Relatos inéditos do Peregrino Russo (Anônimo)

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Relatos inéditos do Peregrino Russo

(Anônimo )

Anônimo

O

PEREGRINO RUSSO

TRÊS RELATOS INÉDITOS

Tradução

Tito Kehl

M M V I I I

A todos os mestres, para retribuir e para transmitir.

INTRODUÇÃO

Poucos textos da espiritualidade ortodoxa são tão populares no Ocidente como os

Relatos de um peregrino russo, tantas vezes traduzido em línguas europeias. O

manuscrito destes quatro Relatos anônimos foi assinalado pela primeira vez por

volta de 1860, nas mãos de uma monja, filha espiritual do estaroste Ambroise de

Optina. Ora, entre os documentos do estaroste, achavam-se três outros Relatos que

foram publicados na Rússia em 1911, reeditados na Tchecoslováquia em 1933, e

incorporados aos quatro primeiros na primeira edição de conjunto do Peregrino,

feita em Paris pela YMCA Press em 1948. São estes que apresentaremos aqui.

Estes três Relatos possuem um caráter mais abertamente didático dos que os

primeiros, É provável que tenham sido retocados e completados em Optina, este

celeiro espiritual da Rússia do século XIX para onde afluíam escritores, filósofos,

“buscadores de Deus”, aonde a tradição espiritual do Oriente cristão tomava uma

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nova consciência de si mesma para responder às buscas e inquietações que o

pensamento ocidental introduzia então na Rússia. Uma parte dos três Relatos é

constituída por respostas às objeções de um intelectual, e instruções sistemáticas,

verdadeiros pequenos tratados, intercalam-se entre narrações e diálogos; se

perdemos algo do pitoresco, ganhamos em elucidação.

Trata-se com efeito de uma apresentação bastante refletida da prece como

invocação do Nome de Jesus. O desenvolvimento, de tipo patrístico mais do que

cartesiano, é feito em “espiral” em torno de um eixo que podemos definir assim: a

salvação pelo amor, realizada na prece. “Não há limite para a misericórdia de

Deus”, e todo o problema para o homem consiste em saber acolher esta misericórdia

que transformará seu coração e fará germinar aí os “frutos do Espírito”.

O Quinto Relato é primeiramente dedicado ao arrependimento, este grande retorno

da inteligência e do coração. O homem é fascinado pelo abismo, e a história do

cocheiro que se atira na água gelada, como a do homem que salta dentro de um

fosso, evocam um Dostoievski rústico e antecipam a exploração dos “subterrâneos”.

Apenas a relação consciente com Deus, nem que seja através da mais humilde

oração, nos libera da negação, permite ao Pai intervir e nos proteger do caos

(história do estaroste tentado). O pensamento se explicita num verdadeiro tratado

consagrado à penitência e que mostra o que é realmente o pecado: decepção,

separação, esquecimento.

Segue-se uma dupla iniciação à “Oração de Jesus” A primeira, de caráter

propriamente espiritual, é dada por um monge grego vindo do Monte Athos[1]. As

diversas palavras da prece – “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de

mim pecador” – são apresentadas com suas respectivas acentuações, e descobrimos

que a compreensão espiritual de cada uma constitui um dom do espírito: a Prece de

Jesus é o lugar dos carismas como, em São Paulo, a reunião eucarística; sabemos

que a invocação não tem outro objetivo senão o de interiorizar a eucaristia.

A prece transforma a angústia em confiança tranquila. Aquele que reza não precisa

mais de um bode expiatório, ele intercede por toda a humanidade que o Cristo

reunificou[2]. E o episódio do desertor mostra que a oração reconcilia com os pais e

com a terra.

Vem então uma segunda iniciação, pelo estudo dos fundamentos neo-testamentários

da invocação, onde vemos, entre outras coisas, como João e os Atos dos Apóstolos

sublinham, dentro de uma perspectiva pneumatológica, o mistério e o poder do Nome

no qual Deus, em Jesus, revela-se “aquele que liberta”.

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O Sexto Relato desenvolve sobre a força do Evangelho que faz desaparecer as

aparências demoníacas (história do francês). Depois, retomando a problemática

paulina da salvação, ele procura o lugar do homem na oração: é a frequência desta,

a humilde quantidade de um apelo no qual se oferece a fé (O segredo da salvação

revelado pela prece perpétua).

A invocação é possível a todos, podemos orar “em todos os momentos, em todas as

circunstâncias e em todos os lugares”, a prece pode acompanhar o trabalho

intelectual mais absorvente, desde que o façamos na presença do Rei.

Como o jejum, a invocação implica uma antropologia unitária. O jejum deve levantar

em nós a fome de Deus. A evocação desperta o coração, pois “o coração do homem –

dizia Nicolas Cabasilas – foi criado como um cofre capaz de conter o próprio Deus”.

Aquilo que, definitivamente, impele o homem a rezar, é a exigência de ser, e o ser

revela-se comunhão. O homem encontra na prece, vale dizer na relação consciente

com Deus, a alegria de ser, esta “pleroforia” tão cara à espiritualidade oriental. O

homem é oração e um dos interlocutores do Peregrino, um monge veterano, podia

dizer, parafraseando santo Agostinho: “Reze e faça o que quiser” (O poder da

prece).

O Sétimo Relato é um elogio da vida contemplativa, mais especificamente sob sua

forma eremítica, onde reencontramos, em plena Europa moderna, a exigência

carismática do primeiro monaquismo. Uma polêmica vigorosa justifica, contra todo

moralismo utilitário, a gratuidade da adoração. O espiritual conduz uma exploração

pelos espaços interiores que ele nos deixa como um mapa. Seu exemplo e sua

irradiação designam, para além dos maiores sucessos político-sociais, o Reino que

ultrapassa a história, a relativiza e vivifica.

Este último Relato, o mais breve, é como os demais abundante em indicações

práticas: como conduzir-se na falta de um mestre espiritual; o que significa a oração

sem imagens; e o livro termina com o texto de uma sóbria e profunda prece em

intenção do próximo: em toda esta tradição, como sabemos, a fé veiculada na oração

deve frutificar em uma compaixão sem limites.

Olivier Clément

QUINTO RELATO

O estaroste: Um ano se passou desde a última vez que vi o peregrino, quando

uma discreta batida à porta e uma voz suplicante anunciaram-me a chegada

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deste irmão cheio de fervor. Entre, meu caro, agradeçamos juntos a Deus por ter

abençoado seus caminhos e por tê-lo trazido de volta.

O peregrino: Glória e agradecimentos ao Pai Altíssimo por sua bondade em

todas as coisas, que ele ordena como lhe apraz, e sempre para o nosso bem, nós

que somos peregrinos e estrangeiros numa terra estranha. Eis-me aqui, pecador,

que o deixei no último ano e que novamente, pela graça de Deus, pensei valer a

pena vê-lo e ouvir sua alegre acolhida. E certamente, você espera de mim uma

descrição completa da Cidade de Deus, Jerusalém, pela qual minha alma padecia

e para onde eu tinha a firme intenção de me dirigir. Mas nossos desejos nem

sempre se cumprem e foi o que aconteceu no meu caso. Não é de espantar;

como, pecador que sou, poderia me considerar digno de pisar o solo sagrado no

qual os pés divinos de Nosso Senhor Jesus Cristo deixaram suas pegadas?

Você se lembra, meu pai, que eu deixei este lugar no último ano acompanhado

de um velho homem surdo e que eu possuía uma carta de um negociante de

Irkutsk para seu filho em Odessa, pedindo-lhe que me enviasse a Jerusalém. Pois

bem, chegamos a Odessa sem problemas e em muito pouco tempo. Meu

companheiro logo adquiriu uma passagem num navio para Constantinopla e

partiu. Quanto a mim, saí a buscar o filho do comerciante conforme o endereço

que constava na carta. Num curto espaço de tempo encontrei a casa, mas lá fui

surpreendido e entristeci-me por saber que meu benfeitor já não era vivo. Ele

havia falecido há três semanas, após uma curta doença. Isto em muito me

desencorajou, mas ainda mantive a confiança no poder de Deus.

Toda a casa estava de luto, e a viúva que permanecia com seus três filhos

pequenos achava-se em grande miséria, chorando todo o tempo e desfalecendo

de tristeza várias vezes ao dia. Sua angústia era tão grande que dizia-se que ela

também não viveria por muito mais tempo. No entanto, em meio a tudo isto, ela

me recebeu amavelmente, mas no estado em que se encontravam seus negócios

ela não pode me enviar a Jerusalém. Ela pediu-me que permanecesse com ela por

cerca de uma quinzena até que seu sogro viesse a Odessa, como ele havia

prometido, para colocar em ordem os negócios da infeliz família. Assim, fiquei.

Uma semana se passou, um mês, depois outro, mas, ao invés de vir, o

negociante escreveu para dizer que seus próprios negócios não lhe permitiam

deslocar-se e aconselhava sua nora a desfazer-se dos seus sócios e funcionários

e viajar imediatamente a Irkutsk. Começou a agitação da mudança e, como vi que

já não podia ser útil, agradeci sua hospitalidade e tomei meu caminho. Mais uma

vez eu me vi errante através da Rússia.

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Eu pensei e pensei. Para onde iria agora? No fim, decidi que antes de qualquer

coisa eu poderia bem ir a Kiev, que há anos não visitava. Assim eu me pus a

caminho. Naturalmente, eu me atormentava por não ter podido manter meu

voto de ir a Jerusalém, mas pensava, refletindo, que mesmo isto não poderia ter

acontecido sem a intervenção providencial de Deus e assim me tranquilizava,

esperando que Deus que ama os homens aceitaria minha intenção pelo ato e

não deixaria minha viagem ser interrompida sem uma edificação espiritual. E

assim foi, pois eu encontrei pessoas que me mostraram muitas coisas que eu não

sabia e que, para minha salvação, iluminaram minha alma obscurecida. Se a

necessidade não houvesse me obrigado a esta viagem, eu não teria encontrado

estes benfeitores espirituais.

Eu seguia durante o dia com a oração, e ao entardecer, quando me detinha

esperando a noite, eu lia a minha Filocalia para reafirmar e estimular minha

alma na luta contra os invisíveis inimigos da salvação.

A meio caminho, cerca de sessenta e quatro verstas[3] de Odessa, fui

testemunha de uma coisa surpreendente. Havia um longo comboio de carroças

carregadas de mercadorias; seriam no mínimo trinta. Passei por elas. O primeiro

condutor, chefe da fila, caminhava ao lado do seu cavalo e os demais seguiam

em grupo a certa distância. A estrada acompanhava uma represa alimentada por

um córrego, e o gelo que derretia sob a primavera ficava à deriva e acumulava-se

nas margens com um barulho terrível. De súbito, o condutor chefe, um homem

jovem, deteve seu cavalo e logo toda a fila parou também. Os outros condutores

correram para ele, viram que ele começava a se despir e lhe perguntaram o

porquê. Ele lhes respondeu que tinha grande desejo de banhar-se na represa.

Alguns, espantados, começaram a rir-se dele, outros começaram a repreendê-lo

tratando-o como louco e o mais velho, seu próprio irmão, tentou impedi-lo

empurrando-o para fazê-lo partir; o outro se defendia e se recusava a fazer o que

lhe era dito. Alguns dos jovens condutores, tomando água da represa nos baldes

que usavam para dessedentar os cavalos, jogaram-na para satisfazer o homem

que desejava banhar-se, tanto sobre a cabeça como sobre as costas, dizendo: “Aí

está, somos nós que vamos banhá-lo.” Assim que a água tocou seu corpo, ele

gritou: “Ah, isto é bom!” Ele sentou-se no chão e eles continuaram a lhe jogar

água. Depois, rapidamente, ele se deitou e morreu. Todos foram tomados de

pavor, sem compreender porque aquilo havia acontecido.

Eu permaneci com eles cerca de uma hora, depois retomei meu caminho. Mais

ou menos a cinco verstas adiante, vi uma aldeia junto à estrada, e entrando nela

encontrei um velho sacerdote que seguia pela rua. Pensei em contar-lhe o que

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acabara de ver para perguntar-lhe o que pensar disto. O sacerdote conduziu-me

à sua casa, e eu contei-lhe a história, pedindo-o que me explicasse a causa de tal

evento.

- Nada posso dizer-lhe, caro irmão, exceto talvez isto: que existem na

natureza muitas coisas espantosas que não podemos conhecer. Isto, penso eu,

foi disposto por Deus que mostra com mais clareza aos homens seu poder e sua

intervenção providenciais na natureza, produzindo às vezes nas próprias leis

destas alterações anormais e súbitas. Uma vez fui testemunha de um caso

desses. Perto de nossa aldeia existe uma ravina profunda e abrupta, não muito

larga, mas com setenta pés ou mais de profundidade. Dá medo olhar seu fundo

escuro. Sobre ela foi construída uma passarela. Um homem de minha paróquia,

pai de família muito respeitado, foi subitamente tomado, sem nenhuma razão,

do irresistível desejo de atirar-se do alto desta pequena ponte para as

profundezas da ravina. Ele lutou contra esta ideia e resistiu ao impulso durante

uma semana. No fim, já não lhe foi mais possível conter-se. Ele levantou-se de

manhã, saiu precipitadamente e atirou-se no vazio. Logo ouvimos seus gemidos

e com grandes esforços o tiramos do abismo; ele tinha as pernas quebradas.

Quando lhe perguntamos a razão de sua queda, ele respondeu que apesar do

grande sofrimento que experimentava agora, tinha o espírito em paz por haver

cumprido o irresistível desejo que o havia obcecado durante uma semana, e pelo

qual arriscara sua vida.

Ele passou um ano inteiro no hospital até curar-se. Eu ia vê-lo e muitas vezes

encontrava os médicos ao seu redor. Como você, eu queria saber deles a causa do

ocorrido. Os médicos respondiam unanimemente que se tratava de um

“frenesi”. Quando eu lhes pedia uma explicação científica do que era isto, nada

mais conseguia arrancar deles, senão que se tratava de um desses segredos da

natureza inacessíveis à ciência. Quanto a mim, pensava que se, em presença de

um destes mistérios da natureza, a pessoa se pusesse a orar a Deus e a pedir

conselho a homens espirituais, este irresistível “frenesi”, como diziam os

médicos, não poderia de modo algum triunfar.

Em realidade, encontramos na vida humana muitas coisas das quais não

conseguimos ter uma compreensão clara.

Enquanto conversávamos, escureceu e acabei passando a noite ali. No dia

seguinte pela manhã, o prefeito enviou seu secretário para pedir ao sacerdote

que enterrasse o morto no cemitério e para dizer que os médicos, depois da

autópsia, não encontraram nenhum sinal de loucura e declararam que a morte

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fora devida a um ataque súbito.

- Como você vê, disse-me o sacerdote, a ciência médica não pode fornecer

nenhuma razão precisa para este incontrolável impulso para a água.

E assim despedi-me do sacerdote e retomei meu caminho. Após haver viajado

por muitos dias, e sentindo-me muito fatigado, cheguei a uma cidade comercial

bastante importante chamada Bielaia Tserkov. Como já se aproximava o

crepúsculo, pus-me a procurar um alojamento para passar a noite. No mercado,

encontrei um homem que parecia ser também um viajante. Ele perguntava nas

lojas pelo endereço de uma pessoa que vivia nos arredores. Quando me viu, veio

até mim e disse:

- Você parece ser também um peregrino. Tentemos juntos encontrar um

homem chamado Evreinov que mora nesta cidade. É um bom cristão, ele

mantém um esplêndido albergue e acolhe muito bem os peregrinos. Veja, eu

tenho aqui algo escrito a seu respeito.

Aceitei com alegria, e logo encontramos a casa. Embora o proprietário não

estivesse, sua esposa, uma boa senhora, nos recebeu amavelmente e nos

ofereceu, sobre o celeiro, uma mansarda separada para repousarmos.

Meu companheiro disse-me que era comerciante em Moghilev, e que havia

passado dois anos na Bessarábia como noviço num mosteiro, mas apenas com

passaporte temporário. Ele agora estava retornando o caminho para obter da

corporação dos comerciantes o consentimento para sua entrada definitiva na

vida monástica.

- Aqueles mosteiros, sua constituição, sua ordem e a vida estrita dos

numerosos e piedosos startsi[4] que aí vivem me agrada sobremaneira.

Ele assegurou-me que os mosteiros da Bessarábia, ao lado daqueles da Rússia,

eram como o Paraíso comparado com a terra, e incentivou-me a acompanhá-lo.

Enquanto falamos sobre estas coisas, chegou um terceiro hóspede em nosso

quarto. Era um sub-oficial que voltava para casa de licença. Vimos que ele estava

esgotado pela viagem. Dissemos juntos nossas orações e nos deitamos para

dormir. No dia seguinte de manhãzinha já estávamos todos de pé e nos

preparando para retomar o caminho; já íamos agradecer aos nossos anfitriões,

quando ouvimos soarem os sinos das matinais. O comerciante e eu nos

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perguntamos o que fazer: como partir, tendo ouvindo os sinos, sem antes irmos

à igreja? Era preferível aguardar e dizermos nossas preces na igreja, após o que

poderíamos partir alegremente.

Tendo tomado esta decisão, fomos chamar o sub-oficial. Mas ele nos disse:

- O que significa ir à igreja quando se viaja? Que importa a Deus se vamos

ou não? Partamos, e depois diremos nossas orações. Vão vocês, se quiserem,

não eu. No tempo que vocês vão passar nas matinais, eu estarei a cinco verstas

daqui ou quase, e quero chegar em casa o quanto antes.

Diante disto, o comerciante respondeu:

- Irmão, não corra tanto com seus projetos sem antes saber quais são as

intenções de Deus!

E assim fomos à igreja, enquanto ele tomava seu caminho.

Ficamos durante as matinais e durante a Liturgia [eucarística]. Depois

regressamos à nossa mansarda para preparar nossos apetrechos e partir; mas,

que vimos então? Nossa anfitriã, carregando um samovar.

- Aonde vão vocês?, disse ela, precisamos tomar uma taça de chá. E também

farão o desjejum conosco. Não podemos deixá-los partir famintos.

Ficamos, portanto. E não fazia meia hora que estávamos sentados ao redor do

samovar, quando chegou nosso sub-oficial correndo e ofegante:

- Chego a vocês com dor e alegria ao mesmo tempo!, disse ele.

- O que aconteceu?, perguntamos nós.

- Depois que eu os deixei e parti, veio-me a ideia de ir ao café para obter

algumas moedas trocadas e ao mesmo tempo comer alguma coisa para melhor

enfrentar o caminho. Para lá me dirigi; troquei meu dinheiro, comi alguma coisa

e parti como um passarinho. Quando já havia caminhado cerca de três verstas,

resolvi contar as moedas que o homem o café me dera. Sentei-me à beira do

caminho, saquei minha carteira e tranquilamente examinei seu conteúdo.

Subitamente descobri que meu passaporte não estava ali: havia apenas o

dinheiro e alguns papéis. Fui tomado de pânico, como se houvesse perdido a

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cabeça! Num relance, vi tudo o que havia se passado: naturalmente, eu o deixara

cair enquanto pagava o café. Era preciso voltar correndo: e eu corri e corri! Outra

ideia temível me ocorreu: e se ele não estivesse lá! Seria um enorme problema!

Precipitei-me para o homem do balcão e indaguei-o, mas ele nada vira.

Fiquei desesperado! Então, comecei a refazer todo o meu caminho e a procurar

por toda parte, por onde andara, por onde estivera e – acreditem! – tive a sorte

de encontrar meu passaporte. Lá estava ele, ainda dobrado, no chão entre a

palha e a poeira, pisado no meio da sujeira. Graças a Deus! Eu estava tão feliz, é

como se uma montanha tivesse sido tirada de minhas costas. É claro, o

passaporte estava sujo e coberto de terra, vai valer-me um safanão, mas isso não

importa. Em todo caso, já posso voltar para casa e relembrar meu berço querido.

Mas eu quis vir aqui para contar-lhes. E o que é melhor é que, à custa de correr

em meu desespero, tenho os pés em carne viva e mal consigo andar. Assim, vim

também pedir alguma pomada para fazer um curativo.

- Eis aí, meu irmão, disse o comerciante, o que aconteceu porque você não

quis nos escutar e vir conosco à igreja. Você queria tomar uma grande dianteira

sobre nós e, ao contrário, ei-lo aqui de volta, e ainda por cima estropiado. Bem

que eu lhe disse para não correr tão afoito atrás dos seus planos. Veja agora

aonde você está. Não custava nada ter ido conosco à igreja, mas você disse: “Que

diferença faz a Deus que rezemos?” Foi aí, caro irmão, que você errou.

Naturalmente, Deus não tem necessidade de nossas preces de pecadores, mas

apesar de tudo, ele gosta que rezemos. O que lhe agrada, é não só a oração que o

próprio Espírito Santo eleva em nós e nos ajuda a oferecer, mas cada impulso,

cada pensamento oferecido em sua glória. Em troca, a misericórdia infinita de

Deus oferece recompensas generosas. O amor de Deus prodigaliza a graça mil

vezes mais do que o merecem as ações humanas. Se você lhe der o menor

trocado, ele retornará a você em ouro. Se você simplesmente se propuser a ir ao

encontro do Pai, ele virá ao seu encontro. Diga apenas uma palavra breve, ainda

que sem convicção: “Receba-me, tem piedade de mim”, e ele correrá a abraçá-lo.

Eis como o Pai celeste nos ama, por indignos que sejamos. E simplesmente

devido a este amor, ele se alegra com cada passo que damos, ainda que pequeno,

na direção da salvação. Mas você pensou: “Que glória poderá haver aí para Deus?

Que vantagem há para nós, se apenas rezamos um pouco e logo deixamos

nossos pensamentos errarem por aí novamente, ou se ao contrário nos

empenhamos no bem, como dizer uma prece com cinco ou seis inclinações, ou

soltar um suspiro sincero ao invocar o nome de Jesus, ou ainda prestar atenção a

um bom pensamento, dedicar um tempo a uma leitura espiritual, abstermo-nos

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de comida, suportar em silêncio uma afronta?” Tudo isso não lhe parece bastar

para a sua salvação, e parece inútil a você praticá-lo. Não! Nenhum destes atos

humildes é feito em vão. Deus, que tudo vê, levará isto em conta e o

recompensará nesta vida. São João Crisóstomo afirma: “Nenhum bem, de

nenhum tipo, por insignificante que seja, será desdenhado no Juízo equânime.

Se os pecados devem ser buscados com tal minúcia que prestaremos conta de

cada palavra, desejo ou pensamento, quanto mais os bons atos, por mínimos

que sejam, serão tomados em consideração e contarão diante de nosso Juiz

cheio de amor!”

Eu vou contar-lhes um caso que testemunhei no ano passado. No mosteiro da

Bessarábia em que eu vivia, havia um estaroste, monge de vida santa. Um dia ele

foi assaltado por uma tentação: sentiu um grande apetite por peixe seco. Mas,

como era impossível que houvesse no mosteiro nesta época, ele concebeu a

ideia de ir buscar no mercado. Ele lutou contra esta ideia durante muito tempo,

e controlava-se pensando que um monge deve satisfazer-se com o que é

preparado para todos os irmãos e que ele deve, por todos os meios, evitar as

tentações. Por outro lado, percorrer o mercado no meio da multidão seria para

um monge uma fonte de tentações, além de inconveniente. Mas no final, as

mentiras do inimigo prevaleceram sobre suas objeções e ele, cedendo ao seu

desejo, decidiu-se a partir para procurar o peixe.

