane é um evento de significados globais, à altura da Declaração de Independência, àTomada da Bastilha, à Comuna de Paris, ou à vitória do Vietnã em Dien Bien Phu. O sucesso doscurdos desafiaria horizontes intelectuais, éticos e políticos já bem consolidados. 

Em um momento em que os partidos de direita estão crescendo na Europa e demais partes domundo, paralelamente ao crescimento de fundamentalistas minoritários, os curdos oferecem algodiferente, e isto não deveria ser ignorado. Neste sentido, eles estão lutando por todos. 

Tradução: Laura Uai 

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 O surpreendente Curdistão libertário 

Combatentes das YPG, as Brigadas de Proteção do Povo, que lutam por Curdistão autônomo e federativo 

Os curdos não têm amigos, exceto as montanhas 

 – provérbio curdo 

Excluídos das negociações e traídos pelo Tratado de Lausanne  de 1923, depois de terem um estado próprio

prometido pelos aliados da Primeira Guerra Mundial durante a dissolução do Império Otomano, os curdos são a

maior etnia sem estado do mundo. Mas hoje, apesar de um  Irã inflexível, sobram cada vez mais obstáculos para

uma independência de jure curda no norte do Iraque. Turquia e Israel já sinalizaram apoio enquanto Síria e Iraque

têm as mãos atadas pelo rápido avanço do Estado Islâmico (antigo ISIS). 

Com a bandeira curda tremulando do alto de todos os prédios oficiais e a Peshmerga mantendo os islâmicos

afastados com a extremamente atrasada assistência militar dos EUA, o Curdistão do Sul (Iraque) se junta aos

camaradas do Curdistão Ocidental (Síria) como a segunda região autônoma de facto do novo Curdistão. Jácomeçaram a exportar seu próprio petróleo e retomaram  a petrolífera Kirkuk, têm um próprio parlamento

secularizado e eleito e uma sociedade pluralista, pediram  reconhecimento da ONU, e não há nada que o governo

do Iraque possa fazer – ou os EUA fizessem sem o apoio de Israel – para detê-los. 

 A luta curda, no entanto, é qualquer coisa exceto estritamente nacionalista. Nas montanhas acima de Erbil, no

antigo coração do Curdistão, passando pelas fronteiras da Turquia, Irã, Iraque e Síria, nasce uma revolução

social. 

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Mapa atual da Síria e Iraque. Regiões amarelas no norte da Síria são controladas por curdos sírios, regiões

esverdeadas no nordeste do Iraque são controladas por curdos iraquianos (fonte: Wikimedia Commons)  

A Teoria do Confederalismo Democrático 

Na virada do século, enquanto o sempre radical estadunidense Murray Bookchin desistia de tentar revitalizar o

movimento anarquista contemporâneo sob a sua filosofia da  ecologia social, o fundador e líder do PKK Abdullah

Öcalan foi preso no Quênia por autoridades turcas e condenado à morte por traição. Nos anos seguintes, o velho

anarquista ganhou no militante endurecido um improvável devoto, cuja organização paramilitar  –  o PKK  –  é

amplamente listada como uma organização terrorista por causa da guerra violenta de libertação travada contra a

Turquia. 

Nos seus anos de confinamento solitário, dirigindo o PKK por detrás das grades enquanto sua pena era alterada

para prisão perpétua, Öcalan adotou uma forma de socialismo libertário tão desconhecida que pouquíssimos

anarquistas tinham sequer ouvido falar: o municipalismo libertário  de Bookchin. Depois Öcalan modificou,

especificou e rebatizou a visão de Bookchin como“confederalismo democrático”, e como consequência a União

das Comunidades do Curdistão (Koma Civakên Kurdistan ou KCK), o experimento territorial do PKK de uma

sociedade democrática livre e direta, foi mantida em segredo para a grande maioria dos anarquistas, e ainda mais

para o público geral. 

 Apesar de a conversão de Öcalan ter sido um ponto crucial, um renascimento mais amplo do esquerdismo 

libertário e  da literatura independente estava descendo as montanhas e passando de mão em mão entre os  

praças após o colapso da União Soviética nos anos 1990. “[Eles] analisaram livros e artigos de filósofos,

feministas, (neo)anarquistas, comunistas libertários, comunalistas e ecologistas sociais. Foi assim que escritores

como Murray Bookchin [e outros] chegaram aos seus focos”, nos conta o ativista curdo Ercan Ayboga. 

Öcalan embarcou, nos seus escritos da prisão, num minucioso re-exame e autocrítica da terrível violência, dogmatismo,

culto à personalidade e autoritarismo que ele havia promovido: “Ficou claro que nossa teoria, programa e práxis dadécada de 1970 produziu nada além de um separatismo fútil e violência e, ainda pior, que o nacionalismo, a que

deveríamos nos opor, infestou a todos nós. Mesmo nos opondo em princípio e retórica, aceitamos, no entanto, [o

nacionalismo] como inevitável.” Antes líder inquestionável, Öcalan agora  argumenta que 

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“o dogmatismo é nutrido por verdades abstratas que se tornam formas habituais de pensar. Quando você põe

essas verdades generalistas em palavras, você se sente como um alto sacerdote a serviço do seu deus. Esse foi

o erro que cometi.” 

Öcalan, um ateu, estava finalmente escrevendo como um livre pensador. Ele mencionou estar buscando uma 

“alternativa ao capitalismo” e uma “reposição ao modelo do (…) ‘socialismo realmente existente’”, quando cruzou

com Bookchin. Sua teoria do confederalismo democrático se desenvolveu a partir de uma combinação da

inspiração de intelectuais comunalistas, “ movimentos como os Zapatistas”, e outros fatores históricos da luta no

Curdistão do Norte (Turquia). Öcalan proclamou-se como discípulo de Bookchin, e depois de uma falha tentativa

de correspondência por e-mail com o velho teórico, que para o seu azar estava muito doente para tal troca em seu

leito de morte em 2004, o PKK o celebrou como “um dos maiores cientistas sociais do século XX” na época de

sua morte dois anos mais tarde. 

A prática do Confederalismo Democrático 

O próprio PKK aparentemente seguiu seu líder, não só adotando a visão específica de eco-anarquismo de

Bookchin, mas internalizando ativamente a nova filosofia na sua estratégia e tática. O movimento abandonou a

guerra sangrenta pela revolução stalinista/maoísta e as táticas de terror que carregava, e começou a usar

amplamente uma estratégia não-violenta visando uma maior autonomia regional. 

Depois de décadas de traições fratricidas, cessar-fogos fracassados, prisões arbitrárias e recorrentes hostilidades,

em 25 de abril deste ano o PKK anunciou uma retirada imediata de suas forças na Turquia e seu

reposicionamento no norte do Iraque, acabando efetivamente com o conflito de três décadas com o estado turco.

Simultaneamente o governo turco realizou um processo de reforma constitucional e legal para consagrar direitos

humanos e culturais à minoria curda dentro de suas fronteiras. Isso veio como o componente final da longa

negociação entre Öcalan e o primeiro ministro turco Erdoğan como parte do processo de paz iniciado em 2012.  

Não houve violência do PKK por um ano e estão sendo feitos  pedidos para retirá-los das listas de terroristas do

mundo. 

Resta ao PKK, no entanto, uma história sombria  – práticas autoritárias que pegam mal para esta nova retórica

libertária. Levantar verbas através do comércio de heroína, extorsão, recrutamento coercitivo e saques

generalizados era constantemente reivindicado ou atribuído a suas sucursais. Se for verdade, nenhuma desculpapara este oportunismo pode ser feita, apesar da óbvia ironia do próprio  estado genocida turco fundamentar-se em

boa parte do  lucrativo monopólio da exportação legal de opiáceos “medicinais” estatais para o ocidente e tornou

possível pela conscrição e taxação desta atividade um orçamento contra o terrorismo e um exagerado exército (A

Turquia tem o  segundo maior exército da OTAN depois dos EUA). 

Como é a hipocrisia costumeira da guerra contra o terror, quando movimentos de libertação nacional imitam a

brutalidade do estado, invariavelmente os não representados são taxados de terroristas. O próprio Öcalan

descreve esse vergonhoso período como de “gangues internas da nossa organização e banditismo aberto, [que]

arranjaram operações aleatórias e desnecessárias, mandando jovens, em massa, para a morte.” 

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 Abdullah Öcalan, o dirigente comunista que ajudou a reposicionar a luta curda pela autonomia após viver, na prisão, umnotável giro ideológico 

Correntes anarquistas na luta 

Como mais um sinal de que está abandonando os caminhos marxistas-leninistas, porém, o PKK recentemente

começou a fazer propostas explícitas ao anarquismo internacionalista, inclusive oferecendo uma oficina no

Congresso Internacional de Anarquismo (International Anarchism Gathering) em St. Imier, Suiça, em 2012, que

levou a confusão, desânimo e debate on-line, mas que passou despercebido para a imprensa anarquista mais

ampla. 

Janet Biehl, viúva de Bookchin, é uma das poucas a estudar a União das Comunidades do Curdistão (KCK) em

campo, e escreveu extensivamente sobre suas experiências no site New Compass, inclusive compartilhando

entrevistas com radicais curdos, envolvidos nas operações diárias das assembleias democráticas e das estruturasfederais, assim como traduzindo e publicando o primeiro estudo anarquista que virou livro sobre o assunto:

Democratic Autonomy in North Kurdistan: The Council Movement, Gender Liberation, and Ecology (2013)

[Autonomia Democrática no Curdistão do Norte: o Movimento dos Conselhos, Libertação de Gênero e Ecologia,

tradução livre]. 

 A outra única voz anarquista que fala inglês é o Fórum Anarquista do Curdistão (Kurdistan Anarchist Forum  – 

KAF), um grupo pacifista de curdos iraquianos morando na Europa que diz não “ter nenhuma relação com outros

grupos de esquerdistas”. Enquanto apóia um Curdistão federado, o KAF declara que “só vai apoiar o PKK quando

eles desistirem completamente da luta armada e se engajarem em organizar movimentos de massa de base

popular com o objetivo de suprir demandas sociais do povo, denunciarem e desmantelarem modos centralizados

e hierarquizados de luta e substituí-los por grupos locais autônomos federados, encerrarem todas as relações,

acordos e negociações com os estados do Oriente Médio e do Ocidente, denunciarem políticas de poder

carismático e converterem-se ao anti-estatismo e anti-autoritarismo  –  só então seremos felizes em cooperar

totalmente com eles.” 

Seguindo Bookchin ao pé da letra 

Este dia (exceto o pacifismo) pode não estar tão longe. O PKK/KCK parecem estar seguindo Bookchin ao pé da

letra, quase totalmente, inclusive com a contraditória participação no aparato estatal via eleições, assim como

previsto nos seus livros. 

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Como escrevem Joost Jongerden e Ahmed Akkaya, “o trabalho de Bookchin diferencia duas ideias de política, a

helênica e a romana”, que são [respectivamente] a democracia direta e a representativa. Bookchin enxerga sua

forma de neo-anarquismo como um renascimento da antiga revolução ateniense. O “modelo de Atenas existe

como uma corrente que encontra expressões na Comuna de Paris de 1871, nos conselhos (sovietes) da

primavera da Revolução Russa de 1917 e na Revolução Espanhola em 1936.”  

O comunalismo de Bookchin contém uma abordagem em cinco passos: 

1. Entender pela lei as municipalidades existentes com o objetivo de tornar local o poder de decisão.

2. Democratizar essas municipalidades através de assembleias de base.

3. Unir as municipalidades “em redes regionais e confederações mais amplas (…) trabalhando para substituir

gradualmente Estados-nações por confederações municipais”, enquanto assegura que “níveis ‘maiores’ da

confederação têm essencialmente funções de coordenação e administração.”

4. “Unir movimentos sociais progressistas” para fortalecer a sociedade civil e estabelecer “um ponto focalcomum para todas as iniciativas cidadãs e movimentos”: as assembleias. Esta cooperação “não é

[examinada minuciosamente] porque esperamos ver sempre um consenso harmonioso, mas – ao contrário

 –  por que acreditamos em desacordo e deliberação. A sociedade se desenvolve pelo debate e pelo

conflito”. Além disso, as assembleias são seculares, “[lutando] contra influencias religiosas na política e no

governo”, e uma “arena para a luta de classes”.

5. Para alcançar sua visão de uma “sociedade sem classes, baseadas no controle político coletivo sobre os

meios de produção socialmente importantes”, se fazem necessárias a “municipalização da economia” e a

“alocação confederada de recursos para garantir um equilíbrio entre as regiões”. Em termos leigos, issoequivale a uma combinação de autogestão dos trabalhadores e planejamento participativo para atender às

necessidades sociais: a economia anarquista clássica.

Como  coloca Eirik Eiglad, antigo editor de Bookchin e analista da KCK:  

“É particularmente importante a necessidade de combinar os conhecimentos dos movimentos progressistas

feministas e ecológicos com os novos movimentos urbanos e as iniciativas cidadãs, assim como sindicatos e

cooperativas e coletivos locais (…) Acreditamos que as ideias comunalistas de uma democracia baseada em

assembleias irão contribuir para tornar esta mudança progressiva de ideias possível em bases mais permanentese com mais consequências políticas diretas. Ainda que o comunalismo não é só um meio tático para unir estes

movimentos radicais. Nosso chamado por uma democracia municipal é uma tentativa de dar razão e ética para a

frente da discussão pública.”  

Para Öcalan, confederalismo democrático significa uma “sociedade democrática, ecológica e com  liberdade de 

gêneros”, ou simplesmente “democracia sem estado”. Ele contrasta explicitamente “modernidade capitalista” com 

“modernidade democrática”, em que os antigos “três elementos básicos: capitalismo, Estado-nação e

industrialismo” são substituídos por uma “nação democrática, economia comunal e indústria  ecológica”. Isto

implica “três projetos: um pela república democrática, um para o confederalismo democrático e um para aautonomia democrática.” 

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O conceito da “república democrática” refere-se essencialmente a reconhecer a cidadania e os direitos civis há

muito tempo negados aos curdos, incluindo a possibilidade de falar e ensinar livremente sua própria língua.

 Autonomia e confederalismo democráticos referem-se às “capacidades autônomas das pessoas, uma forma de

estrutura política mais direta, menos representativa.” 

Enquanto isso, Jongerden e Akkaya notam que o “modelo do municipalismo livre visa realizar um corpo

administrativo participativo, de baixo para cima, de nível local para o provincial.” O “conceito de cidadãos livres

(ozgur yarttas) [é] o ponto de partida”, que “inclui liberdades civis básicas, assim como liberdade de expressão e

organização.” A unidade central do modelo é a assembleia de bairro ou os “conselhos”, como eles são

referenciados indistintamente. 

Existe participação popular   nos conselhos, inclusive de pessoas não-curdas, e enquanto as assembleias de

bairro são fortes em várias províncias, “em Diyarbakir, a maior cidade do Curdistão turco, há assembleias em

quase todo lugar.” Nos outros lugares, “nas províncias de Hakkari e Sirnak (…) há duas autoridades paralelas [a

KCK e o estado], dos quais a estrutura democrática confederada é mais poderosa na prática.” A KCK na Turquia“é organizada nos níveis de vila (köy), bair ro urbano (mahalle), distrito (ilçe), cidade (kent) e a região (bölge) que é

chamada de ‘Curdistão do Norte’.” 

O nível “mais alto” da federação no Curdistão do Norte, o DTK (Congresso da Sociedade Democrática) é uma

mistura de cargos delegados dos seus pares com mandatos revogáveis, que preenchem 60%, e representantes

de “mais de quinhentas organizações da sociedade civil, sindicatos e partidos políticos”, que completam os 40%,

dos quais aproximadamente 6% é “reservado para representantes de minorias relig iosas, acadêmicos, ou outros

casos particulares”. 

 A proporção de 40% dos que são delegados por grupos diretamente democráticos, não-estatistas da sociedade

civil comparado àqueles que são burocratas partidários eleitos ou não-eleitos não está clara. A situação fica ainda

mais complicada com a sobreposição de indivíduos de movimentos curdos independentes e de partidos políticos

curdos e com a internalização por parte dos partidos de muitos aspectos do processo diretamente democrático.

De qualquer forma, o consenso informal entre as testemunhas é de que a maior parte das decisões são tomadas

por democracia direta em ambas as ocasiões; que a maioria das decisões são tomadas na base; e que as

decisões são executadas de baixo para cima de acordo com a estrutura federal. 

Por causa das assembleias e do DTK serem coordenados pelo ilegal KCK, do qual o PKK é membro, eles são 

designados  como “terroristas” pela Turquia e pela chamada comunidade inter nacional (leia-se União Europeia,

EUA e outros), por associação. O DTK também seleciona os candidatos do partido pró-curdos BDP (Partido

Democracia e Paz) para o Parlamento turco, que por sua vez propõe “autonomia democrática” à Turquia, num  

tipo  de combinação de democracia representativa e direta. Alinhado com o modelo federalista, propõe o

estabelecimento de aproximadamente 20 regiões autônomas que autogovernariam diretamente (no modelo

anarquista e não no Suíço) “educação, saúde, cultura, agricultura, indústria, serviços sociais e segurança,

questões das mulheres, dos jovens e os esportes”, com o estado continuando a conduzir “relações internacionais,

finanças e defesa”. 

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A Revolução Social decola 

No chão, enquanto isso, a revolução já começou. 

No Curdistão turco existe um movimento educacional independente de “acadêmicos” que puxam fóruns e

seminários de discussão nos bairros. Há a Rua da Cultura, onde Abdullah Demirbas, o prefeito do município de  

Sur em Amed, celebra “a diversidade dos sistemas de religiões e crenças”, declarando que “começamos arestaurar uma mesquita, uma igreja católica caldeia-aramaica, uma igreja ortodoxa armena e uma sinagoga

 judaica”. Por outro lado,  relatam Jongerden e Akkaya, “as municipalidades do DTK deram início a um ‘serviços

municipais multilíngues’, produzindo um debate acalorado. Sinalizações foram erguidas em curdo e em turco, e

comerciantes locais seguiram o exemplo”. 

 A libertação das mulheres é puxada pelas próprias mulheres através de iniciativas do Conselho de Mulheres do 

DTK, impondo novas regras como a “ cota mínima de gênero de 40%” nas assembleias. Se um servente civil bate

em sua mulher, seu salário é diretamente  transferido à sobrevivente para fornecê-la segurança financeira e usá-locomo bem entender. “Em Gewer, se um homem tem uma segunda esposa , metade de seus bens vão para a

primeira.” 

Há as “Vilas de Paz”, comunidades novas ou transformadas de cooperativas, implementando seu próprio

programa totalmente fora dos constrangimentos logísticos da guerra curdo-turca. A primeira comunidade assim foi

construída na província de Hakkari, na fronteira com o Irã e o Iraque, onde “certas vilas” aderiram ao experimento.

Na província de Van, uma “vila ecológica de mulheres” está sendo construída para acolher vítimas de violência

doméstica, suprindo-se “com toda ou quase toda energia necessária”. 

 A KCK realiza reuniões bienais nas montanhas com centenas de delegados dos quatro países, atentos à

constante ameaça do Estado Islâmico à autonomia do Curdistão do Sul e Ocidental. Os partidos ligados ao KCK

no Irã e na Síria, PJAK (Partido por uma Vida Livre no Curdistão) e PYD (Partido da União Democrática), também

promovem o confederalismo democrático. O partido da KCK no Iraque, PCDK (Partido pela Solução Democrática

para o Curdistão) é relativamente insignificante, dirigido pelo centrista Partido Democrático do Curdistão e seu

líder Massoud Barzani, presidente do Curdistão iraquiano, que só recentemente o descriminalizou e passou a

tolerá-la. 

Nas áreas montanhosas do extremo norte do Curdistão iraquiano, onde vivem a maioria das guerrilhas do PKK e

do PJAK, contudo, a  literatura radical e as assembleias prosperam, com a integração entre as montanhas, muitos

curdos puderam continuar após décadas de expulsões e despejos. Nas últimas semanas, esses militantes

desceram as montanhas do extremo norte para lutar ao lado da Peshmerga iraquiana contra o ISIS, resgatando

20 mil Yazidi e cristãos das montanhas do Sinjar e recebendo a visita de Barzani numa demonstração pública de

gratidão e solidariedade, para o constrangimento da Turquia e dos EUA. 

