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1 Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. Relatos de Viajantes: de meras histórias de aventura ao saber voltado à instrução política Luis Fernando Tosta Barbato 1 No decorrer de nossa história, os viajantes chegaram ao Brasil com interesses bastante diversos entre si – como, por exemplo, abrir casas comercias, fazer negócios, explorar riquezas, tentar fundar colônias, ou simplesmente descrever o país – e acabaram por construir uma ampla e variada interpretação do Brasil e seus relatos viriam a ser uma das principais fontes para a construção da memória nacional em um momento posterior 2 . No entanto, todos eles têm em comum o fato de, depois de haverem percorrido regiões desconhecidas, envoltas em mistérios, e distintas daquelas as quais estavam acostumados, deixaram relatos que serviram a uma série de objetivos, tais como: 1 Doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas, com trabalho financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo- FAPESP. 2 Os viajantes configuram um capítulo muito importante na História do Brasil e certamente proporcionaram e ainda proporcionam belos estudos. No entanto, nesse trabalho apenas pontuei sua participação no que se refere ao Brasil do século XIX e sua natureza, já que não tenho o tempo e o espaço que tal tema demanda. Sobre o tema, conferir: BELLUZZO, Ana Maria. O Brasil dos Viajantes. São Paulo: Fundação E. Odebrecht, 1994; LISBOA, Karen. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na viagem pelo Brasil (1817 – 1820). São Paulo: HUCITEC, 1997; KURY, Lorelai. “Viajantes-naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem”. História, Ciência, Saúde – Manguinhos. Vol. VIII (suplemento), 2001.

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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

Relatos de Viajantes: de meras histórias de aventura ao saber voltado

à instrução política

Luis Fernando Tosta Barbato1

No decorrer de nossa história, os viajantes chegaram ao Brasil com

interesses bastante diversos entre si – como, por exemplo, abrir casas comercias,

fazer negócios, explorar riquezas, tentar fundar colônias, ou simplesmente descrever

o país – e acabaram por construir uma ampla e variada interpretação do Brasil e seus

relatos viriam a ser uma das principais fontes para a construção da memória nacional

em um momento posterior2 .

No entanto, todos eles têm em comum o fato de, depois de haverem percorrido

regiões desconhecidas, envoltas em mistérios, e distintas daquelas as quais estavam

acostumados, deixaram relatos que serviram a uma série de objetivos, tais como:

1 Doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas, com trabalho financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo- FAPESP. 2Os viajantes configuram um capítulo muito importante na História do Brasil e certamente proporcionaram e ainda proporcionam belos estudos. No entanto, nesse trabalho apenas pontuei sua participação no que se refere ao Brasil do século XIX e sua natureza, já que não tenho o tempo e o espaço que tal tema demanda. Sobre o tema, conferir: BELLUZZO, Ana Maria. O Brasil dos Viajantes. São Paulo: Fundação E. Odebrecht, 1994; LISBOA, Karen. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e

civilização na viagem pelo Brasil (1817 – 1820). São Paulo: HUCITEC, 1997; KURY, Lorelai. “Viajantes-naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem”. História, Ciência, Saúde –

Manguinhos. Vol. VIII (suplemento), 2001.

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promover o desenvolvimento econômico do Brasil, levar o conhecimento de nossas

terras ao exterior e aos próprios brasileiros – em um momento em que uma

identidade nacional para o Brasil devia ser construída e ressaltada (BARBATO,

2011. pp. 05-21) -, e mais, ajudar nossos dirigentes a transformar nosso país, isso em

meados do século XIX.

Afinal, eles carregaram em seus relatos não somente as descrições daqueles

lugares estranhos ou selvagens que percorriam, mas suas penas eram as

representantes da civilização, seja ela europeia, ou as dos centros vistos como mais

desenvolvidos do Brasil, de onde a maior parte desses viajantes partia. E é esse saber

voltado à civilização, à instrução política e ao progresso que aqui nos interessa.