Depois de ter deixado o mosteiro e enquanto caminhava pela rua, ele percebeu

que não tinha seu terço à mão, e se pôs a pensar: “Irei eu como um soldado sem

sua espada?” Ele se preparava para voltar a buscá-lo quando, procurando em sua

bolsa, achou-o. Ele o tirou, fez o sinal da cruz e, de terço à mão, foi-se

calmamente. Quando se aproximava do mercado, viu um cavalo parado diante

de uma loja, atrelado a uma carroça carregada de enormes barris. De repente este

cavalo, assustando-se com sabe-se lá o que, arrancou bruscamente e atropelou o

monge, atingindo-o nas costas e atirando-o ao chão mas sem fazer-lhe grande

mal. Em seguida, a dois passos dele, a carga inclinou-se e a carroça se fez em

pedaços. Ele ergueu-se prontamente e, ao passar o susto, maravilhou-se pelo

modo como Deus poupara sua vida, pois se a carga houvesse tombado meio

segundo antes, ele teria sido esmagado como a carroça. Sem pensar mais, ele

adquiriu seu peixe, voltou ao mosteiro, comeu-o, disse suas orações e deitou-se

para dormir.

Mal havia adormecido, e em sonhos um estaroste de aspecto indulgente, que ele

não conhecia, apareceu-lhe e disse:

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“Eu sou o protetor desta casa e desejo instruí-lo para que você compreenda e se

lembre da lição que lhe foi dada. Veja: sua falta de esforço contra o pensamento

do prazer, e sua preguiça em discerni-lo e dominá-lo deram ao Inimigo a chance

para atacá-lo. Ele havia preparado o desastre para você. Mas seu anjo guardião

pressentiu-o e lhe sugeriu oferecer uma prece e lembrar-se do terço. Como você

escutou esta sugestão e a pôs em prática, isto salvou-o da morte. Veja portanto o

amor de Deus pelos homens, e sua generosa recompensa ao menor olhar que lhe

voltamos.”

Dizendo estas palavras, o estaroste da visão desapareceu rapidamente da cela. O

monge ajoelhou-se e, ao fazê-lo, acordou, encontrando-se não sobre seu leito,

mais de joelhos, prosternado no umbral da porta. Ele contou a história de sua

visão em benefício espiritual de muitos, inclusive meu próprio.

O amor de Deus verdadeiramente não tem limites para conosco, os pecadores.

Não é maravilhoso que um ato tão pequeno – não mais do que tirar o terço da

bolsa, tomá-lo nas mãos e invocar uma vez o nome de Deus – tenha podido

salvar a vida de um homem, e que na balança do Juízo, um só curto momento de

invocação de Jesus possa compensar numerosas horas de preguiça? Na verdade,

eis o pagamento em ouro em troca de uma mísera moeda. Veja, irmão, o poder

da oração e do nome de Jesus, quando o invocamos. João de Carpathos, na

Filocalia, diz que quando, na prece de Jesus, invocamos o santo Nome e

dizemos: “Tem piedade de mim pecador”, a cada apelo a voz de Deus responde

em segredo: “Meu filho, seus pecados estão perdoados.” E ele acrescenta que, no

momento em que dizemos a oração, nada nos distingue dos santos, dos

confessores e dos mártires. Pois, diz são João Crisóstomo, “por mais cobertos de

pecados que sejamos, quando pronunciamos a oração, ela nos purifica de

imediato. A misericórdia de Deus para conosco é grande, embora nós, os

pecadores, sejamos descuidados, embora sequer lhe dediquemos uma hora em

agradecimento e troquemos pelos negócios e o dia-a-dia a oração que tem mais

importância do que todo o resto, esquecendo-nos de Deus e de nosso dever. É

por isso que muitas vezes rejeitamos as dores e as calamidades que o Amor

infinito da Providência divina utiliza também para nossa edificação e para elevar

nossos corações para Deus.

Quando o mercador terminou de falar ao suboficial, eu lhe disse:

- Que alívio você trouxe também à minha alma pecadora! Eu me

prosternaria de bom grado aos seus pés!

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Ouvindo estas palavras, ele voltou-se para mim e disse:

- Você parece gostar bastante de histórias religiosas. Espere, eu vou ler-lhe

outra semelhante a esta que contei. Eu tenho aqui um livro com o qual eu viajo,

intitulado Agapia, ou A Salvação dos pecadores. Há aí uma grande quantidade de

coisas interessantes.

Ele tirou o volume de sua bolsa e começou a ler uma magnífica história a

respeito de Agatônico, a quem desde a infância os piedosos pais ensinaram a

dizer diariamente, diante do ícone da Mãe de Deus, a prece que inicia com

“Alegra-te, Virgem que esperas Deus.” Assim ele o fez todos os dias. Mais tarde,

tendo crescido, ele se deixou absorver pelos negócios e pela agitação da vida, e

começou a dizer a oração cada vez mais raramente, terminando por abandoná-

la.

Um dia, ele abrigou para que passasse a noite um peregrino que lhe disse ser um

eremita de Tebaida e que tivera uma visão na qual recebera ordem de procurar

um certo Agatônico e repreendê-lo por haver abandonado a oração à Mãe de

Deus. Agatônico desculpou-se dizendo que ele havia repetido a prece por anos a

fio sem obter nenhum resultado. O eremita então lhe disse:

“Lembre-se, cego e ingrato, quantas vezes esta oração o ajudou e o salvou do

desastre. Lembra-se como, na sua juventude, você foi milagrosamente salvo de

um afogamento? E quando uma epidemia levou tantos amigos seus, enquanto

você conservou a saúde? Lembra-se da vez em que, levando um amigo, a carroça

virou? Ele quebrou a perna, mas você saiu ileso. Não sabe você que um

conhecido seu, jovem e forte, está estendido, doente e fraco, enquanto você

goza de boa saúde?”

Ele recordou a Agatônico muitas outras coisas. Para terminar, disse-lhe:

“Saiba então que todas estas penas foram afastadas de você pela proteção da

santíssima Mãe de Deus, graças a esta curta prece que, a cada dia, unia o seu

coração a Deus. Tome cuidado daqui para frente, retome-a e não abandone mais

o louvor à Rainha dos céus, para que ela não o esqueça.”

Quando ele terminou de ler, fomos chamados para o almoço, após o qual, com

as forças renovadas, agradecemos nossos anfitriões e tomamos nosso caminho.

Depois nos separamos, e cada qual foi para o seu lado, como melhor lhe

parecesse.

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Caminhei durante quase cinco dias, reconfortado pelas histórias que ouvira do

bom mercador de Bielaia Tserkov, e já me aproximava de Kiev. Porém de

repente, sem nenhuma razão, comecei a sentir-me triste e pesado, e meus

pensamentos se encheram de opacidade e desencorajamento. A oração vinha-

me penosamente e uma espécie de indolência tomava conta de mim. Vendo

adiante um bosque guarnecido de espessos arbustos à beira do caminho, nele

entrei para repousar um pouco, buscando um lugar apartado aonde eu pudesse

me sentar e ler a Filocalia, a fim de elevar meu espírito enfraquecido e combater

minha preguiça. Encontrei um local tranquilo e comecei a ler Cassiano o

Romano[5], na quarta parte da Filocalia, sobre os Oito Pensamentos de Evagro. Já

estava lendo com prazer há cerca de meia hora quando percebi inesperadamente

a silhueta de um homem a uns cem metros de mim, mais para o interior da

floresta. Ele estava imóvel, ajoelhado. Eu fiquei feliz em vê-lo, pois concluí que

ele rezava, e voltei à minha leitura. Continuei a ler por uma hora ou mais, e

olhei outra vez para ele. O homem continuava lá, sempre ajoelhado e sem o

menor movimento. Fiquei muito emocionado e pensei: “Como existem fiéis

servidores de Deus!”

Enquanto eu refletia sobre isto, subitamente o homem caiu por terra e ficou

estendido calmamente. Fiquei surpreendido e como não havia visto seu rosto,

pois ele estava de costas para mim quando ajoelhado, senti-me curioso para

avançar e ver quem era. Tratava-se de um jovem camponês, com cerca de vinte e

cinco anos. Ele tinha o rosto simpático, bom aspecto, mas muito pálido. Estava

vestido com um caftan comum, com uma corda de fibra de tília à guisa de cinto.

Nada mais havia de especial nele. Ele não possuía embornal, nem sequer bastão.

O ruído de minha aproximação acordou-o e ele se levantou. Eu lhe perguntei

quem era; ele me disse que era originário da província de Smolensk e que vinha

de Kiev.

- E para onde vai agora?, perguntei-lhe.

- Nem mesmo eu o sei; para onde me conduza Deus, respondeu.

- Faz tempo que você deixou sua casa?

- Sim, perto de quatro anos.

- Aonde você viveu por todo este tempo?

- Eu andei de santuário em santuário, pelos mosteiros e as igrejas. Minha

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casa já não fazia sentido para mim. Sou órfão e não tenho parentes. Além disso,

tenho um pé torto. Assim, sigo errando pelo mundo.

- Alguém que temia a Deus, ao que parece, ensinou-o a não vagar por não

importa onde, mas a visitar os lugares santos, disse-lhe eu.

- Pois bem, veja você, respondeu ele; não tendo pai nem mãe, desde criança

cresci no meio dos pastores, e fui feliz até a idade de dez anos. Depois, um dia,

eu conduzi o rebanho de volta para casa, sem perceber que a melhor ovelha

estava faltando. Nosso patrão era um homem duro e desumano. Quando ele

chegou ao entardecer e viu que sua ovelha tinha-se perdido, ele atirou-se sobre

mim com injúrias e ameaças. Ele jurou que, se eu não a encontrasse, ele me

bateria até a morte e ainda quebraria meus braços e pernas. Sabendo o quanto

ele era cruel, eu parti em busca da ovelha, voltando aos lugares aonde ela havia

pastado durante o dia. Eu procurei e procurei por mais de metade da noite, mas

não encontrei nem traço seu em parte alguma. Era uma noite muito escura,

também, pois aproximava-se o outono. Quando eu estava mais profundamente

enfiado dentro da floresta – e, em nossa província as florestas são imensas –

ergueu-se subitamente uma tempestade. Era como se as árvores vacilassem. Ao

longe os lobos puseram-se a uivar. Fui presa de enorme terror, a ponto de meus

cabelos eriçarem-se sobre minha cabeça Tudo se tornava mais e mais

apavorante, a tal ponto que pensei em desfalecer de pânico e horror. Então caí

de joelhos e fiz o sinal da cruz; e, com todo meu coração, disse: “Senhor Jesus

Cristo, tem piedade de mim!”

Mal acabara de dizer estas palavras e senti-me inteiramente em paz, como se

não tivesse tido o menor contratempo. Todo o meu medo desapareceu e eu senti

o coração alegre, como se eu tivesse sido transportado aos céus. Eu estava cheio

de felicidade, mas veja, não parava um instante de dizer a oração. Ainda hoje

não sei quanto tempo durou a tempestade, nem como passei o resto da noite. Vi

chegar o dia e ali estava eu, ajoelhado no mesmo lugar. Levantei-me

calmamente, compreendi que jamais encontraria a ovelha, e comecei a retornar

à sede. Mas tudo ia bem em meu coração e eu repetia a prece para

contentamento do coração. Assim que eu cheguei à aldeia, o patrão viu que não

trouxera a ovelha e me bateu até que eu fiquei meio morto; ele quebrou-me este

pé, como você pode ver. Depois deste castigo, eu fiquei deitado, quase sem poder

me mover, durante seis semanas. Tudo o que eu sabia era que eu recitava a

oração e que ela me reconfortava. Quando me senti um pouco melhor, passei a

vagar pelo mundo, e como não me interessava o acotovelamento das multidões,

que além disso propiciam ocasião para muitos pecados, tomei a decisão de ir de

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um lugar santo a outro, e sempre pelo interior das florestas. Eis como se

passaram já quase cinco anos.

Quando ouvi este relato, meu coração encheu-se de alegria porque Deus julgou-

me digno de encontrar um homem tão bom, e perguntei-lhe:

- E você ainda utiliza a oração até hoje?

- Eu não poderia viver sem ela, respondeu ele. Veja, cada vez que eu

rememoro como caí de joelhos pela primeira vez dentro daquela floresta, é como

se alguém me empurrasse de novo de joelhos, e eu começo a rezar. Eu não sei se

a minha humilde oração agrada ou não a Deus. Pois, ao rezar, às vezes sinto

uma grande felicidade, como que uma leveza da alma, uma espécie de alegre

plenitude; mas em outras ocasiões, sinto um peso triste e um enfraquecimento

espiritual. Apesar de tudo, meu desejo é de continuar orando, até a morte.

- Não fique aflito, meu querido irmão. Tudo agrada a Deus e serve à nossa

salvação – tudo, sem exceção, das coisas que sobrevêm durante a prece. É o que

dizem os santos Padres. Seja a leveza ou a pesandez do coração, tudo está certo.

Nenhuma prece, boa ou ruim, é insuficiente aos olhos de Deus. Leveza, calor e

alegria mostram-nos que Deus nos recompensa e nos consola do esforço,

enquanto que o peso, a obscuridade e a secura significam que Deus purifica e

fortifica a alma, e com esta prova salutar a salva, preparando-a na humildade

para as alegrias do porvir. Como testemunho disto, vou ler-lhe algo que foi

escrito por são João Clímaco.

Encontrei a passagem e a li. Ele escutou-a com atenção e alegrou-se. Depois

agradeceu-me muito, e nos despedimos. Ele partiu diretamente para as

profundezas da floresta e eu retomei meu caminho. Continuei em minha rota,

agradecendo a Deus por haver-me considerado, pecador que sou, digno de

receber tal ensinamento.

No dia seguinte, com a ajuda de Deus, cheguei a Kiev. A primeira e principal

coisa que eu desejava fazer era jejuar um pouco, confessar e comungar nesta

santa cidade.

Fiquei hospedado perto dos Santos[6], porque era mais cômodo para ir à igreja.

Um bom ancião cossaco acolheu-me e, como vivia só em sua cabana, ali

encontrei tranquilidade. Durante a semana na qual me preparava para fazer a

confissão veio-me a ideia de fazê-la o mais detalhada possível. Pus-me então a

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rememorar e examinar todos os meus pecados desde a minha juventude, com

toda precisão, e, para não omitir nada, escrevi tudo o que pude lembrar nos

menores detalhes. Assim enchi toda uma folha de papel.

Fiquei sabendo que em Kitaevaya Poustina, a cerca de sete verstas de Kiev, havia

um sacerdote de vida ascética e grande discernimento. Quem se confessava com

ele encontrava uma atmosfera de terna compaixão e levava um ensinamento

para a salvação e a paz da alma. Fiquei contente por saber disso e parti

imediatamente para ir até ele. Solicitei sua assistência e conversamos por alguns

momentos, e depois estendi-lhe a minha folha de papel. Ele a leu inteiramente

e me disse:

- Meu caro, uma grande parte do que você escreveu aqui é totalmente fútil.

Escute. Em primeiro lugar, não confesse pecados dos quais você já se arrependeu

e que lhe foram perdoados. Não volte a eles, pois isto equivaleria a colocar em

dúvida o sacramento da penitência. Depois, não traga para a sua lembrança as

outras pessoas que estiveram associadas aos seus pecados: julgue apenas a você

mesmo. Em terceiro lugar, os santos Padres nos proíbem de mencionar todas as

circunstâncias dos pecados, e nos mandam confessá-los em termos gerais, de

modo a afastar a tentação tanto de nós mesmos como do confessor. Em quarto

lugar, você veio para se arrepender, mas não se arrepende por não saber

arrepender-se – vale dizer, sua penitência é tíbia e negligente. Em quinto lugar,

você se estendeu sobre todos esses detalhes, mas não se deu conta do mais

importante: você não expôs o pecado mais grave de todos! Você não confessou

nem escreveu que você não ama a Deus, que você odeia seu próximo, que você

não crê no Verbo de Deus e que você não passa de puro orgulho e ambição. O

mal está enraizado nestes quatro pecados, nos quais reside toda nossa

depravação espiritual. Eles são as raízes mestras de onde nascem os brotos de

todos os pecados diante dos quais sucumbimos.

Fiquei muito surpreso de ouvir isto, e disse:

- Perdoe-me, Pai, mas como é possível não amar a Deus, nosso Criador e

nosso Salvador? No que iremos crer, senão no Verbo de Deus, onde está toda a

verdade e toda a santidade? Eu desejo o bem de todos os meus semelhantes,

porque os odiaria? Eu não tenho nada de que me orgulhar; de fato, cheio de

inumeráveis pecados, nada tenho que mereça ser louvado e ninguém pode

invejar minha pobreza e minha saúde débil. Ora bem, se eu fosse um homem

instruído e rico, então sim eu seria culpado das coisas das quais me fala.

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- É uma pena, meu caro, que você tenha compreendido tão pouco daquilo

que lhe disse. Mas, vejamos! Você aprenderá mais depressa se eu lhe der estas

anotações. Eu me sirvo dela para minhas próprias confissões. Leia-as do começo

ao fim, e você verá com clareza a prova exata do que eu lhe disse agora.

Ele me deu as anotações e eu as li. Ei-las a seguir.

***

UMA CONFISSÃO QUE CONDUZ

O HOMEM INTERIOR À HUMILDADE

Voltando atentamente meu olhar sobre mim mesmo e examinando as disposições da

minha consciência, verifiquei por experiência própria que eu não amo a Deus, que eu

não amo meus semelhantes, que eu não tenho fé e que eu sou um poço de orgulho e

cupidez. Tudo isto, eu encontrei realmente em mim mesmo, depois de um exame

detalhado dos meus sentimentos e de minha consciência. Assim é que:

Eu não amo a Deus , pois se eu amasse a Deus eu pensaria continuamente nele

com uma alegria profunda. Cada pensamento de Deus me encheria de prazer e

delícias. Ao contrário, com muito mais frequência e ardor, eu penso nas coisas do

mundo, e pensar em Deus é para mim um árduo e árido trabalho. Se eu amasse a

Deus, falar com ele na oração seria meu alimento e minha felicidade e me arrastaria

numa comunhão ininterrupta com ele. Mas ao contrário, não só eu não encontro

nenhum gosto na prece, como ainda orar exige de mim um esforço. Eu luto

relutantemente, eu estou enfraquecido pela preguiça, e estou pronto a me envolver

com não importa qual bagatela sem importância, encurtando minhas orações e me

desviando do caminho. Meu tempo voa com as ocupações fúteis, mas quando estou

ocupado com Deus, quando me ponho em sua presença, cada hora me parece um

ano. Alguém que ama pensa no amado o dia inteiro sem parar, forma imagens dele

para si, preocupa-se com ele e em nenhuma circunstância o ser amado deixa os seus

pensamentos. Quanto a mim, de minha parte, se de todo um dia eu reservo uma hora

para mergulhar na lembrança de Deus, para inflamar por ele meu coração, vinte e

três horas eu me apresso a abandonar em ferventes oferendas aos ídolos de minhas

paixões.

Eu não quero outra coisa do que falar sobre assuntos frívolos e sobre coisas que

degradam a alma; isto me dá prazer. Mas quando se trata de meditar sobre Deus, é

a aridez, o aborrecimento e a preguiça. Mesmo quando sou involuntariamente

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conduzido por outro a temas espirituais, esforço-me para mudar de assunto até que

a conversa convenha aos meus interesses. Sou um curioso insaciável das novidades e

dos eventos políticos; procuro ardentemente satisfazer meu amor pelos

conhecimentos da ciência e das artes. Mas o estudo das Leis de Deus, o

conhecimento de Deus e da fé pouco me atraem e não respondem por nenhuma

necessidade de minha alma. Não apenas considero-os como ocupação não essencial

para um cristão, mas ainda, conforme a ocasião, como uma espécie de supérfluo

com o qual me ocupo eventualmente em meu lazer, nas horas vagas. Definitivamente,

se reconheço o amor a Deus como baseado na observação dos mandamentos – “Se

vocês me amam, observem meus mandamentos”, disse Nosso Senhor Jesus Cristo –

não apenas eu não os observo, como pouco me esforço por fazê-lo, e de tudo isso, na

verdade, resulta que eu não amo a Deus. É o que diz Basílio o Grande: “A prova que

um homem não ama a Deus e a Cristo reside no fato de que ele não cumpre os

mandamentos.”

Eu também não amo ao meu próximo, pois não somente não sou capaz de

sacrificar minha vida por ele – como pede o Evangelho – como sequer estou disposto

a sacrificar meu conforto, meu bem-estar e minha paz pelo bem do meu próximo. Se

eu o amasse como a mim mesmo, como ordena o Evangelho, suas aflições me

afligiram e suas alegrias me alegrariam. Mas ao contrário, eu ouço histórias

estranhas e infelizes sobre meu próximo e não sou atingido; eu não me perturbo

absolutamente ou, o que é pior, chego até a sentir um certo prazer. A má conduta de

um irmão, ao invés de deixá-la passar com amor, eu a proclamo e censuro. Seu bem

estar, suas honrarias e suas alegrias não me alegram como se fossem comigo, e não

sinto nenhum prazer nelas, como se fossem inteiramente estranhas a mim. Ainda por

cima, elas suscitam em mim a inveja ou o desdém.

Eu não tenho nenhuma fé religiosa , nem na imortalidade, nem no Evangelho. Se

eu estivesse firmemente persuadido sem nenhuma dúvida de que para além do

túmulo se encontra a vida eterna e a recompensa dos atos desta vida, eu pensaria

nela continuamente. A própria ideia de imortalidade me encheria de temor e eu

levaria esta vida como um estranho que se prepara para retornar um dia ao seu país

natal. Ao contrário, eu nunca penso na eternidade e considero o fim desta vida sobre

a terra como o limite da minha existência. Este pensamento secreto nasce em mim:

“Quem sabe o que acontece no momento da morte?” Se eu digo que acredito na

imortalidade, é uma simples afirmação mental e meu coração está longe de ter a

mesma firma convicção. Minha conduta e meus constantes cuidados em satisfazer a

vida de meus sentidos o provam bem.

Se meu coração tivesse fé nos santos Evangelhos como Palavra de Deus, eu me

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ocuparia deles e os estudaria continuamente, neles encontraria minhas delícias e

neles colocaria toda minha atenção com profundo fervor. A sabedoria, a graça e o

amor acham-se ocultos aí. Dia e noite eu faria de minha felicidade o estudo das Leis

de Deus. Ali estaria o meu alimento, meu pão cotidiano, e meu coração guardaria

espontaneamente a suas leis. Nada na terra poderia me fazer desviar. Porém ao

contrário, se de tempos em tempos eu ouço a Palavra de Deus, ou é por necessidade

ou pelo amor em si de conhecer; de resto, eu não presto muita atenção a ela e a

considero morna e sem interesse. Geralmente eu chego ao final de minha leitura sem

nenhum proveito, sempre pronto a mudar para uma leitura mundana na qual

encontro mais prazer e mais assuntos novos e interessantes.

Eu sou um poço de orgulho e egoísmo dos sentidos . Todas as minhas ações o

confirmam. Quando vejo algo de bom em mim, logo quero colocá-lo bem à vista ou

vangloriar-me disto perante os outros ou perante mim mesmo para admirar-me deste

bem. Embora eu transpareça uma humildade exterior, eu a imputo inteiramente aos

meus próprios méritos e considero-me um pouco superior aos outros, ou no mínimo

menos mau do que eles. Se pego uma falta em mim, apresso-me a desculpá-la e

encobri-la, dizendo: “Eu sou assim” ou “Não tenho do que me envergonhar”. Eu fico

furioso contra os que me tratam com pouco respeito e os julgo incapazes de apreciar

o valor das pessoas. Eu me vanglorio dos meus dons; os fracassos de minhas

empreitadas, eu os tomo como insultos pessoais. Eu encontro prazer na infelicidade

dos meus inimigos. Se por acaso me esforço para algo de bom, é para extrair daí

alguma glória, uma satisfação espiritual ou uma consolação terrestre. Em uma

palavra, eu faço continuamente de mim mesmo meu próprio ídolo e o sirvo sem

parar, buscando em cada coisa um alimento para minhas paixões e ambições.

Examinando tudo isto, eu vi que sou orgulhoso, corrupto, descrente, sem amor a

Deus e que odeio ao meu próximo. Que estado poderia ser mais culpado? A condição

dos espíritos das trevas é melhor do que a minha, pois eles, embora não amem a

Deus, odeiem os homens e vivam do orgulho, ao menos creem e temem. Mas, e eu?

