Religião, Esfera Pública e Pós-secularismo

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ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n.10, nov. 2014, 104-134. RELIGIÃO, ESFERA PÚBLICA E PÓS-SECULARISMO: O DEBATE RAWLS-HABERMAS ACERCA DO PAPEL DA RELIGIÃO NA DEMOCRACIA LIBERAL 1 Wescley Fernandes Araujo Freire 2 RESUMO Este trabalho apresenta, examina e compara as posições assumidas por John Rawls e Jürgen Habermas a respeito da tradução e inclusão de conteúdos religiosos na esfera pública política (politische Öffentlichkeit) das sociedades pós-seculares (postsäkularen Gesellchaft) marcadas por um persistente pluralismo religioso. Discute-se se e como o conceito de razão pública pode responder ao problema da integração política entre cidadãos crentes e não-crentes no contexto do debate público (öffentlichen Streit), sobretudo, acerca de questões políticas controversas de interesse público e relacionadas à ampliação, efetivação e respeito de direitos fundamentais que se chocam com o princípio da liberdade religiosa e a visão de mundo (Weltanschauungen) das religiões. O Proviso revela uma aparente estreiteza da estratégia de Rawls ao exigir a tradução de razões não-públicas para argumentos em linguagem política (razões públicas), acarretando uma distribuição assimétrica do papel da cidadania entre cidadãos crentes e não-crentes. A proposta habermasiana da tradução cooperativa de conteúdos religiosos parece dispor de um teor inclusivista de maior alcance e, por isso, talvez capaz de lidar adequadamente com o alívio das tensões sociais ocasionadas pelo conflito entre os ideais de vida boa inscritos nas visões de mundo das diferentes formas de vida religiosa . Palavras-chave: Religião. Razão pública. Esfera pública política. Pós-Secularismo. Democracia liberal. ABSTRACT This paper aims to present, examine and compare the positions taken by John Rawls and Jürgen Habermas about the translation and inclusion of religious content in the political public sphere (politische Öffentlichkeit) of post-secular societies (postsäkularen Gesellschaft) marked by a persistent religious pluralism. Discuss if and how the concept of public reason can address the problem of political integration between believers and non-believers citizens in the context of public debate (öffentlicher Streit) , especially about controversial political issues of public interest related and respect for fundamental rights which are clashed with the principle of freedom of religion and worldview (Weltanschauungen) religions. The Proviso reveals an apparent narrowness of the strategy to require the translation of non- public reasons for arguments in political language (public reasons) , resulting in an asymmetric distribution of the role of citizenship between believers and non-believers 1 Este artigo é uma versão modificada e ampliada da comunicação oral apresentada no XIII Encontro Humanístico: Multiculturalismo da Universidade Federal do Maranhão UFMA, realizado no período de 11 a 14 de novembro de 2013, no Centro de Ciências Humanas CCH, Cidade Universitária, Campus do Bacanga, São Luís-MA. Sirvo-me ainda de algumas passagens do meu texto A Política nos limites da Espiritualidade e da Secularização: o debate Habermas-Ratzinger-Rorty sobre os fundamentos do Estado de direito democrático liberal, comunicação oral apresentada no VI Simpósio Internacional sobre Justiça da PUCRS (2013), e que compõem a obra BAVARESCO, Agemir; OLIVEIRA, Nythamar; KONZEN, Paulo Roberto (Orgs.). Justiça, Direito e Ética Aplicada: VI Simpósio Internacional sobre a Justiça. Porto Alegre: Editora FI, 2013. 2 Professor Assistente do Curso de Ciências Humanas da UFMA. Mestre em Filosofia pela UECE. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq/DEFIL UFMA e do Grupo de Pesquisa CNPq/CMAF UECE . E-mail: [email protected]

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Religião, Esfera Pública e Pós-secularismo

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    RELIGIO, ESFERA PBLICA E PS-SECULARISMO:

    O DEBATE RAWLS-HABERMAS ACERCA DO PAPEL DA RELIGIO NA

    DEMOCRACIA LIBERAL1

    Wescley Fernandes Araujo Freire2

    RESUMO

    Este trabalho apresenta, examina e compara as posies assumidas por John Rawls e Jrgen

    Habermas a respeito da traduo e incluso de contedos religiosos na esfera pblica poltica

    (politische ffentlichkeit) das sociedades ps-seculares (postskularen Gesellchaft) marcadas

    por um persistente pluralismo religioso. Discute-se se e como o conceito de razo pblica

    pode responder ao problema da integrao poltica entre cidados crentes e no-crentes no

    contexto do debate pblico (ffentlichen Streit), sobretudo, acerca de questes polticas

    controversas de interesse pblico e relacionadas ampliao, efetivao e respeito de direitos

    fundamentais que se chocam com o princpio da liberdade religiosa e a viso de mundo

    (Weltanschauungen) das religies. O Proviso revela uma aparente estreiteza da estratgia de

    Rawls ao exigir a traduo de razes no-pblicas para argumentos em linguagem poltica

    (razes pblicas), acarretando uma distribuio assimtrica do papel da cidadania entre

    cidados crentes e no-crentes. A proposta habermasiana da traduo cooperativa de

    contedos religiosos parece dispor de um teor inclusivista de maior alcance e, por isso, talvez

    capaz de lidar adequadamente com o alvio das tenses sociais ocasionadas pelo conflito entre

    os ideais de vida boa inscritos nas vises de mundo das diferentes formas de vida religiosa.

    Palavras-chave: Religio. Razo pblica. Esfera pblica poltica. Ps-Secularismo.

    Democracia liberal.

    ABSTRACT

    This paper aims to present, examine and compare the positions taken by John Rawls and

    Jrgen Habermas about the translation and inclusion of religious content in the political

    public sphere (politische ffentlichkeit) of post-secular societies (postskularen Gesellschaft)

    marked by a persistent religious pluralism. Discuss if and how the concept of public reason

    can address the problem of political integration between believers and non-believers citizens

    in the context of public debate (ffentlicher Streit), especially about controversial political

    issues of public interest related and respect for fundamental rights which are clashed with the

    principle of freedom of religion and worldview (Weltanschauungen) religions. The Proviso

    reveals an apparent narrowness of the strategy to require the translation of non-

    public reasons for arguments in political language (public reasons), resulting in an

    asymmetric distribution of the role of citizenship between believers and non-believers

    1 Este artigo uma verso modificada e ampliada da comunicao oral apresentada no XIII Encontro

    Humanstico: Multiculturalismo da Universidade Federal do Maranho UFMA, realizado no perodo de 11 a 14 de novembro de 2013, no Centro de Cincias Humanas CCH, Cidade Universitria, Campus do Bacanga, So Lus-MA. Sirvo-me ainda de algumas passagens do meu texto A Poltica nos limites da Espiritualidade e da

    Secularizao: o debate Habermas-Ratzinger-Rorty sobre os fundamentos do Estado de direito democrtico liberal, comunicao oral apresentada no VI Simpsio Internacional sobre Justia da PUCRS (2013), e que compem a obra BAVARESCO, Agemir; OLIVEIRA, Nythamar; KONZEN, Paulo Roberto (Orgs.). Justia,

    Direito e tica Aplicada: VI Simpsio Internacional sobre a Justia. Porto Alegre: Editora FI, 2013. 2 Professor Assistente do Curso de Cincias Humanas da UFMA. Mestre em Filosofia pela UECE. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq/DEFIL UFMA e do Grupo de Pesquisa

    CNPq/CMAF UECE . E-mail: [email protected]

    mailto:[email protected]

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    citizens. Habermas proposed cooperative translation of religious content seems to have an

    inclusivistic content greater reach and therefore maybe able to properly deal with alleviating

    social tensions caused by the conflict between the ideals of good life inscribed on the

    worldviews of different forms of religious life.

    Key-words: Religion. Public reason. Political public sphere. Post-Secularism. Liberal

    democracy.

    1 INTRODUO

    A integrao social considerada a partir da perspectiva dos processos de

    aprendizagem social (soziale Lernprozess) e modernizao cultural e social constitui um

    importante problemano apenas para as teorias sociolgicas que se ocupam com a ao

    social, mas, sobretudo, para a filosofia poltica contempornea. No debate contemporneo, a

    questo da integrao social associa-se ao no menos complexo problema da razoabilidade e

    racionalidade dos custos sociais assumidos individualmente pelos cidados religiosos e

    seculares, e coletivamente pelas comunidades polticas, no que diz respeito ao processo de

    estabilizao da sociedade atravs das instituies sociais, ainda que o dissenso (desacordo

    razovel) seja uma caracterstica dos regimes democrticos liberais, marcados pelo

    pluralismo e pelo multiculturalismo de ideias e convices. Mas o desacordo razovel no

    tem se restringido apenas ao nvel da formao da opinio pblica e da vontade popular,

    tpico da democracia liberal, mas, sobretudo, quanto ao papel da religio na esfera pblica

    poltica (politische ffentlichkeit)3 das sociedades ps-seculares (postskularen Gesellchaft)

    4,

    3 Desde a elaborao de Mudana Estrutural da Esfera Publica (1962) Habermas tem operado inflexes

    semnticas importantes acerca do conceito de esfera pblica (ffentlichkeit), mas no me ocupo com tal questo neste trabalho por razes programticas. Todavia, recorro a duas caracterizaes feitas por Habermas acerca deste conceito e que me parecem oportunas para os objetivos deste estudo:

    descrita como uma rede adequada para a comunicao de contedos, tomadas de posio e opinies; nela os fluxos comunicacionais so filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opinies pblicas enfeixadas

    2) o abrange questes politicamente relevantes, ela deixa ao cargo do

    sistema poltico a elaborao especializada. A esfera pblica constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir comunicativo orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espao social gerado no agir comunicativo, no com as funes nem com os contedos HABERMAS,

    Jrgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 92, grifo do autor (Faktizitt und Geltung: Beitrge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratische Rechtsstaats. Band II. Frankfurt: Suhrkamp, 1992.). A esfera pblica inicialmente considerada como o espao

    em que ocorrem as interaes discursivas entre indivduos que fazem uso da racionalidade comunicativa e se orientam pelo entendimento mtuo e agir cooperativo. Nesse sentido, a esfera pblica em razo do potencial racional de seus fluxos comunicativos constitui-se em um espao onde ocorrem processos de aprendizagem

    social (soziale Lernprozess) dos quais a traduo de razes no-pblicas para a linguagem poltica (razes pblicas) a partir do Proviso (Rawls) e a traduo cooperativa de contedos religiosos (Habermas) seriam dois exemplos. Todavia, para que isto ocorra necessrio no apenas que a esfera pblica seja pensada a partir do

    agir comunicativo, mas tambm segundo a prpria institucionalizao poltica da esfera pblica, atravs dos discursos produzidos pelas instituies da sociedade civil capazes de articular problemas, solues, temas e contribuies pelo mercado e pela burocracia estatal. A institucionalizao da esfera pblica

    representa uma importante inflexo normativa operada por Habermas desde a reconstruo histrica deste

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    cuja presena e persistncia tm representado um desafio cognitivo para a tica e Filosofia

    Poltica, Filosofia do Direito e Sociologia da Religio.

