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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
Relatos de Viajantes: de meras histórias de aventura ao saber voltado
à instrução política
Luis Fernando Tosta Barbato1
No decorrer de nossa história, os viajantes chegaram ao Brasil com
interesses bastante diversos entre si – como, por exemplo, abrir casas comercias,
fazer negócios, explorar riquezas, tentar fundar colônias, ou simplesmente descrever
o país – e acabaram por construir uma ampla e variada interpretação do Brasil e seus
relatos viriam a ser uma das principais fontes para a construção da memória nacional
em um momento posterior2 .
No entanto, todos eles têm em comum o fato de, depois de haverem percorrido
regiões desconhecidas, envoltas em mistérios, e distintas daquelas as quais estavam
acostumados, deixaram relatos que serviram a uma série de objetivos, tais como:
1 Doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas, com trabalho financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo- FAPESP. 2Os viajantes configuram um capítulo muito importante na História do Brasil e certamente proporcionaram e ainda proporcionam belos estudos. No entanto, nesse trabalho apenas pontuei sua participação no que se refere ao Brasil do século XIX e sua natureza, já que não tenho o tempo e o espaço que tal tema demanda. Sobre o tema, conferir: BELLUZZO, Ana Maria. O Brasil dos Viajantes. São Paulo: Fundação E. Odebrecht, 1994; LISBOA, Karen. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e
civilização na viagem pelo Brasil (1817 – 1820). São Paulo: HUCITEC, 1997; KURY, Lorelai. “Viajantes-naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem”. História, Ciência, Saúde –
Manguinhos. Vol. VIII (suplemento), 2001.
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promover o desenvolvimento econômico do Brasil, levar o conhecimento de nossas
terras ao exterior e aos próprios brasileiros – em um momento em que uma
identidade nacional para o Brasil devia ser construída e ressaltada (BARBATO,
2011. pp. 05-21) -, e mais, ajudar nossos dirigentes a transformar nosso país, isso em
meados do século XIX.
Afinal, eles carregaram em seus relatos não somente as descrições daqueles
lugares estranhos ou selvagens que percorriam, mas suas penas eram as
representantes da civilização, seja ela europeia, ou as dos centros vistos como mais
desenvolvidos do Brasil, de onde a maior parte desses viajantes partia. E é esse saber
voltado à civilização, à instrução política e ao progresso que aqui nos interessa.
Desde o século XVIII, os relatos de viajantes vinham ganhando importância
dentro do Império Português. A contratação do naturalista italiano Domingos
Vandelli, dentro do contexto da reestruturação da Universidade de Coimbra realizada
pelo Marquês de Pombal em 1772, é um marco nesse sentido, pois Vandelli via na
exploração natureza uma importante fonte de desenvolvimento para o Estado
(SCHIVANINATTO, 2003. pp. 603-608), e no bojo desse processo, os relatos de
viajantes ganharam cada vez mais destaque dentro dos meios letrados da época, pois
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eram o principal elo de ligação entre o conhecimento desejado por aqueles ligados ao
Estado e a natureza, fonte de riquezas.
Prova da valorização desse conhecimento produzido pelos viajantes foi a
dissertação publicada por Vandelli em 1779 sobre o modo de se relatar esse tipo de
viagem, destinada principalmente aos viajantes que percorriam o Império Português
no período (SCHIVANINATTO, 2003. p. 603).
Nessa obra, o naturalista italiano ensinava como escrever uma memória de
maneira minuciosa, devendo o viajante nomear todas as suas atividades, seus
percalços, seus contatos com as gentes e o estado de civilização em que se
encontravam. Havia também uma grande preocupação com os aspectos operacionais
da viagem, como estabelecer horários para levantar, horários para comer, critérios
para a escolha dos auxiliares, entre outros (SCHIVANINATTO, 2003. p. 603).
Vandelli enfatizava ainda a necessidade de catalogar a natureza nos moldes da
história natural, calcada no sistema de classificação de Lineu. Assim, podemos notar
que o naturalista italiano baseia-se na concepção bacconiana do saber, segundo a
qual a ciência progride multiplicando as observações exatas e acumulando os fatos
particulares, e não por estéreis raciocínios abstratos (NAXARA, 1999. pp. 106-107).