Desde o século XVIII, os relatos de viajantes vinham ganhando importância

dentro do Império Português. A contratação do naturalista italiano Domingos

Vandelli, dentro do contexto da reestruturação da Universidade de Coimbra realizada

pelo Marquês de Pombal em 1772, é um marco nesse sentido, pois Vandelli via na

exploração natureza uma importante fonte de desenvolvimento para o Estado

(SCHIVANINATTO, 2003. pp. 603-608), e no bojo desse processo, os relatos de

viajantes ganharam cada vez mais destaque dentro dos meios letrados da época, pois

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eram o principal elo de ligação entre o conhecimento desejado por aqueles ligados ao

Estado e a natureza, fonte de riquezas.

Prova da valorização desse conhecimento produzido pelos viajantes foi a

dissertação publicada por Vandelli em 1779 sobre o modo de se relatar esse tipo de

viagem, destinada principalmente aos viajantes que percorriam o Império Português

no período (SCHIVANINATTO, 2003. p. 603).

Nessa obra, o naturalista italiano ensinava como escrever uma memória de

maneira minuciosa, devendo o viajante nomear todas as suas atividades, seus

percalços, seus contatos com as gentes e o estado de civilização em que se

encontravam. Havia também uma grande preocupação com os aspectos operacionais

da viagem, como estabelecer horários para levantar, horários para comer, critérios

para a escolha dos auxiliares, entre outros (SCHIVANINATTO, 2003. p. 603).

Vandelli enfatizava ainda a necessidade de catalogar a natureza nos moldes da

história natural, calcada no sistema de classificação de Lineu. Assim, podemos notar

que o naturalista italiano baseia-se na concepção bacconiana do saber, segundo a

qual a ciência progride multiplicando as observações exatas e acumulando os fatos

particulares, e não por estéreis raciocínios abstratos (NAXARA, 1999. pp. 106-107).

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Deste modo, Schiavinatto diz que “a história natural tornava a natureza todo

um domínio empírico cogniscível, descritível e ordenável em sua totalidade,

retirando-a de uma noção caótica que a marcaria in-loco”(SCHIVANINATTO, 2003.

p. 604).

Não que antes da fundação da Academia de Ciências de Lisboa3 e da

publicação da obra de Vandelli, essas viagens através do Império português não

fossem frequentes. Engenheiros, militares e religiosos, entre outros, em meados do

século XVIII, remetiam ao Conselho Ultramarino escritos caracterizando a natureza

e a sociedade que encontravam nas colônias, descrevendo certo tipo de planta ou

animal, suas impressões sobre as gentes locais, ou ainda relatando a passagem de um

cometa. No entanto, esses relatos não seguiam um método comum, sendo bastante

heterogêneos entre si.

3 Outro marco importante nesse processo de valorização do saber produzido por viajantes, a Academia de Ciência de Lisboa foi fundada em 1779, dentro das reformas educacionais formuladas por Pombal, tendo o naturalista Domingos Vandelli participação importante em sua fundação. Os dizeres de seu fundador, Correia da Serra, enfatizam esse processo de valorização ao qual os relatos de viajantes passavam nesse período: “O Primeiro passo de uma nação, para aproveitar suas vantagens, é conhecer perfeitamente as terras que habita, o que em si encerram, o que de si produzem, o que são capazes. A História Natural é a única ciência que tais luzes pode dar; e sem um conhecimento sólido desta parte, tudo se ficará devendo aos acasos, que raras vezes bastam para fazer a fortuna e riqueza de um povo.” Cf. SERRA, Correia de. “Discurso Preliminar” In Memórias Econômicas para o adiantamento da agricultura, das artes e da

indústria em Portugal e suas conquistas. Apud, SCHIAVINATTO, Iara Lis. Op. Cit. p. 608

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Foi justamente nesse ponto que a obra de Vandelli atuou, unida à Academia de

Ciências de Lisboa e à já reformada Universidade de Coimbra, uma vez queinstaurou

um gênero correto de se escrever a viagem filosófica. Essas memórias de viagem

tornaram-se, então, obras de letrados, que ganharam prestígio no Reino, e a natureza

e seus elementos deixaram de ser inseridos num universo de seres estranhos e

mitológicos, passando a ser observados com olhares racionais (SCHIVANINATTO,

2003. p. 607).