    A relao entre religio e esfera pblica poltica tem ganhado um novo e

    diversificado contorno terico em nossa poca. Em consequncia, o interesse pelo dilogo

    entre f e razo renovou-se no atual cenrio do liberalismo poltico. Veja-se, por exemplo, a

    acentuada relevncia e contribuio terica que o tema da religio ganhou na obra tardia de

    John Rawls5 e Jrgen Habermas

    6, sem deixar de mencionar a importncia dos

    posicionamentos crticos e complementares formulados por autores como Charles Taylor,

    Michel Sandel, Robert Audi, Paul Weithman e Nicolas Wolterstorff que em pouco tempo

    contriburam para uma rica e diversificada atualizao acerca do papel da religio na esfera

    pblica poltica7.

    O texto apresenta, examina e compara o recurso ideia de razo pblica,

    expressa sob a forma do Proviso, formulada por John Rawls e a traduo cooperativa de

    contedos religiosos de Jrgen Habermas enquanto respostas ao problema da incluso de

    cidados crentes no debate poltico travado na esfera pblica das sociedades ps-seculares. O

    Proviso revela uma aparente estreiteza da estratgia de Rawls ao exigir a traduo de razes

    no-pblicas para argumentos em linguagem poltica (razes pblicas), acarretando uma

    conceito. Para uma investigao histrica do conceito de esfera pblica, ver HABERMAS, Jrgen. Mudana Estrutural da Esfera Pblica: investigaes quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003 (Strukturwandel der ffentlichkeit: Untersuchungen zu einer Kategorie der

    brgerlichen Gesellschaft. Berlin: Luchterhand, 1962.). Para uma crtica do conceito de esfera pblica, ver LUBENOW, Jorge Adriano. A categoria de esfera pblica em Jrgen Habermas: para uma reconstruo autocrtica. Cadernos de tica e Filosofia Poltica, So Paulo, ano 1, n. 10, p. 103-123, 2007; LUBENOW,

    Jorge Adriano. A subverso da ffentlichkeit em Mudana Estrutural da Esfera Pblica de Jrgen Habermas. Pensando Revista de Filosofia, v. 3, n. 5, p. 30-55, 2012. 4 As sociedades ps-seculares so caracterizadas pela persistente presena da religio no obstante o processo de

    modernizao social e cultural pela qual passaram e decorrente da ideia de verbalizao (Versplachlichung) do sagrado, conservando o aspecto motivacional dos seus contedos religiosos e contribuindo para a manuteno da integrao social, alcanada no apenas atravs da dimenso normativa do Estado constitucional democrtico

    de direito liberal. 5 RAWLS, John. O Liberalismo Poltico. 2. ed. So Paulo: tica, 2000; O Direito dos Povos. So Paulo: Martins Fontes, 2001. 6 HABERMAS, Jrgen. A Era das transies. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003 (Zeit der bergnge. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001.); HABERMAS, Jrgen; RATZINGER, Joseph. Dialtica da Secularizao: sobre razo e religio. 3. ed. So Paulo: Ideias & Letras, 2007; Entre Naturalismo e Religio:

    estudos filosficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007 (Zwischen Naturalismus und Religion. Philosophische Aufstze. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005.); F e Saber.So Paulo: UNESP, 2013 (Glauben und Wissen. Berlin: Suhrkamp, 2001.). 7 A obra Pluralismo e Justia: estudos sobre Habermas. So Paulo: Loyola, 2010, de autoria do professor Luiz Bernardo Leite Araujo (UERJ) tem nos ajudado a compreender o lugar da religio no conjunto da obra de Habermas, sobretudo, a partir da comparao de suas ideias com os escritos e entrevistas recentes de Habermas,

    alm de apresentar uma excelente bibliografia sobre a atualidade do debate entorno do papel da religio na esfera pblica. A nosso ver, o conjunto da obra de Luiz Bernardo Leite Araujo constitui hoje uma importante fonte de pesquisa sobre o tema da religio nos escritos de Habermas, razo pela qual este trabalho mantm intenso

    dilogo com seus escritos.

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    distribuio assimtrica do papel da cidadania entre cidados crentes e no-crentes. A

    proposta habermasiana da traduo cooperativa de contedos religiosos parece dispor de um

    teor inclusivista de maior alcance e, por isso, talvez capaz de lidar adequadamente com o

    alvio das tenses sociais ocasionadas pelo conflito entre os ideais de vida boa inscritos nas

    vises de mundo das diferentes formas de vida religiosa.

    2 A IDEIA DE RAZO PBLICA EM JOHN RAWLS

    Para John Rawls, uma sociedade poltica e seus cidados podem ser chamados de

    razoveis e racionais8 se so capazes de articular os meios e fins de suas respectivas aes

    atravs do planejamento e hierarquia dos seus planos de ao, de modo a determinar

    prioridades acerca de escolhas e decises9. Tal procedimentalismo encontra-se fundado na

    razo, seja a razo dos cidados, seja a razo da sociedade poltica. Todavia, nem todas as

    razes so pblicas , pois temos as razes no-pblicas de igrejas, universidades e de

    muitas outras associaes da sociedade civil10

    . Todavia, os indivduos que fazem parte da

    sociedade civil no esto excludos do uso da razo pblica, pois

    caracterstica de um povo democrtico, daqueles que compartilham o status da cidadania

    igual11

    .

    De acordo com Rawls, uma concepo poltica de justia atua sobre as estruturas

    bsicas das instituies sociais e visam realizao do bem pblico, objeto da razo pblica.

    A publicidade da razo pblica expressa em trs perspectivas: 1) a razo do pblico a

    razo dos cidados; 2) o objeto da razo pblica o bem pblico e as questes de justia

    fundamental; 3) a natureza e o conceito de razo pblica so determinados pelos ideais e

    princpios do modelo de justia poltica da sociedade12

    . Por se tratar de um ideal de cidadania

    e justia poltica aplicvel a uma democracia constitucional, o uso da razo pblica considera

    um dever-ser a realizao de uma sociedade bem-ordenada e justa. por isso que Rawls

    afirma que a razo pblica deva ser entendida dessa forma e respeitada pelos cidados

    13, no se tratando, portanto, simplesmente de uma questo jurdica.

    A ideia de razo pblica possui um contedo liberal. A razo pblica a razo

    dos cidados que compem o corpo poltico de uma democracia liberal, exercendo o poder

    8 Acerca da distino entre o razovel e o racional em Rawls, ver O Liberalismo Poltico, p. 92 e ss. 9 Cf. RAWLS, O Liberalismo Poltico, p. 261. 10 RAWLS, O Liberalismo Poltico, p. 261. 11 RAWLS, O Liberalismo Poltico, p. 261. 12 Cf. RAWLS, O Liberalismo Poltico, p. 261. 13 RAWLS, O Liberalismo Poltico, p. 261.

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    poltico e a coero atravs da promulgao das leis e emenda da constituio14

    . A razo

    pblica e aplica to somente a questes que envolvam elementos constitucionais

    15, o que significa dizer, de acordo com Rawls, que

    apenas valores polticos devem se pronunciar acerca do seguinte rol de questes que

    concernem: a) ao direito ao voto; b) tolerncia religiosa; c) igualdade equitativa de

    oportunidades; d) ao direito de propriedade. Rawls procura aqui limitar os tpicos

    disponveis para o debate poltico atravs da razo pblica e dos valores polticos.

    Mas o que singulariza o uso da razo pblica que ela no se aplica a

    deliberaes e reflexes particulares acerca de questes polticas. De acordo com Rawls, os

    cidados intervm na sociedade atravs da argumentao poltica pblica e, portanto,

    recorrem razo pblica e a valores polticos para resoluo argumentativa de questes

    acerca dos elementos constitucionais essenciais e questes de justia bsica. Desse modo,

    ainda que a diversidade de doutrinas religiosas, filosficas e morais possam desempenhar

    algum papel na vida dos indivduos, sem deixar de mencionar que os cidados normalmente

    encontram-se ligados a igrejas, universidades, sindicatos e outras tantas associaes que

    encontram seu lugar na sociedade civil, o ideal da razo pblica requer

    apelem somente para uma concepo pblica de justia, e no para a verdade como um todo,

    tal como a vem16

    .

    Rawls procura compatibilizar a existncia de doutrinas religiosas, filosficas e

    morais, quanto a sua influncia nos debates poltico, com o princpio de legitimidade liberal.

    Para o liberalismo poltico, os cidados devem, atravs do instrumento do voto, exercer o

    poder poltico da coero quando questes polticas fundamentais esto no epicentro do

    debate poltico, justificando-o atravs do recurso a elementos

    essenciais se pode razoavelmente esperar que todos os cidados endossem, luz de

    princpios e ideais aceitveis para eles, enquanto razoveis e racionais17

    . E acrescenta

    Rawls:

    E, como o exerccio do poder poltico deve ser legtimo, o ideal de cidadania

    impe o dever moral (e no legal) o dever de civilidade de ser capaz de,

    no tocante a essas questes fundamentais, explicar aos outros de que maneira

    os princpios e polticas que se defende e nos quais se vota podem ser

    sustentados pelos valores polticos da razo pblica.18

    14 Cf. RAWLS, O Liberalismo Poltico, p. 261. 15 RAWLS, O Liberalismo Poltico, p. 261. 16 RAWLS, O Liberalismo Poltico, p. 265. 17 RAWLS, O Liberalismo Poltico, p. 266. 18 RAWLS, O Liberalismo Poltico, p. 266.

