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TOPOI, v. 7, n. 13, jul.-dez. 2006, pp. 486-490. Religião e cultura barroca no império português Virgínia Castro Buarque cial – o catolicismo tridentino e a cultura barroca. Esta experiência re- ligiosa, por sua vez, é interpretada a partir do protagonismo de duas mu- lheres: Filipa da Trindade, fundado- ra do Real Mosteiro das Mônicas, em “Goa dourada”, na Índia, no ano de 1606, e Jacinta de São José, que deu início ao Convento de Santa Te- resa, no Rio de Janeiro, em 1742. A obra postula, como hipóte- se principal, a mudança ocorrida na religiosidade lusa nos tempos mo- dernos, transposta de uma “cultura do sentimento”, de contornos pas- sivos, na qual o crente almejava ser habitado pela divindade (tão pre- sente na mística européia entre os séculos XIII e XV), a uma “cultura da ação”, em que o homem, já um indivíduo moderno, passou a per- ceber-se como um instrumento de Deus. Margareth de Almeida Gonçalves desdobra tal assertiva, GONÇALVES, Margareth de Almeida. Império da Fé: andarilhas da alma na era barroca. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. 200 p. Os incessantes apelos a um contato com o sobrenatural, com os quais nos vemos defrontados nos últimos anos, geralmente oscilantes entre o modismo editorial e a su- perficialidade de uma cultura massifi- cada, encontraram uma resposta qualificativamente distinta (para satisfação dos leitores) na obra da historiadora e doutora em sociolo- gia pelo IUPERJ Margareth de Almeida Gonçalves, O Império da . Neste livro, a autora mantém- se atenta à historicidade da expe- riência religiosa, contextualizando-a em uma relação de poder – a deca- dência do Império ultramarino por- tuguês no decorrer dos séculos XVII e XVIII – e em um imaginário so-

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cial – o catolicismo tridentino e acultura barroca. Esta experiência re-ligiosa, por sua vez, é interpretada apartir do protagonismo de duas mu-lheres: Filipa da Trindade, fundado-ra do Real Mosteiro das Mônicas,em “Goa dourada”, na Índia, no anode 1606, e Jacinta de São José, quedeu início ao Convento de Santa Te-resa, no Rio de Janeiro, em 1742.

A obra postula, como hipóte-se principal, a mudança ocorrida nareligiosidade lusa nos tempos mo-dernos, transposta de uma “culturado sentimento”, de contornos pas-sivos, na qual o crente almejava serhabitado pela divindade (tão pre-sente na mística européia entre osséculos XIII e XV), a uma “culturada ação”, em que o homem, já umindivíduo moderno, passou a per-ceber-se como um instrumento deDeus. Margareth de AlmeidaGonçalves desdobra tal assertiva,

GONÇALVES, Margareth de Almeida.Império da Fé: andarilhas da almana era barroca. Rio de Janeiro:Rocco, 2005. 200 p.

Os incessantes apelos a umcontato com o sobrenatural, com osquais nos vemos defrontados nosúltimos anos, geralmente oscilantesentre o modismo editorial e a su-perficialidade de uma cultura massifi-cada, encontraram uma respostaqualificativamente distinta (parasatisfação dos leitores) na obra dahistoriadora e doutora em sociolo-gia pelo IUPERJ Margareth deAlmeida Gonçalves, O Império daFé. Neste livro, a autora mantém-se atenta à historicidade da expe-riência religiosa, contextualizando-aem uma relação de poder – a deca-dência do Império ultramarino por-tuguês no decorrer dos séculos XVIIe XVIII – e em um imaginário so-

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reconstituindo então a duplaconfiguração assumida pelo misti-cismo em terras portuguesas. Ini-cialmente, ela nos apresenta o quedenomina “misticismo fanático”(onde não faltavam elementos demagia e de devoção popular), umafaceta particular assumida pelo ca-tolicismo em Portugal, perpassada demaleabilidade ética e plasticidadesimbólica. A despeito de possíveiscontrovérsias acerca da pertinênciaconceitual/operatória do qualifica-tivo “fanático”, apropriado de famo-sa vertente historiográfica portugue-sa, a qual vê com suspeição osvínculos entre o ideário católico, aempresa mercantil-colonial e osencargos nobiliárquicos do Estado(Alexandre Herculano, Antero deQuental, Oliveira Martins, AntônioSérgio), é impossível não deixar-seenvolver pela descrição do cotidia-no de Filipa da Trindade, imergindo-se em um universo povoado porentidades tão fantásticas quanto ob-jetivas: ali, anjos e demônios convi-viam em meio às pessoas, falavamcom elas, interferiam em suas vidas.

