Relicário das Delicadezas

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relicário das delicadezas Lorenzo Ganzo

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Poemas de Lorenzo Ganzo. 2013. www.incrivelhumanicade2.blogspot.com

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relicário dasdelicadezas

Lorenzo Ganzo

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Fotografia Capa:Arte sobre foto de Vinícius Noschang

Arte:Nathalia Rech

Textos do blog:www.incrivelhumanidade2.blogspot.com

Contato amigo:[email protected]@gmail.com

incrível relicário das delicadezasmarço, 2013

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nessa sua barrigabem no meio dela

tem uma fenda enormeque joga luz no quartofica brancotudo cegaporcelana finanão te quebras?

onde vou enfiar o tempose te ocupas gordapor todos os meus cantos?

já tentei de tudoanteparos e sunglassesescudo protetor e barreiraanti-mísseis.

que nada teu raio passatodas as defesas

nessa sua barrigabem no meio dela

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é uma penae também uma dor quase sem fimmas não somos capazes dedomesticar o tempoessa cobra de vidro que rastejasem pingar venenoconcentrando-lhe todo e letal

flecha que cruza azulos hemisférios do teu corpo.

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gostaria de ser mais inteiroque as palavras saíssem todasque as expressões saíssem todasque meu corpo todo fosse deglutidocom maior naturalidade

mas a palavra quebrao rosto duroe me recolho em peças.

gostaria de ser mais inteirohonestamente alguém diria:só queres ser entendido, Lorenzohonestamente alguém diria:só queres ser explicável.

esse móbile de pássaros de plásticonão abandona meu tetoe continuo qual felino estúpidoatacando seu ballet aéreo.

tão frágil a vida.o corpo, fragmento al mareLorenzoo corpo, relicário de delicadezasinegociáveis

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chovechove muitonão para de chover umsó segundo

e as vezes só queroque evapore minha febreque teu poço artesanalseque.

para que entãocom as unhas cheias de carnetu me cavoques fundocrie labirintoscavernasestreitas para matar tua sede.

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Eu fecho os olhos antesde apagar as luzesApago a chama antesde riscar o fósforoe me rabisco todo antesde me corrigir

Antecipar a falta nunca foi atenuara dor das embarcações partindoRecolher antes da quedapétalas das mães e dos filhosAntecipar a falta nunca foi tentativafrustrada de redefinir ausênciaspela negação desse meu planetagirando

Que teu avião ultrapasse a curvaQue tuas idéias evaporemQue todos os teus cavalos corram livresnos campos que ainda são sementesQue eu não construa represas a tua inundaçãoQue meu livro termineQue minha música se interrompa em navalhaQue meus mil e duzentos proletários ludistasnão emperrem a máquina do mundoQue eu não cobre a vida que não é minhanem nunca foi

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Que meus amores não vivam no futuroe que meus futuros filhosme façam nascer de novo.

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Não é sobre issoé o boato que escutona voltinha do fêmurque se espalha chovendocidade inteira

Não pense que é sobre vocêdizendo por dentro da terra coisas comoé minha mudança de pele, darlingwait and seeatravés da janela enquantome acertas errando.

Falsificas a arqueologia das pegadascobres com terra meu sítiofoges te procurandoe não me encontras na mesma sala

É tão sobre vocêque sou eupúrpura nuvem que avançaviolentamentesuave.

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cruzaríamos o Pacíficonão fossem as rotas alteradase as dorsais pontiagudas das palavras.em arquipélagos deixaríamos nossa bagagemnão fossem as ataduras da pelee suas esquinas imóveisou a pontuação árticade nossos chakras.reduziríamos à estepe-superfícietodas as florestas equatoriais dos cíliosnão fossem os grãos de deserto guardadosdentro dos bolsos.

enquanto issofaçamos o trabalho que não nos levaa ponto algum do globo.rolha flutuantedo ano novo passado.

costurar os retalhos das nuvensem um grande lençol que cubra o tempoenquanto o seu lobo não vem.

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Auscultações

Não deixei de te procurarnas esquinas das moldurasdescosturo feridas dos afrescos romanosremovo as camadas de tintacomo quem esculpe a cutículaantigo lagarto verde ao sol

Se por acaso ignorei o interior dos ovosé porque dentro encontraria a nação chinesae seus bilhões de raios de sol roubadosreclinaria cego e sem sucessotalvez escutasse música

Também vasculho dentro delanos meios-tons, nas viradas de bordo abruptastrovoadas de tonalidadestransbordamos dentro do silênciodeixando o vento inflamar a esperae antecipar todos os pombos-correio.

Se não pudermos lidar com o esquecimentoque nossos filhos nos esqueçamcanoas abandonadas à terceira margemmercenários da legião estrangeiradentaduras duras do tempo

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ou quem sabepêssegos e romãsdespencandocordilheira acima.

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Exercício sobre a saudade n 5

Assim como o pássaro não abandonao ninho e os filhos durantea tempestade forteeu não abandono meu olhar fixona janela que dá pra ruaa espera do teu carroa roda da bicicletateu cadarço soltoamarrado nas ruassinal de fumaçacarta perdidadisco voador travadona vitrola da minha boca.

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Exercício sobre a saudade n 2

não há psicologia em uma linha retatampouco as tecnologias da dordissolvidas nas pedras.não existe o medo nas linhas retasnão existe o suornão existe a tendênciaforça típica das curvas infinitas.

em uma linha retasó existe a distância.

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Carta: Rei de Ouro

Eu pouco lembro das tuas roupastuas idéiasteu cheiro secando no varalno qual eu me penduroponta cabeça

diversos atrasosreuniões adiadase natais na primaveraé esse o tempo do teu corporeclinado em meu estômago

agora me deitonesta rede que balança o que não tivefico varrendo o pó dos discoscom as cerdas do teu bigodeo cobertor mais quente da minha pele

passamos os dois deitadosno tapete ao solconversando pelas bocasde Bethânia e de Robertoas conversas que dizemao tempo e ao espaçoque eles não habitama nossa casa.