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    O princpio de legitimidade liberal requer que os cidados ouam uns aos outros,

    numa atitude equnime, quando da deliberao pblica a propsito da resoluo de conflitos

    buscando obter o consenso acerca do que se deveria fazer, num exerccio de conciliao de

    pontos de vista sobre a razo pblica. Nas palavras de Rawls:

    Enquanto razoveis e racionais, e sabendo-se que endossam uma grande

    diversidade de doutrinas religiosas e filosficas razoveis, os cidados

    devem estar dispostos a explicar a base de suas aes uns para os outros em

    termos que cada qual razoavelmente espere que outros possam aceitar, por

    serem coerentes com a liberdade e igualdade dos cidados. Procurar

    satisfazer essa condio uma das tarefas que esse ideal de poltica

    democrtica exige de ns. Entender como se portar enquanto cidado

    democrtico inclui entender um ideal de razo pblica .19

    O que se alcana com isso um consenso sobreposto (overlapping consensus)

    obtido entre doutrinas abrangentes e razoveis luz do respeito ao dever de civilidade por

    cidados que exercitam a sua autonomia poltica, isto , onde cada cidado capaz de

    reconhecer um argumento poltico proferido por outro cidado livre e igual como porta-voz

    da razo pblica, como se ele prprio fosse o seu autor. Ao substituir a verdade pelo razovel

    durante o processo de justificao normativa, Rawls procura corroborar a conjectura do

    liberalismo poltico, segundo a qual

    direitos e deveres, assim como os valores em questo, tm peso suficiente

    para que os limites da razo pblica sejam justificados pelas avaliaes

    globais das doutrinas abrangentes razoveis, uma vez que essas doutrinas

    tenham se adaptado concepo de justia .20

    Todavia, o problema ocorre quando os cidados crentes so chamados a tomar

    posicionamentos no debate pblico (ffentlicher Streit) acerca de questes polticas de

    interesse coletivo, sobretudo, as controversas, uma ciso na identidade destes indivduos

    produzida, pois sero proibidos de introduzir razes no-pblicas nos debates polticos de sua

    comunidade respeitando e conservando a laicidade do Estado constitucional liberal que

    dispe de meios coercitivos para a manuteno da sua natureza poltica. O fato que a

    exigncia da separao entre religio e poltica, tal como enunciara o pensamento filosfico

    moderno, a fim de preservar a autonomia da esfera do poltico, no parece mais to evidente,

    19 RAWLS, O Liberalismo Poltico, p. 267. 20 RAWLS, O Liberalismo Poltico, 2000, p. 268.

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    sobretudo porque convivemos numa democracia liberal marcada pelo fato do pluralismo

    razovel21

    .

    A contribuio de Rawls para o debate consiste na ideia do Proviso, isto , na

    traduo de razes no-pblicas para razes pblicas no caso dos cidados crentes

    introduzirem argumentos de origem religiosa na esfera pblica poltica. Portanto, preciso

    saber se ainda mantm-se como soluo a separao entre f e razo na poltica, ou se alguma

    forma de inclusivismo de contedos religiosos poderia ser possvel, sob qual critrio e qual

    concepo de justia poltica poderia formular sua justificao.

    2.1 Razo Pblica, Religio e Democracia

    Apenas sob o regime de uma democracia constitucional liberal a concretizao da

    liberdade entre cidados livres e iguais razoveis pode ganhar realidade, pois esse regime

    encontra-se alicerado sob a ideia de razo pblica, identificada ao fato do pluralismo

    razovel. Rawls procura atravs da ideia de razo pblica estabelecer uma mediao entre a

    doutrina abrangente (seja ela qual for) de cidados religiosos e a doutrina abrangente de

    cidados no-religiosos quando estes assumem seus lugares no debate pblico.

    Com isso, Rawls procura ultrapassar os dois posicionamentos clssicos quanto ao

    problema do papel da religio na esfera pblica : de um lado, o secularismo dogmtico, e do

    outro, o fundamentalismo religioso. Seguramente, a posio assumida por Rawls no debate

    no pode ser descrita nem como exclusivista nem como inclusivista. Ao mesmo tempo, srias

    objees so levantadas quanto estreiteza da estratgia22

    de argumentao do autor ao

    justificar, para no excluir, o papel da religio na cultura democrtica do liberalismo poltico

    atravs do recurso tradutibilidade dos contedos religiosos, cujo lugar na esfera pblica

    reivindicado pelos cidados crentes.

    Todavia, na medida em que Rawls pretende preservar o princpio da liberdade de

    conscincia e o princpio da igualdade cvica, ele confronta-se com o no menos espinhoso

    problema da conservao do princpio da laicidade do Estado constitucional liberal.

    Considerando o fato do pluralismo razovel, como responder ao delicado problema de que em

    sociedades pluralistas e multiculturalistas, cujos cidados religiosos e seculares, com suas

    respectivas doutrinas abrangentes razoveis filosficas, morais ou religiosas, podem sofrer

    21 Rawls define o pluralismo razovel

    abrangentes razoveis e conflitantes, religiosas, filosficas e morais, o resultado normal da sua cultura de , o pluralismo razovel faz parte da cultura poltica de sociedades democrticas

    constitucionais bem ordenadas. RAWLS, O Direito dos Povos, p. 173-174. 22 Cf. ARAUJO, Pluralismo e Justia, p. 149-150.

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    restries assimtricas de direitos e deveres em razo da aplicao de determinadas normas,

    ainda que fundamentadas no princpio da igualdade cvica?

    Antes do abandono do projeto de Uma Teoria da Justia23

    , Rawls acreditava que

    o consenso sobreposto (overlapping consensus) seria capaz de produzir unidade entre

    doutrinas abrangentes razoveis e uma concepo poltica de justia, embora sem estabelecer

    uma distino clara entre ambas. Porm, reconhecido o fato do pluralismo razovel, qualquer

    concepo poltica de justia, que tenha em vista a compatibilizao entre doutrinas

    abrangentes razoveis, no respeitar o pluralismo razovel, na medida em que convergir

    em uma forma de

    [...]24

    . Transformada em doutrina abrangente particular, Uma Teoria da Justia est sujeita

    a um desacordo razovel como qualquer outra doutrina abrangente particular, filosfica,

    moral ou religiosa,

    pluralismo dos valores e prover uma slida unidade social su stentada pela concepo

    25.

    Mantido o fato do pluralismo razovel e o perigo da restrio normativa de

    direitos e deveres entre cidados religiosos e seculares no interior de um Estado

    constitucional democrtico liberal, Rawls formula a seguinte questo:

    Como possvel para os que sustentam doutrinas religiosas, alguns baseados

    na autoridade religiosa, a Igreja ou a Bblia , por exemplo, assumir ao mesmo

    tempo uma concepo poltica razovel que sustente um regime democrtico

    constitucional razovel? Essas doutrinas ainda podem ser compatveis, pelas

    razes certas, com uma concepo poltica liberal?26

    Na cultura poltica pblica de uma democracia constitucional, os cidados que

    consagram doutrinas abrangentes religiosas e no-religiosas no podem aceitar tal regime

    poltico como um simples modus vivendi.

    A ideia de razo pblica encerra a premissa de que cidados crentes e

    profanizados so capazes de recorrer a princpios constitucionais durante o procedimento

    argumentativo de fundamentao de normas, bem como na tomada de posio no debate

    poltico pblico, de modo sempre levar em considerao na determinao da razo pblica

    23 Nessa obra, Rawls acredita ser possvel elaborar uma teoria poltica da justia capaz de compatibilizar doutrinas abrangentes razoveis atravs de um acordo normativo, constituindo a base da unidade social numa democracia constitucional. Cf. ARAUJO, Pluralismo e Justia, 2010, p. 149. 24 ARAUJO, Luiz Bernardo Leite. Razo Pblica e Ps-Secularismo: apontamentos para o debate. Ethic@, Florianpolis, n. 3, v. 8, 2009, p. 155-173, p. 156; ARAUJO, Pluralismo e Justia, p. 151. 25 ARAUJO, Razo Pblica e Ps-Secularismo, p. 156; ARAUJO, Pluralismo e Justia, p. 151. 26 RAWLS, O Direito dos Povos, p. 196.

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    o critrio da reciprocidade, responsvel pela mediao entre as ideias de imparcialidade e

    vantagem mtua.

    A cooperao social entre cidados livres e iguais ocorre consoante os moldes da

    razo pblica quando agimos como se fssemos funcionrios do governo e as aes que

    decorrem do nosso uso poltico do poder coercitivo estatal assentassem em razes que

    acreditamos, sinceramente, serem passveis de aceitabilidade racional por outros cidados,

    no caso destes ltimos se encontrarem em uma posio semelhante quanto ao uso pblico do

    poder poltico, a fim de justificar uma tomada de deciso27

    , configurando a articulao entre

    reciprocidade, razo pblica e vantagem mtua, lastro do princpio de legitimidade poltica .

    A preocupao de Rawls quanto presena de doutrinas abrangentes religiosas

    na esfera pblica poltica (politische ffentlichkeit) tornou-se o ponto de Arquimedes do

    liberalismo poltico, questo filosfica enunciada por ele nos seguintes termos:

    Como possvel que cidados de f sejam membros dedicados de uma

    sociedade democrtica, que endossam os ideais e valores polticos

    intrnsecos da sociedade e no simplesmente aquiescem ao equilbrio das

    foras polticas e sociais? Expresso mais nitidamente: Como possvel ou

    ser possvel que os fiis, assim como os no-religiosos (seculares),

    endossem um regime constitucional, mesmo quando suas prprias doutrinas

    abrangentes podem no prosperar sob ele e podem, na verdade, declinar?28

    Procurando resolver o problema da coexistncia e cooperao entre cidados

    religiosos e seculares, Rawls recorre a uma viso ampla da cultura poltica pblica29

    ,

    segundo a qual

    [...] doutrinas abrangentes razoveis, religiosas ou no-religiosas, podem ser

    introduzidas na discusso poltica pblica, contanto que sejam apresentadas,

    no devido tempo, razes polticas adequadas e no razes dadas

    unicamente por doutrinas abrangentes para sustentar seja o que for que se

    diga que as doutrinas abrangentes introduzidas apoiam. Refiro-me a essa

    injuno de apresentar razes polticas adequadas como proviso , e ela

    especifica a cultura poltica pblica em contraste com a cultura poltic a de

    fundo.30

    O Proviso determina a tradutibilidade das razes no-pblicas (no-polticas)

    das doutrinas abrangentes razoveis religiosas ou no-religiosas em razes pblicas

    (polticas) no caso de cidados religiosos ou no-religiosos desejarem participar do debate

    27 Cf. ARAUJO, Pluralismo e Justia, p. 153. 28 RAWLS, O Direito dos Povos, p. 196. 29 Cf. RAWLS, O Direito dos Povos, p. 200. 30 RAWLS, O Direito dos Povos, p. 200-201.

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    poltico pblico, situao em que

    31.