Se os relatos de viajantes já vinham ganhando espaço entre os naturalistas e o

próprio Estado já em finais do século XVIII por trazerem informações importantes

ao desenvolvimento das ciências – e assim, ajudando a desenvolver e a incrementar

as finanças do Estado -, nos oitocentos eles ganham ainda mais destaque, uma vez

que também servem a uma outra classe de intelectuais, que se fortalecia e que a cada

dia ganhava mais espaço junto aos dirigentes do Governo: os historiadores.

No século XIX a história se firmava como ciência, pois até esse período o

gênero se confundia com o que hoje chamamos de “literário”. No entanto, ele vinha

alterando seu status desde o século anterior, quando os filósofos das Luzes separaram

a história da literatura, classificando a primeira no âmbito das ciências, o que

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significava que se tratava de um conhecimento adquirido através de um exame

crítico da documentação. Já a segunda entrou no sistema das artes, que pode ser

considerado como um conjunto de produtos semióticos orientados para a obtenção de

efeitos estéticos (BENATTI, 2000. pp. 66-76).

Neste sentido a história ganhou um papel de destaque no período, pois ela

era vista como uma importante aliada do Estado no que tocava ao

desenvolvimento da nação. Como nos mostra Koselleck, esse processo de

utilização da história como um instrumento de apoio do Estado, entre os século

XVII e XVIII foi utilizado nos gabinetes de muitas das cortes europeias, pois

acreditava-se que através dos estudos do passado, todo um futuro poderia ser

antecipado, junto com as soluções para os problemas que junto a ele viriam

(KOSELLECK, 2003, pp. 23-32).

Koselleck traz o exemplo de Richelieu, que afirmara nada ser mais necessário

a um governo que a capacidade de prever acontecimentos, pois apenas dessa

maneira seria possível antecipar os muitos males, os quais, uma vez sobrevividos,

só poderiam ser sanados com grande dificuldade. Deste modo, a história jamais

levaria o rei a regiões novas e desconhecidas do futuro( KOSELLECK, 2003, pp.

32-35).

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No Brasil do século XIX, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro era o

principal representante desse pensamento. Ele fora criado para servir de exemplo

para instituições congêneres nas diversas províncias brasileiras4, o que segundo

Manoel Guimarães ressalta o caráter iluminista da associação5, já que foi inspirado

no modelo adotado na França do século XVIII, no qual as academias científicas e

literárias provinciais articulavam-se na teia mais ampla do processo de

centralização conduzido pelo Estado, com sede em Paris.

No Brasil, o Rio de Janeiro representaria o papel de Paris, assumindo a

posição de irradiador das Luzes, no sentido capital-províncias, integrando-as

assim ao projeto de centralização do Estado, e criando os suportes necessários

para a construção da Nação brasileira (GUIMARÃES, 1988. p.8).

Enfim, todo esse contexto do século XIX, como ilustra o desenvolvimento

do nacionalismo na Europa, a necessidade da criação de uma memória nacional

4 Além de colaborar com o conhecimento das heterogêneas regiões brasileiras, essas instituições deveriam garantir suas especificidades regionais, e quando possível, definir certa hegemonia cultural, mas sem se distanciar do modelo unificador da nação que guiava o IHGB. Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O

Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Cia.