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Deste modo, Schiavinatto diz que “a história natural tornava a natureza todo
um domínio empírico cogniscível, descritível e ordenável em sua totalidade,
retirando-a de uma noção caótica que a marcaria in-loco”(SCHIVANINATTO, 2003.
p. 604).
Não que antes da fundação da Academia de Ciências de Lisboa3 e da
publicação da obra de Vandelli, essas viagens através do Império português não
fossem frequentes. Engenheiros, militares e religiosos, entre outros, em meados do
século XVIII, remetiam ao Conselho Ultramarino escritos caracterizando a natureza
e a sociedade que encontravam nas colônias, descrevendo certo tipo de planta ou
animal, suas impressões sobre as gentes locais, ou ainda relatando a passagem de um
cometa. No entanto, esses relatos não seguiam um método comum, sendo bastante
heterogêneos entre si.
3 Outro marco importante nesse processo de valorização do saber produzido por viajantes, a Academia de Ciência de Lisboa foi fundada em 1779, dentro das reformas educacionais formuladas por Pombal, tendo o naturalista Domingos Vandelli participação importante em sua fundação. Os dizeres de seu fundador, Correia da Serra, enfatizam esse processo de valorização ao qual os relatos de viajantes passavam nesse período: “O Primeiro passo de uma nação, para aproveitar suas vantagens, é conhecer perfeitamente as terras que habita, o que em si encerram, o que de si produzem, o que são capazes. A História Natural é a única ciência que tais luzes pode dar; e sem um conhecimento sólido desta parte, tudo se ficará devendo aos acasos, que raras vezes bastam para fazer a fortuna e riqueza de um povo.” Cf. SERRA, Correia de. “Discurso Preliminar” In Memórias Econômicas para o adiantamento da agricultura, das artes e da
indústria em Portugal e suas conquistas. Apud, SCHIAVINATTO, Iara Lis. Op. Cit. p. 608
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Foi justamente nesse ponto que a obra de Vandelli atuou, unida à Academia de
Ciências de Lisboa e à já reformada Universidade de Coimbra, uma vez queinstaurou
um gênero correto de se escrever a viagem filosófica. Essas memórias de viagem
tornaram-se, então, obras de letrados, que ganharam prestígio no Reino, e a natureza
e seus elementos deixaram de ser inseridos num universo de seres estranhos e
mitológicos, passando a ser observados com olhares racionais (SCHIVANINATTO,
2003. p. 607).
Se os relatos de viajantes já vinham ganhando espaço entre os naturalistas e o
próprio Estado já em finais do século XVIII por trazerem informações importantes
ao desenvolvimento das ciências – e assim, ajudando a desenvolver e a incrementar
as finanças do Estado -, nos oitocentos eles ganham ainda mais destaque, uma vez
que também servem a uma outra classe de intelectuais, que se fortalecia e que a cada
dia ganhava mais espaço junto aos dirigentes do Governo: os historiadores.
No século XIX a história se firmava como ciência, pois até esse período o
gênero se confundia com o que hoje chamamos de “literário”. No entanto, ele vinha
alterando seu status desde o século anterior, quando os filósofos das Luzes separaram
a história da literatura, classificando a primeira no âmbito das ciências, o que
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significava que se tratava de um conhecimento adquirido através de um exame
crítico da documentação. Já a segunda entrou no sistema das artes, que pode ser
considerado como um conjunto de produtos semióticos orientados para a obtenção de
efeitos estéticos (BENATTI, 2000. pp. 66-76).
Neste sentido a história ganhou um papel de destaque no período, pois ela
era vista como uma importante aliada do Estado no que tocava ao
desenvolvimento da nação. Como nos mostra Koselleck, esse processo de
utilização da história como um instrumento de apoio do Estado, entre os século
XVII e XVIII foi utilizado nos gabinetes de muitas das cortes europeias, pois
acreditava-se que através dos estudos do passado, todo um futuro poderia ser
antecipado, junto com as soluções para os problemas que junto a ele viriam
(KOSELLECK, 2003, pp. 23-32).