    Rawls no tem a inteno de excluir cidados crentes e no-crentes do debate

    poltico pblico em razo de suas doutrinas abrangentes,sejam elas religiosas, filosficas ou

    morais. A interpretao correta da ideia de razo pblica sugere que os sujeitos polticos

    sejam capazes no de responder corretamente a uma questo poltica pblica controversa,

    pois no se trata da correo de respostas, mas sobre quais tipos de razes poderiam ser

    compreendidas e avaliadas para alm da centralidade de cada pessoa. De acordo com Luiz

    Bernardo Leite Araujo,

    a razo pblica rawlsiana de modo algum exige que os cidados, ao

    ingressarem no frum poltico pblico para discutir e decidir questes

    fundamentais de justia poltica, deixem para trs os valores seculares ou

    religiosos que prezam, restringindo-se avaliao daquilo que deve contar

    como argumento aceitvel, tendo em vista o fato do plura lismo e a suposio

    do carter razovel dos indivduos.32

    A equao que expressa essa ideia a seguinte: uma concepo poltica comum

    s doutrinas razoveis o resultado do acordo pblico acerca dos valores polticos capazes

    de determinar as relaes entre uma sociedade democrtica constitucional bem ordenada e

    seus cidados e entre os prprios cidados.33

    Ora, tal ideia de razo pblica realiza-se no

    frum poltico pblico (cultura poltica pblica), na sociedade poltica, em seus trs nveis, a

    saber:

    [1] o discurso dos juzes nas suas discusses, e especialmente dos juzes de

    num tribunal supremo; [2] o discurso dos funcionrios de governo,

    especialmente executivos e legisladores principais; [3] e finalmente o

    discurso dos candidatos a cargo pblico e de seus chefes de campanha,

    especialmente no discurso pblico, nas plataformas de campanha e

    declaraes polticas.34

    O ideal da razo pblica concretiza-se naquele cidado que capaz de agir como

    se fosse um legislador, e que por isso, no recorre a doutrinas abrangentes (razes no-

    pblicas), mas razo pblica.Ao lado da cultura poltica pblica, Rawls situa a cultura de

    fundo(background culture), local onde se expressam as doutrinas abrangentes, frum das

    31 RAWLS, O Direito dos Povos, p. 202. 32 ARAUJO, John Rawls e a viso inclusiva da razo pblica, p. 95. 33 Cf. ARAUJO, John Rawls e a viso inclusiva da razo pblica, p. 95; Cf. RAWLS, O Direito dos Povos, p. 173. 34 RAWLS, O Direito dos Povos, p. 176.

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    razes no-pblicas, cultura da sociedade civil, onde se incluem as Igrejas, associaes

    profissionais e de ensino, em especial, escolas, universidades e sociedades cientficas ,

    constituindo uma cultura social e no-poltica. Rawls ainda refere-se cultura poltica no-

    pblica, composta pelos meios de comunicao jornais, revistas, televiso, rdio, e hoje, as

    internet e as redes sociais. A mediao entre a cultura poltica pblica e a cultura de fundo

    feita pela cultura poltica no-pblica.35

    O ideal da razo pblica realizado quando legisladores, juzes, executivos e

    funcionrios do Estado, bem como candidatos que aspiram a cargos pblicos agem (nos

    planos do discurso e da ao) em conformidade a ideia de razo pblica, apresentando e

    justificando aos demais cidados atravs de razes pblicas, quais so as posies polticas

    por exemplo, um catlogo de polticas pblicas a serem implantadas por um governo local

    adequadas a efetivao de uma concepo poltica de justia considerada razovel36

    ,

    concretizando aquilo que Rawls denomina de dever de civilidade para com os demais

    cidados.

    Para Rawls, a introduo de razes no-pblicas por doutrinas abrangentes

    religiosas, morais ou filosficas contribui para o aperfeioamento da democracia e das

    instituies polticas na medida em que o cidado ser sempre lembrado por seus pares da

    necessidade de respeitar o Proviso, exercitando o debate pblico, lugar onde se revela a

    tenso pluralista e multiculturalista que habita nas sociedades ps-seculares.

    3 ESTADO, RELIGIO E PS-SECULARISMO EM JRGEN HABERMAS

    Em meio a um cenrio atualmente marcado por imagens de mundo de cunho

    naturalista e, paradoxalmente, por uma influncia crescente do setor das ortodoxias religiosas

    nas questes polticas, os pressupostos normativos do Estado democrtico de direito

    encontram-se sob nova configurao. Considerando o pluralismo como um fato das

    sociedades contemporneas impossvel deixar de notar uma contradio presente no Estado

    constitucional (Verfassungsstaates): Como pode um Estado ideologicamente neutro estar, ao

    mesmo tempo, amparado em tradies ticas ideolgicas, algumas delas racionalizadas, e

    outras religiosas?

    O reavivamento do poder e da fora poltica de comunidades e tradies religiosas

    recoloca no centro do debate poltico contemporneo o problema do fundamento normativo

    35 Cf. RAWLS, O Direito dos Povos, p. 177. 36 Cf. RAWLS, O Direito dos Povos, p. 178.

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    do Estado liberal (liberale Staat). No cenrio atual, a ortodoxia religiosa tem interpelado de

    forma cada vez mais crtica o processo de secularizao responsvel pelo surgimento do

    Estado moderno enquanto resultado apenas do processo de racionalizao social e cultural. O

    debate tem procurado compreender adequadamente as consequncias para a esfera pblica

    poltica (politische ffentlichkeit) do fenmeno da secularizao indagando, sobretudo, o

    status dos fundamentos normativos e das condies de funcionamento do Estado, pois

    representa um problema ligado soberania popular como se relacionam cidados crentes e

    no-crentes. A estabilidade do vnculo social (soziale Band) e a manuteno do Estado estaro

    ameaadas enquanto o naturalismo que assinala a evoluo social e cultural (atravs da

    racionalidade cientfica) e a religio (e sua correspondente doutrina de f) forem incapazes

    de reconhecer os limites quanto ao programa de suas respectivas cosmovises. Para

    Habermas,

    uma cultura poltica que [...] se polariza [...] coloca em xeque o

    commonsense dos cidados, mesmo dos que residem numa das mais antigas

    democracias. O etos do cidado liberal exige, de ambos os lados, a

    certificao reflexiva de que existem limites, tanto para a f como para o

    saber.37

    Este problema enfrentado por Habermas a partir de dois aspectos:

    1) Sob o aspecto cognitivo , a dvida se refere questo de saber se, depois

    de o direito se ter tornado totalmente positivo, o domnio poltico ainda

    admite uma justificativa secular, ou seja, uma justificativa no religiosa e

    ps-metafsica; e 2) Sob o aspecto motivacional, a dvida a respeito da

    possibilidade de estabilizar-se a comunidade ideologicamente pluralista de

    maneira normativa, ultrapassando, portanto, um mero modus vivendi, pela

    mera presena de um consenso de fundo que, na melhor das hipteses, ser

    apenas formal e limitado a procedimentos e princpios.38

    37 HABERMAS, Jrgen. Entre Naturalismo e Religio: estudos filosficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

    2007, p. 08-posio em uma sociedade pluralista. Primeiramente, a conscincia religiosa tem de assimilar o encontro cognitivamente dissonante com outras confisses e religies. Em segundo lugar, ela tem de adaptar-se

    autoridade das cincias, que detm o monoplio social do saber mundano. Por fim, ela tem de adequar-se s premissas do Estado constitucional, que se fundamentam em uma moral profana. Sem esse impulso reflexivo, os monotesmos acabam por desenvolver um potencial destrutivo em sociedades impiedosamente modernizadas. A

    ex (Reflexionsschub) d a falsa impresso de um processo concludo e realizado unilateralmente. Na verdade, porm, esse trabalho reflexivo d um novo passa a cada conflito que irrompe nos campos de batalha da esfera pblica democr F e Saber. So Paulo: UNESP, 2013,

    p. 06-07, grifo do autor. 38 HABERMAS, Jrgen; RATZINGER, Joseph. Dialtica da Secularizao: sobre razo e religio. So Paulo: Ideias & Letras, 2007, p. 24-25, grifo nosso (Dialektik der Skularisierung. ber Vernunft und Religion.

    Freiburg im Breisgau: Herder, 2005.), grifo nosso.

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    A dvida de Habermas pode ser expressa nos seguintes questionamentos: Ainda

    possvel apostar todas as fichas no direito como mecanismo de integrao social, compatvel

    com um pluralismo religioso pacfico no marco do Estado liberal? Ou a solidariedade cidad

    (staatsbrgerliche Solidariett) deve ser procurada em outras fontes da razo prtica? H

    um receio quanto ao fato de que tal modelo de secularizao tenha sado dos trilhos39

    na

    medida em que os cidados religiosos tornaram-se necessrios apenas para a criao e

    estabilizao dos fundamentos normativos do Estado constitucional (Verfassungsstaates) e,

    em seguida, seus valores e tradies passaram a ser considerados arcaicos e incompatveis

    com uma forma laica de vida.40

    Entre as tarefas do Estado liberal encontra-se a proteo do princpio da

    igualdade cvica de seus cidados, sejam eles religiosos (glubigen) ou no-religiosos

    (unglubigen). Assim, necessrio que exista uma convico por parte dos cidados de que o

    regime democrtico esteja comprometido com a promoo de suas respectivas formas de

    vida. A solidariedade cidad de que fala Habermas resultado da prtica de indivduos que

    uais de uma comunidade

    poltica41

    . Entretanto, a fonte desta solidariedade no reside apenas nos limites do direito,

    razo pela qual ele passa a considerar outro processo:

    Em vez disso, pretendo propor que a secularizao cultural e social seja

    entendida como um processo de aprendizagem dupla que obriga tanto as

    tradies do Iluminismo quanto as doutrinas religiosas a refletirem sobre

    seus respectivos limites.42

    O reconhecimento (Anerkennung) entre cidados religiosos e seculares que se

    ouvem mutuamente nos debates pblicos, porque reconhecem os limites de suas cosmovises,

    somente pode ser alcanado atravs de certas orientaes cognitivas e expectativas

    normativas que o Estado constitucional deve exigir de seus cidados.

    39 - (entgleisernende Modernisierung), implying that this modernity needs to be put back on its tracks, and presumably that a more emphatic dialogue

    - European Journal of Social Theory, 10 (2007): p. 543-560, p. 547. 40 A tese de Habermas a seguinte:

    direito, neutro do ponto de vista das imagens de mundo, est preparado para garantir a convivncia tolerante, e com igualdade de direitos, de comunidades de f diferentes que, na substncia de suas doutrinas e vises de mundo continuam irreconciliveis. A secularizao do poder do Estado e as liberdades positivas e negativas do

    exerccio da religio constituem que dois lados de u HABERMAS, Entre Naturalismo e Religio, p. 09. 41 HABERMAS, Entre Naturalismo e Religio, p. 09. 42 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 25-26, grifo nosso.