Em seguida, a autora indica aemergência de uma outra modali-dade de vivência da fé, o “misticis-mo ascético”, mais próximo à orto-doxia doutrinal e à hierarquiaeclesiástica, defendido por uma

Igreja que buscava legitimar-se dian-te de um mundo em crescente se-cularização. Este foi o modelo nortea-dor da trajetória de Jacinta de SãoJosé, cuja vida monástica erigiu-sesob os ditames disciplinares da re-forma católica (clausura estrita,castidade vigiada, mortificações diá-rias...). Todavia, a espiritualidade deJacinta não permanecia alheia à di-mensão contemplativa: em suashoras de oração, a religiosa promo-via uma escuta não-mediatizada dosagrado (logo, autônoma das inferên-cias eclesiásticas), prática que, inclu-sive, dificultou o reconhecimentode sua liderança pelas autoridadescatólicas (um século e meio antes,esta mesma conduta não havia com-prometido a posição ocupada porFilipa da Trindade, a despeito de suasmenções ao “extraordinário”).

Tais transformações da expe-riência religiosa, todavia, estavambem longe de ser lineares; assim,embora o livro esteja distribuído emseis capítulos, cada um deles por-tando temáticas específicas (refor-ma católica e cultura barroca; o ca-tolicismo em Portugal; a trajetóriade Filipa da Trindade; o “fanatismoreligioso”; a fundação de conventosfemininos; o percurso de Jacinta deSão José), ele é entretecido por pro-blemáticas recorrentes, que podem

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ser remetidas, por sua vez, a impor-tantes abordagens da historiografiacontemporânea.

Uma dessas questões articulamística e poder político-social, sobum viés de gênero. Filipa e Jacintasão apresentadas como duas mulhe-res que, instigadas por sua relaçãocom o sagrado, viabilizaram a fun-dação de conventos femininos, tor-nando vitorioso um projeto que en-frentou adversidades locais e aoposição da Coroa portuguesa, de-sejosa de povoar o território doalém-mar. Porém, a abertura dessascasas, inicialmente surgidas comorecolhimentos, não se encontravaem completo antagonismo com asaspirações metropolitanas, pois re-forçava, ainda que de maneira indi-reta, um imaginário hierárquico desociedade. Assim, Filipa fundou ummosteiro com barreiras econômicase étnicas para ingresso, atraindo mu-lheres de elevados estratos sociais;tratava-se de um convento elitizado,que adotou regras de conduta flexí-veis (tolerando mesmo a existênciade escravas pessoais). Ora, tal práti-ca, não raramente considerada aposteriori como um “relaxamentomoral”, também operava de formainversa, promovendo um reforçosimbólico da ordenação social: a re-presentação visual das desigualdades

(pela cor dos véus, o lugar ocupadopelas monjas no coro, a presença deserviçais...), numa apropriação doestilo barroco do “discreto”, ratifi-cava o ideal de fidalguia, caracterís-tico de uma sociedade cortesã.Jacinta, por sua vez, instituiu umclaustro que primava por rigorosaobservância, rompendo com os an-teriores padrões monacais, tambémvigentes no Brasil, como ocorria noConvento do Desterro, em Salva-dor. Face à acelerada diluição dametafísica medieval, as múltiplas va-riantes conferidas à aparência e àgestualidade perdiam seu papelcodificador; em decorrência, oscomportamentos das religiosas de-veriam propiciar uma interiorizaçãoda ordem, ao invés de sua exterio-rização.