Das Letras, 1993. p. 100 5 Notadamente do iluminismo português, que segundo Manoel Guimarães é marcado pelo conservadorismo e pela tradição católica. Cf. GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. "Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional". In: Estudos históricos, nº 1, 1988.p. 14

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no Brasil, o forte apoio imperial ao grêmio, a influência francesa, a participação

das elites na conformação do instituto e o advento da História como ciência,

refletiu-se na produção historiográfica do IHGB, conferindo-lhe características

próprias.

O IHGB não escapou a essa influência, o que pode ser notado ao

observarmos tanto no grande valor que seus membros dão tanto à exatidão dos

fatos, quanto à valorização dos documentos que promoveram6, algo até então

inusitado no Brasil. Segundo a proposta do IHGB, havia a necessidade de

produzir informações corretas e precisas, imparciais e objetivas sobre a nação,

despertando assim o patriotismo nacional, o que atesta que o instituto estava

sintonizado com as modernas concepções europeias sobre o tema (PAZ, 1996.

pp. 228-229).

Essa consonância do grêmio brasileiro com o Velho Mundo fica mais

ainda clara se observarmos o modelo institucional que o IHGB tomou para si: o

InstitutHistoriquede Paris. O que endossa os dizeres de Manoel Guimarães,

segundo os quais os intelectuais brasileiros buscaram transformar o Brasil em uma

6 Isso pode ser evidenciado nas diversas viagens de coleta de documentos promovidas pelo instituto e na sugestão proposta em 1842, que transformaria o IHGB em depósito obrigatório das obras publicadas no Brasil. Cf. GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Op. Cit. p. 16

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frente avançada da civilização francesa nos trópicos, já que enxergavam na França

um modelo de vida social, trabalho intelectual, e mesmo de civilização a ser

seguido.

Portanto, notamos que a História no período em que pretendo trabalhar,

deve ser encarada dentro de outro regime de historicidade. Mais que a disciplina

institucionalizada que ela é hoje, a História no Brasil dos Oitocentos era a

Mestra da Vida, um agente importante dentro da administração imperial, um

elemento chave para o bom governo do Brasil.

O bom conhecedor da história, poderia antecipar os acontecimentos

políticos e prevenir assim o Estado e seus cidadão contra reveses. Ao analisar

roteiros de viagem, descrições de populações indígenas, dicionários de línguas

indígenas, e tudo mais que estava inserido dentro da ampla gama de assuntos na

época vistos como história, o historiador teria em suas mãos os futuros do país, e

saberia a melhor forma de conduzir o país ao rol das grandes nações do Globo.

Neste sentindo, as publicações do IHGB valorizam os relatos dos

viajantes, e encontra neles pontos importantes para seu projeto: construir uma

identidade nacional para o Brasil, ainda carente de laços de união no século XIX e

transformá-lo em país civilizado – aos moldes da civilização europeia da época.

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Para isso, os relatos dos viajantes ganham destaque, pois trazem informações e

impressões importantes, para aqueles que queria colocar o Brasil em condições de

igualdade com os bem quistos países europeus.

Neste sentindo, podemos observar que grande parte dos entraves ao

progresso do Brasil estava em seu clima tropical, e em todas as mazelas que ele

trazia a sua população, tais como uma enorme gama de doenças, e mais que isso,

na sua ação deletéria sobre a índole e os costumes, o que se traduzia em

comportamentos vistos como avessos à civilização, tais como a preguiça, a

lascívia e a imprevidência (BARBATO, 2011. pp. 105-154).

No entanto, os relatos dos viajantes nos mostram que se podia depositar

esperanças frente a esse quadro perigoso aos ideais civilizatórios almejados,

calcados em um determinismo climático. O calor e a umidade dos trópicos não

eram necessariamente impedimentos ao sucesso da jovem nação, isso porque,

novas maneiras de ver esses problemas, e de tentar solucioná-los, também

chegavam ao Brasil entre às tantas teorias vindas da Europa, meios e métodos de

driblar esses efeitos negativos, aplicáveis mesmo nas regiões mais quentes e

úmidas, como era o caso do nosso país.