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    A justificativa ps-metafsica dos fundamentos normativos do Estado liberal

    encontra suas bases no liberalismo poltico. Os pressupostos legitimadores do poder

    ideologicamente neutro do Estado provm da tradio do direito natural racional, cujas fontes

    remontam aos sculos XVII e XVIII. Aparentemente, no h incompatibilidade entre a

    fundamentao racional e autnoma do direito natural moderno, base terica para a

    formulao dos direitos humanos, e as formulaes do humanismo cristo. De acordo com

    Habermas, embora se trate de vias diferentes quanto fundamentao, seu tlos permanece o

    mesmo: a dignidade humana. Mas o pluralismo e o multiculturalismo que caracterizam o

    sculo XXI colocam prova todo e qualquer ideal de universalidade na esfera das tradies

    morais, do direito e da poltica. Uma fundamentao ps-kantiana dos princpios

    constitucionais liberais depara-se, assim, com as contingncias histricas.

    Fiel tradio iluminista, mas avanando com o projeto de uma teoria social

    reconstrutiva fundada no conceito de racionalidade comunicativa (kommunikative

    Rationalitt), Habermas oferece uma resposta ao contextualismo e ao decisionismo como

    formas de compreenso do processo de integrao social atravs do enlace entre direito e

    democracia, posio que assinala sua recusa ao relativismo moral e a proposta de

    reconstruo crtico-reflexiva do positivismo jurdico.

    Para Habermas, o poder comunicativo (kommunikative Macht) a chave

    explicativa da co-originalidade (equiprimordialidade) entre a soberania popular e o sistema

    de direitos. Este processo consiste em explicar: 1

    como um processo legtimo de criao do direito (?); e 2 ) Por que a democracia e os direitos

    humanos esto integrados com a mesma primordialidade no processo constituinte (?)43

    .

    A intuio de Habermas a de que o regime democrtico apresenta-se como

    forma poltica capaz de liberar um alto potencial emancipatrio na medida em que se funda na

    concepo de poltica deliberativa44

    configurando um procedimento poltico inclusivo de

    indivduos quanto formao da opinio e da vontade poltica, onde a justificao e

    legitimao racional dos resultados alcanados discursivamente45

    efetuam-se na esfera

    pblica. Assim, os parceiros de discurso, que tambm so parceiros de direito, contam com a

    institucionalizao jurdica deste procedimento tornando-se, ao mesmo tempo, autores e

    destinatrios do direito. Habermas explica:

    43 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 29. 44 HABERMAS, Direito e Democracia II, p. 09 e ss. 45 HABERMAS, Jrgen. Conscincia Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p.

    109 e ss. (Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983.).

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    A co-originalidade da autonomia privada e pblica somente se mostra,

    quando conseguimos decifrar o modelo da autolegislao atravs da teoria

    do discurso que ensina serem os destinatrios do direito simultaneamente os

    autores de seus direitos. A substncia dos direitos humanos insere-se, ento,

    nas condies formais para a institucionalizao jurdica desse tipo de

    formao discursiva da opinio e da vontade, na qual a soberania do povo

    assume figura jurdica.46

    Desse modo, a autonomia poltica e jurdica explica como a Constituio

    (Verfassung) dada pelo prprio povo a si mesmo, e porque ele tambm se torna seu

    intrprete, sob a forma de uma sociedade aberta dos intrpretes da constituio.47

    Neste

    sentido, ou a produo do direito democrtica ou ele no legtimo. O Estado de direito

    fica, ento, liberado de qualquer substncia pr-jurdica cabendo soberania popular definir a

    tbua de direitos civis durante o ato de formao do Estado e de sua Constituio, atravs do

    poder comunicativo dos cidados, que o poder que se origina da capacidade humana de

    associar-se para agir (a partir do consenso) e que tem a sua origem na esfera pblica

    constituda intersubjetivamente e no distorcida comunicativamente.48

    A dvida de Wolfgang Bckenfrde rizado se

    procura

    reivindicar outras fontes sustentadoras do vnculo social e da legitimidade do Estado

    constitucional. Para alm do positivismo jurdico e de sua validez coercitiva, coloca-se a

    questo de que talvez a religio possam contribuir para a validez

    da Constituio. Habermas explica:

    Segundo essa leitura, a pretenso de validez do direito positivo dependeria

    de uma fundamentao baseada nas convices morais e pr-polticas de

    comunidades religiosas ou nacionais, porque no se leva em conta que

    ordens jurdicas podem autolegitimarem-se exclusivamente por processos

    jurdicos produzidos democraticamente.49

    Corretamente entendido, o processo democrtico (demokratische Prozess)

    constitui um mtodo capaz de produzir a legitimidade atravs da legalidade sem que haja

    nenhum dficit de validez que venha a ser preenchido pela moral. E isto porque a concepo

    46 HABERMAS, Jrgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Vol. I. Rio de Janeiro:

    Tempo Brasileiro, 2003, p. 139 (Faktizitt und Geltung: Beitrge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratische Rechtsstaats. Band I. Frankfurt: Suhrkamp, 1992.). 47 Sobre o tema do povo como intrprete da Constituio, ver HBERLE, Peter. Hermenutica Constitucional:

    A sociedade aberta dos intrpretes da Constituio: contribuio para a interpretao pluralista e o. Porto Alegre: Fabris, 2002.

    48 HABERMAS, Direito e Democracia I, p. 187. 49 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 31-32.

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    procedimentalista da democracia e do direito torna os cidados religiosos e profanizados os

    autores e destinatrios do seu prprio sistema de direitos.

    Do ponto de vista cognitivo, aparentemente, o Estado constitucional alcanou um

    nvel razovel e seguro de fundamentao capaz de assegurar a sua legitimidade. E mesmo

    que existam ou surjam eventuais lacunas ligadas legitimidade pode-se preench-las a partir

    da articulao contnua entre poder comunicativo, Princpio do Discurso (D) e Princpio da

    Democracia (De).50

    A dvida de Habermas quanto manuteno da legitimidade do Estado

    c ponto de vista motivacional (motivationaler

    Hinsicht). O processo de cooperao mtua entre cidados crentes e profanizados (o que

    implica em um ultrapassamento de suas respectivas cosmovises) indispensvel

    estabilidade do Estado liberal e depende de processos de aprendizagem histricos. Habermas

    reticente quanto possibilidade da produo mecnica (poltica e jurdica) de uma

    mentalidade tolerante por parte dos cidados crentes e profanizados em curto prazo, pois este

    processo histrico, portanto, lento, acidentado e gradual.

    Destes cidados (crentes e no-crentes) espera-se no apenas que exeram suas

    liberdades dentro do marco dos direitos (pretenses subjetivas), mas, principalmente, que

    compreendam a si mesmos como participantes do procedimento legislativo, expectativa que,

    segundo Habermas, no se apoia to somente na face coercitiva do direito, pois requer outro

    tipo de motivao.

    O justo pode ser possvel a partir de uma motivao subsidiada pela civilidade do

    comportamento dos cidados seculares e religiosos (apesar das diferenas profundas entre

    suas cosmovises) alcanada atravs do reconhecimento da anterioridade do respeito mtuo

    (solidariedade cidad) em relao aos deveres epistmicos na teoria poltica e na teoria do

    direito. E uma vez que a filosofia opera ao nvel do enfoque cognitivo ela tende a priori a

    descartar qualquer contribuio deformas de vida religiosa quanto produo da

    50 diferente, ao esclarecer por que a produo de um direito legtimo implica a mobilizao das liberdades comunicativas dos cidados. Tal esclarecimento coloca a legislao na dependncia do poder comunicativo, o

    agem em ccomunicativo surgem co-originariame

    HABERMAS, Direito e Democracia I, p. 185-186. o poder comunicativo (kommunikative Macht) que torna possvel o Princpio do Discurso (D), segundo o qual

    HABERMAS,

    Direito e Democracia I, p. 142, grifo nosso. E por sua vez, o Princpio da Democracia (De) institucionaliza o procedimento discursivo de legitimao do direito, na medida em que legtima as leis jurdicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo

    HABERMAS, Direito e Democracia I, p. 145.

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    solidariedade retirando-se de um possvel debate com a religio e ocupando a posio de

    observadora neutra acerca de tal questo, j que no se trataria de um jogo secular.

    Os prprios participantes que se expressam numa determinada linguagem

    religiosa alteiam a pretenso de serem levados a srio por seus concidados

    seculares. Por conseguinte, estes ltimos no podem negar a priori a

    possibilidade de um contedo racional inerente s contribuies formuladas

    numa linguagem religiosa.51

    Habermas sugere que a religio possa oferecer algum contedo racional e que este

    possa ser traduzido sob a forma de valores e princpios que orientem a construo de um

    ncleo da solidariedade cidad. Para tanto, preciso postular

    [...] que as tradies religiosas no so simplesmente emocionais ou

    absurdas. Somente sob tal pressuposto, os cidados no-religiosos podem

    tomar como ponto de partida a ideia de que as grandes religies mundiais

    poderiam carregar consigo intuies racionais e momentos instrutivos de

    exigncias no quitadas, porm, legtimas.52

    Esta a reserva motivacional presente nas fontes espontneas ou pr-polticas

    que envolvem projetos ticos e formas culturais de vida. No passado tanto a lngua comum , a

    conscincia nacional e o fundo religioso contriburam para a solidariedade (abstrata) presente

    em certas naes. Para Habermas,

    juridicamente intermediada s pode surgir quando os princpios de justia conseguem

    imiscuir-se na trama bem mais densa das orientaes de valores culturais53

    , espao onde a

    religio pode operar de forma construtiva oferecendo contedos morais assumidos no debate

    pblico pelas liberdades comunicativas54

    dos cidados quanto a temas de interesse geral e

    reforando o patriotismo constitucional(Verfassungspatriotismus),o que

    cidados assimilam os princpios da constituio no apenas em seu contedo abstrato, mas

    concretamente a partir do contexto histrico de sua respectiva histria nacional55

    .

    Numa dinmica de perspectiva56

    , Habermas enuncia a seguinte tese:

    51 HABERMAS, Entre Naturalismo e religio, p. 11-12. 52 HABERMAS, Entre Naturalismo e religio, p. 12. 53 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 39. 54 pressuposta no agir

    que se aventa pelo entendimento de tomar posio frente aos proferimentos de um oponente e s pretenses de

    Democracia I, p. 155. 55 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 38. 56 terna da prpria religio,

    ARAUJO,

    Religio e Modernidade em Habermas, p. 198. A Religionstheorie de Habermas constri-se inicialmente a partir

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    Nessa contenda, defendo a tese hegeliana, segundo a qual, as grandes

    religies constituem parte integrante da prpria histria da razo. J que o

    pensamento ps-metafsico no poderia chegar a uma compreenso

    adequada de si mesmo caso no inclusse na prpria genealogia as tradies

    metafsicas e religiosas. De acordo com tal premissa, seria irracional colocar

    consider-las um resduo arcaico. Tal

    ualquer tentativa de explicao

    do nexo interno que liga essas tradies s formas modernas de pensamento.