Pode haver destino mais terrível do que o que se apresenta a mim? Qual sentença

será mais severa do que a que julgará a vida irresponsável e tola que reconheço em

mim?

***

Ao ler de ponta a ponta este modelo de confissão que o sacerdote me havia

dado, eu estava horrorizado e pensei: “Justos céus! Que pecados espantosos

escondem-se em mim, e como até agora não os havia visto!” O desejo de ser

purificado fez-me perguntar a este verdadeiro pai espiritual se me ensinaria as

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causas de todos esses males e seus remédios. Assim, ele começou a instruir-me:

- Veja, caro irmão, não amar a Deus provém da insuficiência da fé, e a causa

desta insuficiência é a recusa em estudar a ciência verdadeira e sagrada, a

indiferença para com as luzes da alma. Em uma palavra, se você não tem fé, você

não pode amar; se você não estiver convencido, você não pode amar, e para

chegar à convicção é preciso um completo e exato conhecimento do problema.

Pela meditação, pelo estudo da Palavra de Deus e pela observação de suas

próprias experiências, você despertará em sua alma uma sede e uma

impaciência, ou, como alguns o chamam, uma “perplexidade” que leva ao

insaciável desejo de ver as coisas mais de perto e mais completamente, a fim de

penetrar mais profundamente em sua natureza.

Um autor espiritual fala disto nos seguintes termos: “O amor, diz ele, cresce

geralmente com o conhecimento, e quanto mais profundo e extenso for o

conhecimento, mais amor haverá nele, mais facilmente o coração se submeterá

e se abrirá ao amor de Deus, contemplando atentamente sua plenitude, a beleza

do mundo de Deus e o amor infinito de Deus pelos homens.”

Você pode ver que a causa desses pecados é a recusa preguiçosa em pensar nas

coisas espirituais, recusa que anestesia a própria sensação de necessidade destes

pensamentos. Se você quer saber como superar este mal, esforce-se pela

iluminação do espírito por todos os meios e com todas as suas forças, chegue lá

pelo estudo diligente da Palavra de Deus e dos santos Padres, pela via da

meditação e dos conselhos espirituais e pela conversação com aqueles que são

sábios em Cristo. Ah!, caro irmão, quanta infelicidade a nossa, apenas por causa

da preguiça em buscar a luz da alma na Palavra da verdade. Nós não estudamos

dia e noite a Lei de Deus, e não oramos a ele sem parar e diligentemente. É por

isto que nosso homem interior tem fome e frio, ele está frustrado a ponto de

não ser mais capaz de dar sequer um passo corajoso na direção da virtude e da

salvação! Assim, bem amado, tomemos a resolução de utilizarmos esses

métodos, e ocupemos tanto quanto possível o nosso espírito com o pensamento

das coisas celestes; e o amor jorrará do alto em nossos corações e inflamar-se-á

em nós. Assim o faremos e rezaremos tanto quanto pudermos, pois a prece é o

meio principal e o mais forte para nossa renovação e nosso bem estar. Nós

oramos nos termos que a Santa Igreja nos ensinou: “Ó Deus, tornai-me capaz de

vos amar hoje tanto quanto no passado amei os meus pecados.”

Eu escutei tudo isso com atenção. Profundamente emocionado, pedi a este santo

sacerdote que ouvisse minha confissão e me desse a comunhão. De modo que

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na manhã seguinte, tendo tido a graça de receber a comunhão, demonstrei a

intenção de retornar a Kiev com este santo viático. Mas o bom padre, que estaria

no Alojamento por dois dias, cedeu-me durante este tempo a hospitalidade de

sua cela, para que eu pudesse me dedicar livremente à oração. Passei estes dois

dias como se estivesse no paraíso. Com as orações do meu estaroste, por indigno

que eu seja, desfrutei de uma perfeita paz. A prece afluía ao meu coração com

tanta facilidade e alegria que durante este tempo, creio eu, esqueci-me de tudo e

até de mim mesmo; não havia mais nada em meu pensamento senão Jesus

Cristo, e ele somente.

Ao final, o sacerdote regressou, e eu lhe pedi opinião e conselho:

- Aonde irei agora em minha rota de peregrino?

Ele deu-me sua benção, dizendo:

- Vá então a Pochaev venerar a marca milagrosa do pé da puríssima Mãe de

Deus e ela guiará seus passos no caminho da paz.

Fiando-me em seu conselho, em três dias parti para Pochaev. Ao longo de umas

duzentas verstas o caminho era ladeado por albergues e aldeias judias, e

raramente pude encontrar uma habitação cristã. Numa colônia, percebi a

existência de um albergue cristão. Entrei nele para passar a noite e pedir um

pouco de pão para minha marcha, pois minhas reservas se esgotavam. Ao ver

meu anfitrião, um velho de bom talho, percebi que ele era originário da mesma

província que eu, Orlov. Entrei diretamente no salão, e sua primeira pergunta

foi:

- De que religião é você?

Eu respondi que era cristão, e ortodoxo.

- Ortodoxo, verdadeiramente, disse ele rindo. Vocês são ortodoxos nas

palavras, mas nos atos não passam de pagãos. Eu conheço tudo da sua religião,

meu irmão. Um culto sacerdote convenceu-me uma vez, e eu a experimentei:

entrei na sua Igreja e nela permaneci por seis meses. Depois disto, voltei aos

costumes da minha comunidade. Entrar para a sua igreja não passa de um erro.

Os leitores murmuram o ofício não importa como, com partes que faltam e

outras que não se compreende mais. O canto não é melhor do que o que se ouve

nos cafés. E as pessoas ficam todas juntas, homens e mulheres reunidos; todos

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falam durante o ofício, viram-se, olham ao redor, andam de um lado para outro

e não nos deixam tranquilidade nem paz para rezarmos. Que espécie de

adoração é esta? Um pecado, e isto é tudo! Enquanto que entre nós, como o

ofício é piedoso, podemos ouvir tudo o que é dito, nada é omitido, o canto é dos

mais tocantes e o povo se mantém tranquilamente, homens de um lado,

mulheres do outro, e cada qual sabe as inclinações e genuflexões que devem ser

feitas em cada momento, segundo os ensinamentos da santa Igreja. Realmente,

e com toda a sinceridade: quando entramos em uma de nossas igrejas, sentimos

que ali se adora a Deus; mas nas suas, não conseguimos distinguir se estamos

numa igreja ou num mercado.

Por tudo isto compreendi que o ancião era um desses velhos crentes radicais.

Mas seu discurso era tão plausível que eu não podia discutir com ele e menos

ainda convertê-lo. Pensei comigo apenas que seria impossível converter os

velhos crentes à verdadeira Igreja enquanto não pusermos em ordem nossos

próprios ofícios, com o clero dando o exemplo em primeiro lugar. Estes velhos

crentes não conhecem nada da vida interior, eles se apoiam sobre as coisas

exteriores, e são estas que nós negligenciamos.

Assim é que me decidi a partir, e já estava à saída quando vi, para minha

surpresa, pela porta de um quarto particular, um homem que não parecia ser

russo; ele lia, estendido sobre o leito. Ele fez-me um sinal e perguntou quem eu

era. Eu lhe respondi, e então ele começou a falar:

- Escute, amigo. Você não aceitaria ocupar-se de um doente, digamos por

uma semana, até que, com a ajuda de Deus, eu esteja melhor? Eu sou grego,

monge do monte Athos. Estou na Rússia para recolher as esmolas para meu

mosteiro e, no caminho de volta, caí adoecido; tenho as pernas por demais

doloridas para conseguir andar. Por isso aluguei este quarto. Não diga não,

servidor de Deus! Eu lhe pagarei.

- Não é preciso pagar-me. Eu vou ajudá-lo o melhor que puder, com a ajuda

de Deus.

Assim é que fiquei com ele. Aprendi muitas coisas referentes à salvação de

nossas almas. Ele me falou de Athos, a montanha sagrada, dos grandes ascetas,

dos numerosos eremitas e anacoretas. Ele tinha consigo um exemplar da

Filocalia em grego e um livro de Isaac o Sírio. Lemos juntos e comparamos a

tradução eslava de Paissy Velitchkovsky com o original grego. Ele declarou que

seria impossível traduzir a Filocalia com mais exatidão e fidelidade do que o fez

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Paissy para o eslavo.

Eu observei que ele estava sempre em oração e que era muito versado na prece

interior do coração, e como ele falasse o russo à perfeição, eu o questionei sobre

este assunto. Ele me disse muitas coisas a respeito, e eu escutei atentamente;

muitas anotei por escrito. Assim, por exemplo, foi nestes termos que ele me

instruiu sobre a excelência e a grandeza da prece de Jesus:

- A própria forma da prece de Jesus mostra quão grande é esta oração. Ela

consiste de duas partes. Na primeira, Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus [1], ela

dirige nossos pensamentos para o mistério de Jesus Cristo e, como dizem os

Padres, é assim um resumo do Evangelho. Na segunda parte, tem piedade de mim,

pecador, ela nos coloca diante do fato de nossa natureza decaída. É notável

como o desejo e a demanda de uma alma pobre e humilde não poderiam ser

expressos em termos mais sábios, mais claros e mais exatos do que estes: tem

piedade de mim. Nenhuma outra fórmula poderia ser tão satisfatória e completa.

Se disséssemos, por exemplo: “Perdoe-me, desculpe minhas faltas, purifique-

me de minhas transgressões, esqueça minhas ofensas”, tudo isto não exprimiria

senão uma demanda: a de ser liberado da punição, o medo de uma alma fraca e

sem energia. Mas dizer: tem piedade de mim não expressa apenas o desejo do

perdão por medo, mas o chamado sincero do amor filial, que coloca sua

esperança no amor de Deus e confessa humildemente ser demasiado fraco para

dobrar sua própria vontade e vigiar atentamente a si mesmo. É um apelo de

misericórdia – e portanto de graça – que se manifestará pela força com que Deus

nos tornará capazes de resistir à tentação e de vencer nossa inclinação para o

pecado. É como um devedor insolvente que pede ao seu financiador – que é seu

amigo – não apenas de perdoar-lhe uma dívida, mas ainda de apiedar-se de sua

extrema pobreza e dar-lhe uma esmola. É isto que exprimem estas palavras

profundas: tem piedade de mim. É como se disséssemos: “Senhor misericordioso,

perdoe meus pecados e me ajude a corrigir-me; desperte em minha alma um

desejo vivo de seguir seus mandamentos. Distribua sua graça perdoando meus

pecados presentes e voltando meus pensamentos, minha vontade e meu

coração, apenas na sua direção.”

Maravilhado com a sabedoria de seu discurso, pedi-lhe que instruísse minha

alma pecadora, e ele continuou a ensinar-me coisas maravilhosas.

- Se você quiser, disse ele (e percebi que era um erudito, pois estudara na

Academia de Atenas), eu lhe falarei sobre o tom em que se deve dizer a oração

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de Jesus. Já ouvi inúmeros cristãos tementes a Deus dizerem oralmente esta

prece, como manda o Verbo de Deus e conforme a tradição da santa Igreja. Eles a

utilizam não apenas em suas orações privadas, mas também na igreja. Se você

escutar atentamente a agradável recitação desta prece, você observará para seu

proveito espiritual que o tom da voz que reza varia conforme a pessoa. Assim,

alguns colocam a ênfase sobre a primeira palavra, e dizem Senhor Jesus Cristo,

para depois prosseguir num tom uniforme. Outros começam com um tom

uniforme e acentuam apenas a palavra Jesus como uma exclamação, para depois

voltar ao tom neutro do começo. Outros ainda começam e seguem a prece sem

acento, até as palavras finais tem piedade de mim, quando então elevam a voz

em êxtase. Finalmente, outros dizem toda a oração – Senhor Jesus Cristo, Filho de

Deus, tem piedade de mim – com toda a ênfase na fórmula Filho de Deus .

Agora, escute. Existe sempre apenas uma e mesma prece. Os cristãos ortodoxos

possuem uma única e mesma fé, e todos sabem que esta oração sublime entre

todas contém duas coisas: o Senhor Jesus e o apelo a ele. Isto é reconhecido por

todos. Porque então isto não é expresso sempre da mesma maneira, no mesmo

tom? Porque a alma se exprime de modo assim tão particular, porque ela se

exprime com ênfases peculiares, acentuando, não o mesmo ponto para todos,

mas pontos diferentes para cada um? Muitos dizem que pode ser o resultado do

hábito ou da imitação, ou que isto depende de diferentes interpretações dos

termos segundo pontos de vista individuais, ou ainda que é apenas o modo mais

fácil e espontâneo que ocorre a cada um. Não é o que eu penso. Eu quero

encontrar uma razão mais elevada, algo desconhecido tanto do auditor quando

da própria pessoa que reza. Não haveria aí um impulso oculto do Espírito Santo,

“que intercede por nós com suspiros inefáveis”, e que não poderia ser inventado

por quem não sabe nem porque nem como rezar? E, se é por intercessão do

Espírito Santo, segundo a palavra do Apóstolo, que cada qual invoca o nome de

Jesus Cristo, o Espírito, que age em segredo e dá a oração àquele que ora,

empresta um tom particular a cada um, apesar de sua falta de força.

Assim ele pode dar a um o temor reverencial de Deus, a outro o amor, a um

terceiro a certeza da fé, a um outro a humildade irradiante da graça, e assim por

diante.

Se é assim, aquele que recebeu a graça de reverenciar a força do Todo-Poderoso

insistirá particularmente na palavra Senhor, na qual ele encontrará a grandeza e

o poder do Criador do mundo. Um outro, a quem foi dada a efusão secreta do

amor no coração, está fora de si e cheio de alegria quando exclama Jesus Cristo,

tal como estes estarostes que não podem ouvir o nome de Jesus, mesmo nas

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conversas banais, sem sentir um influxo particular de amor e alegria. Aquele que

crê inabalavelmente na divindade de Jesus Cristo, consubstancial ao Pai, é

gratificado com uma fé ainda mais fervente dizendo as palavras Filho de Deus .

Aquele que recebeu o dom da humildade e tem uma profunda consciência de sua

própria fraqueza humilha-se repetindo as palavras Tem piedade de mim, e

derrama seu coração nestas últimas palavras da prece de Jesus. Ele encarece a

esperança que põe na bondade do amor de Deus e ab-roga sua própria queda no

pecado. É aí, na minha visão, que devemos procurar as causas das diferentes

entonações com que se pronuncia a oração do Nome de Jesus. E você poderá

reconhecer, escutando, para glória de Deus e sua própria edificação, qual emoção

atinge mais especialmente este ou aquele, qual dom espiritual ele possui. Muitas

pessoas me indagaram a respeito:

“Porque todos estes sinais dos dons espirituais escondidos não aparecem juntos

e reunidos? Não algumas, mas todas as palavras da oração seriam então

impregnadas com um único e mesmo tom de arrebatamento.”

Eu lhes respondi deste modo: uma vez que a graça de Deus reparte seus dons

com sabedoria a cada qual segundo sua força, como vemos nas santas Escrituras,

quem pode pretender, com as limitações de seu espírito, penetrar em todos os

estados de graça? Não está a argila inteiramente à mercê do ceramista, e não

pode ele fazer com ela tal ou tal coisa, conforme entender?

Eu passei cinco dias com este estaroste, e ele começou a sentir-se cada vez

melhor. Estes tempos me foram tão proveitosos que não me dei conta da rapidez

com que passaram. Pois neste pequeno quarto, em silenciosa reclusão, não

tínhamos outra preocupação do que invocar silenciosamente o nome de Jesus,

ou conversar sobre o mesmo assunto, a prece interior.

Um dia, veio nos ver um peregrino. Ele se queixava amargamente dos judeus e os

insultava. Ele havia passado por suas aldeias e sofrera com sua hostilidade e suas

artimanhas. Sua amargura era tão grande contra eles que ele os maldizia e

declarava que eles eram indignos de viver por causa de sua obstinação e de sua

incredulidade. Ele exclamou finalmente que sentia por eles tamanha aversão

que já não podia controlar-se.

- Você não tem o direito, meu amigo, disse o estaroste, de insultar e

maldizer desta maneira os judeus. Deus os criou assim como a nós. Você deveria

ter respeito por eles e rezar por eles, não maldizê-los. Creia-me, o desgosto que

você tem por eles vem do fato de que você não está enraizado no amor de Deus e

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não possui a prece interior. Vou ler-lhe uma passagem dos santos Padres a

respeito. Escute o que diz Marcos o Asceta: “A alma que está inteiramente unida

a Deus torna-se, de tanta felicidade, como uma criança simples e boa, que não

condena ninguém, grego, pagão, judeu ou pecador, mas a todos considera com o

mesmo olhar purificado, que encontra alegria no mundo inteiro, e deseja que

todos louvem a Deus – gregos, judeus e pagãos.” E Macário o Grande do Egito diz

que o contemplativo queima com tão grande amor que, se fosse possível, ele

faria de si a morada de todos, sem distinção entre bons e ruins.

Eis, querido irmão, o que pensam os Padres. Eu lhe recomendo então deixar de

lado a violência e considerar todas as coisas sob o signo da onisciente

providência de Deus, e quando você passar por situações vexatórias, antes acuse

a si mesmo de impaciência e falta de humildade.

Enfim, passada mais de uma semana, meu estaroste estava curado, e eu lhe

agradeci do fundo do coração todos os ensinamentos benditos que ele

ministrara a mim; depois disto, trocamos nossos endereços. Ele se pôs a

caminho de casa, e eu retomei o itinerário que havia projetado; e assim me

aproximei de Pochaev. Não havia percorrido cem verstas quando um soldado

juntou-se a mim. Ele retornava, disse-me, ao seu país natal em Kamenets

Podolsk. Cerca de dez verstas se passaram sem que trocássemos sequer uma

palavra; eu notei que ele suspirava profundamente, como se alguma coisa o

importunasse, e sua expressão era sombria. Perguntei-lhe o que o entristecia a

tal ponto.

- Meu amigo, você notou minha angústia; se você jurar por tudo o que há de

mais sagrado não revelá-lo a ninguém, eu lhe contarei minha história, pois

estou perto de morrer e não tenho ninguém com quem falar.

Eu lhe assegurei que, como cristão, eu não tinha nenhuma necessidade de

contar a ninguém, e que ficaria feliz em lhe dar os conselhos que pudesse.

- Pois bem, vamos lá, começou ele. Eu fui recrutado como soldado entre os

civis do estado. Depois de quase cinco anos, o serviço se me tornou

insuportável; de fato, eu me fiz chicotear várias vezes por negligência e

bebedeira. Diversas vezes pensei em fugir até que consegui, e vivi como desertor

nestes últimos quinze anos. Por seis anos eu me escondi aonde pude. Praticava

furtos nas empresas, nos depósitos, nos entrepostos. Roubava cavalos. Roubava

nas lojas, e prossegui nesta vida sempre por minha própria conta. Eu me

desembaraçava dos bens roubados de diversas maneiras. Eu bebia o dinheiro,

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levava uma vida depravada e cometia todos os pecados possíveis. Apenas minha

alma não pereceu. Eu me virava bem, mas no final jogaram-me na prisão por ser

vagabundo e não ter passaporte.

Mesmo assim, encontrei ocasião de me evadir. Depois, por mero acaso,

encontrei um soldado em licença de serviço, que voltava para casa em uma

província distante. Como ele estava doente e mal conseguia caminhar, pediu-me

que o conduzisse à cidade mais próxima, aonde ele pudesse se hospedar. Eu o

conduzi, portanto. A polícia nos autorizou a passar a noite numa granja, sobre o

feno, e lá nos estendemos. Ao me levantar no dia seguinte, lancei um olhar

sobre o soldado, e lá estava ele, completamente morto. Então, com pressa,

procurei seu passaporte – ou melhor, seu certificado de licença – e, tendo-o

encontrado junto com uma bela soma em dinheiro, enquanto todos ainda

dormiam eu deixei a granja o mais depressa que pude, meti-me floresta adentro

e fugi. Lendo o passaporte, vi que o soldado tinha mais ou menos a mesma idade

que eu e sinais semelhantes. Felicitei-me, e fui resolutamente para os confins da

província de Astrakan; lá, comecei a me relacionar e logo obtive trabalho.

Trabalhava com um velho homem que possuía uma casa e comerciava com gado.

Ele vivia só com sua filha viúva. Depois de um ano com ele, desposei sua filha.

Depois o velho morreu, e não pudemos prosseguir com o negócio. Eu voltei a

beber, e comigo minha esposa, e em um ano dilapidamos tudo o que o velho

deixara. Depois minha esposa caiu doente e morreu. Então eu vendi tudo o que

restava e mais a casa, e em pouco tempo cheguei ao fim dos meus recursos. Eu

não tinha mais do que viver, nada para comer, e assim voltei à minha velha

atividade de tráfico de objetos roubados, com maior audácia agora que tinha um

passaporte. Assim foi que retomei minha antiga existência por cerca de um ano.

Logo veio um grande período em que eu não conseguia quase nada. Roubei um

velho cavalo a um cidadão sem terra e o vendi ao esquartejador por um pedaço

de pão. Com o dinheiro fui ao café e me pus a beber. Tinha a intenção de

permanecer na cidade, aonde havia um armazém, com a esperança de, quando

todos tivessem dormido, roubar tudo o que pudesse.

Como o sol ainda não se havia posto, fui à floresta para esperar a noite; deitei-

me e dormi um sono profundo. Tive então um sonho no qual me via deitado em

uma grande e bela pradaria. Subitamente uma nuvem terrível ergueu-se no céu e

sobreveio um trovão tão aterrador que o solo tremia debaixo de mim, e senti

como se alguém me enterrasse de um só golpe até as espáduas na terra que me

pressionava de todos os lados. Apenas minha cabeça e minhas mãos emergiam.

Então vi que a nuvem temível pousava no chão e dela saiu meu avô que havia

morrido há vinte anos. Era um homem muito direito, e durante trinta anos foi o

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curador de nossa aldeia. Ele dirigiu-se a mim com um ar de cólera tão ameaçador

que me fez tremer. Ao meu redor, eu via em diversos montes os objetos que

roubara em diferentes épocas. Meu terror redobrou. Meu avô chegou até mim e,

apontando com o dedo o primeiro monte, disse:

“O que é isto? Vamos!”

Então a terra ao meu redor começou a apertar-me com tanta força que eu não

podia suportar a dor, mas também não desfalecia. Eu gemia e gritava: “Tenha

piedade de mim!”, mas o tormento continuava. Então meu avô apontou outro

monte e disse outra vez:

“E o que é isto? Aperte com mais força!”

Senti uma dor e uma angústia tão violentas que nenhuma angústia deste mundo

pode comparar. Por fim, meu avô conduziu até mim o cavalo que eu roubara à

tarde e gritou:

“E isto, o que é? Vamos, apertem tão forte quanto puderem!”

Tamanha foi a dor por todo o meu corpo que não sou capaz de descrevê-la: foi

cruel, aterradora e esgotante! Parecia-me que todos os músculos eram

amassados e a dor tremenda me sufocava. Senti que esta tortura duraria um

longo tempo e perdi a consciência. Mas o cavalo me deu um coice e rasgou-me o

rosto. Quando senti o golpe, acordei; eu estava no limite do horror e todo o meu

corpo tremia. Vi que já era dia e que o sol se levantava. Levando a mão ao rosto,

percebi que o sangue escorria; as partes do meu corpo que se achavam

enterradas no sonho, estavam com câimbras e cheias de formigamentos. Meu

terror era tão grande que eu custei a me levantar e dar por mim. O corte no meu

rosto doeu por muito tempo. Veja, você pode ver a cicatriz; ela não estava aí

antes.

Daí para frente, o medo e o horror tomam conta de mim à simples lembrança

daquilo que sofri neste sonho, e com tanta força que não sei o que fazer de mim.