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Através da ciência, trópicos possíveis se desenhavam... E grande parte

dessas soluções saiam dos relatos daqueles que visitavam os interior do país, e

munidos de ideias e civilização, sugeriam meios para que o Brasil galgasse

posições em um suposto ranking das grandes nações do globo.

Isso porque, desde o período das Luzes, no século anterior, cada vez mais

a medicina se voltava para os cuidados com a saúde da população, e se

transformava em um instrumento a serviço do Estado . Cada vez mais estudiosos

do assunto substituíam a explicação climática como causas principais das

doenças para fenômenos sociais , como a pobreza ou as condições de vida , além

de, cada vez mais, os médicos defenderem alterações no meio ambiente como

forma de combater os males causados pelas doenças na zona tórrida . Os

trópicos pareciam perder o combate contra a civilização, e através de mudanças

sociais ou ambientais, podia ter seus efeitos negativos anulados, ou pelo menos,

minimizados, e os viajantes traziam isso em seus relatos, e o IHGB, atento à sua

importância como fonte de conhecimento e desenvolvimento, os publicavam.

A umidade e o calor tinham sua parcela de culpa nas enfermidades que

assolavam os trópicos, mas não eram os únicos responsáveis pela situação em

que se encontravam os trópicos, a educação, os hábitos, as ações

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governamentais, a falta de assistência médica, entre tantos outros fatores

“humanos”, também tinham sua parcela de culpa, que não era pequena. Se os

trópicos eram problemáticos, no que se referia à saúde de seus habitantes, isso

poderia ser revertido ou minimizado, e esse vislumbre do homem vencendo a

natureza, graças aos aparatos fornecidos pela civilização.

Febres poderiam ser combatidas com obras que evitassem inundações, ou

se alagados fossem esgotados, bastava empenho da população e do governo,

para uma melhora no quadro sanitário do Brasil se operar. Viver nos trópicos,

não era necessariamente estar à mercê de seus infortúnios:

Tão insalubre clima [da província do Maranhão] poder-se-

hia tornar melhor, se grande parte d’aquelles alagadiços se

esgotassem, e se os fogos se augmentassem, o que demanda um

excedente de população, que ainda por muitos tempos faltará. É

todavia aqui necessaria sempre alguma força disponivel e um

bom commandante, que póde residir nas chapadas (e até para alli

mudar-se a povoação, estabelecendo-se na Mangabeira a 1 ½

legua para o interior, onde o clima é já muito melhor, e que tem

boa agua. (...). Os Campos até S. Francisco Xavier, que alagam

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em partes, não era difficilesgotal-os em grande parte, se houvesse

mais energia nos moradores, porém d’alli até a lagoa S. Jeronymo

seria de muita difficuldade por serem terrenos muito baixos, e só

teriam lugar os diques que cercassem diversos quadrados, e estes

dentro cortados por canaes de esgoto, e então alguma cousa

melhoraria o clima (...)”7.

O clima perdia importância frente à ação humana, e levar uma vida

saudável nos trópicos, a despeito do que diziam os europeus, era possível, seja

porque já eram esses lugares saudáveis, ou porque a ação humana poderia vencer

os obstáculos por eles impostos.