Koselleck traz o exemplo de Richelieu, que afirmara nada ser mais necessário
a um governo que a capacidade de prever acontecimentos, pois apenas dessa
maneira seria possível antecipar os muitos males, os quais, uma vez sobrevividos,
só poderiam ser sanados com grande dificuldade. Deste modo, a história jamais
levaria o rei a regiões novas e desconhecidas do futuro( KOSELLECK, 2003, pp.
32-35).
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No Brasil do século XIX, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro era o
principal representante desse pensamento. Ele fora criado para servir de exemplo
para instituições congêneres nas diversas províncias brasileiras4, o que segundo
Manoel Guimarães ressalta o caráter iluminista da associação5, já que foi inspirado
no modelo adotado na França do século XVIII, no qual as academias científicas e
literárias provinciais articulavam-se na teia mais ampla do processo de
centralização conduzido pelo Estado, com sede em Paris.
No Brasil, o Rio de Janeiro representaria o papel de Paris, assumindo a
posição de irradiador das Luzes, no sentido capital-províncias, integrando-as
assim ao projeto de centralização do Estado, e criando os suportes necessários
para a construção da Nação brasileira (GUIMARÃES, 1988. p.8).
Enfim, todo esse contexto do século XIX, como ilustra o desenvolvimento
do nacionalismo na Europa, a necessidade da criação de uma memória nacional
4 Além de colaborar com o conhecimento das heterogêneas regiões brasileiras, essas instituições deveriam garantir suas especificidades regionais, e quando possível, definir certa hegemonia cultural, mas sem se distanciar do modelo unificador da nação que guiava o IHGB. Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O
Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Cia.
Das Letras, 1993. p. 100 5 Notadamente do iluminismo português, que segundo Manoel Guimarães é marcado pelo conservadorismo e pela tradição católica. Cf. GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. "Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional". In: Estudos históricos, nº 1, 1988.p. 14
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no Brasil, o forte apoio imperial ao grêmio, a influência francesa, a participação
das elites na conformação do instituto e o advento da História como ciência,
refletiu-se na produção historiográfica do IHGB, conferindo-lhe características
próprias.
O IHGB não escapou a essa influência, o que pode ser notado ao
observarmos tanto no grande valor que seus membros dão tanto à exatidão dos
fatos, quanto à valorização dos documentos que promoveram6, algo até então
inusitado no Brasil. Segundo a proposta do IHGB, havia a necessidade de
produzir informações corretas e precisas, imparciais e objetivas sobre a nação,
despertando assim o patriotismo nacional, o que atesta que o instituto estava
sintonizado com as modernas concepções europeias sobre o tema (PAZ, 1996.
pp. 228-229).
Essa consonância do grêmio brasileiro com o Velho Mundo fica mais
ainda clara se observarmos o modelo institucional que o IHGB tomou para si: o
InstitutHistoriquede Paris. O que endossa os dizeres de Manoel Guimarães,
segundo os quais os intelectuais brasileiros buscaram transformar o Brasil em uma
6 Isso pode ser evidenciado nas diversas viagens de coleta de documentos promovidas pelo instituto e na sugestão proposta em 1842, que transformaria o IHGB em depósito obrigatório das obras publicadas no Brasil. Cf. GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Op. Cit. p. 16
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frente avançada da civilização francesa nos trópicos, já que enxergavam na França
um modelo de vida social, trabalho intelectual, e mesmo de civilização a ser
seguido.
Portanto, notamos que a História no período em que pretendo trabalhar,
deve ser encarada dentro de outro regime de historicidade. Mais que a disciplina
institucionalizada que ela é hoje, a História no Brasil dos Oitocentos era a
Mestra da Vida, um agente importante dentro da administração imperial, um
elemento chave para o bom governo do Brasil.
O bom conhecedor da história, poderia antecipar os acontecimentos
políticos e prevenir assim o Estado e seus cidadão contra reveses. Ao analisar
roteiros de viagem, descrições de populações indígenas, dicionários de línguas
indígenas, e tudo mais que estava inserido dentro da ampla gama de assuntos na
época vistos como história, o historiador teria em suas mãos os futuros do país, e
saberia a melhor forma de conduzir o país ao rol das grandes nações do Globo.
Neste sentindo, as publicações do IHGB valorizam os relatos dos
viajantes, e encontra neles pontos importantes para seu projeto: construir uma
identidade nacional para o Brasil, ainda carente de laços de união no século XIX e
transformá-lo em país civilizado – aos moldes da civilização europeia da época.