O PYD sírio seguiu, desde o início da guerra civil, os passos do Curdistão turco na transformação revolucionária

da região autônoma sob seu controle. Após “ondas  de prisões” sob a repressão dos baathistas, com “10 milpessoas [levadas] em custódia, entre prefeitos, líderes de partidos locais, deputados, dirigentes e ativistas (…) o 

PYD curdo expulsou o regime de Baath do norte da Síria, ou do Curdistão Ocidental, [e] conselhos locais

apareceram por toda parte”. Comitês de autodefesa foram improvisados para providenciar “segurança à beira do  

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colapso do regime de Baath”, e “a primeira escola a ensinar língua curda” foi estabelecida, enquanto os conselhos

interviam na distribuição equitativa de pão e gasolina. 

No Curdistão turco, sírio e uma parte menos do iraquiano, as mulheres agora são livres para desvendar e para se

encorajarem fortemente em participar da vida social. Antigos laços feudais estão sendo quebrados, as pessoas

estão livres para seguirem qualquer ou nenhuma religião, e minorias étnicas e religiosas podem viver juntas

pacificamente. Se são capazes de deter o novo califado, a autonomia do PYD no Curdistão sírio e a influência da

KCK no Curdistão iraquiano pode fermentar uma explosão ainda mais profunda de cultura e valores

revolucionários.  

Em 30 de junho de 2012, o Comitê de Coordenação Nacional para a Mudança Democrática (NCB), a mais ampla

coalizão revolucionária de esquerda na Síria, do qual o PYD é o principal grupo, também abraçou agora “o projeto

de autonomia democrática e confederalismo democrático como um modelo possível para a Síria”. 

Defendendo a Revolução Curda do Estado Islâmico 

 A Turquia ameaçou  invadir territórios curdos se “bases terroristas estiverem estabelecidas na Síria”, enquanto

centenas de guerrilheiros da KCK (incluindo do PKK) de todo o Curdistão cruzam a fronteira para defender Rojava

(o Ocidente) dos avanços do Estado Islâmico. O PYD alega que o governo islâmico moderado da Turquia já está

agindo contra eles ao facilitar a viagem de jihadistas internacionais a cruzarem as fronteiras para lutarem ao lado

dos islâmicos. 

No Curdistão iraquiano, Barzani, cujas guerrilhas lutaram a favor da Turquia contra o PKK na década de 1990 em

troca de acesso aos mercados ocidentais, clamou por uma “frente curda unida” na Síria através da aliança com oPYD. Barzani intermediou o “Acordo de Erbil” em 2012, que deu origem ao Conselho Nacional Curdo, com o líder

do PYD, Salih Muslim, confirmando que “todos os partidos são sérios e determinados a continuar trabalhando

 juntos”. 

Mesmo sabendo que os estudos e as práticas das ideias do socialismo libertário entre as lideranças e a base são

indubitavelmente um desenvolvimento positivo, resta-nos observar o quão dispostos estão em renunciar o

sangrento passado autoritário. A luta curda pela autodeterminação e soberania cultural forma uma borda de prata

nas escuras nuvens que pairam sobre o Estado Islâmico e as sangrentas guerras inter-fascistas entre islâmicos e

baathistas e o sectarismo religioso que lhes deu origem. 

Uma revolução pan-curda socialmente progressiva e secular com elementos socialistas libertários, unindo curdos

iraquianos e sírios e fortalecendo as lutas turcas e iranianas, ainda pode ser um prospecto. Ao mesmo tempo,

aqueles de nós que valorizam a ideia de civilização devem nossa gratidão aos curdos, que estão lutando noite e

dia contra os jihadistas do fascismo islâmico nas linhas-de-frente da Síria e do Iraque, defendendo com suas vidas

valores democráticos radicais. [outraspalavras.net ] 

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 6 notas sobre a economia da revolução de Rojava 

O programa econômico de Rojava, junto com os outros elementos da revolução, torna-a um experimento em ‘democracia sem Estado’ o qual vale a pena apoiar e aprender. Por Nic Beuret 

Muito já foi escrito sobre a revolução em Rojava, um território composto por três cantões de maioria curda nonorte da Síria, que se tornou famoso pela defesa da cidade de Kobane contra as forças do Estado Islâmico. Após

a Síria entrar em guerra civil em 2011, o povo de Rojava, incluindo muitos esquerdistas curdos, tomaram a regiãoe embarcaram num projeto radical que eles chamam de ‘autonomia democrática’. Esse projeto visa criar umademocracia sem o Estado através da criação de conselhos e comunas em vários níveis políticos para governar oterritório, assim como trabalhar para abolir a polícia. Rojava também é famosa (com justiça) por colocar umapolítica feminista no centro do projeto político. Implementou sistemas de quota para participação feminina emvárias comunas e conselhos, sendo quase tão mencionadas quanto a participação armada das mulheres nasforças de defesa de Rojava. Mas tudo isso raramente é suficiente para alguns segmentos da esquerda  –  aquestão que não cala é, sem dúvida, e as relações de classe e a economia? Afinal, não é realmente #comunismointegral sem a tomada dos meios de produção… 

Não muito tem sido escrito especificamente sobre a economia de Rojava, fora alguns poucos relatos dedelegações que visitaram a região e entrevistas com representantes. Porém, o que sabemos até agora é que a

transformação econômica de Rojava é tão radical quanto o resto do projeto. 

1. O estado da economia antes de 2011 

 As regiões que compõem Rojava foram deliberadamente deixadas no subdesenvolvimento pelo regime Assad edirecionadas para suprir a Síria com matérias primas, incluindo trigo, algodão e petróleo. A região era expressivacomo fonte desses produtos, sendo uma das regiões mais férteis da Síria e fonte da maior parte de seu petróleo. 

Contudo, embora houvesse vários milhares de poços de petróleo na região, havia poucas fábricas e nenhumarefinaria ou engenho. Cerca de metade da terra era propriedade estatal gerida por pessoas do governo comofeudos privados. Após o início da revolução a maioria dessas pessoas e dos capitalistas que havia fugiram. Os

recursos que eles controlavam e que foram deixados para trás foram expropriados pelos conselhos locais. 

2. A economia social 

 A prioridade para os vár ios níveis do governo de Rojava é implementar o que eles chamam de ‘economia social’ –  um sistema econômico construído com base em uma série de cooperativas em todos os setores econômicos. Oobjetivo inicial é se tornar autossuficiente para satisfazer necessidades básicas como comida e combustível. Nomomento isso é menos um ideal e mais uma necessidade uma vez que Rojava vive efetivamente sob embargo,sendo muito difícil importar para a região até mesmo os suprimentos mais básicos. 

O programa econômico imediato visa criar uma infraestrutura para prover as necessidades vitais. Rações de pãosão fornecidas pelas administrações locais a cada família e combustível é distribuído pelas comunas locais. Atéagora duas refinarias de petróleo foram construídas assim como uma quantidade de engenhos e de plantas deprocessamento de laticínios geridos publicamente. Desde 2011 a nova administração tem tomado as terras queantes eram detidas pelos quadros do governo sírio e distribuído muitas delas a cooperativas rurais auto-organizadas. 

3. Dinheiro e comércio 

O objetivo final é construir a economia inteira de Rojava sobre a base de cooperativas ou outras pequenasunidades econômicas, juntando-as em uma rede na qual o uso do dinheiro seja minimizado ou eliminado. O que éproduzido atualmente é vendido às várias entidades administrativas ou nos mercados locais onde o controle depreços é imposto aos produtos que são considerados ‘essenciais’. 

 A moeda síria ainda é usada, mas embora empréstimos possam ser feitos, juros não podem ser cobrados. Não hábancos no momento, embora haja um plano de criação de bancos para guardar economias, e o capital privadonão será impedido de investir na região uma vez que ele adira aos princípios econômicos mais amplos da região.Muitos dos produtos nos mercados locais são contrabandeados para a região, um comércio que ainda está paraser coletivizado… 

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4. Educação 

Central ao programa econômico é o desenvolvimento do setor educacional, incluindo um sistema acadêmico queoferece uma gama de cursos intensivos. Sob o regime Assad, competências e conhecimentos profissionais eramrestritos aos membros do regime. No sistema acadêmico há uma estratégia consciente de desprofissionalizaçãode modo a quebrar a divisão entre profissionais e não-profissionais e prevenir o aparecimento de uma nova classetecnocrática. 

 As próprias lições na academia enfatizam fortemente a partilha de experiência entre os alunos de modo a quebrara hierarquia professor-aluno, e focam a resolução de problemas em vez da aprendizagem por memorização.Fundamentalmente, a participação é uma das principais competências adquiridas nas academias, abrindo osvários conselhos e comunas a um engajamento social mais amplo, que pode não acontecer de outra forma (aparticipação é uma competência desigualmente distribuída em Rojava da mesma forma como é no Reino Unido). 

5. Sindicatos e associações 

Uma vez que grande parte da economia está nas mãos das cooperativas ou nas mãos privadas de indivíduos, ossindicatos e associações são limitados em número. Há, contudo, um número de sindicatos e associações,incluindo vários de agricultores, engenheiros e agrônomos, assim como uma associação de mulheres que seorganiza pelos direitos das trabalhadoras, remuneradas e não remuneradas, que cuidam de pessoas.  

6. A polícia 

Uma associação que não será formada é a de policiais. O plano em Rojava é, ao fim, abolir a polícia, emboracomo a Asayis (segurança civil) responde aos conselhos locais e não ao Estado (não existente), o termo ‘polícia’não seja usado. A função da Asayis é garantir a segurança da população e levar as disputas aos conselhos locaisonde elas são na maioria das vezes dirimidas através de diálogo. O plano final é garantir que a maioria dapopulação tenha treinamento em autodefesa e resolução de litígios de modo a difundir esses meios ecapacidades a todos. O quadro geral é o de uma economia cooperativa onde as necessidades básicas sãofornecidas pelas administrações locais ainda que estruturas de mercado ainda existam, embora em formaslimitadas. Competências e educação, incluindo aquelas que envolvem autodefesa, estão sendo coletivizadas  – 

com o objetivo de erradicação de hierarquias de conhecimento e de capacidades para violência. O programaeconômico de Rojava, junto com os outros elementos da revolução, torna-a um experimento em ‘democracia semEstado’ o qual vale a pena apoiar e aprender. 

As Comunas e Conselhos de Rojava 

Por Janet Biehl 

No Sábado, 6 de Dezembro, a Delegação Acadêmica para Rojava reuniu-se em Qamislo com dois representantesde Tev-dem, o movimento por uma Sociedade Democrática. Abdulkerim Omar e Çınar Salih primeiramente nosderam uma contextualização do pensamento de Rojava sobre Estado e Democracia. Então, eles explicaram aestrutura da democracia auto-governada – as comunas e o sistema de conselhos – e ouviram nossas perguntas.Falando por meio de tradutores, Salih foi quem mais falou. Nós construímos nossa democracia para que pessoas de várias nacionalidades vivam juntas. Nós somos novos, ecometemos erros, e nós estamos tentando impedir o Daesh [i.e Estado Islâmico]de entrar em Rojava. Outrasdelegações vieram aqui, mas nos agrada receber vocês aqui. Seu projeto está nos dando esperanças. Ainda nãoconquistamos a liberdade, mas aprendemos a lutar. 

O sistema que estamos vivendo existe há cinco mil anos. Diferentes estágios da história têm dado-o diferentesnomes, mas em seu núcleo tem se mantido o mesmo, e seu pilar principal é o Estado. Isto precisa ser bem

compreendido. Nos últimos cem anos as pessoas têm lutado contra o Estado, e elas conseguiram atingirindependência historicamente, mas elas não atingiram a liberdade, porque elas não se emanciparam do Estado.Seu conceito de liberdade se encontra dentro dos limites do Estado. 

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O atual sistema de Estados-Nacionais abriu os portões para a grande crise que estamos vendo. Os Curdostambém tiveram um papel nessa região – como nossos amigos arqueólogos descobriram, eles deixaramuma marca na história e na cultura. Nós entendemos enquanto Curdos que nossos problemas não serãoresolvidos criando num novo Estado-Nacional. Como podemos superar esse caos com o mínimo dederramamento de sangue possível? Como arrumar uma solução apesar da existência das fronteiras deEstado? 

 Ao invés de independência de Estado, nós preferimos autonomia. A solução tem de ser mais profunda. O sistema

de Estados Nacionais criou grandes prejuízos, então, as pessoas pensam que Árabes, Curdos e Turcos não sedão bem. Esta ideia tem sido reforçada pelo sistema de Estados Nacionais. Foi fixado nos cérebros das pessoas,com péssimas consequências. Isto excluiu condições de coexistência e cooperação entre os povos. Nós estamoslutando para nos livrar desses prejuízos e criar condições para a vida em comum. 

Nós acreditamos que o sistema equivale à destruição sistemática das mulheres, e que a autonomia democráticaequivale à liberação das mulheres. Por isto nossa revolução de Rojava é uma revolução das mulheres. Em Rojavanão existe nenhum lugar na vida no qual as mulheres não tomem papel ativo. Uma das nossas maioresconquistas tem sido quebrar esse dogma predominante no Oriente Médio de que as mulheres são fracas edependentes [lacking, usado como adjetivo no original], como é expressado de maneiras diferentes como nas leisda Sharia. Mas este é apenas um dos resultados da nossa revolução. Nós acreditamos que uma revolução quenão abre caminhos para a libertação das mulheres não é uma revolução. Houveram revoluções na Líbia, Egito e

Tunísia – houveram novos governos –, mas o mesmo status para as mulheres persistiu. Nosso sistema se baseia nas Comunas, constituídas por vizinhanças de 300 pessoas. As Comunas têm co-presidentes, e há co-presidentes em todos os níveis, da Comuna à Administração do Canton*. Em cada Comunahá cinco ou seis comitês. As Comunas trabalham em duas funções. Primeira, elas resolvem problemas rápido ecom antecedência – por exemplo, um problema técnico ou um problema social. Alguns trabalhos podem ser feitosem cinco minutos, mas você o banda para o Estado, e fica preso na burocracia. Assim, nós conseguimos resolverproblemas rápido. A segunda função é política. Se nós falamos democracia verdadeira, decisões não podem sertomadas de cima para baixo, elas tem que ser tomadas na base e então subirem os degraus. Há tambémConselhos de Distrito [District Councils] e Conselhos Municipais [City Councils], até o Canton. O princípio é  “poucos problemas, muitas soluções”. 

Então, para que o governo não fique pairando no ar, nós tentamos preencher sua base. Existem perguntas sobrecomo esse sistema realmente se organiza. Então, vocês podem fazer perguntas.  

Q: É um conceito muito interessante, e provavelmente existem tensões e desafios dentro desse sistema.Um é a tensão entre decisões de baixo e necessidades imediatas em nível de todo Canton. Por exemplo,provavelmente vocês têm de decidir de maneira centralizada que vocês precisam construir um moinhopara fazer farinha. Ou vocês precisam decidir construir uma refinaria. Estrategicamente, estas coisasaltamente importantes. Por outro lado, vocês têm este sistema de baixo para cima vindo das Comunas.Não é útil estabelecer infraestruturas semelhantes e muitas Comunas ou muitas Cidades. Então, vocêsprecisam de algum tipo de coordenação entre as Comunas e os Conselhos Municipais. Quem oscoordena? 

Nós também estamos discutindo estes problemas  –  não existe uma fórmula pronta para aplicar. Falando emnúmeros pode ajudar. Qamişlo possui seis distritos diferentes. Cada distrito tem 18 Comunas, e cada Comuna écomposta por 300 pessoas. Agora, cada Comuna possui 2 co-presidentes. E cada Comuna possuem comitêsdiferentes. Os dois co-presidentes eleitos de cada Comuna se juntam para constituir o Conselho Popular daqueleDistrito. 

Então, cada um desses Conselhos Populares do Distrito elegem dois co-presidentes. Então, dos 6 distritos de 

Qamişlo, 12 pessoas constituem o Conselho Popular Municipal. Mas apenas 12 pessoas não podem constituir oconselho – ele deveria ter 200. Então, somado a estas 12 pessoas, as outras são diretamente eleitas. Mesmo quevocê não esteja num comitê, ou tenha sido eleito numa Comuna, você pode colocar seu nome e potencialmente

ser eleito. 

O Canto de Cizîre consiste em 12 cidades. Delegados do Conselho Popular do Canton são alocados de acordocom a população. Qamişlo é a maior cidade, então possui mais delegados que outras –  possui 20. Elesdeterminam isso pelo número da população. Os co-presidentes já fazem parte deste grande Conselho; então 

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Qamişlo possui mais 18. Cada Conselho Popular Municipal elege quem irá para o Conselho Popular do Canton.  

No final você possui um Conselho Popular em nível de todo o Canton. É como um parlamento, mas os laços entreComunas e Conselhos não cortados. 

Q: Cada Comuna vota em delegados que vão para os níveis superiores? Sim. 

Q: Qamişlo possui mais delegados – Quem decide quantos delegados cada cidade possui? 

É baseado na população. 

Q: De acordo com qual censo? 

O que estiver em vigor. Agora, o Conselho Popular do Canton não existe ainda. O censo está sendo feito agora.Mas todas as Comunas nas cidades estão trabalhando nele. Este conselho nem possui um nome ainda  – podeser chamado de parlamento. 

Cada Comuna possui comitês, como, digamos, um comitê de saúde, e há comitês similares em níveis acima. Assim é que asseguram que o comitê de saúde da administração do canton tenha conexão direta com asnecessidades da Comuna. 

Q: Qual é o papel do Tev-Dem? 

Tev-Dem coordena e mobiliza pessoas na base e carrega a conexão para o parlamento. Isto garante a conexãoda democracia direta ao governo. Ele mobiliza e coordena, mas também senta no parlamento, onde representa osinteresses do povo. É uma dupla identidade. 

Q: Os Conselhos das Mulheres existem paralemamente aos Conselhos Populares, nos quais as mulherespossuem 40% de representação. Isto existe em todos os níveis, e em todos existe o poder de veto sobrequestões das mulheres? 

Sim. Os Conselhos das Mulheres existem em todos os níveis, a Comuna, o Distrito, a Cidade e o Canton. OsConselhos das Mulheres não decidem sobre assuntos gerais  – é para isto que existem os Conselhos Populares.Eles discutem questões que são especificamente sobre as mulheres. Se há disputa social, como conflitosinterpessoais. Um comitê tenta resolver um problema entre pessoas. O Conselho das Mulheres também possuium comitê como esse. Então, se elas verem neste comitê um problema que importe às mulheres, como umadisputa sobre violência doméstica, e elas discordem do Conselho Popular, e dizem não, o não do Conselho dasMulheres será aceito. Elas têm poder de veto sobre questões referentes às mulheres. 

Q: É sempre claro o que são questões das mulheres? 

Nós seguimos uma base de caso a caso. Não há fórmula pronta. Sempre que o Conselho das Mulheres vetaalguma coisa, esse veto é aceito. Se um problema não pode ser resolvido nos baixos níveis, esses problemas são

levados à corte. Mas essas questões, como todas as questões em Rojava, são resolvidas localmente se possível. 

*A trad uto ra referiu u ti l izar o term o o rigin al em in glês da u nid ade territor ial para antecip ar po ssívelconfu sões, mas p or analogia c om o sistema po lítico b rasi leiro, o Canton parece equivaler a um EstadoFederat ivo. Tradução: Mariana Miotto 

Fonte:  http:/ /kurdishquest ion.com/index.php/kurdistan/west-kurdistan/rojava-s-communes- and- coun ci ls.html  

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 Uma entrevista com um militante do DAF 

Entrevista realizada por Bruno Lima Rocha, originalmente publicada em inglês no site Estratégia eAnálise. Introdução: Desde que começou o cerco à Kobanê tenho dedicado várias horas por semana a entender e divulgaro máximo possível sobre essa revolução social iniciada numa combinação de Confederalismo Democrático e aGuerra Civil Síria. Enquanto militante, eu sempre estive envolvido com solidariedade internacional. Enquantodescendente árabe, eu sempre tentei procurar uma força de esquerda que combinasse ação direta e democraciainterna. Enquanto acadêmico e professor de Geopolítica estudando a região por mais de 25 anos, Rojava é umsonho que se tornou realidade. Aqui eu começo a primeira de algumas entrevistas com organizações com realexperiência nesse processo e na região. Nesta estou conversando com o Devrimci Anarşist Faaliyet (DAF, ou 

 Ação Revolucionária Anarquista). Eles têm sido bem ativos nessa ação e entendem em detalhes todo o processoCurdo, tanto em Rojava quanto no interior das fronteiras do Estado Turco. 