    At o presente, as tradies religiosas conseguiram articular a conscincia

    daquilo que falta. Elas mantm viva a sensibilidade para o que falhou. Elas

    preservam na memria dimenses de nosso convvio pessoal e social, nas

    quais os progressos da racionalizao social e cultural provocaram danos

    irreparveis. Que razo as impediria de continuar mantendo potenciais

    semnticos cifrados capazes de desenvolver fora inspiradora depois de

    vertidas em verdades profanas e discursos fundamentadores?57

    O receio de Habermas quanto ao rompimento do vnculo social advm do

    malogrado processo de modernizao que ocorreu nas sociedades dos sculos XVII-XVIII e

    que culminou com a planificao da secularizao ocidental ameaando a todo instante a

    instvel estabilidade do Estado liberal. Habermas cita uma srie de fatores que podem

    explicar como a desestabilizao social se processa atravs de um processo de modernizao

    que saiu dos trilhos: a) A transformao dos cidados em sujeitos de direitos que lutam

    apenas pela preservao de suas liberdades negativas (direitos subjetivos); b) Mercados que

    no se deixam regular democraticamente; c) A esfera privada torna-se colonizada pela

    economia e pela burocracia e seus mecanismos de ao voltados para fins estratgicos e o

    sucesso; d) O privatismo do cidado decorrente do esvaziamento da esfera pblica, o que

    implica por sua vez, na perda da legitimao pblica dada a impossibilidade de formao da

    opinio pblica e da vontade poltica quanto a temas de interesse geral, sem contar os temas

    polticos de segmentos sociais com demandas especficas; e) A ausncia de mecanismos

    internacionais promotores de processos democrticos de tomada de decises relativas

    soluo de questes militares, polticas e econmicas de interesse mundial; f) O fracasso da

    das influncias do pensamento de Max Weber acerca do processo de modernizao das sociedades a partir de sua

    dessacralizao, dos avanos tcnico-cientficos dos saberes e da burocratizao e normatizao da vida. Se Habermas encontra-se mais prximo de Weber no incio da formulao de sua Religionstheorie a partir dos acontecimentos poltico-religiosos dos anos 2000 (11 de Setembro de 2001) e das obras que surgem a partir

    desse perodo, como O Futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal? (2001) e Era das Transies (2001), que se percebe a atribuio de um papel cada vez mais proeminente da religio no cenrio do debate habermasiano sobre a configurao da esfera pblica poltica e quanto aos emprstimos de princpios e

    contedos valorativos que podem auxiliar na manuteno do vnculo social entre cidados seculares e religiosos. A hiptese revisionista parece ganhar fora, sobretudo, a partir de obras como Dialtica da Secularizao: sobre razo e religio (2005) e Entre Naturalismo e Religio (2005). 57 HABERMAS, Entre Naturalismo e Religio, p. 13-14.

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    constitucionalizao do direito internacional como mecanismo de salvaguarda de minorias

    infligidas por conflitos poltico- militares.58

    Em geral, o programa terico do pensamento ps-moderno tende a considerar

    estes fatores como caractersticos de um modelo autodestrutivo de racionalidade. Habermas,

    por sua vez, fala em alguma

    maneira, na modernidade ocidental59

    . Ou seja, a modernidade caracteriza-se pelo uso

    seletivo da racionalidade instrumental e estratgica60

    ligadas ao domnio da natureza e

    objetivao da realidade e da articulao entre meios e fins direcionados ob teno do

    sucesso, operando ao nvel do poder administrativo e da economia (subsistemas sociais).

    Muito embora a f catlica, por exemplo, no rejeite toda e qualquer razo, as

    religies, em geral, tm apontado em direo ao malogrado processo de modernizao das

    sociedades ocidentais. Habermas considera uma questo aberta ambivalncia da

    modernidade. Tanto a filosofia quanto a religio devem empreender uma autocrtica em

    relao aos seus limites, pois a estabilidade das sociedades liberais contemporneas depende

    deste procedimento.

    Uma crtica da razo filosfica no implica em um afastamento da razo em

    relao a sua tradio metafsico-religiosa e tampouco do dilogo com o discurso teolgico. A

    partir de um exerccio de reverso, numa converso da razo pela razo,

    58 Cf. HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 41-42. 59 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 42. 60 A esse modelo de racionalidade, Habermas contrape a racionalidade comunicativa desenvolvida em sua obra Teoria da Ao Comunicativa TAC (Theorie des kommunikative Handelns). Trata-se de um conceito de racionalidade ligado

    HABERMAS, Jrgen. O discurso filosfico da modernidade: doze lies. So Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 437 (Der Philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985). Explorando o potencial da razo, Habermas formula um modelo de racionalidade, ancorada numa pragmtica universal, que

    amplia a compreenso tradicional do conhecimento desenvolvida pela filosofia da conscincia, onde o conhecimento o resultado do ato solitrio de um sujeito meditador que articula o contedo de suas representaes mentais a enunciados que descrevem estados de coisas no mundo. Para Habermas, quando

    passamos a compreender o conhecimento como um ato mediado pela linguagem, sua medida na capacidade de os participantes responsveis da interao orientarem-se [sic] pelas pretenses de validade que esto assentadas no reconhecimento intersubjetivo. A razo comunicativa encontra seus critrios

    nos procedimentos argumentativos de desempenho diretos ou indiretos das pretenses de verdade proposicional, justeza nor HABERMAS, O discurso filosfico da modernidade, p. 437. Trata-se de um conceito procedimental de racionalidade que visa dirigir a dimenso

    cognitivo-instrumental da ao atravs da situao de fala ideal, que se orienta segundo os pressupostos argumentativos e regras do discurso. A ao social passa a ser o resultado de um consenso intersubjetivamente produzido por uma motivao racional ligada prtica argumentativa. Os participantes (atores sociais, cidados

    profanizados e crentes) so retirados de sua centralidade subjetiva e mergulhados nas estruturas comunicativas do mundo da vida (Lebenswelt) constituindo relaes de entendimento e relaes de reconhecimento recproco. Dessa maneira, os subsistemas da economia e do poder administrativo passam a ser dirigidos pela ao

    comunicativa a partir do uso regulador da pragmtica universal que funciona enquanto elemento conciliador entre razo terica e razo prtica. Operando ao nvel do Lebenswelt, as aes comunicativas constituem o medium de reproduo das formas concretas de vida. Habermas v na TAC a possibilidade de reconstruo

    substancial do conceito hegeliano de eticidade, isto , a dimenso poltico-jurdica da vida.

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    [...] sem nenhuma inteno teolgica, a razo, que nesse caminho toma

    conhecimento de seus limites, extrapola-se em direo a um outro algo, que

    pode assumir a forma da fuso mstica com uma conscincia csmica

    abrangente, ou a forma da esperana desesperada que aguarda o evento

    histrico de uma mensagem salvadora, ou a forma de uma solidariedade com

    os humilhados e ofendidos que se adianta para acelerar a salvao

    messinica.61

    De acordo com Habermas, os sica ps-he62

    ,

    entenda-se,

    63, foram docilmente assimilados pela teologia, uma decodificao da trindade do Deus

    pessoal do Cristianismo. Uma crtica da razo filosfica deve pr a filosofia cara a cara com

    sua falibilidade e fragilidade consideradas a partir do ethos complexo que caracteriza as

    sociedades ps-seculares plurais e multiculturais de nossa poca, j que o discurso secular

    universalista justificador das tradies pr-modernas parece haver entrado em colapso.

    No que diz respeito origem de seus fundamentos morais, o Estado liberal

    deveria contar com a possibilidade de que, diante de desafios inteiramente

    o

    alcanar o nvel de articulao da histria de seu prprio surgimento.64

    Uma segunda consequncia desta reverso operada pela crtica da razo filosfica

    a de que o discurso religioso, embora guarde uma diferena de gnero em face ao discurso

    filosfico, nem por isso passa a ser tomado como irracional, por depender de verdades

    reveladas. A crtica habermasiana acerca do papel da filosofia carrega em si uma perspectiva

    conciliadora:

    Divergindo de Kant e Hegel, a filosofia, com essa determinao gramatical

    de limites, no se arvora em instncia de julgamento sobre o que seja

    verdadeiro ou falso nos contedos das tradies religiosas, no que eles

    ultrapassam o conhecimento geral institucionalizado da sociedade. O

    respeito que acompanha essa absteno cognitiva de julgar baseia-se na

    considerao para com pessoas e modos de vida que, visivelmente , haurem

    sua integridade e autenticidade de suas convices religiosas (religiser

    berzeugungen). Alm desse respeito, a filosofia tem tambm motivos para

    se manter disposta a aprender com as tradies religiosas.65

    61 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 45-46. 62 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 46. 63 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 46. 64 HABERMAS, Jrgen. F e Saber. So Paulo: UNESP, 2013, p. 16. 65 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 47.

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    3.1 F E RAZO NAS SOCIEDADES PS-SECULARES

    No contexto vital das sociedades ps-seculares, o que tem a religio ainda a

    dizer? sombra de um pensamento ps-metafsico (nachmetaphisichen Denken) que insiste

    na ausncia de qualquer contedo dentico a priori regulador das formas de vida no contexto

    das sociedades contemporneas encontramos nos livros sagrados das grandes religies

    universais e em suas tradies todo um conjunto de intuies morais sobre a vida boa

    conservadas por milnios e reveladas por uma hermenutica do sagrado. Desde que religio

    seja capaz de operar similar reverso interpretativa dos seus contedos preservando a

    autonomia de conscincia de cidados crentes e no-crentes, com relao aos dogmas de

    f,pode-se ainda reivindicar um papel motivador (complementar ao aspecto cognitivo ligado

    ao processo democrtico de produo do sistema de direitos) aos contedos morais da religio

    enquanto elementos perdidos pelo processo de secularizao. Habermas explica:

    Estou falando de possibilidades de expresso e sensibilidades

    suficientemente diferenciadas para uma vida malograda, para patologias

    sociais, para o fracasso de projetos de vida individuais e as deformaes de

    nexos de vida truncadas. Partindo da assimetria das pretenses epistmicas,

    possvel justificar na filosofia uma disposio para a aprendizagem frente

    religio, no por razes funcionais, e sim por razes de contedo, lembrando

    os bem-66

    Do contato entre as tradies da metafsica grega e do Cristianismo no resultou

    apenas uma dogmtica teolgica espiritualizada ou um Cristianismo helenizado. De acordo

    com Habermas, efetuou-se tambm uma assimilao de contedos morais originais do

    Cristianismo pela filosofia. Toda uma rede conceitual normativa composta por conceitos

    como responsabilidade, autonomia, justificao, emancipao, individualidade e

    comunidade67

    foi ressignificada pela tradio filosfica posterior. Cite-se, como exemplo,

    dessas transposies conceituais, a concepo de homem feito imagem e semelhana de

    Deus, intuio que concede incondicional e igual dignidade a todos os seres humanos.68