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Para isso, os relatos dos viajantes ganham destaque, pois trazem informações e
impressões importantes, para aqueles que queria colocar o Brasil em condições de
igualdade com os bem quistos países europeus.
Neste sentindo, podemos observar que grande parte dos entraves ao
progresso do Brasil estava em seu clima tropical, e em todas as mazelas que ele
trazia a sua população, tais como uma enorme gama de doenças, e mais que isso,
na sua ação deletéria sobre a índole e os costumes, o que se traduzia em
comportamentos vistos como avessos à civilização, tais como a preguiça, a
lascívia e a imprevidência (BARBATO, 2011. pp. 105-154).
No entanto, os relatos dos viajantes nos mostram que se podia depositar
esperanças frente a esse quadro perigoso aos ideais civilizatórios almejados,
calcados em um determinismo climático. O calor e a umidade dos trópicos não
eram necessariamente impedimentos ao sucesso da jovem nação, isso porque,
novas maneiras de ver esses problemas, e de tentar solucioná-los, também
chegavam ao Brasil entre às tantas teorias vindas da Europa, meios e métodos de
driblar esses efeitos negativos, aplicáveis mesmo nas regiões mais quentes e
úmidas, como era o caso do nosso país.
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Através da ciência, trópicos possíveis se desenhavam... E grande parte
dessas soluções saiam dos relatos daqueles que visitavam os interior do país, e
munidos de ideias e civilização, sugeriam meios para que o Brasil galgasse
posições em um suposto ranking das grandes nações do globo.
Isso porque, desde o período das Luzes, no século anterior, cada vez mais
a medicina se voltava para os cuidados com a saúde da população, e se
transformava em um instrumento a serviço do Estado . Cada vez mais estudiosos
do assunto substituíam a explicação climática como causas principais das
doenças para fenômenos sociais , como a pobreza ou as condições de vida , além
de, cada vez mais, os médicos defenderem alterações no meio ambiente como
forma de combater os males causados pelas doenças na zona tórrida . Os
trópicos pareciam perder o combate contra a civilização, e através de mudanças
sociais ou ambientais, podia ter seus efeitos negativos anulados, ou pelo menos,
minimizados, e os viajantes traziam isso em seus relatos, e o IHGB, atento à sua
importância como fonte de conhecimento e desenvolvimento, os publicavam.
A umidade e o calor tinham sua parcela de culpa nas enfermidades que
assolavam os trópicos, mas não eram os únicos responsáveis pela situação em
que se encontravam os trópicos, a educação, os hábitos, as ações
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governamentais, a falta de assistência médica, entre tantos outros fatores
“humanos”, também tinham sua parcela de culpa, que não era pequena. Se os
trópicos eram problemáticos, no que se referia à saúde de seus habitantes, isso
poderia ser revertido ou minimizado, e esse vislumbre do homem vencendo a
natureza, graças aos aparatos fornecidos pela civilização.
Febres poderiam ser combatidas com obras que evitassem inundações, ou
se alagados fossem esgotados, bastava empenho da população e do governo,
para uma melhora no quadro sanitário do Brasil se operar. Viver nos trópicos,
não era necessariamente estar à mercê de seus infortúnios:
Tão insalubre clima [da província do Maranhão] poder-se-
hia tornar melhor, se grande parte d’aquelles alagadiços se
esgotassem, e se os fogos se augmentassem, o que demanda um
excedente de população, que ainda por muitos tempos faltará. É
todavia aqui necessaria sempre alguma força disponivel e um
bom commandante, que póde residir nas chapadas (e até para alli
mudar-se a povoação, estabelecendo-se na Mangabeira a 1 ½
legua para o interior, onde o clima é já muito melhor, e que tem
boa agua. (...). Os Campos até S. Francisco Xavier, que alagam
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em partes, não era difficilesgotal-os em grande parte, se houvesse
mais energia nos moradores, porém d’alli até a lagoa S. Jeronymo
seria de muita difficuldade por serem terrenos muito baixos, e só
teriam lugar os diques que cercassem diversos quadrados, e estes
dentro cortados por canaes de esgoto, e então alguma cousa
melhoraria o clima (...)”7.