E&A- É possível entender o PKK (Partiya Karkerên Kurdistani, Partido Popular do Curdistão) como umaforça político-militar remodelada pelo pensamento de seu líder histórico (e sentenciado a prisão perpétua)sendo transferida organicamente para toda a organização? Ainda, temos duas perguntas em sequência:Você pode imaginar a reprodução dessas ideias além de um culto à personalidade ao redor da imagem deAbdullah Ocalan (Apo)? E, seria possível universalizar as propostas do PKK-KCK (Koma Civakên

Kurdistan, Grupo de Comunidades do Curdistão) além dos assuntos nacionais dos Curdos que ainda nãoforam resolvidos? 

DAF- Nós temos de ver o assunto enquanto Movimento de Liberdade Curda. O PKK é uma organização do povoCurdo que vem lutando não apenas por 30 anos, mas centenas de anos. Especialmente após os anos 2000 opartido mudou sua ideologia, estratégia e característica. Assim, os críticos do movimento tem mesmo o mesmovício de tomar o PKK como sendo o mesmo partido das décadas de 80 e 90. Apenas para lembrar, o PKK clamoupela liberdade não apenas para o povo Curdo, mas pela liberdade para todos os povos oprimidos no OrienteMédio. Pense sobre Rojava, PYD (Democratic Union Party, in Kurdish: Partiya Yekîtiya Demokrat), tem lutado nãoapenas pelos Curdos, mas pelos Ezidis, Turcomanos, Xiitas, Alauítas os quais o Daesh (ISIS, ISIL, EI, EstadoIslâmico) quer destruir. 

E&A- É observável um problema estratégico para a revolução de Rojava. Eu explico: a fronteira viva eaquela que é possível ser usada como santuário está com o KRG (Governo Regional Curdo no Iraque),mesmo o epicentro da guerra estando em Kobanê. É observável que se não houver reforços dospeshmerges (forças profissionais do KRG), provavelmente a coalizão anti-ISIS liderada pelos EUA nãobombardeará a posição dos jihadistas. Logo, a aliança entre PKK-PYD e o KDP (Partido Democrático doCurdistão, Partîya Demokrata Kurdistanê, ou PDK) e sua coalizão com Massoud Barzani a frente dogabinete do KRG poderia implicar numa inevitável aproximação com o Ocidente? É possível sobreviverenquanto processo revolucionário dependendo militarmente e fisicamente do KRG e do Ocidente? 

DAF- Temos que ver o papel dos peshmerges. Faz quase um mês e meio que eles não fazem nada por Rojava.Quando o YPG (Unidades de Proteção Popular, em Curdo: Yekîeyên Parastina Gel) e YPJ (Unidades de Proteção

das Mulheres, em curdo: Yekîeyên Parastina Jinê), as organizações de auto-defesa do povo de Rojava tomou ocontrole de 60% de Kobanê, as forças de Barzani decidiram vir ajudar. É óbvio que essa foi uma ação estratégicade Barzani. Barzani declarou que como se não houvesse a Revolução de Rojava dois anos antes e temos que verisso, EUA e outros países ocidentais não apoiam a resistência de Kobanê. Após a Revolução de Rojava nãoaceitaram a existência política do PYD ou dos cantões de Rojava. Assim, a melhor solução para eles é Barzanique não tem problemas com política capitalistas ou estatistas. Ainda, o KDP de Barzani é o partido irmão do AKPde Recep Erdogan (Partido do Desenvolvimento e Justiça, em turco: Adalet ve Kalkinma Partisi). Nestascircunstâncias, o povo em Rojava precisa de qualquer tipo de apoio. Isto não significa que ele pode receber ajudade qualquer poder capitalista e estatista. Mas é como o YPG-YPJ lutando contra o EI, a Frente Al-Nusrat (umaafiliada do grupo Al-Qaeda)…, mas também lutando estrategicamente contra a Turquia, a Síria de Esad (Bashir Al Assad), o Curdistão de Barzani e todos os poderes capitalistas. 

E&A- Ainda, em termos de estratégia, ao que tudo indica, o governo da Turquia tem favorecido as linhasde suprimentos deixando o EI se fortalecer dentro do território sob controle do exército turco.Aparentemente, isto é causado pelo cálculo realista de Ankara e o governo do AKP, considerando sermenos perigosa uma proposta de “califado” –  ou o retorno do Ummah  –  comparado à ideia doseparatismo Curdo, ou mesmo autonomia política de Rojava dentro do fracassado Estado da Síria? Pela 

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posição turca, como avaliar a disputa entre os outros Estados operando através de sunitas jihadista,como Arábia Saudita e Qatar? 

DAF- Na mídia hegemônica, é difícil achar notícias sobre o apoio Turco ao Estado islâmico. Não é apenas apoiopor armamentos, ou sua posição neutra. Como você declarou, existe uma óbvia logística de apoio de paísessunitas ao EI, mas o aquilo que nunca podemos esquecer são as relações escondidas entre o EI e poderescapitalistas ocidentais. A cena é clara de que um grupo terrorista islâmico tem fortalecido a mão dos EUA,especialmente no Oriente Médio. 

E&A- Entrando no assunto da guerra civil Síria, o que pode ser visto hoje é uma guerra crescente entreSunitas e Xiitas, e junto disto, entre o EI (e antes a Frente Al-Nusra) e a tentiva de conquista de Kobanê.Considerando essa realidade, qual seria o papel do Exército Livre da Síria hoje (FSA)? Esta força aindapossui algum poder de proteção –  como o Qatar  – ou caiu para uma condição de aliado secundário do YPG? Nós podemos considerar o Qatar o maior patrocinador do FSA? E, talvez esta seja a razão, ao passoque ambos o FSA e o YPG são contrários ao regime de Assad, Damascus e seus aliados (financiadores)preferiram liberar a área de Aleppo e Raqqa para operações do EI, permitindo que os sunitas jihadistasavançassem sobre Rojava? 

DAF- Como declaramos antes, algumas das ações estratégicas contra o EI com o FSA não representam a realvisão política do PYD. Então, este tipo de cooperação é o resultado das circunstâncias na Síria e em Rojava. Acooperação entre as organizações e grupos não deveria ser tomada como resultados das reais políticas dasorganizações e grupos. A guerra em Rojava, ainda mais continua na Síria, então é difícil para nós determinar osaliados. Esta longe da solidariedade dos revolucionários pela Resistência de Kobanê e pela Revolução de Rojava. 

E&A- Eu entendo, mesmo de um relance à distância, que para os Estados da Turquia, Síria (o que restoudela) e do Irã, um Curdistão a oeste com autonomia política e uma sociedade trabalhando sobre basesigualitária e secular implica num problema insolúvel. Não seria a proposta do PYD não separar-seformalmente da Síria, mas obter o status de uma Federação política autônoma na Síria, assim como umfuturo reajuste com o Iraque e com o governo de Irbil (Capital do KRG)? A Turquia toleraria tal estatuto,mesmo possuindo o segundo maior exército da OTAN e o de maior contingente num Estado de grandepopulação islâmica? Se o Curdistão Turco recebe tal status, o que preveniria uma Confederação com o

Curdistão Sírio? E, dessa forma, qual seria a reação do KRG e da coalizão de direita e partidos Curdospró-Ocidente, como o KDP? 

DAF- Estes cenários estão sendo discutindo ao passo que a guerra na Síria acabou. É difícil estimar como essasguerras irão modelar o Oriente Médio. Rojava declarou a liberdade de seus três cantões há 2 anos e meio atrássem se importar com qual seriam as reações de Esad (Bashir al Assad), Erdogan ou Barzani. Todos os trêsdeclararam que não reconheciam o auto-governo dos cantões de Rojava. Ainda, eles insistem em não falar sobrea existência política de Rojava. Camarada, nós precisamos ver que durante estes dois anos os Estados em tornode Rojava mudaram suas políticas em suas regiões com a decisiva luta do povo livre de Rojava. Eles tentamencontrar meios de controlar a liberdade de Rojava. O cenário principal é de que Rojava será uma federaçãoparte da Síria de Esad. Mas de qual Síria estamos falando, qual será o poder de Esad na Síria ou se haverá umEsad para liderar a Síria? O segundo cenário é de que Rojava fará parte do Curdistão de Barzani. O que seria o

objetivo de Barzani, mas os princípios que sustentam Kobanê contra o EI não só assustam o EI como tambémBarzani. Porque a Revolução de Rojava se autodeclarou uma revolução centrada no anticapitalismo, noantiestatismo, nas mulheres e no meio ambiente. 

E&A- Seria interessante para o KRG que Washington deixasse de considerar o PKK-HPG (Força de DefesaPopular, em curdo: Hezen Parastina Gel) como uma força terrorista? Isto permitiria uma requisição daliberdade de Ocalan, reforçando a liderança dessa força política? 

DAF- Este é um assunto político constante na Turquia. A Resistência de Kobanê e a Revolução de Rojava nãofortaleceu apenas a posição dos Curdos que vivem em Rojava, mas também na Turquia, Irã e Iraque. Então, estaocasião tem alguns resultados políticos, sociais e econômicos. Mas temos de ter em mente o poder do AKP de

Erdogan que não hesita em expressar suas ideias sobre a política internacional. 

E&A- Como vocês projetam a existência de uma soberania e status de autonomia política legais paraRojava considerando alguns temas fundamentais como: moeda corrente (como seria? Existiria um bancocentral?); relações comerciais com outros territórios (por exemplo, na comercialização do petróleo); 

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pertencer a uma federação territorial (como numa Síria reorganizada ou federada à KRG); e quais medidasconcretas seriam instituídas através da Confederalismo Democrático com total unidade territorial eexistência dos três cantões? 

DAF- 2 anos e meio atrás, após a declaração de liberdade dos cantões de Rojava, o povo de Rojava começou aorganizar a economia instituindo as terras coletivas do povo; abriu o Mala Gel (Casa do Povo) e Mala Jins (Casadas Mulheres) para organizar a sociedade numa forma de democracia direta. Estas casas são os reais centrospolíticos onde pessoas de dessas regiões discutem questões sociais e políticas e decidem o que fazer. Elas

organizam o processo jurídico entre si sem nenhuma corte, advogado ou juiz. Justiça social não é providenciadasem qualquer tipo de poder central como um Estado. Sem escolas, mas com compartilhamento de conhecimentogratuito aos moldes das Universidades Zapatistas. 

Nós temos que aceitar que a Revolução de Rojava não é uma revolução anarquista. Mas não há dúvidas sobreseu caráter de revolução social. A existência política de Rojava não faz parte da Síria de Esadou parte doCurdistão Iraquiano. Nós estamos falando de uma federação que se autodeclarou anticapitalista. Agora é inútil sepreocupar com o futuro de Rojava se esta comercializa com capitalistas ou coopera com Estados… Façamosaumentar a solidariedade revolucionária e façamos parte dessa revolução social, para que não tenhamos tantacoisa para nos preocupar. Enquanto DAF, nós também mencionamos nossa posição num texto sobre aResistência de Kobanê; nós não somos cartomantes que, então não adivinhamos a posição política de Rojavadaqui 10 ou 50 anos. Mas somos anarquistas revolucionários, nós temos que tomar parte nos movimentos sociais

e moldar esses movimentos. 

E&A- O que seria um resultado concreto das políticas de massa através dos organizadores do KCK e daspropostas de democratização da política municipal de autonomia do Curdistão Turco? 

DAF- O verdadeiro mal-entendido da oposição social internacional é diferenciar as políticas do Movimento Curdo(HDP  –  Partido Popular Democrático, em turco: Halklarin Demokratik Partisi) ou outras instituições que sãoaceitas pelo Estado Turco; e o PKK (que é mencionado como organização terrorista pelo Estado). As chances derealização de instituições políticas democráticas dependem da luta do povo Curdo que é referida como terrorismo.Então, temos que entender a questão da “luta contra a política assimilacionista do Estado Turco”como um todo.Não há movimento, política ou instituição que se expresse por si como distante da luta do PKK e se 

declarou parte desta luta.(?) Então, o resultado de quaisquer políticas depende do sucesso da luta do povo  Curdo organizado, o PKK. Esta situação pode ser parte de outro tipo de cultura política situado no Oriente Médio,distante das Europeias. 

E&A- O DAF, enquanto uma força anarquista toma parte de alguma coordenação de alianças com o KCKou com o DTK (Congresso da Sociedade Democrática, em turco: Demokratik Toplum Kongresi)? Enquantoanarquistas, como avaliar essas atividades com outras forças sociais? E, neste sentido, como avaliar aparticipação eleitoral da Aliança BDP (Partido da Paz e Democracia, em turco: Baris ve Demokrasi Partisi,em curdo: Partiya Astî û Demokrasiyê), BDP/HDP? 

DAF- Relacionado com a resposta da questão acima, o DAF toma o PKK como o verdadeiro assunto da questão.Especialmente depois da mudança do paradigma dos anos 2000, após Ocalan não declarar mais o PKK como ummovimento marxista-leninista e referenciá-lo a Bookchin, Bakunin e Kropotkin, é impossível para o DAF não seinteressar por essa mudança teórica. Nós tivemos experiência com as mudanças dia após dia. A democraciadireta tomou um importante lugar para essa realização política. Mesmo assim, existem críticas de anarquistaseuropeus já que são parte da ideologia marxista, nós estamos testemunhando a mudança não apenas na partilhada mesma cena política (a luta contra o Estado), mas estamos testemunhando a harmonia da teoria e da práticana Revolução de Rojava. As instituições como KCK, DTK, DBP/HDP poderiam estar numa manobra de estratégiano parlamento, sistema jurídico… Nós podemos cr iticar estas estratégias, mas não tomamos estas instituiçõescomo se fossem organizações as quais objetivam outras políticas. Assim como não votamos pelo HDP do BDP,pois não temos outro tipo de estratégia na democracia parlamentar, isto não nos faz repudiar estas instituiçõescom o PKK. 

E&A- Ao passo que o Confederalismo Democrático é inspirado no anarquismo, nós assumimos que existeuma aproximação e simpatia entre as ideias anarquistas e o atual pensamento da esquerda Curda. Estaavaliação é correta? Poderia especificar em qual sentido? 

DAF- Como foi dito acima, especialmente após a aparição do novo paradigma dos anos 2000 no movimentoCurdo refereciando principalmente Bookchin, Kropotkin e Bakunin (talvez Michael Albert em economia). Então, 

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este é um bom passo para um movimento popular. O povo Curdo não está lutando há apenas 30 anos, ele estálutando há décadas. Para anarquistas revolucionários, é um bom momento para nós, esta organização desta lutade libertação chamada anarquista. É um bom momento para nós socializarmos o anarquismo nas terras ondepessoas vivem se Estado há décadas. Uma revolução social pode ser preparada como se fosse socializada. Nós,enquanto DAF, não somos anarquistas apenas para escrever alguns textos e viver o anarquismo em gruposfechados como os camaradas da Europa fazem. Nós objetivamos a revolução social, nós estamos lutando emtodos os sentidos, então este é um bom momento para socializar o anarquismo.  

E&A- Baseado no que lemos, o DAF opera lado a lado com o fronte dos movimentos pró-Rojava e comoapoiadores da revolução social na região. Isto tem gerado uma aproximação da esquerda Turca como umtodo, pode estar marcando um fortalecimento de posição entre o guarda-chuva político e social pró-Curdos (DTK-KCK e forças políticas legais DBP/HDP), levando a população a ter uma opção à rivalidadeentre o AKP e o Kemalistas-Nacionalistas? 

DAF- O DAF é solidário à Revolução de Rojava e a Resistência de Kobanê desde o princípio. Pois, em 19 de julho, os cantões de Rojava declararam independência contra a Síria de Esad, contra o EI, contra Barzani e contraos poderes econômicos e políticos internacionais que têm interesses na região. A solidariedade do DAF com opovo de Rojava que são Curdos, Ezidis, Xiitas ou Alauítas… pois Rojava é a esperança para o povo oprimido quevive no Oriente Médio e outras partes do mundo. Rojava mostra o que pretendemos ganhar contra os Estados,contra os capitalistas. 

Na verdade, a Revolução de Rojava tem um papel decisivo para a esquerda Turca. Pois, algumas organizações epartidos não solidarizam com a revolução por conta de suas visões nacionalistas. A questão Curda para oposiçãosocial na esquerda Turca é uma importante questão para se observar os efeitos da política estatal no socialismo. Ainda, depois da mudança de paradigma do PKK, esta situação faz com que alguns partidos socialistasdistanciarem-se do movimento Curdo. A posição dos anarquistas neste assunto também é importante. Nós, comorevolucionários anarquistas vindos de uma tradição, onde socialistas nem davam importância para movimentos delibertação popular em países do terceiro mundo, mas camaradas anarquistas constituíram os primeirosmovimentos na Bulgária, Grécia, Macedônia, Armênia, em 1850, nós estamos vindo de uma tradição onde oscamaradas anarquistas empreenderam as primeiras lutas libertárias na América do Sul, na Indonésia, nas 

Filipinas… Isto não é para criar um novo fronte contra Nacionalistas e AKP. O DAF não se considera na agenda

política parlamentar Turca. Este é um novo front que está contra soluções parlamentares para problemas sociais,econômicos e políticos. 

E&A- Pelo que vocês podem observar em Rojava de acordo com a grande proximidade, quais seriam asmaiores virtudes do sistema social em desenvolvimento na região? E, no mesmo sentido, qual seria amaior fraqueza em termos do PYD-TEV DEM (Movimento pela Sociedade Democrática, em Curdo: TevgeraCivaka Demokratîk) estar estabelecendo um novo Estado na região? O que eles poderiam estarreproduzindo que poderia culminar em outro Estado? 

DAF- Camaradas, nós precisamos fortalecer a posição da Revolução de Rojava em todos os sentidos. Aspessoas que estão lutando aqui, pessoas que estão lutando aqui para não construir outro Estado opressor. Esta é

a luta por revolução social sem Estado, sem capitalismo, sem patriarcado… Nós conhecemos os cenários sobreestarmos unidos ao Curdistão de Barzani ou numa confederação com a Síria de Esad. Nosso papel tem de serem participar e manter a revolução social longe destes cenários. Se a solidariedade das pessoas revolucionáriasfor o suficiente para criar esta solução sem Estado, é inútil sentir medo destes cenários. Esta não é apenas nossaposição em Rojava, esta é a posição do Movimento de Libertação Curda.  

E&A- Nós entendemos que o tema da emancipação e empoderamento das mulheres é tão importante, queimplicaria numa entrevista inteira, mas podemos perceber que isto é uma característica e um resultadoacordado pelo processo social da maioria Curda (e não algo sectário, isto está claro). Em quais aspectos apresença das mulheres combatentes no YPJ está transformando as relações sociais no Curdistão comoum todo? Isto tem uma relação direta com o PKK e o pensamento orgânico sobre a participação dasmulheres no HPG? 

DAF- Surgiram os Mala Jins (algo como Conselho das Mulheres) desde o princípio da revolução em Rojava. NosMala Jins, se socializa a consciência no papel das mulheres na sociedade, socializa luta contra a culturapatriarcal, socializa a importância da mulher na sociedade. Este esforço é muito importante, pois o EI e outrosislamitas radicais tentam moldar toda a região de acordo com os valores de suas culturas. A revolução social não 

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é apenas mudança política. Nós temos que ver outras mudanças como nas questões das mulheres para entendera importância da Revolução de Rojava. 