    66 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 49. 67 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 50. 68 Em Passado como Futuro (1993) Habermas j indica a possibilidade de uma convergncia das religies mundiais a partir de um ncleo comum de intuies morais, alm do prprio dilogo com John Rawls. Diz ele:

    dignidade de qualquer pessoa necessitada de proteo e para com a intersubjetividade vulnervel de todas as formas de existncia. Ser que meu colega John Rawls tem razo quando afirma que nas interpretaes religiosas

    e seculares dos sentimentos morais profundos e das experincias elementares do intercmbio comunicativo comunidade das naes pode lanar mo para encontrar as

    normas de uma convivncia pacfica? No entanto, eu estou convencido de que Rawls tem razo, que o contedo

    essencial dos princpios morais incorporados ao direito dos povos concorda com a substncia normativa das

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    Num ethos que sofre constantemente ameaas de desintegrao, pois se encontra

    em desequilbrio em razo de mercados no democratizados e de um poder administrativo que

    serve a fins estratgicos, a solidariedade cidad enfraquece medida que valores, princpios,

    normas e o uso comunicativo da linguagem para fins de entendimento mtuo deixam de serem

    os mecanismos coordenadores da ao social que visa a integrao social sendo substitudos

    pelos subsistemas econmico e do poder administrativo (burocracia)que dirigem a si mesmos

    de maneira autnoma (autorregulao). Em razo disso, o Estado constitucional liberal no

    pode abrir mo das tradies culturais que lhe precederam e deram causa, sob pena de solapar

    as fontes pr-polticas da solidariedade cidad, elemento auxiliar da conscincia normativa

    no processo de estabilizao social.

    O conceito de sociedade ps-secular (postskularen Gesellschaft) reconhece o

    papel motivacional auxiliar que as tradies religiosas prestam a uma conscincia normativa

    formada a partir do marco do sistema de direitos. A persistncia da religio e de suas

    tradies nas sociedades contemporneas vista como um desafio cognitivo, e no sinnimo

    de irracionalismo, um indicativo de que cidados crentes e no-crentes devem submeter-se a

    um processo de aprendizagem duplo e complementar (zweifacher und komplementrer

    Lernprozess) enquanto procedimento poltico capaz de responder aos dilemas da evoluo

    social e da modernizao social e cultural. Portanto, a secularizao compreendida como o

    processo em que cidados crentes e no-crentes so capazes de reconhecer os limites e

    contributos tanto da razo quanto da f, em face de questes controversas de interesse

    coletivo, atravs do expediente cognitivo do recurso s razes corretas produzidas pelo

    dilogo cooperativo entre religio e filosofia em um fluxo comunicativo capaz alcanar as

    mudanas de enfoque cognitivo necessrias concretizao de processos de aprendizagem

    social (soziale Lernprozess).

    Uma vez que a conscincia religiosa reconheceu os processos de adaptao

    inerentes ao contexto vital das sociedades modernas secularizao do conhecimento ,

    neutralizao do poder do Estado e a liberdade religiosa , a religio viu-se obrigada a

    deflacionar sua viso de mundo (Weltanschauungen), sua compreensive doctrine. Doravante,

    a vida religiosa separou-se da vida pblica, embora no se possa dizer que essas duas

    dimenses da vida no permaneam intercambiadas:

    grandes doutrinas profticas que tiveram eco na histria mundial e das interpHABERMAS, Jrgen. Passado como Futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993, p. 31-32 (Vergangenheit

    als Zukunft. Zurique: Pendo, 1990).

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    O papel do membro da comunidade se diferencia do papel do cidado. Como

    o Estado liberal depende da integrao poltica de seus cidados e como essa

    integrao no pode ficar restrita a um mero modus vivendi, essa

    diferenciao das condies de membro no pode esgotar-se numa simples

    adaptao cognitiva do etos religioso s leis impostas pela sociedade secular.

    Antes necessrio que a ordem jurdica universalista e a moral igualitria da

    sociedade sejam de tal maneira conectadas internamente ao etos da

    comunidade e que um elemento decorra consistentemente do outro.69

    Os cidados crentes sabem que, do ponto de vista da expectativa normativa, seus

    interesses esto assegurados pelo direito civil e, sobretudo, pela Constituio (Verfassung).

    Por meio da esfera pblica informal70

    , a comunidade religiosa, como parte da sociedade civil,

    pode influenciar as instituies do poder poltico como um todo atravs do processo

    democrtico de formao da opinio pblica e da vontade poltica. No jogo democrtico das

    razes corretas exige-se um relacionamento auto-reflexivo dos cidados crentes e no-

    crentes acerca dos limites de seus respectivos enfoques cognitivos. Uma vez que o dissenso

    inevitvel em questes de interesse coletivo exige-se, portanto, uma carga de tolerncia

    sempre maior dado complexidade da rede de interesses. Dessa forma, a tolerncia em

    relao ao dissenso torna-se um dos pressupostos incontornveis da democracia liberal.

    Para que a relao entre cidados crentes e no-crentes no culmine na violncia

    e terror, uma vez que

    acreditava causam perturbao 71

    , exige-se a compreenso mtua durante o trabalho de

    apropriao(Aneignungsarbeit) dos contedos religiosos, pois nem sempre f e razo

    convergiro para os mesmos contedos morais. Veja-se, por exemplo, o debate sobre o

    aborto, a eutansia, a pesquisa com clulas tronco, a fertilizao in vitro, entre outros temas

    controversos.

    O conceito de tolerncia enquanto reconhecimento dos limites de uma doutrina

    compreensiva s pode ser alcanvel quando a razo, numa atitude cognitivamente

    responsvel reconhece que os contedos religiosos no so meramente irracionais. No fim

    das contas, a esfera pblica poltica (politische ffentlichkeit) no deve reconhecer a primazia

    do discurso naturalista sobre o discurso confessional (a hierarquia de dados cientficos sobre

    doutrinas teolgicas concorrentes). O vaticnio de Habermas inequvoco:

    69 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 54, grifo do autor. 70 Habermas estabelece a distino entre a esfera pblica informal , composta por associaes privadas (sindicatos), instituies culturais (academias de cincias e artes), grupos de interesse com preocupaes

    pblicas (associao de moradores), igrejas, instituies de caridade, entre outras, e a esfera pblica formal , constituda pelo parlamento (poder legislativo), tribunais de direito (poder judicirio), instituies do governo e da administrao (poder executivo). Cf. HABERMAS, Entre Naturalismo e Religio, p. 147. 71 HABERMAS, F e Saber, p. 18.

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    A neutralidade ideolgica do poder do Estado que garante as mesmas

    liberdades ticas a todos os cidados incompatvel com a generalizao

    poltica de uma viso de mundo secularizada. Em seu papel de cidados do

    Estado, os cidados secularizados no podem nem contestar em princpio o

    potencial de verdade das vises religiosas do mundo, nem negar aos

    concidados religiosos o direito de contribuir para os debates pblicos

    servindo-se de uma linguagem religiosa. Uma cultural poltica liberal pode

    at esperar dos cidados secularizados que participam de esforos de traduzir

    as contribuies relevantes em linguagem religiosa para uma linguagem que

    seja acessvel publicamente.72

    Todavia, surge o problema da dvida quanto expectativa de que cidados

    crentes sejam capazes de traduzir em termos racionais e acessveis publicamente os contedos

    confessionais expressos em linguagem religiosa, caso desejem participar dos debates travados

    na esfera pblica poltica (politische ffentlichkeit) acerca de temas de interesse coletivo e

    controverso, e se essa exigncia de traduo no implicaria em uma assimetria quanto

    distribuio dos deveres cvicos entre os dois grupos de cidados (crentes e no-crentes).

    4 COM HABERMAS, MAS NO CONTRA RAWLS

    A posio de Rawls73

    no atual cenrio do debate poltico sobre o papel da religio

    na esfera pblica ultrapassa as posies clssicas e j superadas do exclusivismo e do

    inclusivismo tout court. A abordagem operada por Rawls quanto noo de cidadania

    democrtica e ideia de razo pblica tornou-se referencial quanto ao tratamento deste tema.

    De acordo com Luiz Bernardo Leite Araujo, tal abordagem encontra-se

    [...] apoiada em noes de legitimidade poltica e de tica da cidadania

    claramente vigentes nas democracias constitucionais bem-estabelecidas. Em

    breves palavras, a abordagem que adotando uma justificao normativa

    no sectria fundada em razes publicamente acessveis, por um lado, e

    requerendo dos cidados certa moderao no uso de argumentos direta e

    exclusivamente religiosos ao tratarem do exerccio do poder coercitivo e dos

    72 HABERMAS, Dialtica da Secularizao, p. 57. 73

    Draiton Gonzaga de (Orgs.). Justia Global e Democracia: homenagem a John Rawls. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 353- .] graas ao entendimento de que Rawls compartilha

    da ideia de democracia deliberativa organizada em torno de um ideal de justificao poltica cujo aspecto central exatamente o raciocnio pblico dos cidados, demonstra que o liberalismo poltico est mais prximo da

    ARAUJO, A ideia rawlsiana da razo pblica como trplica crtica habermasiana, p. 367.

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    termos fundamentais da cooperao poltica, por outro lado acarreta uma

    interpretao restritiva do papel poltico da religio.74

    A crtica mais virulenta que a posio de Rawls suscita a de que a exigncia de

    tradutibilidade dos contedos religiosos (razes no-pblicas) presentes na doutrina

    abrangente de cidados crentes implica em uma distribuio assimtrica dos deveres de

    cidadania entre estes e os cidados no-crentes, mais acostumados a um modelo de

    argumentao que recorre razes pblicas. As cargas de juzo (burdens of judgement) em

    tese distribudas simetricamente entre os cidados, j que havero de entender-se sobre o

    desacordo razovel produzido por uma miscelnea de doutrinas abrangentes, acabaro por

    impor restries quanto liberdade poltica e de conscincia dos cidados crentes, ferindo de

    morte a liberdade e a igualdade defendidas pelo liberalismo poltico.75

    A prudncia hermenutica que a delimitao de toda tipologia ideal requer nos

    aconselha a abordar o reconstrutivismo kantiano presente no Proviso com toda cautela.