E o que é pior, isto foi se tornando cada vez mais frequente e, no final, eu

comecei a ter medo das pessoas e a me sentir envergonhado, como se todos

conhecessem meu passado desonesto. Perdi o gosto em comer, beber ou dormir,

por causa deste tormento. Virei um farrapo. Pensei em retornar ao meu

regimento e aliviar meu coração de tudo: talvez Deus perdoasse meus pecados se

eu aceitasse meu castigo. Mas eu tinha medo, e a ideia de que me bateriam me

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desencorajava. Perdendo a paciência, cheguei a pensar em me enforcar. Mas

ocorreu-me que, de qualquer modo, eu não viveria por muito mais tempo; eu

morreria logo, pois sentia que já não tinha mais forças para nada. Por isso

resolvi voltar à minha terra natal e fazer minhas despedidas antes de morrer. Eu

tenho um sobrinho lá. Faz seis meses que estou a caminho, e durante todo este

tempo o sofrimento e a dor acabam comigo miseravelmente. Que pensa você,

meu amigo? O que devo fazer? Verdadeiramente, estou no limite.

Ouvindo tudo isso, fiquei espantado e louvei a sabedoria e a bondade de Deus,

pelos meios de que se utiliza para atingir um pecador. Eu lhe disse:

- Caro irmão, durante estas crises de medo e de angústia, é preciso rogar a

Deus. É o grande remédio para todos os males.

- Jamais em minha vida!, respondeu ele. Parece-me que, se eu me puser a

rezar, Deus me destruirá instantaneamente!

- Isto é um contrassenso, irmão; é o diabo que põe tais ideias na sua cabeça.

Não existem limites para a misericórdia de Deus, ele é compassivo para com os

pecadores e seu perdão está pronto para aqueles que se arrependem. Você não

conhece a oração: Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim, pecador? Eu a repito

sem cessar.

- Certamente, conheço esta oração. Eu a recitava às vezes para ganhar

coragem quando me preparava para cometer um roubo.

- Neste caso, escute. Deus não o destruiu quando você estava a caminho de

uma má ação e dizia a prece. Ele o fará se você se puser a rezar em plena via do

arrependimento? Veja bem como seus pensamentos vêm do diabo. Creia-me,

caro irmão, se você disser a oração sem jamais preocupar-se com os

pensamentos que lhe vêm à mente, quaisquer que sejam, logo você estará

curado. Todo o medo e toda inquietação irão embora e, no final, você estará

totalmente em paz. Você se tornará um homem piedoso e todas as paixões

pecaminosas o deixarão, eu lhe asseguro, porque já vi muitos exemplos disto em

minha vida.

Eu lhe contei a seguir muitos casos em que se revelou o maravilhoso poder da

prece de Jesus sobre os pecadores. No fim, persuadi-o a me acompanhar até a

Mãe de Deus de Pochaev, refúgio dos pecadores, para aí fazer sua confissão e sua

comunhão antes de voltar para casa.

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Meu soldado escutou tudo isso atentamente, com alegria, pelo que pude notar, e

aceitou tudo. Dirigimo-nos juntos a Pochaev, com a condição de que nenhum

dos dois falaria com o outro, e que diríamos a oração todo o tempo. Em silêncio,

caminhamos por toda uma jornada. No dia seguinte, ele me disse que se sentia

muito mais leve, e estava claro que seu espírito estava mais calmo do que antes.

Atingimos Pochaev no terceiro dia, e eu o exortei a não interromper a prece nem

de dia nem à noite enquanto ainda estivesse acordado, assegurando-lhe que o

santíssimo nome de Jesus, insuportável para os inimigos espirituais, teria o

poder de salvá-lo. Li para ele o trecho da Filocalia que afirma que, embora

devamos recitar a prece em todos os momentos, é especialmente necessário

dizê-la com o maior cuidado quando nos preparamos para a comunhão.

Foi o que ele fez, e depois ele confessou-se e comungou. Embora de tempos em

tempos seus velhos pensamentos voltassem a atormentá-lo, ele não tinha

dificuldade em dissipá-los pela oração de Jesus. No domingo, para mais

facilmente acordar para as matinais, ele deitou-se mais cedo continuando a

oração. Eu permaneci sentado em meu canto, lendo a Filocalia à luz de uma

lamparina. Uma hora se passou; ele dormia e eu iniciei minhas orações. De

repente, cerca de vinte minutos depois, ele sobressaltou-se e despertou, pulou

rapidamente de seu leito e acorreu em lágrimas para mim, transportado de

felicidade e dizendo:

- Ah, irmão, se você soubesse o que acabei de ver! Que paz, que alegria! Eu

creio que Deus é misericordioso para com os pecadores e não os atormenta.

Glória a vós, Senhor, glória a vós!

Surpreso e feliz, pedi-lhe que me contasse exatamente o que se passara.

- Pois bem, disse ele. Logo que dormi, achei-me de novo naquela pradaria

em que fui torturado. Primeiro fiquei terrificado, mas vi que em lugar da nuvem

o sol resplandecente levantava-se, e uma luz esplêndida brilhava sobre toda a

pradaria. Vi lindas flores e ervas do campo. Subitamente meu avô chegou até

mim, mais bonito do que nunca, e saudou-me amavelmente. Ele me disse: “Vá a

Jitomir, à igreja de São Jorge. A Igreja o tomará sob sua proteção. Passe lá o resto

de sua vida e reze sem cessar. Deus será para você cheio de favor.” Dizendo isto,

ele fez sobre mim o sinal da cruz e desapareceu. Não posso descrever a felicidade

que senti: é como se um fardo me fosse tirado das costas e eu pudesse voar até

os céus. Foi quando despertei, apaziguado em meu espírito e em meu coração,

tão cheio de alegria que já não sabia o que fazer. Que devo fazer agora? Quero

partir imediatamente para Jitomir, como me disse meu avô. Com a oração, será

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fácil.

- Um momento, caro irmão. Como partir no meio da noite? Espere a

manhã, diga suas orações e depois parta com Deus.

Depois deste diálogo não dormimos mais. Depois fomos à igreja; ele permaneceu

ali durante todas as matinas, rezando sinceramente com muitas lágrimas, e me

disse que se sentia em paz, e que continuaria a recitar a oração de Jesus para

sempre e com alegria. Na Liturgia, ele recebeu a comunhão e depois de ter

tomado algum alimento, eu o acompanhei até a estrada para Jitomir, aonde nos

separamos com lágrimas de alegria.

Então voltei a pensar nos meus próprios negócios. Aonde ir agora? Finalmente

decidi voltar a Kiev. Os sábios ensinamentos de meu sacerdote me atraíam para

lá e, ademais, se eu permanecesse com ele, talvez ele conhecesse algum amigo

de Cristo e dos homens que pudesse me colocar a caminho de Jerusalém, ou no

mínimo do monte Athos. Fiquei mais uma semana em Pochaev, passando meu

tempo a relembrar todos os ensinamentos recebidos nessa viagem e a tomar

nota de algumas coisas úteis. Depois me preparei para a viagem, tomei minha

sacola e fui à igreja para rogar à Mãe de Deus. Após a Liturgia, fiz minhas orações

e preparei-me para a partida. Eu estava em pé no fundo da igreja quando entrou

um homem, não ricamente vestido mas evidentemente alguém da nobreza, e

perguntou-me aonde se vendiam velas. Eu mostrei-lhe. Depois fiz ainda

algumas orações diante do altar da Concepção. Ao terminar as preces, tomei

meu caminho. A alguma distância de lá, ao longo da via, notei em uma casa uma

janela aberta pela qual se podia ver um homem que lia um livro. Meu caminho

passou diretamente em frente a esta janela e vi que o homem era o mesmo que

me perguntara das velas na igreja. Ergui meu chapéu à passagem e, quando ele

me viu, fez sinal para que me aproximasse e disse:

- Suponho que você seja um peregrino?

- Sim, respondi-lhe.

Ele pediu-me para entrar, e quis saber quem eu era e aonde ia. Eu lhe respondi

tudo, sem nada ocultar. Ele me ofereceu chá e se pôs a falar.

- Escute, meu pequeno peregrino. Eu o aconselharei a ir ao mosteiro

Solovetsky, em uma das ilhas Solovets, no mar Branco. Existe lá um local

aprazível e muito retirado, chamado Anzersky. É uma espécie de segundo Athos,

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e todos ali são bem-vindos. O noviciado ali consiste apenas no seguinte: ler

rapidamente o saltério na igreja por quatro horas a cada vinte e quatro. Eu

mesmo vou para lá. E fiz voto de ir a pé. Poderíamos ir juntos. Seria mais seguro

ir com você; parece que o caminho é muito solitário. Por outro lado, eu tenho

dinheiro e poderei assegurar a sua subsistência durante a viagem. Eu lhe

proponho estas condições: marcharemos a uns vinte passos um do outro; assim

não nos incomodaremos, e poderemos ler ou meditar ao longo do caminho.

Reflita, meu irmão, e aceite, peço-lhe; vai valer a pena.

Tomei este convite inesperado como um sinal enviado pela Mãe de Deus a quem

pedira que me mostrasse o caminho da beatitude. E, sem mais reflexões, aceitei.

Partimos no dia seguinte. Por três dias seguimos caminho como combinado, um

seguindo a certa distância do outro. Ele lia um livro todo o tempo, e não o

abandonava nem de dia nem de noite; e por momentos ele meditava. Enfim,

chegamos a um lugar onde paramos para almoçar. Ele comeu com o livro aberto

diante de si e sem tirar os olhos dele. Vi que se tratava de um exemplar dos

Evangelhos, e lhe disse:

- Posso perguntar-lhe, senhor, porque guarda sempre consigo à mão os

Evangelhos, porque os carrega e mantém sempre ao seu lado?

- Porque, respondeu ele, deles e deles somente eu aprendo sem cessar.

- E o que você aprende?, continuei.

- A vida cristã, que se resume na oração. Eu considero que a oração é o meio

de salvação mais importante e mais necessário, e o primeiro dever de todo

cristão. A prece é o primeiro passo para a vida espiritual, é o seu coroamento, e é

por isso que o Evangelho nos recomenda a prece perpétua. Para os demais atos

da piedade, requer-se um tempo próprio, mas para a prece não existe tempo que

não seja oportuno. Sem a oração, é impossível fazer qualquer bem que seja, e

sem os Evangelhos não temos como aprender convenientemente a rezar. Desde

o começo, todos os que atingiram a salvação pelo caminho da vida interior,

tanto os santos predicadores do Verbo de Deus, como também os eremitas e os

reclusos, e verdadeiramente todos os cristãos tementes a Deus receberam seu

ensinamento de sua constante e incansável ocupação nas profundezas da

palavra de Deus e da leitura do Evangelho. Muitos dentre eles tinham todo o

tempo o Evangelho à mão, e em seu ensinamento sobre a salvação davam este

conselho: “Sente-se no silêncio de sua cela, leia o Evangelho e realize-o.” Eis a

razão pela qual eu leio o Evangelho exclusivamente.

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Seu raciocínio impressionou-me, assim como seu ardor para com a oração.

Perguntei-lhe a seguir em qual Evangelho específico ele encontrara os

ensinamentos sobre a prece.

- Nos quatro indiferentemente, respondeu ele, no Novo Testamento

inteiro, lendo-o pela ordem. Eu o leio há muito tempo buscando penetrar seu

sentido, e isto me mostrou que existe uma gradação e uma cadeia regular de

ensinamentos sobre a prece nos santos Evangelhos, a partir do primeiro e

seguindo regularmente até o fim, segundo um método. Por exemplo: logo no

começo encontra-se a preparação ou introdução ao estudo da prece, a seguir sua

forma ou sua expressão exterior em palavras. Mais adiante, encontramos as

condições necessárias para oferecer a oração e os meios de aprendê-la, com

exemplos; e finalmente o ensinamento da oração interior e espiritual constante

do nome de Jesus, que é representado como mais elevado e mais salutar do que a

prece exterior. Depois vem sua necessidade, seu fruto bendito, e assim por

diante. Em uma palavra, encontra-se nos Evangelhos um conhecimento

completo e detalhado sobre a prática da oração em uma ordem ou sequência

metódica do começo ao fim.

Esta resposta estimulou-me a pedir-lhe que me mostrasse isto em detalhe. Eu

lhe disse então:

- Como eu aprecio acima de qualquer coisa ouvir falar sobre a oração, ficarei

verdadeiramente feliz de conhecer esta corrente secreta de ensinamentos sobre

a prece com todos os detalhes. Pelo amor de Deus, mostre-me tudo isto no

Evangelho.

Ele aceitou de bom grado e disse:

- Abra seu Evangelho; observe-o e note o que eu lhe digo.

Ele deu-me um lápis.

- É bom para sublinhar as notas que tomei. Agora, disse, veja antes de mais

nada o Evangelho de São Mateus, no sexto capítulo, e leia do quinto ao oitavo

versículo. Você verá que temos aqui a preparação ou introdução, ensinando que

não é com vaidade e espalhafato, mas em um lugar solitário e em toda a calma

que se deve recitar a oração; que é preciso rezar apenas pelo perdão dos pecados

e pela comunhão com Deus, sem acrescentar qualquer demanda inútil a respeito

de coisas temporais, como o fazem os pagãos[7]. Depois siga a leitura do mesmo

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capítulo, do nono ao décimo-quarto versículo: encontraremos aí a forma da

oração – ou seja, em que termos ela deve ser expressa[8]. Você vê aí, reunidos

com enorme sabedoria, todos os elementos necessários e desejáveis para nossa

vida. Depois disto, os versículos décimo-quarto e décimo-quinto do mesmo

capítulo, e verá aí as condições necessárias para a eficácia da prece. Pois se não

perdoarmos aqueles que nos fizeram mal, Deus não perdoará os nossos

pecados[9]. Passe então para o sétimo capítulo, e você encontrará no sétimo e

no nono versículos como obter o fruto da prece, esperando audaciosamente –

“peça”, “busque”, “bata”[10]. Estas expressões fortes descrevem a frequência da

oração e a urgência em praticá-la, de tal modo que a oração não apenas

acompanha as ações, mas as precede. Está aí a qualidade essencial da oração.

Você verá uma ilustração disto no décimo-quarto capítulo de São Marcos, do

trigésimo-segundo ao trigésimo-nono versículo, onde o próprio Cristo repete

frequentemente as mesmas fórmulas de prece[11]. Em São Lucas, capítulo onze,

versículos cinco a quatorze, temos um exemplo semelhante da prece repetida na

parábola do amigo da meia-noite[12], e em outro ponto a história do pedido

repetido da viúva insistente[13], ilustrando o mandamento de Jesus Cristo de

que devemos orar sempre, em todo o tempo e lugar, e não nos abandonarmos ao

desencorajamento, ou seja à preguiça.

Depois deste ensinamento detalhado, é no Evangelho de São João que nos é

oferecido o ensinamento essencial sobre a prece secreta e interior do coração.

Em primeiro lugar, ele nos é trazido no relato profundo do encontro de Jesus

com a Samaritana, em que nos é revelada a adoração interior em espírito e em

verdade, que Deus quer e que é a verdadeira prece perpétua, como uma água viva

que jorra na vida eterna[14]. Mais adiante, no décimo-quinto capítulo, versículo

de quatro a oito, nos são descritos com mais precisão o poder, as possibilidades

e a necessidade da oração interior – vale dizer, da atenção do espírito em Cristo,

à lembrança incessante de Deus[15]. Por fim, leia os versículos de vinte e três a

vinte e quatro no décimo-sexto capítulo do mesmo Evangelho[16]. Veja que

mistério nos é revelado aí. Você sabe que a oração do nome de Jesus Cristo,

conhecida com o nome de prece de Jesus – ou seja Senhor Jesus Cristo, tem

piedade de mim – frequentemente repetida, tem um poder imenso e abre com

facilidade as portas do coração, santificando-o. Podemos ver claramente no caso

dos Apóstolos que foram discípulos de Jesus por um ano inteiro, e já haviam

recebido dele a oração dominical – ou seja, o Pai Nosso; e é através deles que a

conhecemos. Porém, foi no final de sua vida terrestre, que Jesus Cristo lhes

revelou o mistério que ainda permanecia sobre a sua oração. Para que esta

pudesse dar um passo decisivo adiante, ele lhes disse: “Até hoje vocês nada

pediram em meu nome. Em verdade vos digo, tudo o que vocês pedirem ao Pai,

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em meu nome, ele lhes dará.” E é o que aconteceu com eles. E quando os

Apóstolos aprenderam a rezar em nome de Jesus, quantas maravilhas eles não

cumpriram, e quão abundante foi a luz que lhes foi prodigalizada! Agora, vê você

o encadeamento, a plenitude do ensinamento sobre a oração disposta com tanta

sabedoria nos santos Evangelhos? E se você prosseguir pela leitura das

Epístolas, nelas encontrará o mesmo ensinamento progressivo.

Para complementar as notas que eu já lhe dei, vou indicar ainda muitas

passagens que ilustram as qualidades da oração. Assim, a prática é descrita nos

Atos – ou seja, o diligente e constante exercício da oração pelos primeiros

cristãos, que foram iluminados por sua fé em Jesus Cristo[17]. Aí nos são

indicados os frutos da prece e os resultados da oração constante, ou seja a efusão

do Espírito Santo e de seus dons sobre aqueles que oram. Você verá alguma coisa

de semelhante no capítulo sexto, versículos vinte e cinco e vinte e seis. Depois,

siga a ordem das Epístolas e você verá: em primeiro lugar, como a oração é

necessária em todas as circunstâncias[18]; em segundo, como o Espírito Santo

nos ajuda a rezar[19]; em terceiro, como devemos todos rezar em espírito[20];

em quarto, como a calma e a paz interior são necessárias para a oração[21]; em

quinto, como é preciso orar sem cessar[22]; e enfim, vemos que não devemos

rezar apenas por nós mesmos, mas também por todos os homens[23].

Assim, consagrando grande tempo, com muito cuidado, em descobrir seu

significado, podemos encontrar muitas outras revelações da ciência secreta

escondida na Palavra de Deus, e que nos escapam se só a lemos de quando em

quando e distraidamente.

Veja de acordo com o que lhe mostrei, com quanta sabedoria e método o Novo

Testamento revela o ensinamento de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre as

questões que examinamos. Percebe em que maravilhosa sequência ele nos é

exposto pelos quatro evangelistas? Assim é: em São Mateus, vemos a

preparação, a introdução à prece, a verdadeira força da oração, suas condições, e

assim por diante. Depois, em São Marcos encontramos exemplos, em São Lucas

as parábolas, e por fim em São João a prática secreta da oração interior, embora

esta também se encontre nos demais evangelistas com mais ou menos detalhe.

Os Atos nos descrevem a prática da oração e seus resultados. Nas Epístolas

apostólicas e no próprio Apocalipse, encontramos diversos aspectos do ato de

rezar. Eis a razão pela qual só tenho os Evangelhos como único mestre para

todos os caminhos da salvação.

Enquanto ele me mostrava todas essas coisas e me ensinava, eu ia anotando nos

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Evangelhos, em minha Bíblia, os pontos que ele indicava. Isto me pareceu muito

digno de nota e instrutivo, e eu o agradeci muito. Depois continuamos nossa

rota em silêncio por mais cinco dias. Meu companheiro começou a sofrer

violentamente dos pés, sem dúvida porque não estava acostumado a caminhar

constantemente. Assim, ele alugou uma carroça e um par de cavalos e convidou-

me a ir com ele. Foi desta forma que chegamos até estas vizinhanças onde

estivemos por três dias, para podermos, uma vez recuperados, partirmos para

Anzersky para onde ele deseja ardentemente ir.

O estaroste: Seu amigo é esplêndido. A julgar por sua piedade, deve ser muito

instruído. Eu gostaria de vê-lo.

O peregrino: Estamos juntos. Eu o trarei amanhã. Agora já se faz tarde. Adeus.

SEXTO RELATO

O peregrino: Como lhe prometi ontem, pedi ao meu venerável companheiro de

viagem, que me concedeu o favor de seus conhecimentos espirituais, e a quem

você desejava ver, que me acompanhasse até aqui.

O estaroste: Será muito agradável para mim, e também, espero, para meus

veneráveis visitantes, estarmos juntos de vocês para ouvirmos o relato de suas

experiências. E aonde estiverem dois ou três reunidos em nome de Jesus Cristo,

ele próprio estará também. Ora, aqui estamos os cinco em seu nome, e assim ele

não deixará de nos abençoar com mais abundância ainda. A história que o seu

companheiro de viagem contou-me ontem, caro irmão, a respeito de sua

ardente adesão ao santo Evangelho, é deveras digna de nota e muito instrutiva.

Seria interessante sabermos de que maneira este segredo bendito lhe foi

revelado.

O professor: Deus cheio de amor, que deseja que todos os homens sejam salvos

e cheguem ao conhecimento da verdade, revelou-me, em sua bondade, de modo

maravilhoso e sem nenhuma intervenção humana. Durante cinco anos eu fora

professor e levava uma vida melancólica e dispersa, cativado pela vã filosofia do

mundo, e não seguia a Cristo. Talvez eu tivesse perecido, se eu não fosse

parcialmente sustentado pelo fato de viver com minha piedosa mãe e minha

irmã, uma jovem de espírito maduro. Um dia em que flanava pelo passeio

público, conheci um ótimo rapaz que me disse ser francês e estudante, chegado

a pouco de Paris, e que estava à procura de uma colocação como preceptor. Sua

alta cultura me encantou e, como ele era estrangeiro neste país, eu o convidei e

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vir morar comigo e nos tornamos amigos. Durante dois meses vimo-nos com

frequência passeávamos juntos, divertíamo-nos e íamos juntos a companhias

cuja moralidade não preciso destacar.

Um dia, meu amigo chegou com um convite deste tipo; e, para persuadir-me

mais depressa, pôs-se a louvar a alegria e o frescor da companhia para a qual me

convidava. Depois de ter falado um pouco, pediu-me para que saíssemos de seu

gabinete de trabalho em nos achávamos e fôssemos nos sentar no salão. Isto me

pareceu estranho; disse-lhe que nunca antes notara de sua parte nenhuma

reticência em permanecer em meu escritório, e perguntei-lhe o porquê disto

agora. Acrescentei que o salão era pegado aos aposentos ocupados por minha

mãe e minha irmã, e que seria inconveniente que tivéssemos lá esse tipo de

conversação. Ele insistiu sob diversos pretextos, e enfim confessou abertamente

o seguinte: “Dentre os livros de sua prateleira, ali, existe um exemplar dos

Evangelhos; eu tenho tamanho respeito por este livro que tenho vergonha de

falar de nossos negócios escusos em sua presença. Tire-o daqui, para que

possamos conversar livremente.” Frivolamente, sorri com suas palavras. Tirando

o Evangelho da prateleira disse: “Você devia ter-me falado disto há mais

tempo.” Eu o estendi a ele, dizendo: “Pois bem, coloque você mesmo em

qualquer lugar na outra sala.” Mal toquei-o com o Evangelho, e ele começou a

tremer e, num instante, desapareceu.

Isto me deixou a tal ponto estupefato que, aterrorizado, tombei inconsciente.

Ouvindo o ruído, a governanta acorreu e, por mais de meia hora, tentou sem

sucesso reanimar-me. Quando finalmente voltei a mim, estava apavorado e

tremendo, e sentia-me completamente aturdido, com as mãos e os pés

insensíveis a ponto de não poder movê-los. O médico diagnosticou uma

paralisia consequência de choque ou terror violento. Fiquei imobilizado por

todo um ano depois deste incidente, e, apesar dos cuidados mais diligentes de

muitos médicos, não obtinha nenhum progresso, de tal modo que, à força de

minha doença, fui obrigado a renunciar à minha ocupação. Minha mãe, já

velhinha, morreu por esta época e minha irmã preparava-se para tomar o

hábito, e tudo isto agravou muito minha situação. Eu não tinha outro consolo

durante este período do que ler os Evangelhos, que minhas mãos não deixavam

desde o começo de minha doença. Era uma espécie de prova do evento fantástico

que me acontecera. Um dia, um anacoreta que eu não conhecia veio me ver. Ele

fazia uma coleta para seu mosteiro. Falou-me de modo muito persuasivo,

dizendo-me que eu não deveria contar apenas com os remédios, que estes não

trariam alívio sem a intervenção de Deus, que eu deveria orar a Deus e pedir

diligentemente por minha causa específica, pois a oração era o modo mais

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poderoso de cura de todos os males, tanto corporais como espirituais.