E&A- Para concluir, existe uma preocupação, pois os fatos provam que as sociedades ocidentaisobservam o processo social de Rojava com simpatia e, em termos e comportamento e regras decoexistência, o Curdistão parece ser o mais próximo que existe de uma forma de sociedade democrática,secular e liberal. Na visão do DAF, existe um verdadeiro risco da esquerda Curda acabar se aproximandodo Ocidente de uma maneira inevitável (dependendo do apoio do Ocidente) que ela acabe como uma

sociedade secular protoestatal com igualdade de gênero (com é uma conquista para região) ao invés deuma revolução social com chances de realmente construir outra sociedade? 

DAF- Como escrevemos “Não somos videntes, nós não podemos prever o que acontecerá em Rojava daqui ummês ou daqui um ano. Nós não podemos saber se esta transformação social, que não só nos traz esperançaenquanto revolucionários que lutam numa região geograficamente próxima, mas também alimenta nossa luta nasregiões nas quais lutamos, seguirá num futuro positivo ou negativo. Mas nós somos anarquistas revolucionários.Nós não podemos apenas sentar de fora, ver o que está acontecendo e comentar; nós tomamos parte em lutassociais e tomamos ações para uma revolução anarquista.” 

Vida longa à Revolução de Rojava! Vida longa à Resistência de Kobanê! Vida longa ao Anarquismo

Revolucionário! 

Dilar Diriki, militante do Movimento de Mulheres Curdas 

 Nesta entrevista, a ativista e investigadora Dilar Dirik destaca o projeto político de emancipação

radical que está em curso na região de Rojava e defende que as mulheres continuem a levantar a bandeira da revolução sem pôr em perigo a libertação das mulheres. 

Não surpreende que muitas mulheres árabes, turcas, arménias e assírias se unam às fileiras das organizações armadas e às administrações em Rojava. Foto de Firatnews 

Recentemente surgiram notícias nos meios de comunicação sobre o que está a ocorrer em Kobane, sobre aresistência curda contra o Estado Islâmico (EI). Vemos imagens de mulheres das Unidades de Defesa deMulheres (YPJ) a lutar nesta região. Apesar da surpresa que suscitaram as fotografias, não se deu muita atençãoà análise de como ou de onde surgem estes grupos. Dilar Dirik é ativista no Movimento de Mulheres Curdas einvestigadora sobre Curdistão e o movimento de mulheres. A entrevista foi realizada por Marta Jorba  e Maria 

Rodou (feministas do coletivo Gatamaula, Barcelona). 

Qual a sua opinião sobre a forma como este tema foi tratado? 

Depois da ascensão do Estado Islâmico, o mundo deu-se conta de que há mulheres a lutar no Curdistão. Muitaspessoas que desconheciam o que ocorria nesta região surpreenderam-se ao saberem que as mulheres de uma 

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sociedade que é vista como conservadora e dominada pelos homens lutem e até derrotem esta organizaçãobrutal. Os média capitalistas, e até as suas revistas de moda, apressaram-se a apropriar-se e a instrumentalizar aluta legítima destas mulheres como se fossem uma espécie de fantasia “sexy” ao estilo ocidental. Têm centrado oseu interesse em elementos muito superficiais como “os combatentes do Estado Islâmico temem as mulherescurdas porque se uma mulher os mata não vão para o céu”. Mas ignoram que este é um tema profundamentecomplexo e que há algo mais do que a luta armada neste conflito. O que há é um projeto político de emancipaçãoradical. 

Quem forma as YPJ e qual é seu papel no conflito? 

 As YPJ são as forças de defesa das mulheres, mas há uma luta bem mais ampla que vai para além do campo debatalha. Foto The Rojava Report 

 As YPJ são as forças de defesa das mulheres, mas há uma luta bem mais ampla que vai para além do campo debatalha. Yekîtiya Star é a organização guarda-chuva do movimento de mulheres em Rojava (Curdistão ocidental /norte da Síria). Nos três cantoẽs de Rojava “no meio da guerra” são cumpridas as normas de copresidência [todosos cargos são compostos por uma mulher e um homem], de quotas, e criaram-se unidades de defesa dasmulheres, conselhos de mulheres, academias, tribunais e cooperativas. As leis têm como objetivo eliminar adiscriminação de género. Por exemplo, os homens que exercem violência contra as mulheres não podem serparte da administração. Um dos primeiros atos do governo foi a criminalização dos casamentos forçados, aviolência doméstica, os assassinatos por honra, a poligamia, o casal infantil, e o “preço da noiva”. Não surpreendeque muitas mulheres árabes, turcas, arménias e assírias se unam às fileiras das organizações armadas e às

administrações em Rojava. O objetivo é assegurar-se de que a sociedade interiorize o facto de que a libertaçãodas mulheres é um princípio básico para a libertação e a democracia, em lugar de ser de exclusivaresponsabilidade das mulheres. A revolução tem de mudar a mentalidade patriarcal da sociedade. Caso contrário,a história repetir-se-á e as mulheres, que participaram ativamente na revolução, irão perder todo uma vez seconsiga a "libertação". Foi isto que aconteceu a muitas mulheres noutros lugares do mundo. Por isto, o conceitode revolução deve incluir ativamente 50% da população, se pretende conseguir uma liberdade verdadeira.  

Que relações há entre as Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ) e as Unidades de Defesa do Povo(YPG)? 

 Ambos grupos são forças de defesa legítima de Rojava e estão vinculados entre si. O YPJ (Unidades de Defesadas Mulheres) não se subordina ao YPG (Unidades de Defesa do Povo); é um grupo só de mulheres que seorganiza de forma autónoma e leva a cabo operações militares e treinos de forma independente. Mas nem todasas mulheres devem aderir ao YPJ, já que os grupos não são segregados por géneros. Ambos centram-se naeducação ideológica e política, mas o YPJ põe muita ênfase na educação e no empoderamento das mulheres.  

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Quais são as consequências dos ataques atuais para a construção do projeto político em Rojava? Eespecialmente para as mulheres e a luta pela libertação de género? 

 A revolução em Rojava é ideologicamente próxima ao PKK e o sistema que está a ser estabelecidoali baseia-se no conceito de "Confederalismo Democrático"  

Infelizmente, devido à intensidade da guerra, muitos dos projetos não podem funcionar como deveriam. Arevolução em Rojava é ideologicamente próxima ao PKK e o sistema que está a ser estabelecido ali baseia-se no

conceito de "Confederalismo Democrático", que promove um autogoverno local radical e de base, com igualdadede género e ecológico, que questiona as fronteiras arbitrárias existentes. Mas agora em Kobane toda a cidadeestá mobilizada para a guerra. 

No entanto, no cantão de Cizîre, que é o maior e mais estável dos três cantões, apesar da guerra foram criadasmuitas cooperativas, escolas, conselhos, academias e estruturas autónomas de mulheres. Por exemplo, emsetembro de 2014, em Qamishlo foi criada a Academia de Ciências Sociais da Mesopotâmia.  

Os embargos económicos e políticos da guerra puseram em perigo alguns elementos sociais da revolução. Masisso obriga as pessoas a encontrarem soluções criativas para os seus problemas. Quando sofremos os embargos,as pessoas dedicam-se ainda mais à agricultura e às cooperativas e comunas de trabalho. Mas, evidentemente, a

crise dos refugiados, a guerra, os deslocamentos, o trauma e os embargos fazem que seja muito difícilimplementar as ações de autonomia democrática como se pretendia. 

Apesar da atenção mediática atual a estes últimos acontecimentos, podes explicar-nos qual era a situaçãoanteriormente? 

Este ataque a Kobane é na realidade o último de vários ataques deste ano. O EI atacou Kobane várias vezesdevido à importância estratégica e simbólica que tem. Durante dois anos, os curdos em Rojava têm lutado tantocontra o regime de Assad [Presidente de Síria] quanto contra as forças radicais islamistas, como a al-Nusra ou oEI. Mas a sua luta foi completamente ignorada até agora. 

Os curdos há anos que advertem o mundo sobre o perigo do EI e acusam a Turquia, a Arábia Saudita e o Qatarde apoiar os jihadistas na Síria. O filho de Salih Muslim, o copresidente do Partido da União Democrática (PYD)em Rojava, morreu a lutar contra o EI em 2013. E isto foi um ano antes de o mundo tomar conhecimento daexistência do EI. Muslim tentou falar com diferentes atores internacionais, mas rejeitaram as reuniões e até de lheconceder os vistos. Apesar destes ataques, os curdos também foram excluídos da conferência de paz de GenebraII. Mas os mesmos estados que antes apoiavam os jihadistas são agora parte da coligação contra eles. E, umavez mais, foram os curdos que lutaram sozinhos em Kobane. Durante um mês, o mundo previu que "Kobane cairáa qualquer momento." Mas Kobane continua de pé graças a uma resistência extraordinária e graças à politizaçãodas pessoas. Os últimos ataques aéreos ajudaram, mas não teria sido possível resistir sem as pessoas queficaram ali lutando. 

E qual é o papel da Turquia no conflito? 

Foi dito em várias ocasiões que a Turquia, com o fim de derrubar Bashar al-Assad e enfraquecer a autonomiacurda na Síria, apoiou os jihadistas na Síria de forma económica, militar, logística e política. E se pôde fazer isto éporque é um importante aliado da NATO na região. 

Uma comandante das YPJ de Rojava. Foto The Rojava Report. 

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O mundo surpreendeu-se ao ver como o exército turco na fronteira podia literalmente ver os combatentes doEstado Islâmico mas não fazia nada. O Presidente de Turquia, Recep Tayyip Erdogan, estabeleceu mesmocondições para o apoio a Kobane: deveria criar-se uma zona neutra no norte de Síria “basicamente umaocupação turca em Rojava. Além disso, os curdos deveriam unir-se à oposição sírio-árabe, e o Partido da UniãoDemocrática deveria distanciar-se do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, PKK. 

Evidentemente, estas condições são inaceitáveis para os curdos, que têm lutado durante dois anos por criar edefender a região. Estas condições eram também um abuso imoral da situação de desespero em Kobane. Salih

Muslim respondeu afirmando que os curdos lutavam contra o regime sírio em Rojava e que se tinham oposto a eledesde o ano 2004: "Estávamos a ser torturados enquanto vocês jantavam com Assad". 

 A Turquia sempre quis mostrar-se como vítima, recusando-se a participar na luta contra o EI. Mas, nesta guerra, aTurquia não é uma vítima e sim um agente ativo. Erdogan impulsionou esta zona neutra durante muito tempo. Antes, queria-a "para lutar contra Assad". O que está claro é que a sua prioridade é destruir Rojava e não oEstado Islâmico. 

Mediante o apoio a Kobane, ou pelo menos sem atacar aqueles que querem defendê-la, Erdogan tinha aoportunidade de demonstrar que era sincero a respeito do processo de paz com o PKK. Mas, pelo contrário,autorizou ataques contra os curdos que cruzavam a fronteira para defender Kobane, e bombardeou o PKK, que

está vinculado às forças curdas na Síria, as quais ganharam reputação internacional ao serem o inimigo mais fortedo Estado Islâmico. Com estas ações, Erdogan não só ajudou indiretamente e facilitou mais ataques do EI aKobane, como também utilizou o estado de sítio como a sua oportunidade de ouro para enfraquecer o povo curdo,mostrando de maneira dramática a completa falta de interesse na paz com o PKK. 

Os curdos querem que a Turquia deixe de apoiar o Estado Islâmico, que abandone o plano da zonaneutra e que permita que os ativistas e as ajudas possam cruzar a fronteira e ir para Kobane. 

Representantes do governo da Turquia afirmaram que o PKK e o Estado Islâmico são o mesmo. Com as suasações, Erdogan dá a entender que o projeto democrático de base, com igualdade de género e inclusivo da regiãoé uma ameaça “terrorista” maior que o EI – que decapita, crucifica, e viola sistematicamente a mulheres e asvende como escravas sexuais. 

Os confrontos entre os curdos e os grupos racistas e islamistas, bem como com a polícia na Turquia, mataram jámuitas pessoas. Os curdos não querem que o exército turco intervenha. Querem que a Turquia deixe de apoiar oEstado Islâmico, que abandone o plano da zona neutra e que permita que os ativistas e as ajudas possam cruzara fronteira e ir para Kobane. 

Se o processo de paz terminar, se o Estado Islâmico cometer um massacre em Kobane, se mais pessoasmorrerem em confrontos nas ruas de Turquia, os curdos, com razão, culparão Erdogan e o seu governo  – mastambém a inação da comunidade internacional, que evita o conflito com o Estado turco num momento em queapoia os jihadistas. 

Há numas semanas esteve, junto com algumas pessoas em greve de fome na Alemanha em solidariedadecom a resistência de Kobane. Que tipo de apoio receberam? E que tipo de apoio está a receber atualmenteo Curdistão? 

Durante a nossa greve estivemos em contacto com a imprensa e os partidos políticos com o fim de chamar aatenção sobre Kobane. Tivemos uma reunião bastante bem sucedida no parlamento do estado de Hesse(Hessischer Landtag) em Wiesbaden com membros do Die Linke e do Partido Social-democrata (SPD). Batemosà porta dos diferentes gabinetes de imprensa para instá-los a cobrir a ameaça de genocídio em Kobane de formaa levarem em conta a complexidade da situação, incluindo a marginalização internacional dos curdos em Rojava eo papel do Estado turco em relação ao crescimento do Estado Islâmico. Falamos com eles sobre a situação edemos muita informação. Pusemos especial ênfase na guerra do Estado Islâmico contra as mulheres, que utiliza a

violência sexual como ferramenta sistémica de guerra. Muito cedo, tanto a nossa greve de fome quanto a batalhapor Kobane foram cobertas pelos meios de comunicação com que nos reunimos. 

Os membros do parlamento do estado expressaram a sua solidariedade com o povo em Kobane e prometeraminsistir no parlamento sobre a necessidade urgente de apoiar a resistência curda e condenar as políticas do 

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Estado turco. Também querem uma melhoria das políticas em relação aos refugiados na Europa. Neste sentido,avaliamos a nossa greve de fome como um grande sucesso. Terminámos a nossa greve de fome, mas continuamas ações como ocupações espontâneas, manifestações, palestras, etc. Durante a nossa greve, foram ocupadosedifícios do Parlamento, sedes de partidos, aeroportos, estações de comboio e as embaixadas turcas e dos EUA.Os curdos na Europa encontram-se num estado de emergência. Assim, em resumo, esta greve de fome foi sóuma das muitas ações realizadas. Ao mesmo tempo, no Curdistão começaram os levantamentos populares,retiraram-se as valas nas fronteiras, substituíram-se as bandeiras do estado por bandeiras curdas nos postosfronteiriços, e ocuparam-se as ruas, os parlamentos, as sedes de imprensa, as embaixadas e os aeroportos em

todo o mundo em questão de horas. Esta é só uma pequena mostra das capacidades de mobilização domovimento curdo. 

Hoje em dia há muita solidariedade e simpatia com o povo curdo em general. No entanto, queremos assegurar-nos de que esta repentina preocupação não é só devida à luta contra o Estado Islâmico. É muito fácil, econveniente para certos poderes, apropriar-se da luta em Kobane para as suas próprias agendas. Mas como SalihMuslim e outros disseram: os curdos não serão mercenários de ninguém. Acabou-se a luta pelos demais. Se aspessoas realmente quiserem apoiar a longo prazo estruturas democráticas seculares, devem empreender açõespolíticas radicais, como o reconhecimento dos cantões de Rojava e das suas forças de defesa, bem como aeliminação do PKK da lista de organ izações terroristas. 

Como acha que outros movimentos políticos do mundo poderiam ajudar? 

Os outros movimentos podem fazer muitas coisas. Por exemplo, poderiam utilizar as suas redes e contactos paramobilizar as pessoas por Kobane. Podem instar os seus partidos políticos, meios de comunicação e governos apressionar a Turquia e por sua vez apoiar a administração de Rojava e a sua luta contra o EI. Além disso, épreciso ajuda humanitária urgente em forma de alimentos, roupa, mantas, livros, etc. 

Também podem compartilhar as suas próprias experiências e perspetivas para ajudar a que Rojava tenhasucesso a longo prazo. Poderiam organizar delegações para visitar a região e começar a aproximar-se daspropostas teóricos do sistema alternativo que está a ser estabelecido em Rojava. 

Na sua opinião, o que os feminismos poderiam ou deveriam aprender sobre a luta das mulheres curdas? 

Há muitas coisas que se podem aprender da experiência de Kobane, de Rojava e da luta das mulheres curdas.Para a esquerda, teria de ser um toque de atenção, para se dar conta de que não se mobiliza há tempos. A direitafoi muito rápida a apropriar-se da luta legítima em Kobane e instrumentalizá-la a favor das suas agendas racistas,islamófobas ou imperialistas. Os debates ideológicos internos da esquerda supõem um peso para o povo deKobane, que não teve o luxo de poder debater a respeito da moralidade do comércio de armas porque foiassediado por assassinos radicais decididos a cometer um genocídio.  

Sobretudo para as feministas, esta resistência deve proporcionar novas perspetivas sobre as diferentes maneirascomo as mulheres, especialmente numa região tão feudal-patriarcal, podem emancipar-se. As mulheres emRojava não só levam a cabo uma guerra contra o EI, como também, paralelamente, também levam a cabo uma

revolução social. Os meios de comunicação de massas fazem caricatura da luta destas mulheres como umafantasia sexy  ocidental e capitalista, mas a verdade é que estas mulheres estão a liderar uma luta radical quepode desafiar o status quo  para além do estado de sítio imposto pelo EI. Em muitos sentidos, esta luta dasmulheres de Rojava rompeu os estereótipos orientalistas das mulheres do Médio Oriente como pobres vítimasque estão perdidas. Mas talvez o mais importante é que o mundo aprendeu uma coisa: que há esperança mesmoquando se está completamente rodeado pela escuridão da bandeira do EI. Que outro mundo é possível.  

Esta fortaleza deve reavivar a esperança num Médio Oriente rasgado pelas guerras injustas, pelas tensõesétnicas e pelo sectarismo. A democracia independente e a paz sustentável são possíveis. A liberdade não é umautopia. E tem-se visto que ter de escolher o “mal menor” não é a única opção, ao contrário do que o contexto da Primavera Árabe fazia crer. 

Como achas que será a situação dentro de um ano? E em dez anos? 

É muito difícil fazer uma previsão já que, há um ano, ninguém teria dito que o EI se converteria numapreocupação mundial, que os yazidis viveriam outro genocídio ou que Kobane entraria na história pela sua heroica 

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luta. Mas acho que nas últimas semanas o mundo deu-se conta de várias coisas, como da verdadeira face daTurquia. Assim, não posso prever nada, mas posso dizer o que espero.  

Espero que a administração de Rojava seja reconhecida sem ser cooptada pelas potências hegemónicas. Esperoque as comunidades étnicas e religiosas, após esta guerra, ainda sejam capazes de se olhar nos olhos. Esperoque as mulheres continuem a levar a bandeira da revolução sem pôr em perigo a libertação das mulheres. Maspara que isto ocorra, todos temos de nos esforçar mais para apoiar esta revolução. 

Se uma mulher das que hoje estão a lutar em Kobane pudesse enviar uma mensagem para ser ouvida emtodo mundo, que diria? 

Não quero falar "em nome" das valentes mulheres que lutam em Kobane, porque justamente agora muita genteestá a tentar falar em nome delas. Em vez disso, posso resumir o que muitas delas estão a dizer: 

Que a sua luta vai bem mais além da guerra contra o Estado Islâmico. Que estão a lutar por uma sociedade livrena qual as diferentes comunidades étnicas ou religiosas cooperem, na qual as mulheres sejam livres. Elas estão adefender os direitos das mulheres em todos os lados. 

Durante a nossa greve de fome, recebemos um telefonema de Kobane. Em lugar de sermos nós a dar ânimo a

elas, foram elas que reagiram primeiro e tentaram animar-nos, enviando-nos as suas saudações e solidariedade! 

 Assim, para além das palavras, o povo de Kobane e especialmente as mulheres, com as suas ações e a suavalentia, já nos disseram muitas coisas. Mostraram-nos o verdadeiro significado de um lema popular curdo:"Berxwedan Jiyan e" – “A resistência é a vida”. 

16/11/14 

Dilar Dir ik é ativista no Movimento de Mulheres Curdas e pesquisadora sobre o Curdistão e o movimento de mulheres. 