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Recolhimento

Eu recolho do chãoas ligaduras do pulsoas linhas telefônicasos fios, fios, fiosfios de cabelo eu recolhoeu recolhoos sapatoscadarçospalmilhaspalmadaseu recolho as palmadasde todos os filhosfilhoteseu recolho os filhosdas mães estéreishistéricasdas mães que nuncacolheram nada

Eu recolho as moedas dos bolsosa falta delas eu recolhorecolho a falta que tu fazes e farátodos os diaspra trás eu recolhoeu olho

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e cuido para não deixar suspeitados passospássaros

Eu recolho toda colheitada ásia menorque meu dedo.

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Ponteiros Dilatados

Estamos agora alinhando a extensãode todos os desertos.

Quebra-se a esquinaquebra-se o parágrafoquebram-se as pernasem dezenas de pedaços.

Passamos a limpo a faixa de areiadas praias vazias.

O tempo enrijece a musculaturados anos deixadosdos segundos lavadosdos olhares falados

da roupa de cama amassada.

O tempo é quem dobra as cobertasdas camas vazias.

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Adormecerei na trilha dos teus planossendo queda d’águaem momentos de gota única.

precipício do olhar precipitado.A mordida aberta da ferida.

A vela acesa em nossa casajamais iluminou o pátioonde escondemos do corpotodos os ossos de nossos nomes.

Faz muita cócegaroer a carne que vive dentro do sonho.

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Como dois pássarosque se procuram e se beijamdurante o ballet aéreo

Eu te procuro dentro de mim,fugitiva.

A colheita foi abandonadae o continente esquecido

Mas a terra também vasculhadentro dos ossos.

Todos os portos foram partidos.Na estação, o trem afastou-se dos trilhospara amanhecer o inverno.

Permanece o movimento suspenso.Suspeito como um pássaro migrando sem rumo.Evidente como um criminoso.

Todas as distâncias reduzidasao passo mínimo.

Passado ao presente.

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Como dois pássarosque se procuram e se beijamdurante o ballet aéreo

Eu te procuro dentro de mim,fugitiva.

A colheita foi abandonadae o continente esquecido

Mas a terra também vasculhadentro dos ossos.

Todos os portos foram partidos.Na estação, o trem afastou-se dos trilhospara amanhecer o inverno.

Permanece o movimento suspenso.Suspeito como um pássaro migrando sem rumo.Evidente como um criminoso.

Todas as distâncias reduzidasao passo mínimo.

Passado ao presente.

Quarta-feira decinzas.Quarenta infecções respiratórias.

É a sobra da chuvade prata.

E dia dos mortosou melhordia do morto.

(existe a pluralidadeda experiência?)

Dia morto, tia morta.

MortoMortaMoçoMoçaHortaTorta

-Aorta esguichante!

Roça queimada.

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Plaza Espanha de Sevilha

É um olho que vêe outro que lágrima.

É um pé que caminhae outro que fica.

Somos sempre duas nessa cidade.

Meu choro;teu rio.

Meu soluço;tua garganta em avenidas.

Isso de pertencer ao que não somospor avesso.

Isso de somente estar presentena vertigem do corpo.

A falta agudade uma esquina reta.

Teu mapa cicatrizado na peleorienta-me pelo sangue.

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Em minha saladentro do apartamentoarremesso breves punhados de calcárioque vão cobrindo todasuperfície dos móveis.

Uma criança quefaz concha com as mãospara pegar águae atiçar o fogo.

Ofereço migalhas à vidacomo se quisesse disciplinarcada pássaro de minha terra.

Acostumá-los a pouca fomede um quarto sem cama.

Ensiná-los a simetria exatade um cachorro manco.

Nenhuma porta se fechaantes de ter sidoarrombada por dentro.

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Na consciência do mundo grande,carrego uma Itália torta. Ponta cabeça.

Uma Itália fragmentada ainda.Sem papas, sem Emmanuel II, sem Michelangelo,sem Mussolini, sem nada.

Uma Itália corcunda. Despenteada.Uma Piemonte arrasada pela neve.Uma Veneza de submersos violinos.A Itália de minha ausência.

A Itália que me toma o sono nas vozes de suas sopranos.Não a Itália de Anita Ekberg e Mastroianni.Tão pouco a Itália de Calvino e PaveseA Itália que extravia documentos.Que me faz estrangeiro em meu corpo.

A Itália que me faz ilha boiando no Mediterrâneoà espera de sua derrocada.

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Fomos afastados dos lábiospela acidez da saliva.

O hálito seco.A noite ainda adormecida sobre a língua.

A linguagem áspera dos sonhoscom cheiro de palavra abandonada na garganta.Pensamento passado.

A lembrança dela acordou exaustacomo uma língua que transpira.

A manhã foi de poucas palavras.A manhã foi de quase nenhuma vida.E as que estavam ali não se faziam compreender.

Esquecimento é quando o soluço nasce pra dentroe aprisiona o fato na traquéia.Entre o corpo e a cabeça.

Não pergunte

Não me perguntesEm que gavetaFicam os talheres.

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Não se prenda à imagemDe um mero convidado.Invente-se. Transforme-se.

Se tivestes a coragem para romperO solado da casa,Encha-a com teu suspiro.

O despreparo é o abraço das palavras.

Mude as louças de lugar,Esconda o copo dentro do armário,A almofada atrás do braço.

Não me perguntes tanto os caminhos.

Logo estarás anotandoOs atalhos do corpoNa ponta dos cílios.

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oásis também afoga