O clima perdia importância frente à ação humana, e levar uma vida
saudável nos trópicos, a despeito do que diziam os europeus, era possível, seja
porque já eram esses lugares saudáveis, ou porque a ação humana poderia vencer
os obstáculos por eles impostos.
A observação dos níveis de educação, das condições de moradia, dos
costumes e das manifestações culturais, juntamente com a atuação nas questões
7 Cf. LAGO, Antonio Bernardino Pereira do. “Itinerario da Província do Maranhão”. Op. Cit. pp. 395-396; Podemos citar ainda, o seguinte trecho, no qual as febres causadas pelas condições climáticas, caso houvessem, poderiam ser controladas a partir de ações empreendidas pelos homens: “Suas aguas[da Villa da Cachoeira, na Bahia] são excellentes; sendo falso o que acerca d’ellas menciona a CorographiaBrasilica dizendo que não devem ser bebidas antes de 24 horas depois de tomadas. Os moradores de suas adjacencias são sadios e robustos, e não são como affirma a citada Corographia, frequentemente atacados por febres, a que nem sempre resistem; o que se assim fosse seria facil prevenir evitando innundações, e por via de bons encanamentos”. Cf. ARNIZÁU, José Joaquim de Almeida e. “Memória topographica, historica, comercial e política da Villa da Cachoeira da Província da Bahia”. In. In. Revista Trimensal do Instituto Histórico, Geographico e Ethnographico do Brazil. Tomo XXV. Rio de Janeiro: Typ. de D. Luiz dos Santos, 1862. p.516. p. 129.
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ambientais, traria a chave para se desvendar as causas dos problemas que
assolavam o Brasil e seu povo, e a solução para resolvê-los .
Cada vez mais se acreditava que, com a saúde resgatada do brasileiro,
agora cheio de vigor físico e detentor de grande capacidade produtiva, nasceria a
consciência dos deveres e direitos que possuía, o bem-estar e o prazer em viver,
provando assim que não era um homem inferior racialmente, e nem que vivia
sob um clima tão inóspito assim .
Essas premissas ganharam destaque principalmente nas primeiras décadas da
República, quando uma série de programas sanitários foi implantada no Brasil, e a
questão da doença que assolava o país ganhou ares de problema nacional. No
entanto, em finais do Império, como mostra o trecho abaixo, fica evidente que a
questão da necessidade de se empreender políticas públicas já para reverter o
quadro sanitário do Brasil já se fazia presente no pensamento intelectual da época,
e que nem só o clima, mas também os hábitos e a educação eram os culpados pela
situação sanitária que se encontrava grande parte da população brasileira do
período, como nos mostra José Veríssimo, viajante que percorreu a região
Amazônica em finais dos oitocentos:
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“Cabe aqui perguntar si não é possivelattribuir também á
falta de um regimenhygienico, á carencia completa do uso de
legumes, ao excessivo abuso, se assim posso dizer, de comidas e
bebidas oleosas e fermentadas e de peixe quasi exclusivamente,
ao immoderado habito do alcool, essa miséria physiologica que
lavra na Amazonia,eahi provoca, ou pelo menos favorece, em tão
larga escala o desenvolvimento das febres e anemias, que lhe
estiolam e atrophiam a população indigena e afugentam o
estrangeiro, e não somente ao clima que um naturalista inglez,
Bates, que aqui residioannos, capitula de delicioso?”8.
Os trópicos, dessa maneira, pareciam ter encontrado adversários à altura,
e em finais do século XIX, e já não representava mais o perigo, pelo menos aos
corpos humanos que representou tempos atrás. Eles ainda estavam presentes,
deixando suas marcas, principalmente no modo de ser brasileiro, julgado a partir
de modelos baseados em lugares comuns como a preguiça e a sensualidade ainda
8VERISSIMO, José. “As populações indígenas e mestiças da Amazonia: sua linguagem, suas crenças e seus costumes”. In. Revista Trimensal do Instituto Historico e GeographicoBrazileiro. Tomo L. Rio de Janeiro: Typographia, Lithographia e Encadernação a vapor de Laemmert& C., 1987.pp. 385-386.