Tradução para o castelhano para a  Sin Permiso das próprias autoras da entrevista: Marta Jorb a  e Maria Rodo u  

Tradução para português de Luis Leiria para o Esquerda.net. 

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 David Graeber, Antropólogo anarquista, foi a Rojava 

“Em 1937, meu pai se ofereceu como voluntário para lutar nas Brigadas Internacionais em defesa da Repúblicaespanhola. Um possível golpe fascista havia sido detido temporariamente pela sublevação dos trabalhadores,encabeçada pelos anarquistas e socialistas, e em grande parte da Espanha uma autêntica revolução social seproduziu, o que levou a cidades inteiras em autogestão democrática, indústrias sob o controle dos trabalhadores,

e o fortalecimento radical das mulheres. 

Os revolucionários espanhóis esperavam criar uma visão de uma sociedade livre que todo o mundo pudesseseguir. Em troca, as potencias mundiais declararam uma política de "não intervenção" e mantiveram um bloqueiorigoroso da república, inclusive depois que Hitler e Mussolini, signatários ostensivos, começaram a mandar tropase armas para reforçar o lado fascista. O resultado foram anos de guerra civil que terminou com a derrota darevolução e alguns dos massacres mais sangrentas de um século sangrento. 

Eu nunca pensei que veria, em minha própria vida, ocorrer a mesma coisa. Obviamente, nenhum acontecimentohistórico sucede realmente duas vezes. Há mil diferenças entre o que ocorreu na Espanha em 1936 e o que está

acontecendo em Rojava, as três províncias curdas em grande parte do norte da Síria, hoje. Mas algumas dassemelhanças são tão surpreendentes, e tão angustiantes, que sinto que me incumbe, como alguém que cresceuem uma família cuja política eram em muitos aspectos definida pela revolução espanhola, dizer: Não podemosdeixar que termine da mesma maneira outra vez.  

 A região autônoma de Rojava, tal como existe hoje em dia, é um dos poucos pontos brilhantes - na realidade ummuito brilhante - que emergiram da tragédia da revolução síria. Depois de haver expulsado os agentes do regimede Assad em 2011, e apesar da hostilidade de quase todos seus vizinhos, Rojava não só mantém suaindependência, mas é um notável experimento democrático. As assembleias populares foram criadas como osórgãos de tomadas de decisão em última instância, os conselhos são selecionados com um cuidadoso equilíbrioétnico (em cada município, por exemplo, os três altos oficiais tem que incluir um curdo, um árabe e outro cristãosírio ou armênio, e ao menos um dos três tem que ser uma mulher), existem conselhos juvenis e de mulheres e,em um notável eco da organização armada Mujeres Libres da Espanha, um exército feminista, a mítica "YJAEstrela" (a "União de Mulheres Livres", a estrela faz referência à antiga deusa da mesopotâmia Ishtar), que levoua cabo uma grande parte das operações de combate contra as forças do Estado Islâmico. 

Como pode ocorrer algo assim e, todavia ser quase totalmente ignorado pela comunidade internacional, incluindo,em grande parte, pela esquerda internacional? Principalmente, ao parecer, devido a que o partido revolucionáriode Rojava, o PYD, trabalha em aliança com os Trabalhadores Curdos da Turquia (PKK), um movimentoguerrilheiro marxista que desde os anos de 1970 esteve envolvido com uma grande guerra contra o Estado turco. A OTAN, os EUA, e a União Europeia o classificam oficialmente como uma organização "terrorista". Enquanto

isso, os esquerdistas em grande maioria os descrevem como stalinistas. 

Mas na realidade, o próprio PKK já não é nada remotamente parecido com o velho partido leninista vertical queuma vez foi. Sua própria evolução interna, e a conservação intelectual do seu fundador, Abdullah Ocalan, queesteve em uma prisão em uma ilha turca desde 1999, o levou a trocar por completo seus objetivos e táticas. OPKK declarou que já nem sequer trata de criar um estado curdo. Em seu lugar, inspirado em parte pela visão doecólogo e anarquista Murray Bookchin, adotaram a visão de "municipalismo libertário", chamando os curdos acriarem comunidades livres, autônomas, baseadas nos princípios da democracia direta, que logo se uniriamatravés de fronteiras nacionais - as quais se espera que se tornem progressivamente insignificantes. Desta forma,propuseram, a luta curda poderia se converter em um modelo para um movimento mundial até uma autêntica

democracia, economia cooperativa, e a dissolução gradual da nação-estado burocrática. 

Desde 2005, o PKK, inspirado na estratégia dos rebeldes zapatistas em Chiapas, declarou um alto ao fogounilateral com o Estado turco e começou a concentrar seus esforços no desenvolvimento de estruturasdemocráticas e os territórios que já controlavam. Alguns questionam o quão isso é sério na realidade. Claramente 

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permanecem elementos autoritários. Mas o que se sucedeu em Rojava, onde a revolução síria deu aos radicaiscurdos a oportunidade de levar a cabo tais experimentos em um grande território, ao lado, sugere que isto équalquer coisa menos uma fachada. Conselhos, assembleias e milícias populares se formam, a propriedade doregime foi entregue às cooperativas administradas pelos trabalhadores - e tudo isso apesar dos contínuos ataquespor parte das forças de extrema direita do ISIS. Os resultados cumprem com qualquer definição de uma revoluçãosocial. No Oriente Médio, pelo menos, estes esforços se fazem notar: Sobretudo depois que as forças do PKK eRojava interviram para abrir-se exitosamente um caminho através do território do ISIS no Iraque para resgatar os

milhares de refugiados yezidis presos no Monte Sinjar depois que os peshmerga locais fugiram do campo. Estasações foram amplamente celebradas na região, mas notavelmente quase não chamou a atenção da imprensaeuropeia e estadunidense. 

 Agora, o ISIS voltou, com dezenas de tanques de fabricação estadunidense e artilharia pesada tomadas dasforças iraquianas, para se vingarem contra muitas dessas mesmas milícias revolucionárias em Kobané,declarando sua intenção de massacrar e escravizar - sim, literalmente escravizar - toda a população civil.Enquanto isso, o exército turco está na fronteira evitando que reforços ou munições cheguem aos defensores, eos aviões estadunidenses passam por cima zombando, lançando alguns ocasionais, simbólicos e diminutosbombardeios - ao parecer, só para poder dizer que não é certo que não fizeram nada como um grupo que dizestar em guerra com os defensores de um dos grandes experimentos democráticos do mundo. 

Se há um paralelo hoje com os superficiais devotos, falangistas assassinos de Franco, quem seriam senão ISIS?Se há um paralelo com as Mujeres Libres da Espanha, quem poderiam ser senão as mulheres valentes quedefendem as barricadas em Kobané? O mundo - e mais escandalosamente, a esquerda internacional - serárealmente cúmplice de deixar que a história se repita? 

” – David Graeber, artigo para o The Guardian 

Por David Graeber , entrevistado por Pinar Öğünç’s| Tradução  Jornal Mapa 

Os milicianos armados do Estado Islâmico (ISIS), terão que reformular uma de suas canções: “O Estado 

Islâmico permanece, o Estado Islâmico cresce”. Reconhecidos hoje como a maior ameaça

fundamentalista do Oriente Médio, o ISIS acaba de sofrer um inesperado revés, depois de triunfar em

consecutivas batalhas contra forças iraquianas e síria. Nesta segunda-feira (26/01), depois de 134 dias

de resistência, a guerrilha curda, reunida nas Unidades de Proteção do Povo (Yekîneyên Parastina Gel  – 

YPG), surpreendeu o mundo, expulsando as tropas do ISIS da cidade de Kobane, em território curdo

situado no norte da Síria, junto à fronteira com a Turquia. Trata-se da derrota mais importante imposta

sobre o ISIS na Síria desde sua aparição. 

Desde o inicio da ofensiva contra Kobani, em 16 de setembro de 2014, mais de 600 combatentes curdos

e 1000 jihadistas morreram. A vitória foi comemorada nas redes sociais após anúncio feito pelo porta-

voz oficial do YPG, Polat Can, via Twitter. Assim como o ISIS, os combatentes curdos articulam-se na

rede mundial de computadores. Nas paginas do Facebook Kurdish Resistance &  Liberation e 

Solidariedade à Resistência Popular Curda  pode-se acompanhar as fotos e vídeos dos  últimos

confrontos e a festa de comemoração após a vitória. Nem o mais otimista analista político, nem a 

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 poderosa coalizão encabeçada pelos EUA para derrotar o ISIS, esperavam tamanha proeza. Como é

 possível que uma guerrilha formada por homens e mulheres, desamparados militarmente pela falta de

um Estado oficial, consiga derrotar a tropa mais sanguinária dos últimos tempos?. 

David Graeber, professor de Antropologia (London School of Economics), passou 10 dias em Cizire  – 

um dos acampamentos em Rojava, zona ocupada pelo curdos ao norte da Síria. Junto com estudantes,

ativistas e acadêmicos, ele teve a oportunidade de observar a democracia confederalista curda. 

O que motivou a ida de Graeber, foi uma pergunta feita em artigo publicado em Outubro passado no 

“The Guardian”, durante a primeira semana dos ataques do ISIS a Kobane: por que é que o mundo

estava ignorando os Kurdos Sírios revolucionários? 

De acordo com Graeber, a zona de Rojava é fundamentalmente anti-estado, anti-capitalista e

radicalmente democrática. Uma notável experiência revolucionária na região, que separa o poder

coercitivo da administração pública e obriga aulas de feminismo para toda população. Leia a seguir, as

impressões políticas que Graeber concedeu a Pinar Öğünç’s. ( Cauê Seignemartin Am eni  ) 

No artigo para o Guardian   perguntaste por que é que o mundo ignora a “experiencia

democrática” dos curdos sírios. Depois da experiência de 10 dias, tens uma nova questão ou

talvez uma resposta para isso? 

Bem, se alguém tinha dúvidas se isto era uma verdadeira revolução, ou só alguma “sombra”, diria que

esta visita tira todas as dúvidas. Ainda existem pessoas a dizer: “Isto é só uma frente do PKK (Partido

dos Trabalhadores do Curdistão), na verdade são só uma organização autoritária stalinista, que apenas 

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finge ter adotado uma democracia radical”. Não. Isto é mesmo a sério . É uma revolução genuína. Mas

de certa maneira, é exatamente esse o problema. Os grandes poderes têm-se entregado a uma

ideologia que diz que as verdadeiras revoluções já não podem acontecer. Entretanto, muita da

esquerda, mesmo a radical, parece taticamente ter adotado a política que assume o mesmo, apesar de

parecerem superficialmente revolucionários. Assumem um tipo de “anti-imperialismo” puritano que

assume que os únicos jogadores importantes são os governos e capitalistas, e que esse é o único jogo

que vale a pena discutir. O jogo onde se batalha, se criam vilões míticos, se agarra petróleo e outros

recursos, montam-se redes de patrocínios; é o único jogo da cidade. O povo de Rojava diz: “Nós não

queremos jogar esse jogo. Queremos criar um novo”. Muita gente acha isto confuso e perturbador, então

escolhem acreditar que não está acontecendo nada, ou que essas pessoas estão iludidas, são

desonestas ou ingênuas. 

Desde Outubro que vemos uma crescente solidariedade vinda de vários movimentos políticos de todo o

mundo. Houve uma grande e entusiástica cobertura da resistência em Kobane pelos média mainstream

internacionais. A posição política perante Rojava mudou no Ocidente, de certa forma. Existem sinais

significativos mas estariam discutindo suficientemente a autonomia democrática e as experiências nos

cantões de Rojava? Que parte de “algumas pessoas corajosas a lutar contra o grande mal desta era, o 

ISIS” não estará a dominar esta aprovação e este fascínio? Acho que é notável que tanta gente no  

Ocidente olhe para estes quadros de feministas armadas, por exemplo, e nem sequer pense nas ideias

por trás delas. Apenas se apercebem que assim aconteceu, por algum motivo. “Penso que é uma

tradição curda”. De certo modo, claro que se trata de orientalismo, ou simp lesmente racismo. Nunca lhe

ocorreu que as pessoas no Curdistão também possam ler Judith Butler. Na melhor das hipóteses

pensam: “Oh, estão tentando alcançar os padrões ocidentais da democracia e dos direitos das mulheres.

Será que é a sério ou será que é só para os estrangeiros verem?”. Não lhes ocorre que eles podem

estar levando as coisas bem mais longe que os “padrões ocidentais” alguma vez levaram; que acreditam

genuinamente nos princípios que os Estados ocidentais apenas professam. 

Mencionaste a aproximação da esquerda sobre Rojava. Como isso é recebido nas comunidades 

anarquistas internacionais? 

 A reação da comunidade anarquista internacional tem sido decididamente diversa. De certa maneira,

acho difícil de entender. Existe um grupo substancial de anarquistas  – normalmente os elementos mais

sectários  – que insiste que o PKK ainda é um grupo nacionalista autoritário stalinista, que adotou as

teoria do Murray Bookchin, e outros partidários da esquerda libertária, para cortejar a esquerda anti-

autoritária na Europa e América. Parece-me uma das ideias mais parvas e narcisistas que já ouvi. 

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Mesmo que a premissa estivesse correta, e que um grupo marxista-leninista decidisse fingir uma

ideologia para obter apoio estrangeiro, por que raio é que iriam escolher ideias anarquistas

desenvolvidas por Murray Bookchin? Isso seria a jogada mais estúpida de sempre. Obviamente fingiriam

ser islamitas ou liberais, já que são esses que conseguem armas e apoio material. De qualquer maneira,

penso que muita gente na esquerda internacional, incluindo a esquerda anarquista, não quer

basicamente ganhar. Não conseguem imaginar que uma revolução realmente acontecesse, e,

secretamente, nem sequer a querem, uma vez que isso significaria partilhar o seu clube “cult” com

pessoas comuns; já não seriam especiais. Assim, até é útil para separar os verdadeiros revolucionários

dos “posers”. Mas os verdadeiros revolucionários têm-se mantido firmes. 

Qual foi a coisa mais impressionante que testemunhaste em Rojava nos termos práticos desta 

autonomia democrática? 

Existem tantas coisas impressionantes. Acho que nunca ouvi falar de nenhum outro lado do mundo onde

tenha existido uma situação de dualidade de poder, onde as mesmas forças políticas criaram ambos os

lados. Existe a “auto-administração democrática”, onde existem todas as formas e armadilhas de um

Estado – Parlamento, ministros, e por aí –, mas criada para ser cuidadosamente separada dos meios do

poder coercivo. Depois há o TEV-DEM (o Movimento da Sociedade Democrática), raiz das instituições,dirigido via democracia direta. No final – e isto é fulcral – as forças de segurança respondem perante as

estruturas que seguem uma abordagem de baixo para cima, e não de cima para baixo. Um dos

primeiros locais que visitamos foi a academia de polícia (Asayis). Todos tiveram que frequentar cursos

de resolução de conflitos não violenta e de teoria feminista antes de serem autorizados a pegar numa

arma. Os co-diretores explicaram-nos que o seu objectivo final é dar seis semanas de treino policial a

toda a gente no país, para que em última análise se possa eliminar a polícia. 

O que responderias às várias críticas em torno de Rojava? Por exemplo: “Eles nunca fariam isto 

em tempos de paz. É por causa do estado de guerra”… 

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Bem, penso que a maioria dos movimentos, perante as condições horrendas da guerra, não iria no

entanto abolir imediatamente a pena capital, dissolver a polícia secreta e democratizar o exército. As

unidades militares, por exemplo, elegem os seus oficiais. 

E existe outra crítica, bastante popular nos círculos pro-governo aqui na Turquia: “O modelo que

os Curdos  – na linha do PKK e PYD (o Partido Curdo de União Democrática, na Síria)  – estão

tentando promover não é na verdade seguido por todas as pessoas que lá vivem. Essa multi-

estrutura existe apenas à superfície, nos símbolos”… 

Bem, o presidente do cantão de Cizire é árabe, é de fato o chefe da maior tribo local. Suponho que se

possa dizer que ele é só uma figura. No sentido que todo o governo o é. Mas ao olhar para as estruturas

organizadas de baixo para cima, é certo que não são só os curdos que estão participando. Disseram-me

que o único problema sério é com algumas aldeias do “cinto árabe”, pesso as trazidas de outras partes

da Síria pelos Baathistas nos anos 50 e 60, como parte de uma política de marginalização e assimilação

dos curdos. Algumas dessas comunidades afirmaram-se bastante hostis à revolução. Mas os árabes

cujas famílias já estão lá há várias gerações, ou os assírios, quirguizes, arménios, chechenos, mostram-

se entusiasmados. Os assírios com quem falámos disseram que, após uma longa e difícil relação com o

regime, sentiram que finalmente lhes era permitida autonomia cultural e religiosa. Provavelmente, o

maior problema pode ser o da libertação das mulheres. O PYD e o TEV-DEM vêem isso comoabsolutamente central na sua ideia de revolução, mas também enfrentam o problema de lidar com

alianças maiores, com comunidades árabes que sentem que isto viola princípios religiosos básicos. Por

exemplo, enquanto aqueles que falam siríaco têm a sua própria união de mulheres, os árabes não, e as

raparigas árabes interessadas em organizar-se em torno de questões de gênero ou até assistir a

seminários feministas têm de se juntar com os assírios ou mesmo com os curdos. 

Não é necessário estar preso no “quadro anti-imperialista puritano” que mencionaste antes, maso que dirias em relação ao comentário que o Ocidente/imperialismo irá um dia exigir aos curdos

sírios um pagamento pelo seu apoio? O que é que o Ocidente pensa exatamente sobre este

modelo anti-estado e anti-capitalista? É apenas uma experiência que pode ser ignorada durante

um estado de guerra, enquanto os curdos aceitam voluntariamente combater um inimigo criado

pelo Ocidente? 

É absolutamente verdade que os EUA e a Europa irão fazer o que poderem para subverter a revolução.Nem é preciso dizer nada. As pessoas com quem falei estão bem cientes disso. Mas não fazem grande

diferenciação entre a liderança de poderes regionais como na Turquia, Irã ou Arábia Saudita, e poderes

Euro-americanos como por exemplo França ou EUA. Assumem que são todos capitalistas e estadistas e 

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portanto anti-revolucionários, que podem no melhor dos casos ser convencidos a apoiarem-nos mas

que, em última análise, não estão do seu lado. Depois existem questões ainda mais complicadas da

estrutura da chamada comunidade internacional, o sistema global de instituições como a ONU ou FMI,

corporações, ONG’s, organizações humanitárias, em que todas presumem uma organização estadista,

um governo que pode passar leis e detém o monopólio da aplicação coerciva dessas leis. Só existe um

aeroporto em Cizire e está sobre o controlo do governo Sírio. Podem tomá-lo a qualquer altura, dizem. E

há uma razão para não o fazerem: como iria um não-Estado dirigir um aeroporto? Tudo o que se faz

num aeroporto é sujeito a regulamentos internacionais, o que presume um Estado. 

Tens uma resposta para o porquê da obsessão do ISIS com Kobane? 

Bem, eles não podem ser vistos perdendo. Toda a sua estratégia de recrutamento é baseada na ideia

que eles são imparáveis, e que a sua contínua vitória é a prova que representam a vontade de Deus.

Serem derrotados por um monte de feministas seria a humilhação final. Enquanto estiverem lutando em

Kobane, podem dizer que a mídia mente e que estão avançando verdadeiramente. Quem pode provar o

contrário? Se recuassem seria admitir a derrota. 

Tens resposta para o que Tayyip Erdogan e o seu partido estão tentando fazer na Síria e o Médio 

Oriente em geral? 

Posso apenas imaginar. Parece que Erdogan passou de uma política anti-Assad e anti-curda para uma

estratégia quase puramente anti-curda. Repetidamente tem mostrado vontade de se aliar com fascistas

pseudo-religiosos para atacar qualquer experiência de democracia radical inspirada no PKK. Ele vê

claramente, como o próprio Daesh (ISIS), que o que está sendo feito é uma ameaça ideológica, talvez a

única alternativa ideológica viável face ao islamismo de direita que se avizinha, e tudo fará para aeliminar. 