A observação dos níveis de educação, das condições de moradia, dos

costumes e das manifestações culturais, juntamente com a atuação nas questões

7 Cf. LAGO, Antonio Bernardino Pereira do. “Itinerario da Província do Maranhão”. Op. Cit. pp. 395-396; Podemos citar ainda, o seguinte trecho, no qual as febres causadas pelas condições climáticas, caso houvessem, poderiam ser controladas a partir de ações empreendidas pelos homens: “Suas aguas[da Villa da Cachoeira, na Bahia] são excellentes; sendo falso o que acerca d’ellas menciona a CorographiaBrasilica dizendo que não devem ser bebidas antes de 24 horas depois de tomadas. Os moradores de suas adjacencias são sadios e robustos, e não são como affirma a citada Corographia, frequentemente atacados por febres, a que nem sempre resistem; o que se assim fosse seria facil prevenir evitando innundações, e por via de bons encanamentos”. Cf. ARNIZÁU, José Joaquim de Almeida e. “Memória topographica, historica, comercial e política da Villa da Cachoeira da Província da Bahia”. In. In. Revista Trimensal do Instituto Histórico, Geographico e Ethnographico do Brazil. Tomo XXV. Rio de Janeiro: Typ. de D. Luiz dos Santos, 1862. p.516. p. 129.

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ambientais, traria a chave para se desvendar as causas dos problemas que

assolavam o Brasil e seu povo, e a solução para resolvê-los .

Cada vez mais se acreditava que, com a saúde resgatada do brasileiro,

agora cheio de vigor físico e detentor de grande capacidade produtiva, nasceria a

consciência dos deveres e direitos que possuía, o bem-estar e o prazer em viver,

provando assim que não era um homem inferior racialmente, e nem que vivia

sob um clima tão inóspito assim .

Essas premissas ganharam destaque principalmente nas primeiras décadas da

República, quando uma série de programas sanitários foi implantada no Brasil, e a

questão da doença que assolava o país ganhou ares de problema nacional. No

entanto, em finais do Império, como mostra o trecho abaixo, fica evidente que a

questão da necessidade de se empreender políticas públicas já para reverter o

quadro sanitário do Brasil já se fazia presente no pensamento intelectual da época,

e que nem só o clima, mas também os hábitos e a educação eram os culpados pela

situação sanitária que se encontrava grande parte da população brasileira do

período, como nos mostra José Veríssimo, viajante que percorreu a região

Amazônica em finais dos oitocentos:

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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

“Cabe aqui perguntar si não é possivelattribuir também á

falta de um regimenhygienico, á carencia completa do uso de

legumes, ao excessivo abuso, se assim posso dizer, de comidas e

bebidas oleosas e fermentadas e de peixe quasi exclusivamente,

ao immoderado habito do alcool, essa miséria physiologica que

lavra na Amazonia,eahi provoca, ou pelo menos favorece, em tão

larga escala o desenvolvimento das febres e anemias, que lhe

estiolam e atrophiam a população indigena e afugentam o

estrangeiro, e não somente ao clima que um naturalista inglez,

Bates, que aqui residioannos, capitula de delicioso?”8.

Os trópicos, dessa maneira, pareciam ter encontrado adversários à altura,

e em finais do século XIX, e já não representava mais o perigo, pelo menos aos

corpos humanos que representou tempos atrás. Eles ainda estavam presentes,

deixando suas marcas, principalmente no modo de ser brasileiro, julgado a partir

de modelos baseados em lugares comuns como a preguiça e a sensualidade ainda

8VERISSIMO, José. “As populações indígenas e mestiças da Amazonia: sua linguagem, suas crenças e seus costumes”. In. Revista Trimensal do Instituto Historico e GeographicoBrazileiro. Tomo L. Rio de Janeiro: Typographia, Lithographia e Encadernação a vapor de Laemmert& C., 1987.pp. 385-386.

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por anos, e talvez até os dias de hoje, mas a verdade é que, como nos disse

Gilberto Freyre, ele já não era o “senhor-deus-todo-poderoso” de outrora, e cada

vez mais seu reinado importâncias, significações, implicações e estereótipos

seria diminuído, para ocupar um lugar nem bom nem ruim, mas real.

E muito disso veio das impressões trazidas por aqueles que saíram do que

acreditavam ser a civilização e se embrenharam no interior do país, e mesmo

ante a visões que tanto corroboravam a deletérias teorias que jogavam o Brasil e

suas gentes às margens da civilização, viam na instrução pública e na

implantação de políticas governamentais, saídas para o atraso em que se

encontrava o país.