“Como você espera que eu reze nesta situação, quando não tenho força sequer

para o menor gesto de veneração, nem mesma para erguer a mão para persignar-

me?” - respondi-lhe perplexo.

Ele me respondeu:

“Reze, custe o que custar; reze de um modo ou de outro.”

Mas ele não foi mais longe do que isto, nem me explicou realmente como rezar.

Quando meu visitante deixou-me, comecei quase que involuntariamente a

pensar na oração, no seu poder e nos seus efeitos, lembrando em meu espírito a

instrução religiosa que recebera há muito tempo, quando ainda era estudante.

Isto ocupou-me com doçura, renovou meus conhecimentos sobre assuntos

religiosos e aqueceu meu coração. Ao mesmo tempo, comecei a sentir uma certa

melhora no meu estado. Como o livro dos Evangelhos estava sempre comigo,

tamanha era minha fé nele depois o milagre, e como lembrava-me que todas as

exposições que já ouvira sobre a prece nos cursos eram fundamentadas nos

textos dos Evangelhos, pensei que a melhor coisa a fazer seria um estudo da

oração e da espiritualidade cristã apenas a partir dos ensinamentos do

Evangelho. Trabalhando para resgatar este sentido, mergulhei numa fonte

abundante e nela encontrei um método completo da vida espiritual e da

verdadeira oração interior. Marquei com fervor as passagens relativas a este

respeito e, desde este dia, procurei zelosamente aprender este ensinamento

divino e, com toda minha força mas não sem sofrimento, colocá-lo em prática.

Enquanto estava ocupado desta maneira, minha saúde melhorou pouco a pouco

e acabei por me restabelecer completamente, como vocês podem constatar.

Ainda vivia só e decidi agradecer a Deus por sua paternal bondade, à qual devia o

restabelecimento de minha saúde e a iluminação de meu espírito, seguindo o

exemplo de minha irmã e o desejo de meu coração de me consagrar à vida

solitária, para poder, sem restrições, receber e tornar minhas essas palavras da

vida eterna que recebia pelo Verbo de Deus. Eis-me aqui, portanto, a caminho

de Anzersky, perto do mosteiro de Solovetsky no mar Branco. Ouvi de fonte

fidedigna que se trata de um local muito indicado para a vida contemplativa.

Devo dizer-lhes ainda o seguinte: o santo Evangelho tem me trazido numerosas

consolações durante esta viagem, espalhando uma luz abundante em meu

espírito ignorante e aquecendo meu coração enregelado. Mas o fato é que, apesar

de tudo, eu reconheço francamente minha fraqueza e admito de bom grado que

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as condições requeridas para o trabalho espiritual e para atingir a salvação, a

necessidade de renúncia total de si mesmo, o despojamento e a humildade que

o Evangelho exige, assustam-me pela sua grandeza e por causa da fraqueza de

meu coração, de tal maneira que me encontro hoje entre a esperança e a

desesperança. Não sei o que será de mim no porvir.

O monge: Com uma prova tão evidente da misericórdia de Deus, e em razão de

sua educação, seria imperdoável, não apenas tornar-se presa do

desencorajamento, mas mesmo admitir em sua alma a menor sombra de dúvida

quanto à proteção e a ajuda de Deus. Sabe o que Crisóstomo, iluminado por

Deus, disse a respeito? “Ninguém deve desencorajar-se, ele ensina, e dar a falsa

impressão de que os preceitos do Evangelho são impossíveis e impraticáveis.

Deus, que predestinou o homem para a salvação, evidentemente não dispôs

mandamentos que o homem fosse forçado a transgredir devido ao seu caráter

impraticável – não, mas sim para que, por sua santidade e sua necessidade para

uma vida verdadeira, eles pudessem ser uma bênção para nós, tanto nesta vida

como na eternidade.” Bem entendido, o cumprimento regular e inflexível dos

mandamentos de Deus é coisa extraordinariamente difícil para nossa natureza

decaída, e é por isso que não é fácil alcançar a salvação, mas este mesmo Verbo

de Deus que impõe os mandamentos oferece também os meios, não apenas de

cumpri-los com facilidade, mas ainda de encontrar nisto a satisfação. Se isto

está oculto à primeira vista atrás de um véu de mistério, é naturalmente para

que tenhamos mais humildade e para sermos mais facilmente conduzidos à

união com Deus, indicando-nos o recurso direto a ele na prece e o apelo ao seu

auxílio paternal. É aí que se acha o segredo da salvação, e não no recurso aos

nossos próprios esforços.

O peregrino: Como eu gostaria, fraco e incapaz como sou, de obter o segredo

que me permitisse, nem que fosse só numa certa medida, consertar minha vida

indolente, para glória de Deus e minha própria salvação!

O monge: Você conhece o segredo, caro irmão, por meio deste livro, a Filocalia.

Ele está nesta prece incessante, que você estudou de forma tão resoluta e na

qual pôs tanto zelo e encontrou tanta satisfação.

O peregrino: Eu me ponho aos seus pés, meu Pai. Pelo amor de Deus, faça-me

ouvir de seus lábios algo para meu bem, sobre este mistério salvador da santa

prece que eu busco ouvir acima de tudo, e sobre o qual aprecio tanto ler os

comentários, para dar alguma força e consolo à minha alma pecadora.

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O monge: Não posso satisfazer ao seu desejo com minhas próprias reflexões

sobre este assunto tão grave, pois eu mesmo tenho disto pouca experiência. Mas

eu possuo algumas notas redigidas com clareza por um autor espiritual e que

dizem respeito precisamente a esta questão. Se seus amigos o consentirem, vou

procurá-lo e, com sua permissão, lerei para que todos ouçam.

Todos: Tenha esta bondade, Pai; não nos esconda uma ciência tão salutar.

***

O SEGREDO DA SALVAÇÃO

REVELADO PELA PRECE PERPÉTUA

Como ser salvo? Esta piedosa pergunta coloca-se naturalmente diante do espírito de

todo cristão que se dá conta ao mesmo tempo das feridas e da decadência de sua

natureza humana, e daquilo que ainda lhe resta de sua tendência original para a

verdade e a virtude. Qualquer um que tenha a menor fé na imortalidade e nos

acontecimentos da vida futura é involuntariamente chamado a pensar: “Como posso

ser salvo?” Quando ele procura uma resposta a esta questão, ele se dirige aos sábios

e aos eruditos. Depois, sob sua direção, ele lê as obras escritas a respeito por autores

espirituais e se põe a seguir inflexivelmente as regras que aprendeu. Em todas estas

instruções, ele encontra constantemente, como condições necessárias para a

salvação, a vida na fé e as lutas heróicas contra si mesmo que devem culminar com

uma virada decisiva. Tudo isso deve conduzi-lo a empenhar-se nas obras da fé,

cumprindo com constância os mandamentos de Cristo, e assim dando testemunho de

uma fé firme e inquebrantável. Ademais, ele aprende que todas essas condições de

salvação devem necessariamente ser cumpridas com a mais profunda humildade e

devem também estar associadas umas às outras. Pois todas as virtudes dependem

umas das outras e devem assim fortificar-se mutuamente, devem completar-se, uma

encorajando a outra, do mesmo modo como os raios do sol não revelam sua força e

não acendem uma vela se não os reunirmos num mesmo ponto com o auxílio de uma

lupa. De outro modo, aquele que for infiel nas pequenas coisas também o será nas

grandes.

Por outro lado, para implantar em si a maior exigência desta virtude complexa e

unificada, ele escuta os maiores elogios sobre a beleza da virtude, e ouve denunciar a

desagregação e as misérias do vício. Tudo isto fica gravado em seu espírito pelas

promessas verossímeis de recompensas grandiosas ou de punições atrozes na vida

futura. Este é o caráter da predicação nos tempos modernos.

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Guiado desta maneira, o homem que deseja ardentemente a salvação apressa-se

com alegria em executar aquilo que ele aprendeu e a experimentar as coisas que leu e

ouviu. Mas, o que se vê? Desde o primeiro passo, ele percebe que será impossível

cumprir com suas intenções. Ele vê desde logo, e constata no primeiro ensaio, que

sua natureza doentia e enfraquecida supera as convicções de seu espírito, que sua

liberdade se torna escravidão, sua propensões são pervertidas e sua força espiritual

se revela pura fraqueza. Vem-lhe então um pensamento natural: não existirá um

meio que lhe permita cumprir aquilo que a lei de Deus requer de si, como pede a

caridade cristã, e do qual se utilizaram todos aqueles que alcançaram a salvação e a

santidade? Então, e para conciliar em si as exigências de sua consciência com a

falta de força para cumpri-las, ele chama outra vez os pregadores da salvação e lhes

pergunta: “Como fazer minha salvação? Como justificar minha incapacidade em

preencher suas condições? Aqueles que me ordenaram tudo aquilo que aprendi, são

eles fortes para colocar tudo em prática?”

- Pergunte a Deus. Ore a Deus. Reze para obter seu auxílio.

“Neste caso não seria mais proveitoso, conclui nosso homem, tanto desde o início

como todo o tempo, estudar a oração, a única que provê toda a força que pode exigir

uma vida espiritual?” Ele então se dedica a estudar a oração; ele lê, medita, e estuda

os ensinamentos daqueles que escreveram a respeito. Na verdade, ele encontra ali

muitos pensamentos luminosos, profundos conhecimentos e palavras cheias de

poder. Um trata magnificamente da necessidade da prece, outro escreve sobre seu

poder, seu efeito benéfico, outro ainda sobre a prece enquanto dever, outro sobre o

zelo que ela exige, ou ainda sobre a atenção, o calor no coração, a pureza de

espírito, a reconciliação com os inimigos, a humildade, a contrição e outras

condições necessárias. Mas o que é a prece em si? Como se faz para realmente orar?

É muito raro encontrar para estas questões primordiais e urgentíssimas uma

resposta precisa que qualquer um possa entender, de tal maneira que quem se

questiona ardentemente sobre a oração ainda é deixado diante de um véu de

mistério. Tudo o que ele leu, em geral, só lhe permite conhecer um lado da oração

que, embora piedoso, permanece exterior, e ele acaba por concluir que a prece

consiste em ir à igreja, persignar-se, inclinar-se, prosternar-se, ler os salmos, os

cânones e os hinos acatistas[24]. Esta é a ideia que fazem da oração todos os que

não conhecem os textos dos santos Padres sobre a oração interior e a ação

contemplativa.

Ao cabo de tudo isso, nosso pesquisador um dia encontra um livro que se chama

Filocalia, no qual vinte e cinco Padres expõem, numa forma acessível, o

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conhecimento científico da verdade e a essência da prece do coração. Então começa

a erguer-se o véu que encobria o segredo da salvação e da prece. Ele vê que na

realidade orar significa dirigir sem trégua seu pensamento e sua atenção à

lembrança de Deus, caminhar em sua presença, despertar em si seu amor pensando

nele, associando o nome de Deus à sua respiração e às batidas de seu coração. Ele é

guiado em tudo isso pela invocação com os lábios do santíssimo nome de Jesus

Cristo, ou pela recitação da prece de Jesus todo o tempo e em todo o lugar, durante

todas as suas ocupações e sem nunca parar. Estas verdades luminosas, aclarando o

espírito do nosso pesquisador e abrindo-lhe o caminho do estudo e do cumprimento

da oração, ajudam-no a começar a praticar em seguida estes sábios ensinamentos.

Entretanto, em suas primeiras tentativas, ele ainda fica às voltas com muitas

dificuldades até que um mestre experiente lhe mostre (neste mesmo livro) toda a

verdade -ou seja, que somente a prece ininterrupta é eficaz, tanto para perfazer a

oração interior como para a salvação da alma. É a frequência da oração que

fundamenta todo o método da atividade salvadora. Como diz Simeão o Novo

Teólogo: “Aquele que ora sem cessar faz a síntese de todo o bem numa única coisa.”

E para expor esta verdade em toda a sua plenitude, o mestre a desenvolveu do

seguinte modo:

Para a salvação da alma, a verdadeira fé é antes de tudo necessária. A sagrada

Escritura diz: “Sem a fé, é impossível agradar a Deus.”[25] Quem não tem fé será

julgado. Mas, nas mesmas Escrituras, vemos também que o homem não pode sozinho

fazer nascer a fé em si, mesmo pequena, ainda menor do que um grão de mostarda;

que a fé não vem de nós, mas que ela é um dom de Deus; e que a fé é um dom

espiritual. Ela é dada pelo Espírito Santo. Se é assim, o que é preciso fazer? Como

conciliar a necessidade de fé do homem com a impossibilidade de provocá-la

humanamente? O modo de fazê-lo é revelado ainda nas mesmas Escrituras: “Pedi, e

se vos dará.” Os Apóstolos não podiam por si sós suscitar neles a perfeição da fé,

mas eles rezaram a Jesus Cristo, dizendo: “Senhor, aumente a nossa fé”. Eis como se

obtém a fé; este exemplo mostra como se alcança a fé pela oração.

Para a salvação da alma, ao lado da verdadeira fé, também são necessárias as boas

obras, pois “a fé sem as obras é morta”. O homem será julgado por suas obras e não

apenas por sua fé. “Se você quiser entrar na vida, observe os mandamentos; não

mate; não cometa adultério; não roube; não preste falso testemunho; honre pai e

mãe; ame seu próximo como a si mesmo”. E observe todos os mandamentos, pois

“aquele que observar a Lei mas transgredir um só mandamento é culpado de

todos.”[26] É o que ensina o apóstolo Tiago. E o apóstolo Paulo, descrevendo a

fraqueza humana, diz: “Nenhuma carne será justificada pelas obras da Lei.” [27]

“Pois sabemos que a Lei é espiritual; mas eu sou carnal, sujeito ao pecado... Pois a

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vontade está em mim, mas eu não encontro como fazer o que é bom... E o mal que eu

não queria fazer, eu faço... Pelo pensamento, eu me submeto à Lei de Deus; mas,

pela carne, à lei do pecado.” [28]

Como cumprir as obras prescritas pela Lei de Deus, quando não se tem forças nem

nenhum poder de observar os mandamentos? É impossível fazê-lo, até que se peça,

até que se reze para obtê-los. “Vocês não têm porque não pedem”[29] ; esta é a

razão que nos apresenta o Apóstolo. E o próprio Cristo diz: “Sem mim vocês não

podem nada.” E, quanto a agir com ele, eis o que ele nos diz a respeito:

“Permaneçam comigo como eu permaneço com vocês; aquele que permanecer em mim

e eu nele, este obterá os frutos da abundância.” Mas permanecer com ele implica

sentir continuamente sua presença, invocar continuamente seu nome. “Tudo aquilo

que pedirem em meu nome eu lhes darei.” Assim a própria possibilidade de fazer o

bem é dada pela oração. Encontramos um exemplo disto no Apóstolo Paulo: três

vezes ele orou para vencer a tentação, dobrando o joelho diante de Deus Pai para

que fortalecesse nele o homem interior, e foi-lhe ordenado acima de tudo orar, e orar

de modo contínuo, a propósito de tudo.

Do que dissemos, segue-se que toda a salvação do homem depende da prece, e é por

isso que ela é primordial e necessária, pois é através dela que a fé é vivificada e que

as boas obras aparecem. Numa palavra, com a oração tudo caminha com sucesso;

sem a oração, não se pode fazer nenhum ato de caridade cristã. Assim a exigência

de que nossa vida seja sem cessar, sempre e em toda parte, oferecida, provém

exclusivamente da oração. Para as demais virtudes, cada qual tem seu próprio

tempo; mas no caso da prece, nos é pedida uma ação ininterrupta: “Orai sem

cessar”. É justo e oportuno rezar sempre, e em qualquer lugar.

A verdadeira oração tem suas condições. Ela deve ser oferecida com um espírito e um

coração puros, com um zelo ardente, uma atenção estrita, com temor e respeito, e

com a mais profunda humildade. Mas quem, em consciência, não admitirá que está

longe de preencher estas condições, e que oferece suas orações mais por

necessidade, mais por obrigação para consigo mesmo, do que por inclinação, deleite

e amor à oração? A este respeito, a sagrada Escritura diz que não está no poder do

homem manter seu espírito inquebrantável e purificar-se dos maus pensamentos,

pois “os pensamentos do homem são maus desde a juventude”, e porque só Deus

pode nos dar outro coração e um espírito novo, pois “o poder de fazê-lo está apenas

em Deus.” O apóstolo Paulo diz: “Meu espírito (ou seja, minha voz) está em oração,

mas minha inteligência permanece estéril.” [30] “Nós não sabemos o que pedir em

nossas orações.”[31], afirma ainda. Resulta daí que somos incapazes, por nós

mesmos, de oferecer a verdadeira prece: em nossas orações, não conseguimos

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manifestar as propriedades essenciais da verdadeira prece.

Se tamanha é a impotência do ser humano, que possibilidades restam ainda à

vontade e à força do homem para a salvação da alma? O homem não pode adquirir

a fé sem a oração; isto também se aplica às boas obras. Mas a verdadeira oração em

si não está ao seu alcance. Que lhe resta fazer? Quanto lhe sobra ainda ao exercício

da liberdade e da força, para que ele possa não perecer, mas ser salvo?

Cada ação possui sua qualidade, e esta qualidade só quem é livre para atribuir é

Deus. Para que a dependência do homem diante de Deus, da vontade de Deus, se

manifeste mais claramente, e para poder mergulhá-lo mais profundamente na

humildade, Deus só atribuiu à vontade e à força do homem a quantidade da oração.

Ele ordenou orar sem cessar, sempre, em todos os momentos e em todos os lugares. É

aí que se acha revelado o método secreto da verdadeira oração, ao mesmo tempo da

fé e do cumprimento dos mandamentos de Deus. É portanto a quantidade das

orações que está assinalada ao homem; a frequência da prece lhe pertence e se acha

sob o domínio da sua vontade. Este é o ensinamento dos Padres da Igreja. São

Macário o Grande diz que em verdade orar é o dom da graça. Santo Eznik diz que a

prece frequente torna-se um hábito, depois uma segunda natureza, e que, sem

invocar frequentemente o nome de Jesus Cristo é impossível purificar o coração.

Calixto e Inácio aconselham a invocação frequente, contínua, do nome de Jesus,

acima de todas as asceses e obras, pois a frequência conduz a prece imperfeita à

perfeição. O bem-aventurado Diádoco afirma que se um homem invoca o nome de

Deus tantas vezes quanto possível, ele não cairá no pecado.

Quanta experiência e sabedoria existem aí, e como essas instruções dos Padres estão

próximas do coração! Com sua experiência e simplicidade, eles lançam uma luz sobre

os meios de conduzir a alma à perfeição. E que contraste com as instruções morais

da razão teórica! Assim fala a razão: faça tais e tais boas ações, arme-se de

coragem, empregue sua força de vontade, convença a si próprio pensando nos felizes

frutos da virtude – por exemplo, purifique seu espírito e seu coração das ilusões do

mundo, substitua-as por meditações instrutivas, faça o bem, assim vocês serão

respeitados e encontrarão a paz; vivam segundo a razão e a consciência. Mas,

vejam! Apesar de toda a sua força, este raciocínio não alcançará seu objetivo sem a

oração frequente, sem invocar a ajuda de Deus.

Vamos agora a outros ensinamentos dos Padres, e veremos o que eles dizem, por

exemplo, sobre a purificação da alma. São João da Escada escreve: “Quando o

espírito está ensombrecido por pensamentos impuros, afugente o inimigo repetindo

inúmeras e ininterruptas vezes o nome de Jesus. Você não encontrará nos céus nem

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na terra arma mais poderosa e eficaz do que esta.” São Gregório o Sinaíta nos

ensina: “Saibam que ninguém pode por si só dominar seu espírito, e assim, quando

surgirem os maus pensamentos, invoquem o nome de Jesus muitas e ininterruptas

vezes, e os pensamentos se apaziguarão.” Que método simples e fácil! E no entanto

ele é verificável pela experiência. Que contraste com os conselhos da razão teórica

que se esforça com presunção em atingir a pureza por seus próprios esforços!

Uma vez anotadas essas instruções fundamentadas sobre a experiência dos Padres,

chegamos a uma conclusão sólida: que o principal, o único e o mais simples método

para atingir a salvação e a perfeição espiritual é a frequência e o caráter

ininterrupto da oração, por fraca que seja. Alma cristã, se você não encontra em si

mesma o poder de adorar a Deus em espírito e em verdade, se seu coração não sente

o calor e a doce satisfação da oração interior, então aplique-se ao sacrifício da prece

o quanto você puder, porque isto só depende da sua vontade, e está dentro dos

limites do seu poder. Familiarize, antes de mais nada, o humilde instrumento dos

seus lábios com a invocação frequente e persistente da oração. Que eles invoquem o

nome de Jesus sempre e sem interrupção; não é um grande trabalho e está dentro dos

limites do poder de cada um. E é também o que vai ao encontro do preceito do santo

Apóstolo: “Por ele, ofereçamos sem cessar um sacrifício de louvor a Deus, ou seja o

fruto dos meus lábios que celebram seu nome.”[32]

É certo que a frequência da prece forma um hábito e se torna uma segunda natureza.

Ela traz, de tempos em tempos, o espírito e o coração a um estado apaziguado.

Suponhamos que um homem cumpra sem parar e continuamente o único

mandamento de Deus sobre a prece perpétua. Por isso mesmo, ele terá cumprido com

todos os outros mandamentos; de fato, se, sem interrupção, em todo o tempo e em

todas as circunstâncias, ele oferecer a oração, invocando em segredo o santíssimo

nome de Jesus (mesmo que de início ele o faça sem ardor espiritual, nem zelo, e

mesmo forçadamente), ele não terá tempo para pensamentos vãos, para julgar a seu

próximo, para desperdiçar seu tempo nos prazeres do sentidos. Todo mau

pensamento encontrará nele um obstáculo ao seu desenvolvimento. Todo o ato

culpável que o possa tentar não se realizará, como se ele houvesse abandonado o

espírito. O excesso de palavras e as palavras inúteis serão rejeitadas e todas as

faltas imediatamente varridas da alma pelo poder misericordioso de uma invocação

tão continuada do nome divino. A prática frequente da oração o impedirá de

praticar qualquer ação culpável e o lembrará de sua vocação original: a união com

Deus.

Veem agora a importância e a necessidade da quantidade da oração? A frequência

da oração é o único método para se chegar à prece pura e verdadeira. É a melhor e

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mais eficaz preparação para a prece, e o meio mais seguro de atingir o objetivo da

oração e a própria salvação.

Para convencê-los definitivamente da necessidade e da fecundidade da oração

frequente, notem que todo o desejo e todo o pensamento de oração é obra do Espírito

Santo, e a voz do anjo guardião; e que o nome de Jesus invocado na oração contém

em si mesmo um poder salvador que existe e age por si mesmo. Assim, não fiquem

perturbados com a imperfeição ou a secura nas suas preces, e esperem com

paciência o fruto da invocação frequente do nome divino. Não escutem as

insinuações daqueles que são inexperientes ou insensatos, segundo os quais a

invocação morna é uma repetição inútil, para não dizer enjoativa. Não: o poder do

nome divino e sua invocação frequente trarão o fruto a seu tempo.