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De um lado existem os curdos iraquianos com uma ideologia bem diferente em termos de

capitalismo e noção de independência. Por outro lado, existe este exemplo alternativo em Rojava. 

E existem os curdos da Turquia que tentam manter um processo de paz com o governo… 

Pessoalmente, como vês o futuro do Curdistão a curto e a longo prazo? 

Quem pode dizer? Neste momento as coisas parecem surpreendentemente boas para as forças

revolucionárias. O KDG até desistiu da enorme vala que estava construindo através da fronteira de

Rojava, após o PKK intervir e salvar Erbil e outras cidades dos avanços ISIS, em Agosto. Um membro

do KNK me disse que isso teve um grande impacto na consciência popular; que um mês criou tanta

consciência como 20 anos. Os jovens estavam particularmente impressionados pelo fato d seus próprios

Peshmerga abandonarem o campo de batalha mas as mulheres do PKK não. Mas é difícil de imaginar

como é que o território de KRG será contudo revolucionado num futuro próximo. Nem o poder

internacional o permitiria. 

Apesar da autonomia democrática não parecer estar em cima da mesa de negociações na

Turquia, o Movimento Político Curdo está trabalhando nisso, especialmente a nível social.

Tentam encontrar soluções em termos legais e económicos para possíveis modelos. Quando

comparamos, digamos, a estrutura de classes e o nível de capitalismo no Curdistão Ocidental

(Rojava) e no Norte (Turquia), o que pensas sobre as diferenças destas duas lutas para uma

sociedade anti-capitalista – ou para um capitalismo minimizado, como o descrevem? 

Penso que a luta curda é explicitamente anti-capitalista em ambos os países. É o seu ponto de partida.

Conseguiram uma espécie de fórmula: não eliminar o capitalismo sem eliminar o Estado, e não podemos

eliminar o Estado sem eliminar o patriarcado. No entanto, o povo de Rojava tem a questão simplificada

em termos de classes porque a verdadeira burguesia, tal como existia numa região maioritariamente

agrícola, desapareceu com o colapso do regime de Baath. Enfrentarão um problema a longo prazo senão trabalharem no sistema educativo, para assegurar que um estrato tecnocrata de desenvolvimento

não tente eventualmente tomar poder, entretanto, é compreensível que se foquem de imediato nas

questões de gênero. Na Turquia não sei tanto, mas tenho a sensação que as coisas são muito mais

complicadas. 

Durante os dias em que as pessoas do mundo não podiam respirar por razões óbvias, a tua

viagem a Rojava inspirou-te sobre o futuro? Qual achas que é o “remédio” para as pessoasrespirarem? 

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Foi extraordinário. Passei a minha vida pensando em como poderíamos fazer coisas como estas num

futuro remoto e a maioria das pessoas pensa que sou louco por imaginar que isto alguma vez vai

acontecer. Estas pessoas estão fazendo agora. Se eles provarem que pode ser feito, que uma

sociedade genuinamente igualitária e democrática é possível, isto irá transformar completamente a

noção de possibilidades humanas. Pessoalmente, sinto-me dez anos mais novo só de ter lá passado

dez dias. 

Com que cena te irás recordar da tua viajem a Cizire? 

Existem tantas imagens impressionantes, tantas ideias. Gostei da disparidade entre o aspecto das

pessoas e as coisas que diziam. Conhece-se alguém, um médico, que parece um militar sírio,

vagamente assustador, de casaco de cabedal e expressão austera. Depois fala-se com ele e ele explica: 

“Bem, sentimos que a melhor abordagem à saúde pública é a prevenção, a maioria das doenças ocorre

devido ao stress. Sentimos que se reduzirmos o stress, os níveis de doenças de coração, diabetes, e

mesmo o cancro irão diminuir. Assim, o nosso plano final é reorganizar as cidades para terem 70% de

espaços verdes…” Existem todos estes planos loucos e brilhantes. Mas depois vai-se ao médico ao lado

e explica-nos que, graças ao embargo turco, não conseguem sequer obter equipamento ou

medicamentos básicos, que todos os pacientes para diálise que não foram levados dali morreram… Esta

disjunção entre as ambições e as incríveis e difíceis circunstâncias. A mulher que era efetivamente anossa guia era uma vice-chanceler chamada Amina. A certa altura, pedimos desculpa por não termos

trazido presentes melhores e ajudado a população de Rojava, que sofrer sob o embargo. E ela disse:

“No final, isso pouco importa. Temos a única coisa que ninguém nos pode dar. Temos a nossa liberdade.

Vocês não. Quem me dera que houvesse uma maneira de poder dá-la” . 

É as vezes criticado por seres demasiado otimista e entusiasta sobre o que está acontecendo em 

Rojava. Achas que és? Ou há alguma coisa que não entendem? 

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Sou otimista de temperamento, procuro situações que carreguem alguma promessa. Não acho que

existam garantias que isto resultará no final, que não será esmagado, mas certamente que não será se

toda a gente decidir que nenhuma revolução é possível e se recusar a dar-lhe apoio ativamente, ou até

dedicar esforços a atacá-la ou aumentar o seu isolamento, como muitos fazem. Se existem alguma coisa

da qual tenho consciência e os outros não, talvez seja o fato da história não estar terminada. Os

capitalistas têm feito um esforço enorme nos últimos 30 ou 40 anos em convencer as pessoas que os

atuais acordos econômicos  –  nem sequer o capitalismo, mas a forma de capitalismo semi-feudal,

financializada, peculiar que temos hoje em dia – são o único sistema econômico possível. Puserem mais

esforços nisto do que em criar um sistema capitalista global viável. Como resultado, o sistema está a

despedaçar-se à nossa volta no preciso momento em que toda a gente perdeu a capacidade de

imaginar outra coisa. Bem, é bastante óbvio que em 50 anos, o capitalismo sob qualquer forma que

conheçamos, e provavelmente sob qualquer outra forma, já não existirá. Terá sido substituído por outracoisa. Essa coisa pode não ser melhor. Pode até ser pior. Por esse mesmo motivo, parece-me que é

nossa responsabilidade, enquanto intelectuais, ou simplesmente seres humanos pensantes, de pelo

menos pensar como será uma coisa melhor. E se existem pessoas que estão verdadeiramente tentando

criar essa coisa melhor, é nossa responsabilidade ajudá-las. 

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 Murray Bookchin e o Eco-Anarquismo 

 As ideias libertárias de Murray Bookchin ganharam recentemente uma nova actualidade aos seremadoptadas na organização dos territórios curdos no norte da Síria e reivindicadas pelo Partido dos

Trabalhadores do Curdistão. São elas que animam e vivificam as milícias que ainda não há muitos diaslibertaram Kobane e centenas de aldeias do avanço do chamado Estado Islâmico. Daí que existatambém um renovado interesse por conhecer quer o libertário norte-americano M. Bookchin (1921-2006), quer as suas ideias assentes no municipalismo libertário. Em boa hora, António Cândido Francotraduziu para o ‘Portal Anarquista’ e para ‘A Batalha’, a parte final de um dos seus mais importanteslivros, “The Ecology of Freedom”. 

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A ECOLOGIA DA LIBERDADE  – “EPÍLOGO” 

Murray Bookchin publicou em 1984 The Ecology of Freedom, um dos seus livros mais densos erevolutivos, que, de forma enciclopédica tanto recorre ao domínio da biologia, da ecologia e daastrofísica como ao da história, da antropologia, do pensamento político e da filosofia. O livro constituiassim a súmula do pensamento de Bookchin e a peça mais significativa do ponto de vista daquilo que sechama ecologia social. A sua visão actualiza e desenvolve, como nenhuma outra, o pensamentolibertário do século XIX, sobretudo o de Kropotkine, com o qual tem fundas afinidades, desde logo aodefender que nos organismos vivos a organização e a cooperação são muito mais essenciais do que ahierarquia e a dominação. O livro de 1984 pode com facilidade, pela originalidade das perspectivas e avastidão dos saberes implicados, ombrear com as melhores obras teóricas do final do século XX e doinício do século XXI. Ainda por traduzir em Portugal, apresentamos n’ A Batalha e no Portal Anarquista oepílogo do livro, que funciona em poucas páginas como um condensado das suas principais ideias e propósitos. [A.C.F.] 

Neste livro tentei abalar   em termos teóricos o mundo, como a seu modo tentaram no seu tempo os

Digger, os Leveller, os Ranter. Intentei sacudi-lo com força e tentei analisar os traços mais significativosda sua evolução. Os meus esforços terão sido bem sucedidos se consegui demonstrar que a maldiçãoda dominação impregnou quase todo o empreendimento humano depois do declínio da primeirasociedade orgânica. Quase nenhuma realização, no campo institucional, técnico, científico, ideológico,artístico, a própria racionalidade, se salvou desta praga. Distintamente da tendência, muito em modahoje, de procurar a origem desta na luta do selvagem  contra a natureza, encontrei-a eu no esforçosinistro da elite emergente em reduzir à escravatura os seres humanos. Sublinhei o papelpotencialmente libertador da arte e da imaginação ao dar expressão ao que é autenticamente humano,utópico e livre na natureza humana. 

 Ao contrário de Marx e Freud, que identificaram “civilização” e “progresso” com auto-controle repressivo,

defendi que a antropologia e a história dão uma imagem da humanidade em tudo adversa à de Hobbes. A mentalidade do sacrifício chegou com o conflito social e com a repressão que acompanham oaparecimento da hierarquia, não com a razão e a técnica. Os baixos-relevos egípcios e mesopotâmicosrevelam um mundo no qual os seres humanos eram constrangidos a negarem não apenas os seusdesejos e os seus impulsos mais humanos como ainda o mais elementar sentido da personalidade. Eva,a serpente e o fruto da árvore do conhecimento não foram a causa da dominação mas as suas vítimas. A sociedade, entendida como obra de laços maternos e logo de interdependência humana, está aí paranos recordar que o paraíso terrestre foi em muitos aspectos uma realidade concreta e que o verdadeiro 

“pecado original” corresponde à ideia gnóstica de “auto-transgressão”. 

Não creio que se possa regressar ao Éden original, onde teve lugar esta violação. A história dá-nos uma

esperança de solução para os problemas da hierarquia e da dominação. O conhecimento, a gnosis, querdizer, conhecer e transcender o nosso primeiro acto de auto-transgressão, é o primeiro passo na terapiaduma patologia pessoal de natureza repressiva. O pensamento sem a acção, a teoria sem a prática,significariam, porém, abdicar de qualquer responsabilidade social. 

Viu-se no nosso tempo a dominação cobrir um tal âmbito colectivo que doravante parece estar fora docontrole humano. Os milhares de bilhões de dólares gastos, depois da segunda guerra mundial, pelosvários Estados em meios de destruição e de controle  –  aquele armamento aterrador que figura emqualquer “orçamento de defesa” – são a expressão recente duma secular ansiedade de dominação quetomou por ora proporções demenciais. No confronto com esta monumental mobilização de matérias-primas, dinheiro, inteligência e trabalho humano, com fins exclusivamente destrutivos, os resultadosobtidos em qualquer outro campo de acção empalidecem e quase se tornam irrelevantes. A arte, aciência, a medicina, a literatura, a música ou a filantropia aparecem como meras migalhas caídas dumamesa sobre a qual, em sucessivos e sangrentos banquetes, se concentra a atenção dum sistema cujafome de dominação não parece conhecer limite. É impossível não desconfiar dos actos de 

“generosidade” dum tal sistema, já que por detrás dos seus desígnios aparentemente meritórios – a 

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tecnologia, a cibernética, os programas espaciais, o desenvolvimento agrícola, as inovações energéticas 

 – se escondem motivações destrutivas e de sujeição da humanidade, através da violência, do medo e daameaça. 

Este livro tentou dar um panorama da dominação a partir das suas origens numa oculta pré-história dahierarquia, que precedeu de muito a estratificação das classes económicas. A hierarquia esconde-senão só na pré-história da humanidade como ainda no mais profundo da nossa psique. Por esse motivotoda a riqueza da palavra liberdade parece ter sido traída no seio dos processos de socialização e nomais íntimo das nossas experiências. Esta traição vem ao de cima na forma como tratamos as criançase as mulheres, nas relações interpessoais, na conduta física, nos pensamentos íntimos, na vidaquotidiana e até no modo inconsciente com que organizamos a percepção da realidade. É uma traiçãoque não se cumpre só nas instituições políticas e económicas mas no quarto, na cozinha, na escola, noslugares de divertimento e nos centros de educação moral como as igrejas ou os círculos de terapiapsíquica. A hierarquia e a dominação chegam até a presidir a movimentos de emancipação, como é ocaso do marxismo nas suas formas mais vulgarizadas e convencionais, nas quais a organizaçãoautónoma das “massas” é vista com desconfiança e frequentemente denunciada como “desvioanárquico”. 

 A hierarquia desforra-se da nossa pretensão de termos superado a “animalidade”, atingindo a “liberdade”e a “individualidade”. Nos instrumentos que usamos para salvar vidas humanas, para criarmos belosobjectos, que tornam mais aprazível o mundo que nos rodeia, há sempre qualquer coisa de desafinadoque faz com que mesmo as nossas acções mais criativas acabem por ser percepcionadas como 

“triunfos”, tornando a “obra-prima” correlata à dominação. A grandeza da tradição dadaísta, a partir dognosticismo ofita até à sua moderna expressão surrealista, é ter possibilitado, com a exaltação do direitoà insubordinação, à imaginação, ao jogo, à fantasia, à inovação, à iconoclastia, ao prazer e à criatividadedo não consciente, a ascensão e a consciência de tudo aquilo que a hierarquia nos ocultou. Fê-lo muitomais implacavelmente e lealmente do que os mais sofisticados jogos teóricos no campo hermenêutico,estruturalista e semiótico, tão em voga nas universidades da sociedade ocidental contemporânea. 

Um mundo assim contaminado pela hierarquia, organizando-se do comando à obediência, exprime oseu espírito autoritário no modo como fomos habituados a ver-nos: como objectos a manobrar, coisas ausar. A nossa concepção de realidade, partindo desta imagem de nós próprios, alargou-se à imagemque temos da natureza “exterior”, assim se revelando que fomos encarando de forma cada vez maismineral e inorgânica quer a nossa natureza quer a “exterior”. Simplificámos de forma tão perigosa anatureza, a sociedade e a personalidade, que comprometemos seriamente a integridade das formascomplexas de vida, a riqueza das formas sociais e o ideal duma personalidade poliédrica. 

Num tempo em que o mecanicismo materialista tem como concorrente um espiritualismo não menosmecânico, sublinhei a necessidade de prestar atenção à diversidade, visando alimentar uma noção detotalidade como princípio unificante duma ecologia da liberdade. Um tal acento é muito diverso daquilo

que se acentua como “unitariedade”. Ao opor -me às tentativas correntes de dissolver a diversidade emdenominadores comuns, materiais ou espirituais, exaltei a riqueza da variedade no desenvolvimentonatural, social e pessoal. Propus uma interpretação, algo hegeliana, em que a história dum fenómeno  – trate-se de subjectividade, de ciência ou de técnica  –  define esse fenómeno. Em cada um destesâmbitos, encontramos sempre vários graus e aspectos de compreensão, de intuição e de engenho, quedevem ser sempre requeridos, caso se queira tomar a realidade nas suas várias graduações e aspectos. Ao invés, o pensamento ocidental procurou compreender a experiência e agir na realidade por meio dumúnico modo de subjectividade, de ciência e de técnica. Tendemos a fundar as nossas noções derealidade sobre bases reciprocamente exclusivas: económica num caso, técnica noutro, cultural noutroainda. Destarte, linhas evolutivas fundamentais foram classificadas, da perspectiva dum limitado nível dedesenvolvimento da evolução natural ou humana, como “basilares” ou “contingentes”, “estruturais” ou“supra-estruturais”. 

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em que os hábitos de partilha e de não acumulação eram as normas prevalecentes. Muitas vezes estesmovimentos destruíram não só os registos legais que legitimavam a autoridade e a propriedade do escolcomo ainda os palácios, as herdades, as mobílias e até os celeiros que pareciam encarnar o poder. 

 A revolução francesa, como notou Hannah Arendt (On Revolution, Viking Press, New York, 1965, pp. 36-52), assinala uma inversão das finalidades na mudança social: da aspiração ética passa-se a umaconsciência da “questão social” expressa em termos de necessidades materiais. Na realidade estaalteração de perspectiva só parece ter chegado mais tarde, porventura já no nosso século. Marx exultoucom este novo “realismo” ou “materialismo economicista”, mas o resultado é que, espartilhados entre a“fetichização das necessidades” e o desejo de significado ético e comunitário, acabámos por nos tornarprodutos esquizofrénicos dum mundo condenado à imobilidade da sensação de impotência pessoal esocial. Inventámos uma mística das “leis históricas” e do “socialismo científico” que serve mais, comoconstrução, para compensar os nossos frustrados impulsos comunitários e a nossa malogradanecessidade de sentido ético do que para explicar o motivo pelo qual comunidade e ética estão tãoassentes no real e tão longe como fins. 

Se não há um único aspecto da realidade, seja económico ou outro, que por generalização possaexplicar a evolução social, se não existem leis sociais que orientem a nossa aproximação mental aos

fenómenos, em que base e com que coordenadas podemos então interpretar os comportamentossociais? Em meu entender o quadro de maior significado em que decorre a aventura humana está nadistinção entre autoritário e libertário. Não quero com isto dizer que estes termos exprimam um sentidoteleológico da história, nem tão pouco que estão isentos de ambiguidade. Não somos por certo nós queafirmaremos ou negaremos que exista na história humana um ponto de chegada, que possacorresponder ao “absoluto” hegeliano, ao “comunismo” marxista… ou então à extinção definitiva. É purafigura de estilo dizer que a “verdadeira história” da humanidade só começará no momento em que a“questão social” ficar resolvida. Por outro lado a crença iluminista no progresso tecnológico é o sistemamenos fiável de que dispomos. Hoje, no mais tecnicizado dos mundos, em que a própria ética foiacoplada ao qualificativo “instrumental”, estamos dispostos a reconhecer que até os nossos projectosmais cativantes, não obstante os atributos que ostentam, “conviviais”, “apropriados” ou outros , possam

ser empregues para criar estratégias “alternativas” à violência. 

Nunca é de mais sublinhar que as palavras “libertário” e “autoritário” não se referem só a formasinstitucionais, técnicas e científicas antagónicas, mas sobretudo a sensibilidades e valores, em suma aepistemologias opostas. A definição que dou do termo “libertário” aparece modelada pela definição quedou de ecossistema: unidade na diversidade, espontaneidade e relações de complementaridade, emque está ausente qualquer forma de hierarquia e dominação. Com o termo “autoritário” refiro-me àhierarquia e à subordinação nas suas várias formas sociais: gerontocracia, patriarcado, relações declasse, elites de vários tipos e por fim o Estado, incluídas as suas várias formas socialmente maisparasitárias: o capitalismo de Estado. Mas se não incluirmos aí também as formas contrárias desensibilidade, ciência, técnica e ética e as contrárias formas de razão aí implícitas, as palavras

“libertário” e “autoritário” reduzem-se a termos meramente institucionais. Devem-se pois explicitar aomáximo aquelas implicações, e de igual modo as do arco de qualquer outra experiência, caso se queiraque o seu recíproco antagonismo tenha um sentido dinâmico e transformador. 