    Quando se trata do problema do papel da religio na esfera pblica poltica (politische

    ffentlichkeit), duas so as posies clssicas admitidas: 1) a exclusivista (separatista); e 2)

    a inclusivista (integracionista). A posio exclusivista afirmar que as esferas da religio e da

    poltica so distintas, separadas e incomunicveis. Por sua vez, a posio inclusivista postula

    a legitimidade da interveno da religio no espao pblico da poltica democrtica, sem

    haver qualquer tipo de restrio quanto insero de contedos religiosos nos debates

    pblicos (ffentlichen Streit).76

    Considerando o fato de que muitos especialistas falam inclusive de gradaes no

    exclusivismo e inclusivismo, a interpretao77

    enunciada por Luiz Bernardo Leite Araujo, de

    que Rawls um inclusivista fraco ou moderado, me parece plausvel, pois o Proviso impe a

    exigncia de tradutibilidade tanto para doutrinas abrangentes religiosas quanto para

    doutrinas abrangentes no-religiosas (morais e filosficas), de modo que cidados crentes e

    cidados no-crentes tornam-se obrigados a prestar contas publicamente dos seus motivos,

    isto , acercadas razes que sustentam os seus argumentos,sem restringir em absoluto o papel

    da religio na esfera pblica. Dessa maneira, Rawls espera salvaguardar o critrio da

    reciprocidade democrtica e o dever de civilidade, uma vez que todo cidado,

    74 ARAUJO, John Rawls e a viso inclusiva da razo pblica, p. 99, grifo nosso. 75 Cf. ARAUJO, John Rawls e a viso inclusiva da razo pblica, p. 97. 76 Cf. ARAUJO, John Rawls e a viso inclusiva da razo pblica, p. 99. 77 Cf. ARAUJO, John Rawls e a viso inclusiva da razo pblica, p. 100.

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    independentemente da sua viso abrangente, torna-se obrigado a justificar sua concepo

    poltica de justia que acredita ser a mais razovel.78

    Por sua vez, a posio exclusivista, lastreada no uso da razo pblica do

    liberalismo poltico, encontra-se aberta s seguintes crticas:

    [1] Aos critrios normativos e epistmicos de sua concepo de justificao

    poltica; [2] viabilidade do exerccio moderado e nuanado de distines,

    avaliaes e adequaes entre razes e argumentos que no levem em conta

    as motivaes profundas do raciocnio moral e poltico, algo especialmente

    implausvel para cidados ordinrios com fortes convices religiosas; [3]

    distribuio injusta dos deveres de cidadania entre os cidados religiosos e

    no-religiosos, na medida em que os argumentos dos primeiros seriam mais

    facilmente detectveis por serem no-pblicos, alm de menos

    espontaneamente congruentes com o contedo da razo pblica e, assim,

    sujeitos a exames mais desconfiados e frequentes; [4] incompatibilidade

    entre a injuno restritiva do uso pblico da razo e a caracterstica

    totalizadora das crenas religiosas, existencialmente definidoras da

    identidade das pessoas crentes e das comunidades de f, tratando-se aqui da

    objeo integralista, estreitamente vinculada s duas anteriores; [5]

    realizao efetiva da cidadania democrtica, que seria enfraquecida pela

    ausncia ou pela diminuio do engajamento religioso contra as injustias e

    empobrecida sem os benefcios deliberativos de formas diferenciadas e no-

    conformistas de opinies na discusso poltica pblica.79

    O liberalismo poltico e a teoria do discurso constituem duas das mais influentes

    perspectivas tericas que procuram responder questo da compatibilidade entre a existncia

    de uma sociedade livre e justa e, ao mesmo tempo, a presena de um desacordo profundo e

    permanente instaurado entre doutrinas abrangentes e vises de mundo80

    que marcam o ethos

    das sociedades ps-seculares.

    Embora guardem diferenas quanto ao exerccio da influncia da religio na

    esfera pblica poltica (politische ffentlichkeit), Rawls e Habermas esto de acordo quanto

    ao fato de que a legitimidade do processo de justificao normativa de qualquer concepo

    poltica de justia requer razes pblicas, no importando o contedo normativo das

    doutrinas compreensivas ou das vises de mundo, pois embora comumente se diga que a

    , isto no significa dizer que a maioria pode fazer tudo o

    que quiser, inclusive sem dar boas razes. a prioridade do justo sobre o bem e o ideal de

    neutralidade que tornam possvel o pluralismo das formas de vida.81

    Nesse sentido, Nythamar

    de Oliveira afirma que

    78 Cf. ARAUJO, John Rawls e a viso inclusiva da razo pblica, p. 100. 79 ARAUJO, John Rawls e a viso inclusiva da razo pblica, p. 102. 80 Cf. ARAUJO, A ideia rawlsiana da razo pblica como trplica crtica habermasiana, p. 355. 81 Cf. ARAUJO, A ideia rawlsiana da razo pblica como trplica crtica habermasiana, p. 355.

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    as premissas do liberalismo poltico so, portanto, acatadas por Habermas

    desde que possam evitar a privatizao do debate religioso e que permitam

    uma ampliao e transformao pragmtico-semntica da esfera pblica,

    onde se discute o que seja, afinal, razovel.82

    A transformao pragmtico-semntica da esfera pblica poltica (politische

    ffentlichkeit) formulada por Habermas visa a uma traduo cooperativa bem-sucedida de

    contedos religiosos capaz de adentrar na agenda das deliberaes polticas das instituies

    estatais, de modo a influenciar no processo poltico decisrio83

    , o que requer uma

    compatibilizao do uso pblico da razo e certas pressuposies cognitivas.

    Quanto Habermas, sua Religionstheorie procura resgatar o aspecto motivacional

    (motivationaler Hinsicht) dos contedos religiosos como inerentes ao mundo da vida

    (Lebenswelt) e enquanto elementos presentes em qualquer considerao terica acerca dos

    processos de aprendizagem social (soziale Lernprozess). Habermas tem procurado revelar o

    papel da religio na esfera pblica poltica (politische ffentlichkeit) das sociedades ps-

    seculares (postskularen Gesellchaft) de modo a compreender de que forma sua persistncia

    repercute na reconstruo do programa da racionalidade elaborado pelo filsofo desde a

    Teoria do Agir Comunicativo.

    Para Habermas, a fi inoportuna e embaraosa

    da religio no mundo da vida (Lebenswelt) das sociedades ps-seculares como um desafio

    cognitivo e verificar o potencial emancipatrio contido no discurso religioso. preciso que

    fique claro que a religio mantm sua autonomia em relao filosofia, e esta em relao

    quela. A emergncia das sociedades ps-seculares evidentemente obrigou Habermas a

    empreender um revisionismo crtico quanto posio assumida em Teoria do Agir

    Comunicativo acerca da funo social da religio. Em um cenrio marcado pelo

    desaparecimento das cosmovises, o pensamento ps-metafsico deve encontrar o seu lugar

    entre a imanncia e a transcendncia, abrindo-se ao discurso e ensinamento da religio,

    resguardando-se as diferenas entre o discurso filosfico e o discurso teolgico, posio por

    Habermas assumida e designada de agnosticismo metodolgico (methodological

    agnosticism).

    No se trata de uma domestificao da religio pela comunicao e pela

    tradutibilidade de seus contedos. Os limites da racionalidade filosfica e cientfica,

    82 Veritas, Porto Alegre, n. 1, vol. 54, 2009, p. 217-237, p. 236. 83 Cf. HABERMAS, Entre Naturalismo e Religio, p. 150.

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    autoassimilados criticamente, a pulverizao de ortodoxias religiosas no ocidente secularizado

    e o consequente desaparecimento de metanarrativas-metagarantias sociais tem levado

    Habermas a explorar os potenciais semnticos das tradies religiosas. Todavia, permanece o

    problema do nivelamento entre a fala discursiva secular e a fala discursiva religiosa uma vez

    que aquela se baseia numa pragmtica universal e esta em verdades reveladas84

    . Nas

    sociedades ps-seculares (postskularen Gesellchaft), a modernizao da conscincia pblica

    deu-se atravs da assimilao reflexiva de contedos das mentalidades religiosas e

    profanizadas85

    . De acordo com Luiz Bernardo Leite Araujo, a reviravolta ps-secular no

    pensamento de Habermas deveu-se a motivaes de natureza terica e prtica:

    Do ponto de vista terico, eu destacaria a defesa promovida por Habermas

    do ideal democrtico da igualdade cvica do liberalismo poltico de Rawls e

    tambm os intensos debates na atualidade acerca da tese weberiana do

    desencantamento do mundo como resultado de um processo universal de

    racionalizao. Do ponto de vista prtico, as tendncias a uma possvel

    instrumentalizao da natureza humana em decorrncia dos recentes avanos

    da biotecnologia, particularmente no campo da engenharia gentica, e a um

    recrudescimento da influncia poltica de ortodoxias religiosas em choque

    com padres ocidentais de modernizao social e cultural, sendo o atentado

    terrorista de 11 de setembro de 2001 por militantes fundamentalistas um

    evento emblemtico.86

    O dilogo entre filosofia ps-metafsica e religio, tendo como pano de fundo a

    sociedade ps-secular, favorece a manuteno democrtica do princpio da igualdade cvica

    na medida em que fornece o modelo de orientao para as prticas comunicativas entre

    cidados crentes e cidados no-crentes, pois assim como a filosofia ps-metafsica assume

    uma atitude reflexiva de abertura em face dos contedos religiosos, o que demonstra a sua

    disposio em aprender com a tradio das imagens religiosas do mundo, ao mesmo tempo

    preserva a alteridade do discurso religioso ao abster-se de cooptar seus contedos a partir de

    uma traduo unilateral destes por uma racionalidade secular sob a forma, por exemplo, de

    uma Filosofia da Religio. O agnosticismo metodolgico de Habermas no implica em uma

    recusa ao dilogo entre f e razo, religio e filosofia, mas apenas que uma apologia das

    verdades de f no tarefa da filosofia. A Religionstheorie habermasiana parece cumprir a

    tarefa de um autodistanciamento87

    , mas no afastamento da perspectiva secularista da

    84 Cf. HABERMAS, Entre Naturalismo e Religio, p. 124. 85 Cf. ARAUJO, Pluralismo e Justia, p. 183. 86 ARAUJO, Pluralismo e Justia, p. 183. 87 Cf. ARAUJO, Pluralismo e Justia, p. 185.

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    Disckurstheorie, explicando como surge o improvvel liame entre a razo

    destranscendentalizada e pragmtica universal e o agnosticismo metodolgico.

    A compreenso dialtica da modernizao social e cultural e as respostas aos

    dilemas dos processos de integrao e estabilizao social, no que concerne a tenso poltica

    entre cidado