Um autor espiritual falou magnificamente sobre isto: “Eu sei, disse ele, que para

muitos pretensos espirituais e sábios filósofos, que procuram em toda parte a falsa

grandeza e as práticas sedutoras através da razão e do orgulho, o simples exercício

vocal mas frequente de uma oração parece ter pouco significado, parece não passar

de uma ocupação inferior, quase uma criancice. Mas estes infelizes enganam-se e

esquecem o ensinamento de Jesus Cristo: “Se vocês não se converterem e não se

tornarem como criancinhas, vocês não entrarão no Reino dos Céus.”[33] Eles

elaboram por si mesmos uma ciência da oração sobre as fundações instáveis da

razão natural. Será que precisamos de tanta erudição, ciência e reflexão para

dizermos com um coração fervente: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem

piedade de mim? Não foi nosso divino Mestre em pessoa quem mais louvou esta

oração frequente? Não foram recebidas respostas magníficas e cumpridas

magníficas obras apenas por meio desta curta mas frequente oração? Alma cristã,

afirme sua coragem, e não abandone a incessante invocação de sua prece, mesmo

que seu grito venha de um coração ainda em guerra consigo mesmo e ainda meio

preenchido pelo mundo. Pouco importa! Persevere, não se deixe reduzir ao silêncio e

não se perturbe. Sua prece irá purificar-se sozinha pela simples repetição. Que sua

memória não esqueça o seguinte: “Aquele que está em vós é maior do que aquele que

está no mundo.”[34] “Deus é maior que o nosso coração, e conhece todas as coisas”,

diz o Apóstolo.

Depois dessas afirmações convincentes de que a oração, tão poderosa para a

fraqueza humana, é certamente acessível ao homem e depende de sua própria

vontade, decida-se, experimente, nem que seja por um único dia, de início. Vigie-se e

torne a frequência da prece tal que mais tempo você passe, das vinte e quatro horas

do dia, ocupado com a invocação do nome de Jesus do que com todas as demais

ocupações. E este triunfo da prece sobre as ocupações mundanas mostrará, a seu

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tempo, que a jornada não foi perdida, mas ganha para a salvação; que a oração

frequente, na balança do julgamento divino, fará contrapeso à sua fraqueza e às

suas más ações, e apagará os pecados desta jornada do memorial de sua

consciência. Que ela coloque seu pé sobre o degrau da virtude e lhe dê a esperança

da santificação.

***

O peregrino: Eu o agradeço de todo coração, santo Padre. Ao ler este texto, você

levou alegria à minha alma de pecador. Peço-lhe, pelo amor de Deus, que me

deixe copiar o que você nos leu; posso fazê-lo em duas horas. Tudo o que você

leu foi tão bom e reconfortante, pareceu-me tão compreensível, tão claro ao

meu espírito estúpido, como a própria Filocalia, onde os Padres tratam do

mesmo assunto. Veja, por exemplo, o que escreve João de Cárpatos, na quarta

parte da Filocalia: “Se você não tem a força necessária para o domínio de si e as

obras da ascese, saiba que Deus deseja salvá-lo pela oração.” Mas como tudo isto

está magnífica e claramente exposto no seu texto! Eu o agradeço, diante de

Deus, por nos tê-lo trazido e nos dado a conhecer.

O professor: Eu escutei com toda atenção e com muito prazer a sua leitura, meu

Pai. Todos os argumentos que repousam sobre uma estrita lógica são uma delícia

para mim. Mas, ao mesmo tempo, parece-me que eles colocam a possibilidade

da prece perpétua na dependência de condições que lhe sejam favoráveis e de

uma solidão aprazível. Eu admito que a oração frequente e incessante seja um

meio poderoso e único para obter o socorro da graça divina em todos os atos de

santificação, e que ela está dentro dos limites das possibilidades humanas. Mas

trata-se de um método que só é praticável por quem pode dispor de solidão e

calma. Afastando-se dos negócios, das necessidades e das distrações, é possível

orar frequentemente e mesmo continuamente. Só é preciso dar conta da própria

indolência ou do obstáculo formado por seus próprios pensamentos. Mas,

quando se está ligado aos deveres e constantes afazeres, quando se está em

companhia barulhenta, não se pode realizar o desejo de orar incessantemente

devido às inevitáveis distrações. Por conseguinte, este método da oração

frequente, por depender de circunstâncias favoráveis, não pode ser utilizado por

todos, nem adaptar-se a todo mundo.

O monge: Não é preciso chegar a semelhante conclusão. O coração que foi

instruído pela oração interior pode sempre invocar o nome de Deus sem ser

impedido por nenhuma ocupação corporal ou mental, a apesar de não importa

quanto barulho; aqueles que sabem disto o sabem por inexperiência, e os que

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não sabem devem aprender por um treinamento progressivo. Podemos dizer

simplesmente e com toda confiança que nenhuma solicitação exterior pode

interromper a prece do homem que quer orar, pois o pensamento secreto do

homem não depende das condições exteriores e permanece inteiramente livre

em si mesmo. Podemos a qualquer momento despertá-lo e dirigi-lo para a

oração. A própria língua pode secretamente, e sem emitir nenhum som, efetuar

a prece na presença de inúmeras pessoas e durante todo o tipo de ocupação. De

resto, nosso negócios não são tão importantes e nossas conversas tão

interessantes que seja impossível encontrar um meio, por instantes, de invocar

o nome de Jesus, mesmo se o espírito ainda não estiver treinado para a prece

perpétua. Embora a solidão e a fuga para longe de um vida dispersiva constituam

condições favoráveis para a oração atenta e perpétua, deveríamos ter vergonha

da raridade de nossas orações, porque a quantidade e a frequência estão à

disposição de todo mundo, por fraco e ocupado que seja. Encontramos exemplos

cabais da prece entre homens que, carregados de obrigações, de deveres

urgentes, de responsabilidades e de trabalho, não apenas invocaram

constantemente o nome de Jesus Cristo, mas inclusive conseguiram por este

meio alcançar a prece interior e incessante do coração. Assim foi com o patriarca

Photius que, promovido do cargo de senador à dignidade patriarcal, ao mesmo

tempo em que governou o vasto patriarcado de Constantinopla, perseverava

continuamente na invocação do nome de Deus, e obteve assim a prece

ininterrupta do coração. Ou Calixto que, no monte Athos, praticou a prece

perpétua ao mesmo tempo em que mantinha suas atividades como cozinheiro.

Ou Lázaro, de coração simples, que, encarregado pela congregação de exercer um

trabalho contínuo, repetia sem interrupção, em meio às suas ruidosas

ocupações, a oração de Jesus e permanecia em paz. E muitos outros que também

praticaram a invocação contínua do nome de Deus.

Se fosse realmente impossível orar no meio de tarefas absorventes ou no

convívio com os outros homens, não teríamos, evidentemente, recebido este

mandamento. São João Crisóstomo, em seus ensinamentos sobre a oração, fala

assim: ninguém deve responder que é impossível ao homem ocupado com as

responsabilidades do mundo e que não pode ir sempre à igreja, rezar. Em toda

parte, aonde você estiver, sempre você poderá erguer um altar a Deus em seu

pensamento. Assim, é oportuno orar durante os afazeres, em viagens, sentado à

escrivaninha ou numa tarefa manual. É possível rezar em toda parte e em todos

os lugares, e se um homem coloca diligentemente sua atenção sobre si mesmo,

ele encontrará sempre circunstâncias favoráveis à oração, se no mínimo ele

estiver convencido de que a oração deva constituir sua ocupação essencial e vir

antes de qualquer outro dever. E neste caso, bem entendido, ele organizará seus

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negócios com mais decisão; nas conversas com os outros, ele manterá a

brevidade, uma tendência ao silêncio e uma falta de gosto pelas palavras inúteis.

Ele não se inquietará tolamente com as coisas tolas. E, por todos os seus meios,

ele encontrará o caminho da oração e da paz. Em uma vida organizada desta

forma, todas as suas ações, pelo poder da invocação do nome de Deus, serão

logo marcadas pelo sucesso, e ele chegará finalmente à invocação ininterrupta

do nome de Jesus. Ele saberá por experiência que a frequência da oração, este

meio único de salvação, está à disposição da vontade do homem, que é possível

orar em todos os momentos, em todas as circunstâncias e em todos os lugares, e

ele conseguirá então facilmente elevar-se da prece vocal frequente à prece

mental e daí à prece do coração que abre em nós o Reino de Deus.

O professor: Eu admito que durante as ocupações mecânicas é possível, e

mesmo fácil, orar com frequência, e até continuamente; pois o trabalho

maquinal do corpo não exige uma aplicação mental profunda nem muita

reflexão, e é por isso que, enquanto o cumpre, o espírito pode mergulhar na

oração e os lábios o seguem. Mas se eu devo ocupar-me de alguma coisa

puramente intelectual, numa leitura atenta por exemplo, ou na consideração de

um grave problema, ou numa composição literária, como poderei rezar com o

espírito e os lábios? E, uma vez que a prece é antes de tudo uma ação mental,

como é possível, num mesmo instante, atribuir ao mesmo espírito duas tarefas

diferentes?

O monge: A solução do seu problema não é difícil se considerarmos que as

pessoas que oram constantemente podem ser divididas em três categorias:

primeiro os iniciantes; depois, aqueles que já fizeram algum progresso; e em

terceiro lugar, os que estão bem exercitados. Os iniciantes muitas vezes são

capazes de experimentar, de tempos em tempos, um impulso do pensamento e

do coração para Deus, e de repetir orações curtas com os lábios, mesmo durante

um trabalho mental. Aqueles que fizeram progressos e atingiram uma certa

estabilidade mental podem exercitar-se em meditar ou escrever na presença

ininterrupta de Deus. Eis uma imagem para esclarecer: suponha que um monarca

severo e exigente ordene a você que componha um tratado sobre algum assunto

complicado, mas ao pé do trono e na sua real presença. Embora você possa estar

totalmente ocupado com seu trabalho, a presença do rei que tem poder sobre

você e que tem sua vida em suas mãos não poderia ser esquecida um instante

sequer, mesmo estando você pensando, refletindo e escrevendo não na solidão,

mas num lugar que lhe exige uma atenção e um respeito especiais. Esta

consciência da proximidade do rei exprime com muita clareza a possibilidade de

se dedicar à prece perpétua interior mesmo durante um trabalho intelectual.

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Quanto aos que possuem um longo hábito ou que a graça de Deus fez progredir

da prece mental à do coração, eles não abandonam a sua prece perpétua durante

os exercícios intelectuais mais exigentes, e nem mesmo durante o sono. Como

nos disse o sábio: “Eu durmo, mas meu coração vela” (Ct., 5,2). Aqueles que

obtiveram esta espontaneidade do coração obtêm uma tal aptidão em invocar o

nome divino que a oração vigia por si mesma e todo o espírito é transportado

em uma corrente de prece incessante, qualquer que seja a condição e por mais

abstratas e intelectuais que sejam as ocupações do sujeito que ora naquele

mesmo momento.

O sacerdote: Permita-me, Pai, dizer o que eu penso. Dê-me a palavra para que

eu possa dizer uma ou duas coisas. Ficou admiravelmente colocado, no texto que

você nos leu, que o único meio de se alcançar a salvação e a perfeição é a

frequência da prece, qualquer que seja. Mas eu não compreendo isto muito bem,

e eis o que me parece: que utilidade pode ter para mim invocar o nome de Deus

continuamente apenas com a língua, mas sem atenção e sem compreender o que

eu digo? Isto não passaria de uma vã repetição. O único resultado é que a língua

prosseguirá tagarelando e a atividade do espírito, sofrendo com isto em sua

reflexão, ficará desequilibrado. Deus não pede palavras, mas um espírito atento

e um coração puro. Não seria melhor oferecer uma oração, que seja curta, ou

mesmo rara, ou somente em momentos reservados, mas feita com atenção, com

zelo e calor, e com a devida compreensão? De outro modo, mesmo que digamos

a oração dia e noite, sem pureza mental isto não será um ato de piedade e não

estaremos fazendo nada por nossa salvação. Não estamos apoiados em nada

senão numa tagarelice exterior, da qual extraímos fadiga e cansaço, de tal

maneira que no final das contas a confiança na oração esfria e acabamos por

rejeitar este procedimento estéril. De resto, a inutilidade da prece com os lábios

apenas resulta daquilo que nos foi revelado pelas santas Escrituras, como por

exemplo: “Estas pessoas aproximam-se de mim com a boca e me honram com

seus lábios, mas seu coração está longe de mim.”[35] “Todos aqueles que me

dizem: Senhor, Senhor, não entrarão no Reino dos Céus.”[36] “Eu prefiro dizer

cinco palavras com a minha inteligência do que dizer mil palavras numa língua

desconhecida.”[37] Tudo isto mostra a esterilidade da oração exterior e

desatenta da boca.

O monge: Haveria uma certa verdade no seu ponto de vista se eu não tivesse

acrescentado à recomendação de orar coma boca a necessidade de fazê-lo

continuamente, e se a invocação do nome de Jesus Cristo não tivesse um poder

próprio e não obtivesse, por si só, o zelo e a atenção como frutos de sua prática

constante. Mas como a questão em pauta agora é a frequência, a duração e o

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caráter ininterrupto da oração (embora no início ela possa ser cumprida com

desatenção ou secura), as conclusões que você tirou indevidamente caem por si

sós. Examinemos a questão mais de perto. Um autor espiritual, após haver

demonstrado o grande valor e o proveito que resulta da oração frequente

expressa em uma forma invariável, diz finalmente: “Muitas pessoas

supostamente esclarecidas consideram esta oferenda frequente de uma só e

mesma oração como inútil ou mesmo fútil, como uma ocupação mecânica e

insensata de ignorantes. Mas eles ignoram o segredo que é revelado por esta

prática aparentemente maquinal, eles não sabem que o movimento frequente

dos lábios torna-se imperceptivelmente um apelo sincero do coração, que ele se

infiltra na vida interior, torna-se uma felicidade, torna-se, por assim dizer,

natural à alma, levando-lhe e luz e o alimento e conduzindo-a à união com

Deus. Esses censores me fazem pensar em crianças a quem estamos ensinando o

alfabeto e a leitura. Quando elas ficam cansadas elas reclamam: “Não seria cem

vezes melhor irmos às colheitas, como papai, do que passar todo o dia a repetir

incessantemente be-a-bá, ou rabiscar todo o tempo com a caneta numa folha de

papel?”. A utilidade de saber ler e as luzes que daí resultam e que só podem ser

fruto deste penoso aprendizado das letras pelo coração, são para elas um

segredo velado. Da mesma forma, a invocação simples e frequente do nome

divino é um segredo velado para essas pessoas que não estão persuadidas dos

seus resultados e de seu enorme valor. Avaliando o ato de fé a partir da

capacidade de sua própria razão míope e inexperiente, eles esquecem que o

homem é feito de um corpo e uma alma.”

Por exemplo, porque, quando deseja purificar sua alma, você começa por se

ocupar do corpo, fazendo-o jejuar, privando-o de alimento e de comidas

estimulantes. É, certamente, para que ele não possa ser um obstáculo ou, para

dizer melhor, para que ele possa tornar-se o meio de favorecer a pureza da alma

e o discernimento do espírito, para que a sensação constante da fome corporal o

lembre de sua resolução de buscar a perfeição interior e as coisas que agradam a

Deus, e de que nos esquecemos tão facilmente. E aprendemos por experiência

que por meio do ato exterior do jejum corporal realizamos o refinamento

interior do espírito, a paz do coração, e encontramos um instrumento para

domar as paixões e um aguilhão do esforço espiritual. Assim, por meio das

coisas exteriores e materiais, recebemos ajuda e proveito interior e espiritual.

Você deve entender que o mesmo acontece com a prece frequente dos lábios,

que com o tempo atrai a oração interior do coração e favorece a união do espírito

com Deus. É vão imaginar que a língua, cansada desta repetição e desta árida

falta de compreensão, será levada a abandonar inteiramente, como coisa inútil,

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este esforço exterior da oração. Não, a experiência nos prova exatamente o

contrário. Aqueles que praticaram a prece perpétua nos asseguram que o que

acontece é o seguinte: a pessoa que está resolvida a invocar sem cessar o nome

de Jesus, ou, o que vem a dar no mesmo, a dizer a oração de Jesus,

continuamente, experimenta no início uma série de dificuldades e tem que lutar

contra a preguiça; mas quanto mais ela trabalha com firmeza ao longo do

tempo, mais ela se familiariza com esta tarefa, imperceptivelmente, de modo

que no final os lábios e a língua adquirem uma tal capacidade de murmurar que,

mesmo sem nenhum esforço de sua parte, eles movem-se irresistivelmente e

dizem a prece sem ruído. Ao mesmo tempo, o mecanismo dos músculos da

garganta fica tão treinado que ao orar ele começa a sentir que o enunciado da

oração é uma de suas propriedades perpétuas e essenciais, e chega mesmo a

sentir como se algo lhe estivesse faltando cada vez que interrompe a prece.

Resulta assim que por sua vez o espírito começa a ceder, a dar ouvidos a esta

ação involuntária dos lábios e, por meio dela, desperta para a atenção, que

conduz a uma fonte de delícias para o coração, e daí à prece verdadeira.

Vocês veem assim o verdadeiro o benfazejo efeito da prece vocal frequente ou

contínua, exatamente o oposto do que imaginam as pessoas que nunca a

praticaram nem compreenderam. Quanto às passagens da Escritura que você

invocou como apoio à sua objeção, elas ficarão explicadas se fizermos um exame

mais verdadeiro.

Jesus Cristo denunciou a adoração hipócrita de Deus com a boca, a ostentação ou

ausência de sinceridade daqueles que clamam “Senhor, Senhor”, pois a fé dos

orgulhosos Fariseus não era senão da boca para fora, e sua consciência não a

justificava em nenhuma medida, nem eles a confessavam m seus corações. É a

eles que foram ditas estas coisas, e isto não se aplica ao fato de dizermos uma

oração a respeito da qual Cristo deu instruções diretas, explícitas e precisas. “Os

homens devem orar constantemente e nunca fraquejar.” Da mesma forma,

quando o apóstolo Paulo diz que ele prefere cinco palavras ditas com a

inteligência do que uma multidão de palavras sem pensamentos ou em uma

língua desconhecida, ele fala do ensinamento em geral, e não da prece em

particular, a respeito da qual ele diz com toda firmeza: “Assim eu desejo que os

homens rezem por toda parte”[38], e o preceito fundamental vem dele: “Orai

sem cessar.”[39] Veem agora como a prece frequente é fecunda apesar de toda

sua simplicidade, e como a exata compreensão da Escritura exige uma refletida

consideração?

O peregrino: Quão verdadeiro é isto, meu Pai! Eu vi muitas pessoas que, de

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forma simples, sem as luzes de qualquer educação que seja, e sem mesmo saber

o que é a atenção, oferecem a prece de Jesus com a boca e sem detenção. Eu os vi

atingir o ponto em que seus lábios e sua língua não podiam mais parar de dizer a

oração. Elas lhes trazia alegria e iluminação, e pessoas negligentes e fracas

assemelhavam-se a ascetas formados e modelos de virtude.

O monge: A oração conduz o homem a um novo nascimento, por assim dizer.

Seu poder é tão grande que nada, nenhum grau de sofrimento lhe pode resistir.

Se vocês quiserem, irmãos, eu lerei como despedida uma nota breve porém

interessante que eu trago aqui comigo.

Todos: Nós o escutaremos com o maior prazer.

O PODER DA ORAÇÃO

A oração tem tanto poder e força que poderíamos dizer: “Ore, e faça o que quiser”,

pois a prece o guiará para o ato direito e justo. Para agradar a Deus, não é preciso

mais do que amor. “Ame, e faça o que quiser, diz santo Agostinho, pois aquele que

ama verdadeiramente não pode desejar nem fazer nada que não agrade ao amado.”

Como a prece é a efusão e a atividade do amor, dela podemos dizer por analogia:

“Ore, e faça o que quiser”, e você alcançará o objetivo da oração. Ela o iluminará.

Para melhor explicar em detalhe esta questão, tomaremos alguns exemplos:

Ore, e pense o que quiser: seus pensamentos serão purificados pela prece. Ela lhe

dará o discernimento; ela suprimirá e afastará todos os maus pensamentos. É isto

que afirma são Gregório o Sinaíta. Se você deseja exterminar os pensamentos e

purificar o espírito, este é seu conselho: “Expulse-os pela oração.” Pois nada é capaz

de dominar os pensamentos como a oração. São João da Escada diz também a

respeito: “Vença com o nome de Jesus os inimigos que se apoderaram do seu espírito.

Você não encontrará arma melhor do que esta.”

Ore, e faça o que quiser. Seus atos agradarão a Deus e serão úteis e salutares. A

oração frequente, não importa a respeito do quê, jamais permanece sem fruto, pois

ela carrega em si o poder da graça, e porque “quem quer que invoque o nome do

Senhor será salvo.”[40] Por exemplo: um homem que havia rezado sem sucesso e sem

fervor obtém com esta prece o discernimento e um desejo de arrepender-se. Uma

mulher que amava o prazer orava quando estava a sós e esta oração lhe mostrou o

caminho da vida virginal e da obediência aos ensinamentos de Cristo.

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Ore, e não tente vencer suas paixões com suas próprias forças. A oração as

destruirá em você, pois “aquele que está em vós é maior do que aquele que está no

mundo”[41], diz a santa Escritura. E são João de Cárpatos ensina que se você não

tem o dom do domínio sobre si, você não deve afligir-se mas saber que Deus lhe pede

apenas ser diligente na oração, e ela o salvará. Um caso que o demonstra é o do

estaroste de quem é dito na Vida dos Padres que, quando caía no pecado, não se

deixava desencorajar mas recorria à oração, e por meio dela reencontrava seu

equilíbrio.

Ore, e não tema nada. Não tenha receio dos infortúnios, nem dos desastres. A

oração os afastará e o protegerá. Lembre-se de são Pedro, que tinha pouca fé e

afundou[42]; de são Paulo, que orava na prisão; do monge a quem a prece livrou

dos assaltos da tentação; da jovem que foi salva dos maus desejos de um soldado

pela oração; e de outros casos semelhantes que mostram a força, o poder e a

universalidade da prece em nome de Jesus.

Ore de um modo ou de outro, mas ore sempre e não se deixe distrair por

nada. A oração arrumará tudo e o instruirá. Lembre-se das palavras dos santos

João Crisóstomo e Marcos o Asceta sobre o poder da oração. O primeiro declara que

a prece, mesmo oferecida por nós que somos cheios de pecados, nos purifica

imediatamente. O segundo diz: “Rezar de qualquer maneira está em nosso poder,

mas rezar com pureza é um dom da graça.” Ofereça portanto a Deus aquilo que

estiver ao seu alcance oferecer. Dedique-lhe primeiro a simples quantidade, que está

dentro das suas possibilidades, e Deus derramará a força divina em sua fraqueza. A

oração, ainda que seca e distraída, desde que contínua, criará um hábito, tornar-

se-á uma segunda natureza e se transformará na prece pura e luminosa, na

admirável oração de fogo.

Para concluir, note que, se o tempo de sua vigilância e de sua oração se prolonga,

simplesmente não lhe restará mais tempo para realizar más ações, nem sequer para

pensar nelas.

Veem vocês agora, quão profundos pensamentos estão concentrados nesta sábia

afirmação: “Ame, e faça o que quiser”? Quanto conforto e consolo para o pecador

esgotado por suas fraquezas e que geme sob o fardo de suas paixões desgovernadas.

A oração. Eis o que nos foi dado como meio de salvação universal, para fazer a alma

crescer em perfeição. Isto é tudo. Mas quando falamos de oração, deve ficar

estabelecida uma condição. Ore sem cessar, é o mandamento do Verbo de Deus.

Por conseguinte, a oração revelará sua maior eficácia e todos os seus frutos na

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medida em que for oferecida muitíssimas vezes, continuamente; pois a frequência da

prece depende indubitavelmente de nossa vontade, enquanto que a pureza, o zelo e a

perfeição da oração são dons da graça.

Assim, oremos tanto quanto possível. Consagremos toda a nossa vida à oração,

mesmo se de início ela esteja sujeita a distrações. A prática frequente nos ensinará a

atenção. A quantidade conduzirá certamente à qualidade. “Se você quiser aprender

a fazer direito seja lá o que for, é preciso repeti-lo tanto quanto possível”, diz um

velho mestre espiritual.