Reconheça-se à razão, na tensão que a disputa entre o autoritário e o libertário, o direito a umaracionalidade libertária. Do ponto de vista filosófico insistimos talvez até de mais que uma racionalidadelibertária deve fundar-se em cânones de verdade e de coerência, mas também de intuição e decontradição, que invalidam por inteiro as pretensões de verdade do pensamento formal e analítico. Dadoque intuição e contradição podem servir fins autoritários, como se vê na filosofia fascista e nomaterialismo dialéctico estalinista, e que ao invés a razão analítica teve momentos que serviu aliberdade de pensamento, não temos, além dos nossos critérios éticos, nenhum guia seguro e exclusivo,que garanta frutos indiscutíveis de emancipação ao nosso pensar. As figuras de Buda e de Cristo tantoforam usadas com propósitos de autoritarismo ou de liberdade. O misticismo e o espiritualismo radicaistanto se mostraram anti-naturais e anti-humanos como ecológicos e milenaristas. Aquilo que é decisivono ajuizar dos critérios da razão, ou para ser mais preciso no modelar duma nova aproximação àsubjectividade, é a forma como é ou não é impulsionado um modelo ético biologicamente variado, 

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baseado na fecundidade da vida e na qualidade da complementaridade, resultado dum mosaico deexperiências sempre mais ricas e acima duma concepção piramidal e hierarquizada da experiência. Nemsequer é preciso renunciar ao Organum de Aristóteles, que durante tantos séculos serviu de base aosprincípios lógicos do pensamento ocidental, ou à teoria dos sistemas, com o seu conceito decausalidade circular. Devemos apenas modelar a razão, linear   ou circular   que seja, sobre uma éticapessoal e socialmente emancipadora. A razão, cuja demolição por Horkheimer e Adorno, suscitou tantopessimismo entre os colegas deles, pode ser devolvida à ética libertária, uma ética aberta à riqueza dasensibilidade humana, enquanto encarnação da faculdade mesma de sentir a todos os níveis daevolução da orgânica social. 

Há uma base sobre a qual é possível edificar esta ética libertária, uma área que dá uma direcção e umsignificado que não dependem nem dos caprichos da opinião e do gosto nem da fria eficáciainstrumental. À parte os lugares-comuns sobre o povo, a raça ou as “inevitáveis leis dialécticas”, pareceexistir na natureza uma espécie de direcção latente, uma evolução da auto-organização, que dá lugar àsubjectividade e cujo termo final parece ser a auto-reflexão característica dos seres humanos.Semelhante visão pode constituir um preconceito antropormófico, prestando-se a um relativismoarbitrário, muito parecido à razão subjectiva, ou instrumentalismo, criticada por Horkheimer. Todavia, atéa pretensão filosófica dum princípio sem pressupostos é um pressuposto da mente. Ainda não se

concluiu que a antiga crença de que há valores intrínsecos na evolução natural é mais discutível do quea imagem russeliana da vida e da consciência humana como puros produtos do acaso. 

Será fantasia avançar a hipótese que o nosso ser seja só por si uma epistemologia e uma ontologia,quer dizer, uma filosofia do organismo capaz de responder às acusações de antropomorfismo? A formanão é menos essencial à natureza do movimento e à finalidade da função. Qualquer coisa que seescolha por natural   implica como função seja a forma seja o movimento. Invocar o acaso puro comodeus ex machina  dum desenvolvimento estupendamente organizado, que se presta a umademonstração sintética matemática, é usar o acidental como túmulo da explicação. Argumentando comperspicácia a favor duma aproximação teleológica, Hans Jonas perguntou-se se uma análiseestritamente psico-química da estrutura do olho e do seu estímulo tinha sentido e se não era correlata ao 

acto de ver. Diz Hans Jonas (The phenomenon of life, Delta Books, Nova Iorque, 1966: p. 90;  sublinhados meus): Sempre se encontrará a intencionalidade do organismo enquanto tal e a sua ânsia de vida: presente já em cada tendência vegetativa estes atributos ganham a primeira forma deconsciência nos reflexos indistintos, na reactiva excitabilidade, dos organismos inferiores, consciênciaque se avoluma nos impulsos, nos esforços e na ânsia da vida animal, atingindo a máxima clareza nasensibilidade, na vontade e no pensar humanos. Reflexos, impulsos, consciência… todos são aspectosessenciais do lado teleológico da “matéria” (…). Em cada caso, a estrutura e o comportamentoteleológicos dos organismos não configuram simplesmente um modo alternativo de os descrever: são, eprova-o a consciência orgânica de cada um deles, a manifestação exterior da natureza íntima dasubstância. O que carreia que não exista organismo sem teleologia, que não exista teleologia sem essanatureza íntima e que só a vida possa conhecer a vida. 

Poder-se-á acrescentar que só se conhece a vida como resultado da vida. Esta não pode nunca, pelasua natureza mesma, ser dissociada da sua capacidade potencial de conhecer. Poder-se-iam juntarmuitas outras sequências às considerações de Jonas sobre teleologia. Pode-se conceber por exemplo ateleologia como actualização duma potencialidade, mais precisamente como o resultado final datendência imanente para a auto-realização, uma tensão que deixa espaço à casualidade e à incerteza.Neste sentido, a teleologia expressa a auto-organização dum fenómeno para ser aquilo que é, semcerteza à partida que assim será. O nosso conceito de teleologia não necessita de nascer em linha rectade nenhuma “férrea necessidade”, de nenhum auto-desenvolvimento linear e preciso, que“inevitavelmente” assegure a realização final dum fenómeno a partir do seu ponto de partida. Nãoobstante um fenómeno não poder auto-constituir-se por acaso, a casualidade pode impedir a auto-realização. O seu “telos” apresenta-se assim como consequência duma tensão vitoriosa e não comouma necessidade inevitável. 

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O mais cativante, porém, que está hoje acontecendo é o facto de ser a própria natureza a escrever a filosofia e a ética natural , não os lógicos, os positivistas, os sociobiologistas, os místicos ou os herdeiros  do cientismo de Galileu. É cada vez mais óbvio que não estamos sozinhos no universo, nem mesmo novazio do espaço. Graças a uma revolução muito recente na astrofísica, talvez só equiparável àsdescobertas de Copérnico e Kepler, o entendimento do cosmos exige um volta-face especulativo da

mente e uma aproximação mais qualitativa aos fenómenos naturais. Torna-se dia a dia mais plausívelque o universo inteiro seja o berço da vida e não apenas o nosso planeta ou planetas de condiçõesidênticas. O “big-bang”, a grande explosão, cujos ecos distantes, atravessando mais de quinze milmilhões de anos, ainda hoje são perceptíveis pelos instrumentos dos astrofísicos, pode ser a prova, maisque incidente casual, de uma forma de “respiração” cósmica, cujas expansões e contracções seestendem por um tempo infinito. Se assim é, e situamo-nos no plano das meras conjecturas, estamosdiante de  processoscósmicos, mais do que ante um episódio singular, na formação do universo. Seestes processos exprimem uma forma sem fim de história universal, nós, que estamos irrevogavelmentefechados na era cósmica que nos é própria, não estaremos nunca em condições sérias de interpretar arealidade e o significado deles. Não é porém despropositado perguntar se é dum vasto e contínuodesenvolvimento do universo que se trata ou se dum género de respiração rítmica universal. 

Tudo isto se passa no campo das conjecturas, dizíamos, conquanto a formação de todos os elementosdo hidrogénio e do hélio, a sua combinação em pequenas moléculas e depois a sua auto-formação emgrandes, e por fim a organização destas nos componentes da vida e da mente, seguem uma sequênciaque desafia a imagem russeliana duma humanidade como faúlha acidental num vácuo privado desentido. Certos passos desta sequência põem fortemente em dúvida tais concepções em que a palavra 

“acaso” se tor na um cauteloso substituto duma substancial inevitabilidade. Um universo disseminado porum pó composto de hidrogénio, carbono, azoto e oxigénio pareceria inevitavelmente destinado àformação de moléculas orgânicas. Os radio-astrónomos encontraram no espaço inter-estelar cianogénio,óxido de carbono, ácido cianídrico, formaldeído, ácido fórmico, álcool metílico, acetal e formato demetilo. A imagem clássica do espaço como vácuo está, em suma, ultrapassada e dá lugar à imagem

dum espaço como lugar de incessante actividade química e genética, a favor duma surpreendentesequência de compostos orgânicos cada vez mais complexos. 

Daqui até à auto-organização de moléculas que constituam formas rudimentares de vida o passo écurto. A análise dos meteoritos com pequenas inclusões carbonáceas evidenciou a existência de 

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hidrocarbonetos aromáticos de cadeia longa, como ácidos gordos, aminoácidos e porfirinas, isto é,compostos de que é feita a clorofila. Num conjunto de experiências de laboratório, iniciadas pelaconhecida “spark.gap” de Miller Urey, produziram-se aminoácidos simples fazendo passar descargaseléctricas através dum recipiente que continha gás presumivelmente idêntico, enquanto combinação, àatmosfera terrestre primitiva. Modificando o gás a partir de teorias sobre a atmosfera originária, outrosinvestigadores conseguiram obter aminoácidos complexos, precursores do ADN. 

Sempre de modo hipotético, mas com um impressionante número de provas, é agora possível imaginarcomo os microrganismos anaeróbios puderam desenvolver membranas simples e como, num crescendode complexidade, emergiram formas distintas de vida capazes de processos metabólicos altamentedesenvolvidos. Outras hipóteses, nas conjecturas sobre a formação das estruturas genéticas, revelamnum modo ainda mais impressionante a gradativa continuidade entre inorgânico e orgânico. Taisconjecturas conduzem-nos à característica central da vida mesma: a capacidade que tem um complexomosaico de macro moléculas orgânicas de se reproduzir e, o que é mais, de o fazer com mutaçõessuficientemente significativas para permitir a evolução. Já em 1944, Erwin Schrodinger tinha fornecidouma definição da reprodução e da evolução orgânica. No livro What is life? Mind and matter  (Cambridge 

University Press, Nova Ior que, 1944: 5) este ilustre físico observava que “a parte essencial da célula viva 

 –  o cromossoma  –  podia ser definido como um cristal aperiódico”. Este na verdade não se limita a

crescer por adição, como um periódico, mas modifica-se de modo significativo, dando lugar a formasevolutivas novas, mutações que iniciam e desenvolvem dados hereditários. 

Graham Cairns-Smith avançou uma outra hipótese, uma das muitas que hoje são avançadas, que podeajudar a esclarecer a natureza dos primitivos processos reprodutivos. O ADN é demasiado instávelquimicamente, sublinha Cairns-Smith, para poder ter sobrevivido às radiações e às altas temperaturas aque estava exposta na origem a superfície terrestre. Com uma analogia, Cairns-Smith equipara o ADN aum “nastro magnético: é muito eficiente se provido dum ambiente protector indicado, de matérias-primasadequadas e dum complexo sistema de registo”. Estes atavios, sustém ele, podem-se até encontrar nomundo inorgânico (Genes Made of Clay , “The new scientist”, 24 de Outubro  de 1974, p. 276): Em conjunto com numerosas outras considerações, isto leva a pensar num processo de cristalização como

mecanismo de reprodução, um qualquer defeito nos cristais torna-se o modelo de formação dos novosmodelos. Certas argilas de mica parecem-me oferecer cruciais e promissoras possibilidades. 

 A hipótese de Cairns-Smith sugere no mínimo que a vida, por vias próprias e seguindo a sua própriaevolução genética, não se retraiu com os fenómenos do mundo inorgânico. Não quero com isto dizerque a biologia possa ser reduzida à física, tanto como a sociedade não pode ser reduzida à biologia. Aquilo que Cairns-Smith sugere é que, se certos cristais de argila podem ser os precursores dassucessivas e das mais avançadas formas de material hereditário orgânico, a natureza pode ser unificadapor algumas tendências comuns. Tais tendências partilhariam uma idêntica origem na realidade douniverso, ainda que funcionando de forma diferente e em diversos níveis de auto-organização. 

Reside aqui, do meu ponto de vista, o aspecto essencial: a substância e a sua propriedade sãoinseparáveis da vida. A concepção bergsoniana da biosfera como factor da redução da entropia, numuniverso que se presume avançar para a perda de energia e para a desordem crescente, parece atribuirà vida uma razão cósmica para existir. Caso as formas de vida tenham esta função, isso não sugere detodo que a vida tenha sido projectada do exterior por um demiurgo sobrenatural. Sugere antes que a 

“matéria”, ou substância, tem propriedades auto-organizativas, não menos válidas que a massa e omovimento que a física newtoniana lhe atribui. 

 Ao modo dos atributos tradicionais da “matéria”, não faltam dados para tornar plausíveis estas novaspropriedades. No mínimo a ciência deve ser  aquilo que na realidade a natureza é; e a vida na natureza,para usar a terminologia bergsoniana, é  uma força que age em sentido contrário à segunda lei datermodinâmica, isto é, como factor de redução entrópica. A auto-organização da substância em formascada vez mais complexas – e do mesmo modo da forma em correlação com a função e da função com aauto-organização –  implica uma incessante actividade para chegar à estabilidade. Pode-se pois suporque a estabilidade, assim como a complexidade, seja um “objectivo” da substância, que a complexidade,e não apenas a inércia, favoreça a estabilidade e que, enfim, a complexidade seja a característica 

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fundamental da evolução orgânica e duma interpretação ecológica das inter-relações bióticas. Todosestas noções são modos de compreender a natureza, não divagações místicas. São elementosprobatórios e são-no muito mais do que os preconceitos teóricos que ainda hoje se opõem à ideia deque o universo tenha um significado, um significado moral , atrever-me-ei a dizer. 

Parece claro que não nos podemos mais contentar com uma matéria “morta” e passiva quefortuitamente se junta em substância viva. O universo dá testemunho duma substância que está emconstante tensão e se desenvolve, e não apenas se movimenta, uma substância cujo atributo dinâmico ecriativo é a sua incessante capacidade auto-organizativa em formas sempre mais complexas. Afecundidade natural deriva antes de mais do crescimento, não da deslocação no espaço. Não podemosretirar às formas a sua situação central neste processo de crescimento e de desenvolvimento, nempodemos inferiorizar a função da forma que lhe é correlata. Aquele universo ordenado que torna aciência um projecto possível e que dá sentido ao uso duma concisa linguagem lógico-matemática supõeesta correlação de forma e função. Nesta perspectiva, a matemática serve não apenas como “língua” daciência mas também como seulogos. Este logos é sobretudo um projecto possível, já que toma em mãosum motivo que é inerente à natureza, “objecto” da indagação científica. 

Uma vez superado o degrau do comportamento meramente instrumental nos embates da “linguagem”

das ciências, podemos encontrar outros atributos para aquela substância que chamamos vida.Concebida como uma substância que infinitamente se conserva e se desenvolve, metabolismoincessante, a vida mostra também uma outra característica: a simbiose. Dados recentes confirmam ahipótese do naturalismo cooperante de Pedro Kropotkine não é só aplicável às relações dentro dumamesma espécie e entre espécies, mas ainda dentro das formas celulares complexas e entre elas. Hámais duma década observava já William Trager (Symbiosis, Van Nostrand Reinhold Co., Nova Iorque,1970: VII): O conflito existente na natureza entre organismos diversos foi largamente divulgado e   popularizado pelas expressões “luta pela vida” e “sobrevivência do mais forte”. Poucos se dão conta, porém, que a cooperação entre organismos diferentes – a simbiose – é igualmente importante e que “omais forte” pode ser aquele que mais ajuda o outro a sobreviver. 

Consciente ou não, esta definição do “mais forte” não é só uma mera conjectura científica dum ilustrebiólogo; é também um juízo ético idêntico ao que Kropotkine extraía do seu trabalho de naturalista e doseu ideal de anarquista. Trager sublinha que a integração “quase perfeita” dos “microrganismossimbióticos na economia do hospedeiro (…) levou à hipótese de que certos organismos intracelularespudessem ter sido na origem microrganismos independentes.” Na verdade os cloroplastas, quedesempenham a fotossíntese nas plantas de células eucarióticas, são estruturas definidas que sereplicam por divisão, têm um ADN característico, semelhante ao das bactérias cocoformes, sintetizam assuas próprias proteínas e estão envolvidas por uma dupla membrana. 

O mesmo se pode dizer das mitocôndrias, “centrais eléctricas” das células eucarióticas. As primeirasinvestigações neste campo remontam à década de 60 do século XX e foram desenvolvidas com muito

entusiasmo por Lynn Margulis (Symbiosis in cell evolution, W. H. Freeman and Co., San Francisco,1981) em numerosos artigos e livros sobre a evolução celular. Como se percebe a célula eucariótica é aunidade morfológica elementar de todas as formas complexas de vida vegetal e animal. Também osfungos apresentam esta estrutura celular provida de núcleo. As células eucarióticas são aeróbias eincluem várias subclasses claramente definidas. Ao invés, as células procarióticas não têm núcleo, sãoanaeróbias, menos especializadas e, segundo Margulis, são os antecedentes evolutivos daseucarióticas. As procarióticas são a única forma de vida que podia sobreviver e prosperar na atmosferaterrestre primitiva, onde apenas existia uma quantidade mínima de oxigénio. 

Margulis conjecturou e largamente demonstrou que as células eucarióticas consistem numa adaptaçãosimbiótica funcional de procarióticas tornados interdependentes umas com as outras. Os flageladoseucarióticos tornaram-se espiras anaeróbias; as mitocôndrias fizeram-se bactérias capazes derespiração e de fermentação e os cloroplastídeos deram lugar às algas verde azuis recentementeclassificadas como cianobactérias. Esta teoria, amplamente aceite hoje entre os biólogos, retém que osantepassados fagócitos das eucarióticas tinham absorvido, sem os digerir, espiras, protomitocôndrias(que Margulis sugere possam ter invadido os seus hospedeiros) e, no caso das células da fotossíntese, 

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cianobactérias e clorobactérias de forma arredondada. As diversas formas aeróbias de vida teriam assimtido origem num processo simbiótico que integrou uma variedade de microrganismos naquele que podeser definido como um organismo colónia: a célula eucariótica. O mutualismo cooperante, não predatório,aparece assim como o princípio guia para a evolução das formas da vida aeróbia altamente complexaque hoje conhecemos. 

 A perspectiva de que a vida e todos os seus atributos estão latentes na substância enquanto tal e de quea evolução biológica esteja profundamente radicada na simbiose e no mutualismo indica como éimportante redireccionar a nossa noção de “matéria” como substância activa. Observava Manfred Eigen(Molecular self organization and the early stages of evolution , in Quartely review of biophysis, vol. IV, n.º2/3, p. 202) que a auto-organização molecular sugere que a evolução “se apresenta como eventoinevitável dada a presença duma certa matéria com específicas propriedades auto-catalíticas e dumfluxo limitado de energia livre, isto é, de energia solar, necessária para compensar a produção fixa deentropia.” Com efeito esta actividade auto-organizativa vai além da emergência e da evolução da vida ediz respeito àqueles factores aparentemente inorgânicos que produziram e mantêm “um ambientebioticamente favorável ao desenvolvimento de formas de vida cada vez mais complexas”. Comosublinha Margulis, sintetizando a hipótese Gaia, elaborada por ela e por James E. Lovelock, não é maissustentável que a vida haja sido constrangida a adaptar-se a um ambiente independente, geológica e

meteorologicamente determinado. Este dualismo entre mundo vivente e não vivente  –  baseado emmutações casuais e pontuais das formas de vida, que por sua vez determinam quais as espécies que sesalvam e as condenadas – aparece substituído pela noção mais estimulante que a vida, como diz 

Margulis, “produz grande parte do seu ambiente”. E ainda: “certas propriedades da atmosfera, da terra eda hidrosfera são controladas para e pela biosfera.” 

Comparando planetas sem vida como Marte ou Vénus com a Terra, Margulis nota que a altaconcentração de oxigénio na nossa atmosfera é anómala quando confrontada com o anidrido carbónicodos outros planetas. Demais “a concentração de oxigénio na atmosfera terrestre permanece constante,não obstante a presença de azoto, metano, hidrogénio e outros reagentes potenciais”. Na realidade avida tem um papel activo na manutenção das moléculas de oxigénio livre na atmosfera. O mesmo se

pode dizer para a alcalinidade e do nível moderado de temperatura da superfície terrestre. Diz Margulis(op. cit., pp.348-49):  As anomalias da atmosfera terrestre são outra coisa que casualidade. As temperaturas das regiões tropicais e das temperadas divergem dos valores que teríamos porinterpolação entre os valores correspondentes de Marte e Vénus e os desvios que têm lugar na maior parte dos organismos. O oxigénio mantém-se em cerca de vinte por cento, a temperatura média dosestratos inferiores da atmosfera é de cerca de 22 graus centígrados e o pH apenas acima de 8. Estasanomalias a escala planetária conservaram-se por longo tempo. A estranha composição química daatmosfera terrestre manteve-se por milhões de anos, apesar do tempo de permanência dos gasesreagentes se medirem apenas em meses ou anos. Margulis conclui assim: É altamente improvável que oacaso possa explicar o facto da temperatura, o pH e a concentração de elementos nutritivos hajam sido por grande espaço de tempo os adequados à vida. Ainda mais improvável, se pensarmos que os

 principais perturbadores dos gases atmosféricos são os organismos, antes de mais os micróbios. Aoinvés, parece mais provável o investimento de energia, por parte dos viventes, numa actividade deconservação destas condições. 