Em outra interessante reflexão,a autora tece uma analogia entremística e linguagem, tomandocomo referência a cultura barroca.No “misticismo fanático” de Filipa,o emprego de metáforas na descri-ção de intuições, sonhos e visõesmostrava-se indispensável, pois eraatravés da interpretação de taissimbologias que se tornava possívelconhecer a vontade de Deus. Destamaneira, as imagens religiosas nãose reduziam a ornamentos retóricose, sem deixar de serem empregadas

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com propósitos morais ou pedagó-gicos, exigiam uma peculiar exegesepelo receptor. Já na época de Jacinta,devido ao avanço da razão científi-ca, em paralelo ao combate à magiae ao controle dos estados associa-dos à mística, a linguagem religiosapassou por profundas alterações.Embora perdurassem as antigasdecodificações, a mensagem sagra-da foi sendo entendida a partir deuma progressiva inquirição de si, poisa verdade divina residiria na interio-ridade humana.

A constituição da subjetivida-de através da mística pode ser cita-da como mais um dos vários deba-tes promovidos por Margareth deAlmeida Gonçalves. Assim, explicitaela em seu livro, de maneira distin-ta da religiosidade apofática medie-val, quando o fiel buscava aniquilarquaisquer expressões de si no intui-to de uma entrega abissal à divin-dade (quando até mesmo o êxtaseera sentido como um estado próxi-mo à morte), o “misticismo fanáti-co” vivido por Filipa estava associa-do a uma manifestação visível e atéteatral dos afetos, numa sensibilida-de lúdica, quase profana, própria àcultura barroca. O “misticismoascético” de Jacinta, por sua vez, tra-duzia os dilemas da interiorizaçãoenfrentados pelo crepúsculo da mís-

tica, não por um recuo ao silencia-mento do ser (como promovido pelaespiritualidade do final do medievo),mas pelas tentativas de um acirradodomínio do eu, mediante sofistica-das técnicas de controle do corpo,que incluíam, além da rejeição dosgozos sensíveis (através dos votos decastidade e obediência) e da renún-cia aos bens materiais (voto de po-breza), as constantes mortificações(com inúmeras penitências e absti-nências).

Por modalidades distintas, aexperiência religiosa teria assim con-vergido para um perfil mais apostó-lico, em que a configuração do hu-mano também dependia da atuaçãodo sujeito e não apenas da graça di-vina. Neste processo, a participaçãofeminina mostrou-se imprescindível;inteligentes, determinadas, letradas,Filipa e Jacinta, cada uma do seu jei-to, instauraram espaços alternativosno interior da instituição católica,locais onde mulheres pudessem,sem transgredir com a ordemimperante, escapar de certos contro-les masculinos, negociar com outros,reformular, mesmo que parcialmen-te, os sentidos e as maneiras de vi-verem sua fé – em suma, onde vies-sem a compartilhar os desafios e ossofrimentos do existir. Conferindotal interpretação às mudanças do

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catolicismo lusitano no ultramar,Margareth de Almeida Gonçalvestorna sua obra uma referência obri-gatória à historiografia religiosa fe-minina no Brasil, aspecto acrescidopela especificidade de sua fundamen-tação teórica que, pautada em cate-gorias weberianas, difere do conjun-to de trabalhos anteriormentepublicados, em parte pautados deuma leitura marxista (como as obraseditadas pela CEHILA nos anos1980) e em parte resultantes doentrecruzamento da história dasmentalidades com apropriações deFoucault (com destaque aos estudosde Leila Mezan Algranti). Além dis-so, a autora incorpora ao estudo damística uma dimensão política, ar-ticulação tão cara a Michel deCerteau. Logo, importa vislumbrar– como a autora preocupou-se emfazer – o potencial criativo (e tantasvezes paradoxal) da experiência re-ligiosa, o que amplia as possibilida-des da pesquisa histórica: ler o livrode Margareth de Almeida Gonçal-ves nos incita a imaginar outras tan-tas formas de abordar a espirituali-dade, pelas quais a relação com osagrado seja apreendida, como su-geriu Stanislaw Breton, como umainstância crítica.