RELIGIOSIDADE E INTERIORIDADE EM AGOSTINHO: o caminho …

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO RELIGIOSIDADE E INTERIORIDADE EM AGOSTINHO: o caminho para a restauração da imagem de Deus na mente Leonam Rocha de Almeida Belo Horizonte 2011

Transcript of RELIGIOSIDADE E INTERIORIDADE EM AGOSTINHO: o caminho …

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

RELIGIOSIDADE E INTERIORIDADE EM AGOSTINHO:

o caminho para a restauração da imagem de Deus na mente

Leonam Rocha de Almeida

Belo Horizonte

2011

Leonam Rocha de Almeida

RELIGIOSIDADE E INTERIORIDADE EM AGOSTINHO:

o caminho para a restauração da imagem de Deus na mente

Dissertação apresentada para o Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.

Orientador: Prof. Dr. Lindomar Rocha Mota

Belo Horizonte

2011

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Almeida, Leonam Rocha de A447r Religiosidade e interioridade em Agostinho: o caminho para a restauração da

imagem de Deus na mente / Leonam Rocha de Almeida. Belo Horizonte, 2011. 143f. Orientador: Lindomar Rocha Mota Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião 1. Religiosidade. 2. Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354-430. 3. Filosofia.

4. Imagem (Filosofia). 5. Deus. 6. 6. Vida cristã. I. Mota, Lindomar Rocha. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. III. Título.

CDU: 291.67

Leonam Rocha de Almeida

RELIGIOSIDADE E INTERIORIDADE EM AGOSTINHO:

o caminho para a restauração da imagem de Deus na mente

Dissertação apresentada para o Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.

_____________________________________________________ Prof. Dr. Lindomar Rocha Mota (Orientador) – PUC Minas

_____________________________________________________ Prof. Dr. Márcio Antônio de Paiva – PUC Minas

_____________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Cezar Costa – PUC Rio

Belo Horizonte, 01 de abril de 2011

Dedico a você, Levi, meu filho,

que um dia saberá das sementes que planto para seu futuro.

AGRADECIMENTOS

Acima de tudo agradeço a Deus.

Agradeço aos meus pais pelo apoio incondicional, pela estrutura, pelos recursos, pelo

amor. A minha esposa pelo carinho e dedicação, tão importantes nos revigorantes momentos

de descanso.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Lindomar, por seu real empenho em fazer com que eu

atingisse sempre o melhor de minhas capacidades. Por saber ser atencioso e disponível. Por

ceder-me sua experiência, mostrando-me os melhores caminhos para evitar os percalços que

enfrentamos neste tipo de trabalho.

Ao corpo docente de nosso programa pelo valioso e múltiplo aprendizado.

Ao professor José Carlos Aguiar de Souza por também ter-me oferecido a

oportunidade de orientação, incentivando a seguir em frente e encontrar meus interesses de

pesquisa.

Aos colegas de curso pela troca de experiências, em especial, Luiz, pela cumplicidade,

e Priscila, pelas dicas e apoio bibliográfico.

Ao Frei Luiz por ter-me acolhido tão bem abrindo as portas da biblioteca agostiniana

de BH. E, em especial, a Vânia, bibliotecária que com gentileza exemplar me auxiliou nas

pesquisas do acervo.

A todos da secretaria pelo apoio eficiente.

Aos organizadores do site estantevirtual.com.br que revolucionaram o mercado de

livros usados em nosso país, permitindo amplo acesso nacional, e merecem toda ajuda na

divulgação do serviço.

“[...] fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração,

enquanto não repousa em ti”

Santo Agostinho

“[...] o amor não somente será superior ao que agora sentimos,

mas excederá o que pedimos e conseguimos entender”

Santo Agostinho

RESUMO

Nesta dissertação realizou-se um estudo sobre a experiência religiosa de santo Agostinho, a

partir da consideração de que sua obra oferece um relato rico e significativo a respeito de

como o cristianismo solucionou para um homem o problema da busca pela verdade. O

principal objetivo assumido foi conhecer as motivações fundamentais de sua vida como

cristão. Assim, foram traçadas as linhas de seu itinerário, para saber por que caminhos ele

passou e como chegou a proclamar o cristianismo como a verdadeira religião. Investigou-se

também a concepção de homem pela qual sua vida foi moldada após a conversão à religião

cristã. E, como consequência da própria natureza de sua concepção antropológica, buscou-se

compreender como esse autor articulou suas ideias sobre a criação e o destino final da

humanidade. Em relação ao que essa concepção de homem pode interessar ao âmbito

individual das experiências religiosas, demonstrou-se nesta pesquisa que santo Agostinho

transmitira, fundamentado pela tradição bíblica, uma doutrina na qual o homem, criado à

imagem de Deus e deformado pelo pecado, deve progredir no conhecimento e no amor para

alcançar a restauração dessa imagem na vida futura.