Em suma, até a Síntese Moderna, para usar a terminologia empregue por Julian Huxley para definir omodelo neo-darwinista de evolução orgânica introduzido nos anos 40, foi posta em discussão pela suaperspectiva limitada e talvez demasiado mecânica. A imagem dum ritmo evolutivo lento, saído dainteracção de pequenas variações seleccionadas pela sua adequação ao ambiente, não se afigurasustentável, como parecia ser, a partir das descobertas fósseis disponíveis. A evolução aparece hojemais esporádica, muitas vezes intervalada por longos períodos de estagnação. Espécies altamenteespecializadas tendem a modificar-se ou a desaparecer por causa dos reduzidos nichos ecológicos emque podem sobreviver, enquanto espécies menos especializadas se transformam mais lentamente edesaparecem com menos frequência, graças aos ambientes mais variados em que conseguemsobreviver. Esta hipótese, dita “hipótese de efeito”, adiantada por Elisabeth Vrba (citada por RobertLewin, “Evolutionary theory under fire”, Science, vol. 210, 1980, p. 885), sugere que a evolução sejamais uma tendência imanente e não tanto o produto de forças selectivas externas. As mutações 

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acasalam mais um mosaico voluntário do que pequenas e casuais modificações na estrutura e nasfunções das formas de vida. Como alguém observou, enquanto a selecção das espécies atribui a forçaevolutiva às condições do ambiente, a “hipótese de efeito” endereça essa forças a parâmetros internosque determinam os níveis de especialização e de extinção. 

 A ideia de pequenas e graduais mutações casuais, uma teoria que concorda com a concepção vitorianade transformações evolutivas estritamente fortuitas, pode ser posta em causa apenas por razões debase genética. Não só um gene mas um cromossoma, em mutáveis combinações entre si, podem sermodificados quimicamente e mecanicamente. As transformações genéticas podem ir de “simples”mutações pontuais a novas sistematizações de cromossomas muitos mais consistentes. Demais pareceevidente, sobretudo no seguimento de resultados experimentais, serem possíveis trocas de mutaçõesmorfológicas geneticamente determinadas. Pequenas modificações genéticas podem dar lugar atransformações morfológicas, relevantes ou irrelevantes, e o mesmo vale para as grandes mutaçõesgenéticas. 

 A observação de Trager de que a espécie “mais adequada” pode ainda ser “aquela que mais ajuda umaoutra viver” é uma fórmula excelente para refazer o quadro da evolução natural, vulgarmente pintadocomo drama insensato de sangrenta competição visando a sobrevivência. Existe uma rica literatura, que,

remontando ao fim do século XIX, sublinha o papel desempenhado pela cooperação intra e entreespecífica na capacidade de sobrevivência das formas de vida no planeta. O famoso  Apoio mútuo deKropotkine sintetizou o conhecimento então disponível e juntou a palavra mutualismo  ao vocabuláriobiológico. Os primeiros capítulos desse livro resumem trabalhos contemporâneos de Kropotkine, as suaspesquisas na Ásia oriental e ainda uma montanha de dados novos sobre insectos, crustáceos, pássaros,as associações para caça dos “mamíferos carnívoros”, as sociedades de roedores, e outras sequênciasidênticas. O material é em grande parte intra-específico, mesmo que os biólogos mutualistas de há umséculo não tivessem ainda evidenciado os sistemas de apoio específico que nós sabemos hoje existiremnuma quantidade muito maior do que Kropotkine podia imaginar. Buchner escreveu em 1953 um volumeinteiramente dedicado à endo-simbiose dos animais com microrganismos vegetais; Henry, por sua fez,no meado da década de 60 actualizou o estudo desta questão nos dois volumes de Symbiosis. As

provas que este último apresenta sobre esse modo particular de mutualismo que é a simbiose inter-específica são, dizendo pouco, massivas. Ainda mais do que  Apoio mútuo de Kropotkine, o trabalho deHenry documenta as relações mutualistas a partir da relação inter-específica entre rhizobium e legumes,passando pelas associações vegetais, pelo comportamento simbiótico entre animais, para chegar aogrande mecanismo homeostático de escala planetária ao nível das relações bioquímicas. 

 A adaptação raramente tem um significado biológico como pura sobrevivência e adequação ao meio dasespécies. Se ficar por este nível de superfície, torna-se apenas uma empresa de adaptação individualque não consegue explicar a necessidade dos sistemas vitais de apoio que todas as espécies têm, sejapor sistema autotrófico ou heterotrófico. A teoria evolutiva tradicional tende a abstrair uma espécie doseu ecossistema, isolando-a e considerando a sua sobrevivência de modo muito abstracto. Por exemplo,

a interacção de mútuo apoio entre os organismos de fotossíntese e os herbívoros, longe de ser a formamais simples de acção predatória ou de heterotrofia, é ao invés indispensável até para a fertilidade dosolo, graças aos dejectos animais, à disseminação das sementes, à reciclagem dos cadáveres numecossistema que se enriquece a cada momento. Mesmo os grandes carnívoros, predadores dosherbívoros, têm uma função vital, de controle demográfico selectivo, eliminando os animais doentes ouvelhos, para os quais a vida estaria destinada a ser sobretudo sofrimento. 

Paradoxalmente se desvalorizamos o significado do verdadeiro sofrimento e da crueldade reduzindo-o ador e a acção predatória, do mesmo modo desvalorizamos o significado da hierarquia e da dominaçãoroubando-lhes o sentido social e reduzindo-as a relações transitórias entre indivíduos mais ou menosviolentos no seio duma específica comunidade gregária animal. O medo, a dor e a morte que um matilhade lobos dá a uma velha rena doente dão testemunho não da crueldade da natureza mas antes dummodo de morrer adequado à renovação orgânica e à estabilidade ecológica. O sofrimento e a crueldadepertencem ao mundo da angústia pessoal, da dor inutilmente infligida, da degradação moral de quematormenta a vítima. Estas noções não são aplicáveis à eliminação dum organismo que já não podefuncionar a um nível que torna a vida tolerável. É perverso associar qualquer dor a sofrimento, qualquer  

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acção predatória com crueldade. Sofrer a angústia da fome, os traumas psicológicos, a insegurança, oabandono, a solidão, a morte na guerra, as doenças incuráveis, nada disto pode ser comparado com abreve dor duma morte quase insciente dum acto predatório. As aflições da natureza são raramente tãocruéis como os sofrimentos sistemáticos e organizados infligidos pela sociedade humana aos seresvivos, animais ou homens, de perfeita saúde, sofrimento que só a mente humana pode conceber. 

Nem a dor, nem a crueldade, nem a agressão, nem a competição explicam de forma satisfatória oaparecimento e o desenvolvimento da vida. Para uma melhor explicação devíamos tomar emconsideração o mutualismo e um conceito de “adaptação” que reforce os sistemas de mútuo apoio e que

responsabilize o mais adaptado. Se estamos dispostos a reconhecer a natureza auto-organizativa davida, o papel decisivo do mutualismo e a sua dinâmica evolutiva impõem-nos a redefinição de 

“adaptação” em termos de ecossistema. E se estamos dispostos a ver a vida como um fenómeno quepode modelar e conservar aquele mesmo “ambiente” que se considera como fonte selectiva da suaevolução, uma pergunta crucial se impõe: faz sentido continuar a falar de “selecção natural” como forçamotriz da evolução biológica? Não precisaremos antes de falar em “interacção natural” para darmosconta de forma plena do papel da vida no criar e no orientar as forças que explicam a sua evolução? Abiologia contemporânea dá-nos um quadro de interdependências muito mais importante na modelaçãodas formas de vida do que tudo aquilo que um Darwin, um Huxley ou os autores da Síntese Modernapoderiam ter previsto. A vida é necessária não apenas em termos de auto-conservação mas até porcausa da sua auto-formação. “Gaia” e a subjectividade são mais que efeitos da vida: são os seus

atributos integrais. A grandeza duma autêntica sensibilidade ecológica, bem diferente do “ambientalismo” superficial hoje dominante, é que ela nos dá a possibilidade de generalizar de modoradical as inter-relações mutualistas, fazendo da variedade em que assenta o fundamento daestabilidade. A sensibilidade ecológica dá-nos uma perspectiva coerente que explica a realidade nosentido pleno do termo, dando-lhe uma explicitação ética. 

Desde a longínqua idade helénica até ao primeiro Renascimento a “natureza” foi vista sobretudo comobússola de orientação ética, graças à qual o pensamento humano encontra o seu sentido e a suacoerência. A natureza não humana não era externa à natureza humana e à sociedade. Ao invés, amente era apenas uma parcela dum logos cósmico que fornecia critérios objectivos para os conceitospessoais e sociais de bem e de mal, justo e injusto, belo e feio, amor e ódio e, em suma, para todo umconjunto de valores, graças aos quais era possível caminhar em direcção da virtude e duma existênciafeliz. As palavras dike e andike  – justiça e injustiça – compunham a cosmologia dos filósofos gregos danatureza. Sobraram até hoje traços desses valores em numerosa terminologia da moderna linguagemdas ciências da natureza, por exemplo em palavras como “atracção” ou “repulsa”. 

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O erro da cosmologia antiga não reside na sua orientação ética mas na sua aproximação dualista ànatureza. Por causa da maior importância atribuída à especulação sobre a experimentação, a antigacosmologia cometeu o seu maior erro ao tentar ligar uma natureza fecunda auto-organizada com umaforça vital alheia ao mundo natural. A dike de Parménides é, como o élan vital  de Bergson, um substitutodas propriedades auto-organizantes da natureza, não é uma força interna à natureza, uma força queexplique a ordem do mundo. Até nas cosmologias monísticas que procuram juntar eticamente ahumanidade e a natureza existe um dualismo latente, um deus ex machina que corrige os desníveis,seja num universo desequilibrado, seja numa sociedade insensata. A verdade tem uma coroa invisível, éuma espécie de verdade de Deus ou do Espírito, já que do mesmo modo que não se confia nodesenvolvimento espontâneo da natureza também se espera que o Estado, como herança da 

“civilização”, funcione. 

Estes arcaísmos, com as suas vagas teologias e as suas teleologias rigidamente elaboradas, foram justamente avaliados como armadilhas socialmente reaccionárias. Contaminaram as obras de Aristóteles e de Hegel, como magnetizaram as mentes escolásticas medievais. Mas os erros da antigafilosofia da natureza não residem tanto na tentativa de colher uma ética da natureza mas antes noespírito de dominação que desde o princípio a envenenaram, com a imposição dum “arbítrio”sobrenatural, quase sempre autoritário, que avaliava e corrigia os desequilíbrios ou injustiças que tinham

lugar na natureza. Por isto os deuses antigos estavam sempre presentes, por muito racionais que estasprimeiras cosmologias pudessem querer ser. Mereciam eles, os deuses, ser exorcismados para que sepudesse construir um contínuo mais significativo e democrático entre natureza e humanidade.Tragicamente, o pensamento do Renascimento tardio não foi mais democrático do que o pensamentoanterior; nem Galileu na ciência, nem Descartes na filosofia conseguiram de modo satisfatório estaoperação cirúrgica. Eles e os seus herdeiros separaram a natureza da mente, recriando outrasdivindades, sob a forma de preconceitos científicos e epistemológicos, não menos infectados peladominação do que a tradição anterior que haviam demolido. 

Encontramo-nos hoje ante a possibilidade da natureza  –  não como dike,  justitia, Deus, Espírito oumesmo élan vital   – mostrar eticamente os seus próprios termos. O mutualismo é um bem em si, em

virtude da sua função de estímulo à evolução da variedade natural. Não temos necessidade de nenhumadike nem de nenhum cânone de “objectividade científica” para afirmar a esperança natural e social davida e do seu papel. Do mesmo modo, a liberdade é um bem em si: a sua reivindicação funda-senaquela que Hans Jonas chamou com finura a “íntima natureza” das formas de vida, a sua “identidadeorgânica”, a “aventura da forma”. O esforço visível de auto -identificação que qualquer ser vivo, nodecurso da sua continuidade metabólica, para se conservar, põe em prática revela, até nos maisrudimentares organismos, um sentido de identidade e de actividade selectiva que Jonasapropriadamente viu como provas duma “liberdade embrionária”. 

Enfim, a crescente complexidade e variedade que, através do curso da evolução, transforma aspartículas subatómicas naquelas formas conscientes e auto-reflexivas que chamamos seres humanas,

não pode senão levar-nos a reflectir sobre a existência dum telos, entendido este em sentido largo, esobre uma subjectividade latente na substância que por fim dá lugar à mente e à inteligência. Nareactividade da substância, na sensibilidade dos microrganismos menos desenvolvidos, na formaçãodos nervos, dos gânglios, da espinal medula, no desenvolvimento estratificado do cérebro, percebe-seuma evolução da mente tão irresistivelmente coerente que a tentação de a definir, ao modo de Manfred 

Eigen, como “inevitável” é grande. É difícil acreditar que a casualidade pura possa explicar a capacidadeque as formas de vida têm para responder neurologicamente aos estímulos, de desenvolver sistemasnervosos altamente organizados, de prever, ainda que de forma confusa, os resultados do seucomportamento e por fim de conceptualizar de forma clara e simbólica esta antecipação. Umaverdadeira história da mente deveria começar com os atributos da substância, talvez logo nos obscurosesforços dos cristais mais simples para se perpetuarem, na evolução do ADN de fontes químicasignoradas até ao momento em que manifesta a seu modo aquele princípio de replicação já presente nomundo inorgânico, e na diferenciação de moléculas orgânicas vivas  ou não vivas  como resultadodaquelas características intrínsecas de auto-organização que definimos como propriedade da vida. 

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O estudo da natureza  – deixando de lado todos os preconceitos das epistemologias antigas  – mostrauma modelação autónoma da evolução, uma “semente”, por assim dizer, implicitamente ética. Omutualismo, a liberdade e a subjectividade não são valores exclusivamente humanos; estão presentes,ao menos de forma embrionária, nos mais amplos processos cósmicos e orgânicos, que não necessitamde ser movidos por nenhuma divindade aristotélica e não precisam de ser revivificados por nenhumespírito hegeliano. Se a ecologia social conseguir perspectivar de forma coerentemente unitiva omutualismo, a liberdade e a subjectividade como aspectos duma sociedade cooperativa, livre dedominação e orientada pela reflexão e pela razão, conseguirá então remover as taras que envenenaramdesde o início a ética naturalista e dar uma voz ética comum à natureza e à humanidade. Não teremosmais necessidade do dualismo cartesiano ou do mais recente dualismo neo-kantiano que deixa muda anatureza e isola a mente do vasto mundo que a rodeia. Desgastar a comunidade, paralisar aespontaneidade, que, no coração mesmo da realidade auto-organizada, se move em direcção a umacrescente complexidade e racionalidade, limitar a liberdade, tudo isto significa negar a “semente” danatureza, negar a nossa hereditariedade nos processos evolutivos, negar a nossa função no mundo davida. Se não formos bem sucedidos na criação duma sociedade ecológica e na articulação duma éticaecológica, ficará em jogo, não entrando sequer em linha de conta com as péssimas consequências parao ambiente, nada menos do que a nossa legitimidade ética. 

O mutualismo, a auto-organização, a liberdade e a subjectividade, sustentados pelos princípiosecológicos de unidade na diversidade, de espontaneidade e de relações não hierárquicas, são assim finsem si mesmos. À parte a responsabilidade ecológica que estes fins delegam na nossa espécie enquantovoz auto-reflexiva da natureza, eles definem-nos literalmente. A natureza não existe para nosso uso, elalimita-se a legitimar a nossa existência ecológica e a nossa unidade. Como a noção de ser, estesprincípios de ecologia social não têm necessidade de explicações, apenas de verificações. Sãoelementos duma ontologia  ética, não regras dum jogo que possam ser mudadas para adequarexigências pessoais. 

Uma sociedade que nega o núcleo essencial desta ontologia levanta o problema da sua realidademesma como entidade significativa e racional. A “civilização” deixou-nos em herança uma concepção de

alteridade como “polarização” e “desafio” e da essência orgânica, visando a identificação pessoal, como“guerra” permanente. Tais concepções arriscam-se a minar por inteiro a legitimidade ecológica dahumanidade e a realidade da sociedade como dimensão potencialmente catalisadora do mundo que nosrodeia. Bombardeados por falsas percepções duma natureza em constante oposição à humanidade,redefinimos de tal modo a nossa essência humana que a guerra passou a ser o preço da paz, o controleo preço da consciência, a dominação o preço da liberdade, o antagonismo o preço da reconciliação.Num tal contexto auto-destrutivo, estamos a construir um Valhalla que por certo se tornará uma minapara as labaredas devoradoras de Ragnarok. 

Não obstante, dos conceitos de alteridade e de essência da vida, pode tirar-se um sistema filosófico esocial completamente distinto. Se tivermos uma ampla visão ecológica da natureza e concebermos um

mundo benigno que a vida plasmou no curso da evolução, podemos então formular uma ética dacomplementaridade que se alimenta da diversidade em lugar duma ética que tutela a essência individualpor meio duma alteridade ameaçadora e invasora. Na verdade a essência da vida pode ser vista comoexpressão de equilíbrio mais do que como mera resistência à entropia e ao fim de qualquer actividade. Aprópria entropia pode ser vista como uma das características dum mais vasto metabolismo cósmico, deque a vida é só a dimensão anabólica mais visível. Um tal metabolismo geral pode ser visto comoresultante da integração, da comunidade e do apoio mútuo, sem que por isso se diminua a identidadeindividual e a espontaneidade singular. 

Destarte duas alternativas estão neste momento frente a frente. Podemos tentar apaziguar o espíritoguerreiro de Odin, pacificando-o a ele e à sua corte, abrindo o Valhalla ao vento da reflexão e daponderação. Tentaremos então remendar os esfarrapados pactos que outrora sustinham precariamenteem conjunto o mundo e passar com eles a melhores e mais benévolas situações. Podemos até esperarque Odin se convença a arrumar a lança, a guardar a armadura e a prestar ouvidos às doces vozes queaconselham o diálogo e a compreensão. Em alternativa os nossos esforços podem dar lugar a umareviravolta radical: arruinar Odin, de cuja senilidade testemunha uma sociedade abortada. 

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 Abandonaremos então os mitos contratuais que “harmonizam” um mundo intrinsecamente dividido,esses mitos mantidos de pé pela épica nórdica com o exílio e as cadeias. O nosso desafio será entãocriar um novo mundo e uma nova sensibilidade, a partir duma base de reflexão pessoal e duma ética deque somos herdeiros enquanto resultado do incessante movimento evolutivo em direcção à consciência.Temos a possibilidade de nos legitimar como expressão acabada da mente no mundo da natureza,comoracionalidade  que favorece a diversidade natural e integra os processos naturais com sucesso,uma certeza e uma direcção que são porém incompletos na natureza não humana. 

 A “civilização” tal como a conhecemos hoje é mais muda do aquela natureza em nome da qual ela, acivilização, pretende falar e mais cega do que aquelas forças elementares que pretende controlar. Esta 

“civilização” vive mergulhada no ódio ao mundo que a rodeia e no ódio por si. As suas cidades estãoferidas, esventradas, as terras degradadas, a água e o ar envenenados; a sua mesquinha cobiça é umaacusação diária à sua imoralidade odiosa. Um mundo assim empobrecido é talvez irrecuperável, aomenos no quadro das suas actuais estruturas institucionais e éticas. Se o fogo de Ragnarok purificou omundo nórdico, o apocalipse nuclear que ameaça engolir o planeta poderá deixá-lo irremediavelmenteinútil para a vida, cadáver testemunhando um fracasso cósmico. Este planeta merece um destino melhordo que aquele que parece esperá-lo no futuro  – já que a sua história, incluída a humana, se não maishouvesse, foi rica de promessas, de esperanças, de criatividade.