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por anos, e talvez até os dias de hoje, mas a verdade é que, como nos disse
Gilberto Freyre, ele já não era o “senhor-deus-todo-poderoso” de outrora, e cada
vez mais seu reinado importâncias, significações, implicações e estereótipos
seria diminuído, para ocupar um lugar nem bom nem ruim, mas real.
E muito disso veio das impressões trazidas por aqueles que saíram do que
acreditavam ser a civilização e se embrenharam no interior do país, e mesmo
ante a visões que tanto corroboravam a deletérias teorias que jogavam o Brasil e
suas gentes às margens da civilização, viam na instrução pública e na
implantação de políticas governamentais, saídas para o atraso em que se
encontrava o país.
E não eram só os viajantes que publicaram nas revistas do IHGB que
deixaram suas ideias sobre as mazelas do Brasil, e deixaram também suas
opiniões que seriam lidas por aqueles preocupados com o futuro da nação.
A Revue de Deux Mondes, outro periódico de importante circulação no
século XIX, nasceu como um objetivo: buscar o outro – no caso os povos
estrangeiros visitados pelos colaboradores da Revue espalhados por todo o globo
- como forma de conhecê-los, a fim de trazer para a França aquilo que de melhor
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havia no estrangeiro, contribuindo assim para uma melhor organização e
desenvolvimento da própria sociedade francesa. Como nos disse Katia Aily
Franco de Camargo: “é preciso conhecer o outro para poder dele adotar aquilo
que é conveniente e/ou apropriado para a França, para que essa possa melhor
organizar sua sociedade” (CAMARGO, 2005. p.83).
Desta maneira, no que se trata do Brasil, aparecem na Revueuma série de
documentos que trazem relatos de viagem que tocam em pontos importantes da
sociedade brasileira, enfocando seus problemas, e mostrando possíveis caminhos
para que esses fossem contornados. O trecho abaixo, de autor anônimo, reflete
sobre os problemas da arrecadação de impostos no Brasil, e nos serve de exemplo
a esse saber produzido por aqueles que aqui estiveram, e que serviriam para
atentar os dirigentes de outrora sobre as mazelas da nação:
“Ainsinotre position financière se présentesous de
sombrescouleurs. Lesdividendesseules de
notredettes’élèvent à Londres à 200,000 liv. sterl. par an,
sansparlerdesempruntscontractésauBrésilmême. Le
gouvernementveut de l’argentparcequ’ilen a
unextrêmebesoin ; mais il ne s’agitseulement
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d’ouvrirunnouvelemprunt ou augmenterlesimpôts ;
cesontlàdesmoyensdésespérés. Il faudrait, avant tout, un
système de perception mieuxappropriénosbesoins et à
nosressources ; ilfaudraitune administration qui
fûtbaséesur les véritablesintérêts du Brésil. Notre
systèmed’impôtsestbarbare ; tout le monde le sait. C’est
encore celuidugouvernementportugais, qui ne
connaissaitpasmêmelesplus simples principes d’économie
publique. L’industrielanguit le commerce n’est pas
encouragé. Croiriez-vousque nous payons plus pour
exporter nosmarchandisesque les étrangers ne paient pour
nous apporter les leurs ?”9
Tudo isso nos vem a mostrar que em um momento em que a História se
firmava como ciência – baseada na análise crítica da documentação – e se
buscava novos horizontes para um Brasil ainda em gestação, os relatos daqueles
que se deslocaram por essas terras foram publicados não só por matarem a
curiosidade daqueles que queria conhecer os rincões desse país de dimensões
9Anônimo. “SituationFinancièreduBrésil”. In. RevuedesDeux Mondes: recueil de la politique, de
l´administration et de mouer. V. 1. 1829. pp.63-64.
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continentais, mas porque eles também eram importantes fontes de pesquisa e
instrução.
Munidos das penas que somente a civilização oferecia, aqueles que
dominavam a escrita dominavam também conhecimentos que poderiam ser úteis
ao desenvolvimento da nação, e isso, em consonância às experiências que
somente o estado in loco poderia proporcionar, levaram esses relatos a serem de
extrema valia no século XIX, por isso eram tão publicados. Os viajantes tinham
muito mais a fazer do que matar a mera curiosidade de Brasil, aqueles engajados
na construção de um Brasil melhor, tinham muito a aprender com eles.
Bibliografia
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