E não eram só os viajantes que publicaram nas revistas do IHGB que

deixaram suas ideias sobre as mazelas do Brasil, e deixaram também suas

opiniões que seriam lidas por aqueles preocupados com o futuro da nação.

A Revue de Deux Mondes, outro periódico de importante circulação no

século XIX, nasceu como um objetivo: buscar o outro – no caso os povos

estrangeiros visitados pelos colaboradores da Revue espalhados por todo o globo

- como forma de conhecê-los, a fim de trazer para a França aquilo que de melhor

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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

havia no estrangeiro, contribuindo assim para uma melhor organização e

desenvolvimento da própria sociedade francesa. Como nos disse Katia Aily

Franco de Camargo: “é preciso conhecer o outro para poder dele adotar aquilo

que é conveniente e/ou apropriado para a França, para que essa possa melhor

organizar sua sociedade” (CAMARGO, 2005. p.83).

Desta maneira, no que se trata do Brasil, aparecem na Revueuma série de

documentos que trazem relatos de viagem que tocam em pontos importantes da

sociedade brasileira, enfocando seus problemas, e mostrando possíveis caminhos

para que esses fossem contornados. O trecho abaixo, de autor anônimo, reflete

sobre os problemas da arrecadação de impostos no Brasil, e nos serve de exemplo

a esse saber produzido por aqueles que aqui estiveram, e que serviriam para

atentar os dirigentes de outrora sobre as mazelas da nação:

“Ainsinotre position financière se présentesous de

sombrescouleurs. Lesdividendesseules de

notredettes’élèvent à Londres à 200,000 liv. sterl. par an,

sansparlerdesempruntscontractésauBrésilmême. Le

gouvernementveut de l’argentparcequ’ilen a

unextrêmebesoin ; mais il ne s’agitseulement

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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

d’ouvrirunnouvelemprunt ou augmenterlesimpôts ;

cesontlàdesmoyensdésespérés. Il faudrait, avant tout, un

système de perception mieuxappropriénosbesoins et à

nosressources ; ilfaudraitune administration qui

fûtbaséesur les véritablesintérêts du Brésil. Notre

systèmed’impôtsestbarbare ; tout le monde le sait. C’est

encore celuidugouvernementportugais, qui ne

connaissaitpasmêmelesplus simples principes d’économie

publique. L’industrielanguit le commerce n’est pas

encouragé. Croiriez-vousque nous payons plus pour

exporter nosmarchandisesque les étrangers ne paient pour

nous apporter les leurs ?”9

Tudo isso nos vem a mostrar que em um momento em que a História se

firmava como ciência – baseada na análise crítica da documentação – e se

buscava novos horizontes para um Brasil ainda em gestação, os relatos daqueles

que se deslocaram por essas terras foram publicados não só por matarem a

curiosidade daqueles que queria conhecer os rincões desse país de dimensões

9Anônimo. “SituationFinancièreduBrésil”. In. RevuedesDeux Mondes: recueil de la politique, de

l´administration et de mouer. V. 1. 1829. pp.63-64.

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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

continentais, mas porque eles também eram importantes fontes de pesquisa e

instrução.

Munidos das penas que somente a civilização oferecia, aqueles que

dominavam a escrita dominavam também conhecimentos que poderiam ser úteis

ao desenvolvimento da nação, e isso, em consonância às experiências que

somente o estado in loco poderia proporcionar, levaram esses relatos a serem de

extrema valia no século XIX, por isso eram tão publicados. Os viajantes tinham

muito mais a fazer do que matar a mera curiosidade de Brasil, aqueles engajados

na construção de um Brasil melhor, tinham muito a aprender com eles.

Bibliografia

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identidadenacional brasileira (1839-1889) . Campinas, SP : [s. n.], 2011.

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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.