O professor: A oração é realmente uma grande demanda, e sua repetição

apaixonada é a chave que abre o tesouro da graça. Mas quantas vezes eu estive

em conflito comigo mesmo, entre o ardor e a preguiça! Como eu ficaria feliz em

encontrar o caminho da vitória, de poder determinar-me e despertar para a

prática contínua da prece!

O monge: Muitos autores espirituais oferecem diversos meios baseados num

sólido raciocínio para estimular a diligência na oração. Por exemplo:

- eles o aconselharão a impregnar seu espírito com as ideias da necessidade,

da excelência e da eficácia da oração para a salvação da alma;

- adquira a firme convicção de que Deus exige a oração de nós, de forma

absoluta, e ordena que a realizamos em toda parte;

- lembre-se sempre que, se você é preguiçoso e negligente para a oração,

você não poderá realizar nenhum progresso nos atos de caridade nem na

obtenção da paz e da salvação, e que por conseguinte você sofrerá

inevitavelmente tanto os tormentos da terra quanto os da vida por vir;

- encoraje sua resolução pelo exemplo dos santos que alcançaram, todos

eles, a santidade e a salvação pelo caminho da prece perpétua.

Embora todos estes métodos tenham seu valor e resultem de um juízo são, a

alma que ama o prazer e que se abandona à irresponsabilidade, mesmo quando

os admite ou utiliza, raramente compreende seu alcance, pela seguinte razão:

estes remédios são amargos para seu paladar mimado e demasiado fracos para

sua natureza profundamente alterada. Pois poderá haver um cristão que ignore

que ele deve orar constante e diligentemente, que este é um dever estabelecido

por Deus, que nós somos prejudicados por nossa preguiça na oração, que todos

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os santos rezaram com ardor e perseverança? Entretanto, é bem raro que saber

disto traga frutos. Todo homem que se observa vê bem que ele raramente dá

ouvidos a estes conselhos, e que, fora algumas raras reminiscências, ele leva

todo o tempo uma vida má e preguiçosa. Assim, em sua experiência e divina

sabedoria, os santos Padres, conhecendo a fraqueza da vontade e o excessivo

amor pelo prazer do coração humano, adotaram algumas disposições específicas,

e com isto suavizaram a prova e adoçaram a borda do cálice. Eles mostraram que

o modo mais eficaz e mais fácil de se desfazer da preguiça e da indiferença a

respeito da prece reside na descoberta, com a ajuda de Deus, da doçura e da

imensidão do amor divino, ao qual a oração permitirá responder.

Eles aconselham a você meditar sempre que possível sobre o estado de sua alma,

e ler atentamente os escritos dos Padres a respeito. Eles fornecem a garantia

encorajadora de que estes deliciosos sentimentos interiores podem ser pronta e

facilmente atingidos pela prece, e dizem como eles são desejáveis. A alegria do

coração, o entusiasmo inefável, a leveza do coração, a paz profunda e a própria

essência da beatitude resultam todos da prece do coração. Mergulhando em

reflexões como esta, a alma fria e fraca inflama-se e fortifica-se, o ardor pela

oração a encoraja e ela é assim, de certa forma, tentada a por em prática a

oração. Como diz são Isaac o Sírio: “A felicidade é uma atração para a alma, esta

felicidade que nasce do florescimento da esperança no coração, e a meditação

sobre esta esperança é o bem estar do coração.” O mesmo autor diz também:

“esta atividade, desde sua origem até o fim, pressupõe de certa forma um

método e a esperança em seu cumprimento, e isto solicita à alma edificar uma

fundação para a tarefa a cumprir, ao mesmo tempo em que ela retira seu consolo

da visão do objetivo que ela se esforça em atingir.” Do mesmo modo, santo

Eznik, após haver descrito como a preguiça é um obstáculo à oração e recusado

certos erros sobre a maneira de fazer renascer o ardor pela prece, conclui

claramente: “Se não estamos prontos a desejar o silêncio do coração por

nenhuma outra razão, que seja no mínimo pela delícia que a alma experimenta

e pela felicidade que ela traz.”

Vemos assim que este sábio apresenta o sentimento de felicidade como um

encorajamento à oração assídua; e Macário o Grande, do mesmo modo, ensina

que nossos esforços espirituais (na oração) devem ser cumpridos com o desígnio

de obter seus frutos – ou seja, a felicidade do coração. Podemos encontrar

exemplos claros deste método em numerosas passagens da Filocalia que

descrevem em detalhe as delícias da oração. Quem está às voltas com a preguiça

ou a secura devem lê-las tantas vezes quanto possível, ao mesmo tempo em que

se considera indigno desta alegria e se repreende por ser tão negligente na

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prece.

O sacerdote: Será que tal meditação não levará uma pessoa inexperiente à

volúpia espiritual, como os teólogos denominam esta tendência da alma ávida

por consolações excessivas e agrados, e a não aceitar cumprir seus trabalhos

como uma obrigação despojada, sem sonhar com recompensas?

O professor: Parece-me que os teólogos, neste caso, alertam contra o excesso

ou a avidez da fruição espiritual, mas não rejeitam de modo algum a alegria e a

consolação da virtude. Pois se o desejo de recompensa não é a perfeição,

tampouco Deus proíbe ao homem de pensar na felicidade e na consolação, e ele

próprio utiliza a ideia de recompensa para incitar os homens a cumprir os

mandamentos e alcançar a perfeição. Honre a seu pai e à sua mãe – este é o

mandamento, e você verá que a recompensa chega, como o chicote da

obediência: e você estará bem. Se você quiser ser perfeito, vá, venda tudo o que você

possui, venha e siga-me. É isto que a perfeição exige, e logo após virá a

recompensa, como motivação para alcançar a perfeição: e você terá um tesouro

nos céus. Bem-aventurado você será quando os homens o odiarem, o perseguirem,

ultrajarem e rejeitarem seu nome como infame por causa do Filho do homem.[43]”

Isto é o que exige o cumprimento do trabalho espiritual: ele pressupõe uma força

de alma pouco comum e uma paciência inquebrantável. E é por isso que a

recompensa e a consolação são grandes, próprias para suscitar e manter esta

força da alma; pois sua recompensa será grande nos céus. Creio assim que um

certo desejo de plenitude na prece do coração é necessário e constitui

provavelmente o meio de alcançar tanto a diligência quanto o resultado. De

sorte que isto confirma indubitavelmente os ensinamentos práticos que

ouvimos a respeito.

O monge: Um verdadeiro teólogo – estou falando de são Macário do Egito –

escreve da maneira mais clara sobre esta questão. Ele diz: “Quando você planta

uma vinha, você consagra a ela seus pensamentos e suas penas com o objetivo

de colher a produção, ou, caso não o faça, todo o seu trabalho terá sido inútil. O

mesmo acontece com a oração: se você não buscar o fruto intelectual – ou seja, o

amor, a paz, a felicidade e o resto - suas penas terão sido inúteis. É por isso que

devemos sempre cumprir com nossos deveres espirituais (a oração) com o

objetivo e a esperança de colhermos seus frutos, que são o reconforto e a alegria

do coração.” Vejam como o santo Padre responde claramente à nossa questão

sobre a necessidade da alegria na oração! E, de fato, vem-me ao espírito um

ponto de vista que li em um autor espiritual, não faz muito tempo. Ele dizia algo

assim: “O fato de que a prece é natural ao homem é a primeira causa de sua

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inclinação para ela.” O exame desta característica natural, no meu

entendimento, pode servir como um poderoso meio de estimular o esforço na

oração, meio que o professor busca tão ardentemente.

Permita-me resumir brevemente os pontos que ressaltei em minha leitura. Por

exemplo, o autor diz que a razão e a natureza conduzem o homem ao

conhecimento de Deus. A primeira verifica o axioma segundo o qual não pode

haver ação sem causa, e, subindo pela escada das coisas sensíveis da mais baixa

à mais elevada, chega à Causa primeira, Deus. A segunda manifesta a cada passo

as maravilhas de uma sabedoria, de uma harmonia, de uma ordem, e torna-se

assim o ponto de apoio da escada que conduz das coisas finitas ao infinito. De

sorte que o homem natural chega naturalmente ao conhecimento de Deus. É por

isso que não existe nem jamais existiu povo ou tribo bárbara que fosse

totalmente desprovido do conhecimento de Deus. Através deste conhecimento,

o homem mais selvagem, sem nenhum impulso exterior, volta por assim dizer

sua atenção involuntariamente para o céu, cai de joelhos, solta um grande

suspiro que ele não compreende, e tem o sentimento evidente de que existe algo

que o atrai para o alto, algo que o empurra para o desconhecido. Este é o

fundamento de todas as religiões naturais.

É característico, a propósito, que universalmente a essência ou a alma de todas

as religiões consista na prece secreta, que se manifesta por uma certa forma de

atividade do espírito e como uma evidente oblação, ainda que mais ou menos

deformada pelo obscurantismo em que se encontra a inteligência dos povos

pagãos. Quanto mais este fato é surpreendente aos olhos da razão, mais é

importante para nós descobrirmos a causa oculta desta coisa maravilhosa que se

expressa por uma tendência natural à oração. A resposta psicológica para isto

não é difícil de encontrar. A raiz e a força de todas as paixões e ações humanas

são o amor inato do ser. O instinto de conservação profundamente enraizado e

universal confirma-o. Todo desejo humano, toda empresa humana, toda ação

tem como objetivo a satisfação do amor de ser, a busca do homem por sua

plenitude. A satisfação desta necessidade acompanha o homem natural por toda

a sua vida. Mas o espírito humano não se contenta apenas com o que satisfaz

seus sentidos, e o amor inato de ser não se detém jamais. E o desejo se

desenvolve sempre primeiro, o esforço para atingir a plenitude aumenta, enche

a imaginação e empurra o sentimento para um outro fim. O impulso deste

sentimento e deste desejo interior, na medida em que se desenvolve, é o

estimulante natural da oração. É a própria exigência do amor de ser quando se

amplifica até o infinito. Quanto menos o homem natural consegue alcançar a

felicidade, mais a persegue, mais aumenta seu desejo, e mais ele encontra na

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prece a saída para este desejo. Ele recorre a ela para pedir aquilo que ele deseja à

Causa desconhecida de tudo o que existe. Assim, este amor inato de ser,

elemento principal da vida, é, mesmo no homem natural, o estimulante da

oração. O infinitamente sábio Criador de todas as coisas dotou a natureza do

homem de uma aptidão para o amor de ser, precisamente como uma

“solicitação”, para usarmos uma expressão dos Padres, que elevará o ser

humano decaído até o contato com as coisas celestes. Ah! Se o homem não

tivesse degradado esta aptidão, se ele ao menos a tivesse guardado em sua

excelência, segundo sua vocação com sua natureza espiritual! Ele poderia dispor

de um meio eficaz para conduzi-lo sobre o caminho da perfeição espiritual. Mas,

enfim!, muitas vezes ele transforma esta nobre aptidão em paixão egoísta

quando a torna apenas o instrumento de sua natureza animal.

O estaroste: Eu os agradeço do fundo do meu coração, caros visitantes. Sua

conversa salutar foi para mim um grande consolo e ensinou-me, em minha

inexperiência, muitas coisas proveitosas. Que Deus lhes traga a graça em

pagamento pelo seu amor.

SÉTIMO RELATO

O peregrino: Meu piedoso amigo professor e eu não podemos resistir ao desejo

de começarmos nossa viagem e, antes de mais nada, viermos fazer-lhe uma

curta visita para nos despedirmos e pedir-lhe que ore por nós.

O professor: Sim, nosso encontro foi um grande bem para todos nós, assim

como os entretenimentos espirituais dos quais nos beneficiamos em companhia

de todos os amigos. Guardaremos em nossos corações a lembrança de tudo isto

como uma garantia de amizade e amor cristão, no distante país para onde

vamos.

O estaroste: Eu os agradeço por terem pensado em mim. E, justamente, vocês

chegaram em boa hora. Estou aqui com dois viajantes, um monge moldavo e um

eremita que viveu no silêncio da floresta por vinte e cinco anos. Eles querem vê-

los. Vou chamá-los.

O peregrino: Ah! Como é uma bênção a vida solitária! E como ela convém para

levar a alma à união constante com Deus! A floresta silenciosa é como um

jardim do Éden aonde a árvore da vida cresce no coração do recluso. Se eu

pudesse, nada, creio eu, me impediria de praticar a vida eremítica.

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O professor: Vistas de longe, todas as coisas nos parecem desejáveis. Mas nós

aprendemos pela experiência que toda situação, malgrado suas vantagens,

possui também seus inconvenientes. Certamente, para quem é melancólico por

temperamento e inclinado ao silêncio, a vida solitária é um alívio. Mas quantos

perigos existem nesta via! A história da vida ascética fornece muitos exemplos

que mostram que numerosos reclusos e eremitas, que se separaram

completamente da sociedade humana, foram vítimas de ilusões e de graves

seduções.

O eremita: Estou surpreso de ouvir dizer com tanta frequência, tanto na Rússia

como nos mosteiros e mesmo entre leigos tementes de Deus, que muitos

daqueles que desejaram a vida eremítica ou a prática da oração interior foram

desviados desta inclinação por causa do temor das seduções. Insistindo nisto,

renunciamos um pouco apressadamente à vida interior e afastamos os outros.

No meu entendimento, isto provém de duas causas: seja pela falta de

compreensão da tarefa a cumprir e de uma certa luz espiritual, seja por nossa

própria indiferença quanto ao cumprimento contemplativo e o temor ciumento

de que outros, que julgamos em um nível inferior, nos ultrapassem neste

conhecimento superior. É lamentável que aqueles que têm esta convicção não

estudem o ensinamento dos santos Padres nesta matéria. Os Padres, com efeito,

ensinam com ênfase que nada devemos temer nem duvidar quando invocamos a

Deus. Se alguns foram realmente vítimas de ilusão, a causa foi o orgulho ou o

fato de não terem um pai espiritual ou ainda por tomarem as aparências e a

imaginação como realidade. Os Padres sublinham que, quando surge um período

de provas como estas, ele deve conduzir a uma experiência mais consciente e à

coroa da glória, pois Deus vem prontamente em auxílio quando ele permite tais

coisas. Seja corajoso. Eu estou com vocês, nada temam, diz Jesus Cristo.

É por isso que é inútil temer e alarmar-se pela prece interior sob o pretexto de

correr o risco da ilusão. Pois uma humilde consciência dos pecados, a

sinceridade da alma para com o pai espiritual e a ausência de imagens durante a

oração constituem uma forte e segura defesa contra estas ilusões, das quais

alguns têm tamanho pavor que não ousam se aventurar na atividade espiritual.

De resto, estas pessoas encontram-se elas mesmas expostas à tentação, como

no-lo dizem as sábias palavras de Filoteu o Sinaíta: “Existem muitos monges,

diz ele, que não compreendem sua própria ilusão mental e afirmam que estão

nas mãos dos demônios – vale dizer, que eles só se consagram a um tipo de

atividade: as boas obras exteriores. Quanto à atividade espiritual, ou seja a

contemplação interior, eles quase não se preocupam com isto, por serem

ignorantes e não esclarecidos sobre este ponto.” “Se por um acaso eles ouvem

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outros dizerem que a graça os transformou interiormente, por inveja eles só

conseguem ver aí a ilusão”, diz também Gregório o Sinaíta.

O professor: Permitam-me colocar uma questão. Certamente, a consciência do

pecado advém a qualquer um que esteja atento a si mesmo. Mas como proceder

quando não dispomos de um pai espiritual capaz de nos guiar a partir de sua

própria experiência sobre o caminho da vida interior e, quando lhe abrimos o

coração, nos comunicar um conhecimento exato e digno de fé sobre a vida

espiritual? Neste caso, sem dúvida seria melhor não se engajar na

contemplação, ao invés de tentar a experiência por seus próprios meios, sem um

guia? Ademais, de minha parte, é difícil compreender como é possível, se

estamos em presença de Deus, observar uma completa ausência de imagens. Não

é natural, pois nossa alma ou nosso mental não conseguem se representar algo

sem forma, um vazio absoluto. E porque verdadeiramente, quando a alma está

imersa em Deus, não deveríamos nós nos representarmos Jesus Cristo ou a

Santíssima Trindade, e assim por diante?

O eremita: Os conselhos de um pai espiritual ou de um estaroste experiente nas

coisas espirituais, a quem podemos abrir o coração diariamente sem reservas,

com confiança e proveito, e dizermos nossos pensamentos e tudo o que

encontramos no terreno da educação interior, são ao condição primeira para

praticar a prece do coração quando estamos engajados na via do silêncio.

Entretanto, nos casos em que não é possível encontrar um guia, os santos que o

prescrevem abrem uma exceção. Nicéforo o Monge dá a respeito indicações

precisas: assim, “durante a prática da atividade interior do coração, é preciso um

pai espiritual autêntico e experiente. Se você não conhece um, é preciso

procurá-lo diligentemente. Mas se ainda assim você não o encontrar, então,

implorando com contrição a assistência de Deus, busque instruções e conselhos

nos ensinamentos dos santos Padres e verifique-os pela Palavra de Deus exposta

nas Escrituras.” É preciso lembrar também que aquele que procura com boa

vontade e cheio de zelo pode obter lições úteis da parte de pessoas comuns. Pois

os santos Padres nos asseguram que, se perguntarmos até a um Sarraceno, com

fé e intenção reta, ele pode nos dizer palavras aproveitáveis. Se ao contrário

pedimos conselho a um Profeta, mas sem fé e sem intenção reta, nem mesmo

ele poderá nos satisfazer. Vemos um exemplo disto na história de Macário o

Grande do Egito, a quem um dia um simples camponês deu uma explicação que

pôs fim à sua angústia.

No que concerne a ausência de formas – ou seja, o fato de não utilizarmos a

imaginação e não aceitarmos visões durante a contemplação, seja de uma luz,

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um anjo, do Cristo ou de não importa qual santo, e de nos desviarmos destas

fantasmagorias – isto, bem entendido, é prescrito por Padres experientes, pela

seguinte razão: o poder da imaginação pode facilmente encarnar as

representações mentais, ou por assim dizer dar-lhes vida, de modo que pessoas

inexperientes poderiam ser facilmente atraídas por estas ficções, tomá-las como

visões da graça, e assim cair na ilusão, apesar das advertências da Escritura santa

que diz que o próprio Satã pode tomar a forma de um anjo de luz.

Que o espírito possa com naturalidade e facilmente chegar a um estado de

ausência de imagens e nele manter-se, enquanto recorda a presença de Deus,

vemo-lo bem porque o poder da imaginação pode apresentar uma coisa de modo

perceptível neste vazio e dar consistência a esta representação. Assim, por

exemplo, a representação da alma, do ar, do calor ou do frio. Quando você sente

frio, você pode compor mentalmente uma ideia viva do calor, embora o calor

não tenha contornos, não possa ser objeto de visão e não possa ser medido pela

sensação física daquele que está exposto ao frio. Também da mesma forma a

presença espiritual e incompreensível de Deus pode ser conhecida pelo espírito

e identificada no coração em um absoluto vazio de formas.

O peregrino: Nas minhas viagens, eu encontrei muitas pessoas piedosas que

buscavam a salvação, e que me disseram temer a vida interior, que elas

denunciavam como pura ilusão. Para muitos deles eu li, com algum proveito, os

ensinamentos de são Gregório o Sinaíta na Filocalia. Ele diz que a “ação do

coração não pode ser uma ilusão (contrariamente à do espírito), pois se o

inimigo quisesse transformar o calor do coração em seu próprio fogo

descontrolado, ou substituir a felicidade do coração pelos mornos prazeres dos

sentidos, o tempo, a experiência e o próprio sentimento desmascarariam o

truque e a mentira, mesmo para aqueles ainda não muito instruídos.” Ocorreu-

me encontrar outros que, para grande infelicidade, após haver conhecido a via

do silêncio e da prece do coração, foram atropelados por qualquer obstáculo ou

pela preguiça pecaminosa, cederam ao desencorajamento e renunciaram à

atividade interior do coração que haviam conhecido.

O professor: Sim, e é muito natural. Eu mesmo experimentei isto em certas

ocasiões, quando perdi meu equilíbrio interior ou cometi alguma falta. Pois, a

partir do momento em que a prece interior é algo sagrado, uma união com Deus,

não seria sacrílego, e uma audácia a evitar, levar uma coisa santa a um coração

envilecido pelo pecado, sem tê-lo antes purificado com uma penitência e uma

contrição silenciosas, sem uma preparação conveniente para retornar a Deus? É

melhor estar mudo diante de Deus do que oferecer-lhe palavras negligentes de

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um coração que está mergulhado nas trevas e na confusão.

O monge: É um grande erro pensar assim. Trata-se do desencorajamento, ou

seja do pior de todos os pecados e a principal arma do mundo das trevas contra

nós. O ensinamento dos Padres experientes é, a respeito, totalmente diferente.

Nicetas Stétatos diz que, mesmo se tiver sucumbido e enterrado nas

profundezas diabólicas do mal, ainda assim você não deve desesperar, mas

voltar-se depressa para Deus e ele lhe deterá prontamente a queda de seu

coração e lhe dará mais força do que antes. Depois de cada queda e de cada ferida

do coração pelo pecado, é preciso colocar imediatamente o coração na presença

de Deus para que ele o cure e purifique, exatamente como as coisas que foram

infectadas perdem sua virulência quando expostas por algum tempo ao poder

dos raios solares.

Muitos autores espirituais exprimem-se de modo formal sobre este conflito

interior com os inimigos da salvação, nossas paixões. Você será mil vezes

abençoado se de modo algum abandonar a atividade que dá a vida e que é a

invocação de Jesus Cristo presente no coração. Nossos pecados, não só não

deveriam nos desviar de caminhar na presença de Deus e de cumprir a prece

interior, pois do contrário só nos restaria a inquietude, o desencorajamento e a

tristeza, como deveriam ao contrário nos voltar ainda mais para Deus. A criança

que começa a caminhar guiada por sua mãe volta-se para ela e se agarra

fortemente a ela quando dá um passo em falso.

O eremita: De minha parte, considero que o estado de desencorajamento, os

pensamentos que inquietam, as dúvidas, são todos despertados facilmente pela

distração mental e pela incapacidade de preservar o silêncio de nosso ser

interior. Em sua divina sabedoria, os Padres de antanho reportaram a vitória

sobre o desencorajamento e receberam a iluminação e a força pela esperança

inquebrantável em Deus, pelo silêncio e a solidão, e nos deram este sábio e

precioso conselho: “Sente-se em silêncio em sua cela e ela lhe ensinará tudo.”

O professor: Eu tenho tanta confiança em vocês que ficarei feliz em escutar sua

crítica sobre meus pensamentos a respeito do silêncio, que vocês louvam com

eloquência, e sobre as benesses da vida solitária que os eremitas tanto apreciam.

Eis o que eu penso. Uma vez que todos os homens, pela lei da natureza dada

pelo Criador, estão colocados em necessária dependência uns dos outros e

devem desde cedo cooperar pela vida afora, trabalhar uns para os outros e

darem-se serviços mutuamente, esta sociabilidade contribui ao bem estar da

raça humana e manifesta o amor pelo próximo. Mas o eremita silencioso que se

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retirou da sociedade humana, de que maneira pode ele, em sua inatividade,

servir ao próximo, e que contribuição pode ele trazer para o bem estar da

sociedade humana? Ele destrói por completo em si mesmo esta lei do Criador

que exige a união da humanidade no amor e a ação benfeitora tendo em vista

uma fraternidade universal.

O eremita: Você possui uma falsa concepção do silêncio, e as conclusões a que

você chega não são justas. Vejamos isto em detalhe. Em primeiro lugar: o

homem que vive no silêncio e na solidão não somente não vive na inação e no

ócio, mas ele é ativo no mais alto grau, mais ainda do que quem toma parte na

vida em sociedade. Ele age incansavelmente conforme os mais altos graus de sua

inteligência; ele vela, ele medita; ele concentra sua atenção sobre o estado do

progresso de sua alma. Este é o verdadeiro objetivo do seu silêncio. E na medida

em que esta atitude favorece seu próprio aperfeiçoamento, ela é proveitosa

também para aqueles que não podem praticar a concentração interior para

desenvolver a vida de sua alma. Pois aquele que vela em silêncio e que comunica

suas experiências interiores, seja em palavras, seja consignando-as por escrito,

ajuda ao bem espiritual e à salvação dos seus irmãos. Ele faz mais, e sobre um

plano mais elevado, do que o simples benfeitor, pois a simples caridade

sentimental, no mundo, é sempre limitada pelo pequeno número de

benfeitorias feitas, enquanto que quem traz as benfeitorias por ter

experimentado interiormente meios convincentes de cumprimento espiritual

torna-se o benfeitor de nações inteiras. Sua experiência e seu ensinamento se

transmitem de geração em geração, como podemos ver, e nos dias de hoje ainda

tiramos proveito dos tempos antigos. E isto em nada difere do amor cristão e

inclusive o ultrapassa nas suas consequências.

Em segundo lugar: a preciosa e benéfica influência sobre seu próximo exercida

pelo homem que observa o silêncio não se manifesta apenas pela comunicação

de suas observações sobre a vida interior, mas também pelo exemplo e pela

irradiação de sua vida que pode despertar o profano para o conhecimento de si

mesmo e provocar nele um sentimento de veneração. O homem que vive no

mundo e que ouve falar de um recluso piedoso, ou que passa diante da porta de

seu eremitério, sente um apelo à vida espiritual, lembra-se daquilo que o

homem pode vir a ser sobre a Terra, e que lhe é possível retornar a este estado

contemplativo original do qual ele saiu pelas mãos do Criador. O silencioso

ensina com seu silêncio, e por sua própria vida ele faz o bem, edifica e convence

a buscar a Deus.

Santo Isaac o Sírio exalta assim a importância do silêncio: “Se colocarmos de um

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lado as ações desta vida e de outro o silêncio, veremos que este último

desequilibra a balança para o seu lado; não tome como iguais aqueles que

desempenham prodígios e milagres no mundo e aqueles que guardam o silêncio

com todo o saber. Amem o silêncio mais do que saciar as pessoas ávidas por este

mundo. Mais vale vocês se livrarem dos laços do pecado do que libertar os

escravos de sua servidão.” Mesmo os sábios estrangeiros reconheceram o valor

do silêncio. A escola filosófica dos neoplatônicos, que agregou diversos

aderentes sob a direção do filósofo Plotino, colocou em alto grau o

desenvolvimento da vida contemplativa, acessível especialmente pelo silêncio.

Um autor espiritual disse que ainda que um Estado atingisse o mais alto grau de

aperfeiçoamento dos costumes e da educação, ainda assim seria preciso

encontrar homens para a contemplação, independentemente das atividades

habituais dos cidadãos, para que seja preservado o Espírito de verdade e para

que este, recebido dos séculos anteriores, possa ser transmitido às gerações do

futuro. Estes homens, na Igreja, são os eremitas, os reclusos e os anacoretas.

O peregrino: Creio que ninguém celebrou a virtude do silêncio com mais justiça

do que são João da Escada: “O silêncio, diz ele, é mãe da prece, o retorno do

cativeiro do pecado, o avanço invisível para a virtude, uma ascensão contínua

para o céu.” Sim, e o próprio Jesus, para nos mostrar a vantagem e a necessidade

da reclusão e do silêncio, deixava frequentemente a pregação pública e se dirigia

a locais solitários para aí orar e repousar. Aqueles que contemplam

silenciosamente são como os pilares que sustentam a Igreja com sua prece

secreta e contínua. Desde o mais longínquo passado, vemos que muitos leigos

fervorosos, e mesmo reis e cortesãos, visitaram os eremitas e os homens que

observavam o silêncio para lhes pedir suas orações a fim de serem fortificados e

salvos. Assim, o recluso silencioso pode servir a seu próximo e agir para o bem e

a felicidade da sociedade orando à parte.

O professor: Eis de novo uma ideia que eu tenho dificuldade em compreender.

É um costume disseminado entre todos os cristãos pedir orações uns aos outros,

querer que outro reze por mim, e ter uma confiança particular em um

determinado membro da Igreja. Isto não é um pedido feito por amor a si

mesmo? Não será simplesmente que adquirimos o hábito de repetir o que

ouvimos os outros dizerem, uma espécie de fantasia sem nenhum fundamento

sério? Será que Deus precisa da intercessão de homens, ele que prevê tudo e que

age segundo sua santíssima providência e não segundo nosso desejo,

conhecendo e decidindo tudo antes que peçamos, como diz o santo Evangelho?

Será possível que a oração de muitos seja mais poderosa para trazer-nos suas

decisões do que a de uma só pessoa? Neste caso, Deus faria acepção de pessoas.

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Será possível que as orações de outro possam me salvar, quando cada um de nós

deve ser louvado ou culpado a partir de seus próprios atos? Eis porque pedir

orações a outra pessoa consiste simplesmente, no meu entendimento, numa

piedosa manifestação de cortesia espiritual que traz as marcas da humildade e o

desejo de agradar por uma solicitação mútua, mas isto é tudo.

O monge: Se só levarmos em conta as considerações exteriores, com uma

filosofia rudimentar, podemos ver as coisas assim. Mas o julgamento espiritual,

santificado pela luz da revelação e aprofundado pelas experiências da vida

interior, vai muito além, discerne do modo mais profundo e revela

misteriosamente algo de muito distinto daquilo que você expôs. Para que

possamos compreender isto mais depressa e mais claramente, tomemos um

exemplo, e verificaremos a seguir sua exatidão conforme a Palavra de Deus.

Digamos que um aluno venha a um professor para se instruir. Suas poucas

capacidades, e mais ainda sua preguiça e sua falta de concentração o impediram

de ter sucesso nos estudos, e ele foi colocado na categoria dos preguiçosos,

daqueles que não obtêm nenhum resultado. Afetado pelos fracassos, ele não

sabe o que fazer, nem como lutar contra seus defeitos. Ele encontra então um

outro aluno, colega de classe, mais dotado, diligente e bem sucedido, e lhe

expõe suas preocupações. O outro se interessa por ele e propõe trabalharem

juntos. “Trabalhemos juntos, diz ele, e seremos mais zelosos, mais felizes e

obteremos mais sucesso.” E eles se põem a estudar juntos, cada qual ensinando

ao outro aquilo que melhor compreendia. Eles tinham o mesmo trabalho. O que

acontecerá depois de algum tempo? O indiferente torna-se diligente; ele começa

a gostar do seu trabalho, sua negligência transmuda-se em ardor, sua

inteligência se abre, o que exerce a melhor influência possível sobre sua vontade

e sua conduta. Quanto àquele que era o mais inteligente, ele se torna ainda mais

capaz e mais aplicado. Por esta influência recíproca, eles obtiveram vantagens

mútuas. E é natural, porque o homem nasce em sociedade; é por intermédio dos

outros que ele desenvolve sua inteligência, melhora sua conduta, sua educação,

sua vontade; em uma palavra, ele recebe tudo da comunhão com seus

semelhantes.

Assim, como a vida dos homens consiste em relações estreitas e em fortes

influências de uns sobre outros, quem vive com uma certa classe de pessoas

participa de seus hábitos, sua conduta e seus costumes. Os homens frios

tornam-se entusiastas, os estúpidos refinam-se, os preguiçosos são arrastados à

atividade pelo vivo interesse que eles recebem do grupo. O espírito pode se

aplicar ao espírito, agir favoravelmente sobre um outro, atrair para a prece e a

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atenção. Ele pode confortar no desencorajamento, afastar do vício, despertar a

santidade. É assim que, ajudando-se mutuamente, os homens se tornam mais

fervorosos, mais ativos espiritualmente e mais humildes. Eis o segredo da oração

pelos outros, que explica o piedoso costume de rezar pelo próximo e de pedir

orações aos irmãos.

Isto permite ver, não que elas agradem a Deus como as demandas e intercessões

numerosas agradam aos grandes deste mundo, mas que a prece, por sua própria

essência e seu poder, purifica e eleva a alma daquele por quem ela é oferecida, e

a prepara à união com Deus. Se a oração mútua daqueles que vivem sobre a terra

é tão benéfica, podemos deduzir do mesmo modo que a prece para os

desaparecidos é também mutuamente benéfica em virtude dos laços estreitos

que unem o mundo celeste e o nosso. É assim que as almas da Igreja terrestre

podem unir-se às da Igreja celeste ou, o que é o mesmo, os vivos unirem-se aos

mortos na unidade da Igreja.

Tudo o que eu disse é uma argumentação psicológica, mas basta abrir a santa

Escritura para verificar sua exatidão.

Assim, Jesus Cristo diz ao apóstolo Pedro: Eu rezei por você, para que sua fé não

falhasse. Vejam que a oração do Cristo, por seu poder, fortificou o espírito de são

Pedro e o encorajou quando sua fé foi posta à prova. Do mesmo modo, quando o

apóstolo Pedro estava na prisão, “a Igreja orava a Deus sem cessar por ele.” Isto

nos revela o auxílio que a prece fraterna traz em circunstâncias difíceis da vida.

Mas o preceito mais claro sobre a prece pelos outros é dado pelo apóstolo Tiago:

Confessem seus pecados uns aos outros, e rezem uns pelos outros. A oração

fervorosa e eficaz de um homem virtuoso é uma grande benesse[44].

Eis a clara confirmação dos argumentos psicológicos já expostos. E que dizer do

exemplo do apóstolo Paulo? Um autor observa que seu exemplo deveria nos

ensinar o quanto a prece mútua é necessária, pois até um asceta tão santo e

forte reconhecia ter necessidade desta ajuda espiritual.

Eis como ele formula seu pedido na Epístola aos Hebreus: Orai por nós. Estamos

persuadidos de ter a consciência em paz, pois estamos decididos a procurar o bem

em tudo [45]. Quando consideramos, parece pouco razoável permanecermos

apenas com nossas próprias orações, enquanto um homem tão santo, tão

favorecido pela graça, pede, em sua humildade, que as orações do próximo – no

caso, os Hebreus – se juntem às suas. É por isso que, pela humildade e a

comunhão do amor, não devemos rejeitar ou desdenhar o socorro das orações,

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mesmo do mais débil dos fiéis, quando o espírito iluminado do apóstolo Paulo

não manifestou a respeito nenhuma hesitação. Ele pede as orações de todos em

geral, sabendo que o poder de Deus se torna perfeito tanto na fraqueza quanto

no amor. Ele pode às vezes chegar à perfeição nos que parecem capazes de orar

apenas fracamente. Penetrados pela força deste exemplo, lembraremos ainda

que a oração mútua fortalece esta unidade do amor cristão ordenado por Deus,

que ela testemunha a favor da humildade espiritual daquele que faz a demanda,

e que ela move, por assim dizer, o espírito do que ora. É isto que encoraja a

intercessão mútua.

O professor: Sua análise e suas provas são admiráveis e justas, mas seria

interessante que você nos desse a conhecer o método e a forma real da oração

pelos outros. Se a fecundidade desta prece resulta de um interesse vivo pelo

próximo e da influência constante daquele que ora sobre o espírito do que

solicitou a oração, este estado de alma não arrisca distrair da presença

ininterrupta de Deus e do derramamento da alma diante dele? Se pensamos em

nosso próximo uma ou duas vezes durante o dia, com compaixão e pedindo a

ajuda de Deus por ele, isto não basta para influenciar e fortificar sua alma? Eu

gostaria de saber exatamente como orar pelos demais.

O monge: A oração oferecida a Deus por quem quer que seja não deve nem pode

nos afastar da presença de Deus, pois, se ela é oferecida a Deus, e isto deve

evidentemente acontecer em sua presença. Quanto ao método, é preciso

observar que o poder deste tipo de oração reside na verdadeira compaixão cristã

pelo próximo, e que ela age sobre sua alma na mesma medida desta compaixão.

Da mesma forma, quando nos acontece de nos lembrarmos do próximo, ou num

momento fixado para faze-lo, é bom introduzir sua presença na presença de

Deus, e oferecer a oração nos seguintes termos: “Deus misericordioso, seja feita

sua vontade que quer que todos os homens sejam salvos e alcancem o

conhecimento da verdade: salve e socorra a alma do seu servidor N... Aceite este

desejo que eu exprimo como um grito de amor, como foi ordenado.”

Normalmente, você repetirá esta frase cada vez que sua alma experimente o

desejo, ou você pode dize-la antes do terço. A experiência ensinou-me como ela

é proveitosa para aqueles por quem ela é oferecida.

O professor: Suas concepções e seus argumentos, a conversa edificante e os

pensamentos que ela provoca são tais que eu quero guardar tudo na memória

como uma preciosidade, e expressar toda a veneração e a gratidão de meu

coração agradecido.

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O peregrino: Chegou a hora de partirmos. Do fundo do coração pedimos suas

orações pela nossa viagem e pela nossa amizade.

O estaroste: Então que o Deus da paz, que no sangue da eterna aliança

ressuscitou dos mortos o grande Pastor das ovelhas, Nosso Senhor Jesus, queira

dispô-los ao bem e lhes conceder que cumpram a sua vontade, realizando ele

próprio em vocês o que é agradável aos seus olhos, por Jesus Cristo, a quem seja

dada a glória por toda a eternidade[46]. Amém.

[1] É notório que os Relatos ultrapassam todos os nacionalismos

religiosos para reencontrar os caminhos da espiritualidade ortodoxa do século

XIX, ou seja o contato com Athos através das terras romenas.

[2] Daí o exorcismo do anti-semitismo que contaminou a cristandade

russa no século XIX.

[3] Antiga medida de distância russa, correspondente a 1067 metros.

[4] Startsi [plural de estaroste]: ancião, mestre espiritual que adquiriu o

discernimento dos espíritos e o dom da paternidade espiritual.

[5] São João Cássio

[6] O Alojamento das Grutas, aonde os santos monges eram enterrados.

[7] “Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar

de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens.

Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa. Quando orares, entra no

teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num

lugar oculto, recompensar-te-á. Nas vossas orações, não multipliqueis as

palavras, como fazem os pagãos que julgam que serão ouvidos à força de

palavras. Não os imiteis, porque vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes que

vós lho peçais.” (Mateus, VI, 5-8).

[8] “Eis como deveis rezar: PAI NOSSO, que estais no céu, santificado

seja o vosso nome; venha a nós o vosso Reino; seja feita a vossa vontade, assim

na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje; perdoai-nos as

nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam; e não nos

deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal.” (Mateus, VI, 9-13).

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[9] “Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, vosso Pai celeste

também vos perdoará. Mas se não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai

vos perdoará.” (Mateus, VI, 14-15).

[10] “Pedi, e se vos dará; buscai, e achareis; batei, e vos será aberto.

Porque todo aquele que pede, recebe; quem busca, acha; e a quem bate, abrir-

se-á.” (Mateus, VII, 7-8)

[11] “Foram em seguida para o lugar chamado Getsêmani, e Jesus disse a

seus discípulos: Sentai-vos aqui, enquanto vou orar. Levou consigo Pedro, Tiago

e João; e começou a ter pavor e a angustiar-se. Disse-lhes: A minha alma está

numa tristeza mortal; ficai aqui e vigiai. Adiantando-se alguns passos, prostrou-

se com a face por terra e orava que, se fosse possível, passasse dele aquela hora.

Aba! (Pai!), suplicava ele. Tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Contudo,

não se faça o que eu quero, senão o que tu queres. Em seguida, foi ter com seus

discípulos e achou-os dormindo. Disse a Pedro: Simão, dormes? Não pudeste

vigiar uma hora! Vigiai e orai, para que não entreis em tentação. Pois o espírito

está pronto, mas a carne é fraca. Afastou-se outra vez e orou, dizendo as

mesmas palavras. Voltando, achou-os de novo dormindo, porque seus olhos

estavam pesados; e não sabiam o que lhe responder.” (Marcos, XIV, 32-39).

[12] “Em seguida, ele continuou: Se alguém de vós tiver um amigo e for

procurá-lo à meia-noite, e lhe disser: Amigo, empresta-me três pães, pois um

amigo meu acaba de chegar à minha casa, de uma viagem, e não tenho nada

para lhe oferecer; e se ele responder lá de dentro: Não me incomodes; a porta já

está fechada, meus filhos e eu estamos deitados; não posso levantar-me para te

dar os pães; eu vos digo: no caso de não se levantar para lhe dar os pães por ser

seu amigo, certamente por causa da sua importunação se levantará e lhe dará

quantos pães necessitar. E eu vos digo: pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis;

batei, e abrir-se-vos-á. Pois todo aquele que pede, recebe; aquele que procura,

acha; e ao que bater, se lhe abrirá. Se um filho pedir um pão, qual o pai entre vós

que lhe dará uma pedra? Se ele pedir um peixe, acaso lhe dará uma serpente? Ou

se lhe pedir um ovo, dar-lhe-á porventura um escorpião? Se vós, pois, sendo

maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai celestial

dará o Espírito Santo aos que lho pedirem. (Lucas, XI, 5-13).

[13] “Propôs-lhes Jesus uma parábola para mostrar que é necessário orar

sempre sem jamais deixar de fazê-lo. Havia em certa cidade um juiz que não

temia a Deus, nem respeitava pessoa alguma. Na mesma cidade vivia também

uma viúva que vinha com frequência à sua presença para dizer-lhe: Faze-me

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justiça contra o meu adversário. Ele, porém, por muito tempo não o quis. Por

fim, refletiu consigo: Eu não temo a Deus nem respeito os homens; todavia,

porque esta viúva me importuna, far-lhe-ei justiça, senão ela não cessará de me

molestar. Prosseguiu o Senhor: Ouvis o que diz este juiz injusto? Por acaso não

fará Deus justiça aos seus escolhidos, que estão clamando por ele dia e noite?

Porventura tardará em socorrê-los?” (Lucas, XVIII, 1-7).

[14] “Chegou, pois, a uma localidade da Samaria, chamada Sicar, junto

das terras que Jacó dera a seu filho José. Ali havia o poço de Jacó. E Jesus,

fatigado da viagem, sentou-se à beira do poço. Era por volta do meio-dia. Veio

uma mulher da Samaria tirar água. Pediu-lhe Jesus: Dá-me de beber. (Pois os

discípulos tinham ido à cidade comprar mantimentos.) Aquela samaritana lhe

disse: Sendo tu judeu, como pedes de beber a mim, que sou samaritana!... (Pois

os judeus não se comunicavam com os samaritanos.) Respondeu-lhe Jesus: Se

conhecesses o dom de Deus, e quem é que te diz: Dá-me de beber, certamente

lhe pedirias tu mesma e ele te daria uma água viva. A mulher lhe replicou:

Senhor, não tens com que tirá-la, e o poço é fundo... donde tens, pois, essa água

viva? És, porventura, maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu este poço, do

qual ele mesmo bebeu e também os seus filhos e os seus rebanhos? Respondeu-

lhe Jesus: Todo aquele que beber desta água tornará a ter sede, mas o que beber

da água que eu lhe der jamais terá sede. Mas a água que eu lhe der virá a ser nele

fonte de água, que jorrará até a vida eterna. A mulher suplicou: Senhor, dá-me

desta água, para eu já não ter sede nem vir aqui tirá-la! Disse-lhe Jesus: Vai,

chama teu marido e volta cá. A mulher respondeu: Não tenho marido. Disse

Jesus: Tens razão em dizer que não tens marido. Tiveste cinco maridos, e o que

agora tens não é teu. Nisto disseste a verdade. Senhor, disse-lhe a mulher, vejo

que és profeta!... Nossos pais adoraram neste monte, mas vós dizeis que é em

Jerusalém que se deve adorar. Jesus respondeu: Mulher, acredita-me, vem a hora

em que não adorareis o Pai, nem neste monte nem em Jerusalém. Vós adorais o

que não conheceis, nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos

judeus. Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de

adorar o Pai em espírito e verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja. Deus

é espírito, e os seus adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade.” (João,

IV, 5-25).

[15] “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. O ramo não pode

dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Assim também vós: não

podeis tampouco dar fruto, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira; vós,

os ramos. Quem permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem

mim nada podeis fazer. Se alguém não permanecer em mim será lançado fora,

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como o ramo. Ele secará e hão de ajuntá-lo e lançá-lo ao fogo, e queimar-se-á.

Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós,

pedireis tudo o que quiserdes e vos será feito. Nisto é glorificado meu Pai, para

que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos.” (João, XV, 4-8)

[16] “Naquele dia não me perguntareis mais coisa alguma. Em verdade,

em verdade vos digo: o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo dará. Até

agora não pedistes nada em meu nome. Pedi e recebereis, para que a vossa

alegria seja perfeita.” (João, XVI, 23-24).

[17] “Mal acabavam de rezar, tremeu o lugar onde estavam reunidos. E

todos ficaram cheios do Espírito Santo e anunciaram com intrepidez a palavra

de Deus.” (Atos, IV, 31)

[18] “Alguém entre vós está triste? Reze! Está alegre? Cante. Está alguém

enfermo? Chame os sacerdotes da Igreja, e estes façam oração sobre ele,

ungindo-o com óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará o enfermo e o

Senhor o restabelecerá. Se ele cometeu pecados, ser-lhe-ão perdoados.

Confessai os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros para serdes

curados. A oração do justo tem grande eficácia.” (Tiago, V, 13-16.)

[19] “Mas vós, caríssimos, edificai-vos mutuamente sobre o fundamento

da vossa santíssima fé. Orai no Espírito Santo. Conservai-vos no amor de Deus,

aguardando a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, para a vida eterna.”

(Judas, 20-21); e “Outrossim, o Espírito vem em auxílio à nossa fraqueza; porque

não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém, mas o Espírito

mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis.” (Romanos, VIII, 26)

[20] “Intensificai as vossas invocações e súplicas. Orai em toda

circunstância, pelo Espírito, no qual perseverai em intensa vigília de súplica por

todos os cristãos.” (Efésios, VI, 18)

[21] “Não vos inquieteis com nada! Em todas as circunstâncias apresentai

a Deus as vossas preocupações, mediante a oração, as súplicas e a ação de

graças. E a paz de Deus, que excede toda a inteligência, haverá de guardar

vossos corações e vossos pensamentos, em Cristo Jesus.” (Filipenses, IV, 6-7)

[22] “Orai sem cessar.” (I Tessalonicenses, V, 17)

[23] “Acima de tudo, recomendo que se façam preces, orações, súplicas,

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ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão

constituídos em autoridade, para que possamos viver uma vida calma e

tranquila, com toda a piedade e honestidade. Isto é bom e agradável diante de

Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens se salvem e cheguem

ao conhecimento da verdade. Porque há um só Deus e há um só mediador entre

Deus e os homens: Jesus Cristo, homem que se entregou como resgate por todos.

Tal é o fato, atestado em seu tempo.” (I Timóteo, II, 1-5)

[24] Cânticos da Igreja Ortodoxa em louvor a Maria.

[25] Hebreus, XI, 6.

[26] Tiago, II, 10.

[27] Romanos, III, 20.

[28] Romanos, VII.

[29] Tiago, IV, 20.

[30] I Coríntios, XIV, 14.

[31] Romanos, VIII, 26.

[32] Hebreus, XIII, 15.

[33] Mateus, XVIII, 3.

[34] João, IV, 4.

[35] Mateus, XV, 8.

[36] Mateus, VII, 21.

[37] I Coríntios, XIV, 19.

[38] I Timóteo, II, 8.

[39] I Tessalonicenses, V, 17.

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[40] Atos, II, 21.

[41] I João, IV, 4.

[42] Mateus, XIV, 14-31.

[43] Lucas, VI, 22.

[44] Tiago, V, 16.

[45] Hebreus, XIII, 18.

[46] Hebreus, XIII, 20-21.