Palavras-chave: Religião. Filosofia. Imagem. Deus. Interioridade.

ABSTRACT

This dissertation conducted a study on the religious experience of St. Augustine, from the

consideration that his works can offer a rich and meaningful reporting regarding how

Christianity has solved the problem for one man's quest for truth. The main goal was assumed

to know the fundamental motivations of his life as a Christian. Thus, it was necessary to draw

the lines of his itinerary to know how he arrived in proclaiming of Christianity as the true

religion. It was necessary also to investigate the concept of man by which her life was shaped

after conversion to Christianity. And, as a consequence of the very nature of his

anthropological concepts, sought to understand how this author articulated his ideas about the

creation and final destination of humanity. In relation to which this conception of man may be

of interest to the scope of individual religious experiences, this survey showed that St.

Augustine, substantiated by biblical tradition, taught that man, created in God's image and

deformed by sin, should advance in knowledge and love towards the restoration of that image

in the hereafter.

Keywords: Religion. Philosophy. Image. God. Interiority.

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................9

2 TRAJETÓRIA DE AGOSTINHO EM BUSCA DA VERDADEIRA RELIGIÃO ..................................13

2.1 O desejo dos pais de Agostinho.......................................................................................13

2.2 O despertar para uma busca e o progresso intelectual e profissional.........................18

2.2.1 O sentido da busca pela sabedoria ..............................................................................................19

2.2.2 Nove anos entre maniqueus..........................................................................................................24

2.3 O ceticismo........................................................................................................................30

2.4 A influência de Ambrósio e o neoplatonismo.................................................................34

2.4.1 Sob a autoridade de santo Ambrósio ...........................................................................................36

2.4.2 No círculo platônico.....................................................................................................................39

2.4.3 Platonismo agostiniano................................................................................................................42

3 DOUTRINA AGOSTINIANA DA IMAGO DEI...............................................................................56

3.1 Novo sentido na busca da sabedoria...............................................................................57

3.1.1 A unidade razão e fé.....................................................................................................................59

3.2 Interioridade e transcendência........................................................................................65

3.2.1 O conhecimento de Deus e a prova de Sua existência .................................................................66

3.2.2 O conhecimento de si ...................................................................................................................72

3.3 Perspectiva antropológica................................................................................................80

3.3.1 Criado à imagem e semelhança ...................................................................................................80

3.3.2 Imagem deformada.......................................................................................................................86

3.3.3 O homem restaurado....................................................................................................................89

4 A RESTAURAÇÃO DA IMAGEM ...............................................................................................94

4.1 Perspectiva teológica........................................................................................................94

4.1.1 Os vestígios da Trindade..............................................................................................................96

4.1.2 A imagem de Deus........................................................................................................................99

4.2 Perspectiva mística.........................................................................................................110

4.3 Compilação temática a partir de textos agostinianos..................................................115

4.3.1 O sentido e a meta......................................................................................................................115

4.3.2 A doutrina da graça e o progresso na caridade........................................................................123

4.3.3 Horizontes históricos da restauração da imagem......................................................................126

5 CONCLUSÃO ........................................................................................................................134

REFERÊNCIAS .........................................................................................................................138

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1 INTRODUÇÃO

O propósito deste trabalho é localizar e esclarecer o núcleo do pensamento de santo

Agostinho acerca da experiência religiosa. Trata-se daquilo que pode ser considerado como o

cerne de sua experiência como homem, cristão e escritor. Para a realização desse objetivo, foi

preciso pressupor a unidade da obra agostiniana, no que diz respeito à motivação central desse

autor. Pois, constatamos que quase tudo o que produziu intelectualmente se encontra

articulado em função de um interesse central, estabelecido aqui como recorte temático, a

saber, a restauração da imagem de Deus na mente. Enfocamos figurativamente a ideia de

caminho, de modo que, para este estudo, interessa a dimensão de busca que perpassa todo o

itinerário da vida do bispo de Hipona em sua ascensão espiritual. E não é sem razão, portanto,

que aquilo que, a princípio, será localizado genealogicamente como despertar para a busca de

uma sabedoria capaz de garantir a imortalidade da alma, após vários desdobramentos, poderá

também ser compreendido como sentido teleológico impresso à obra agostiniana.

Nesse contexto, a afirmação da unidade e coerência na obra do autor de Retratações é

vital. Existem argumentações em contrário, tais como a natureza diversa dos textos - cartas,

diálogos, sermões, exegeses, combates a heresias ou confissões -, ou a heterogeneidade

conceitual de uma obra composta num período de mais de quarenta anos, ou ainda a

indubitável mudança de perspectiva filosófica após a assunção episcopal. Não obstante, o

pressuposto aqui assumido leva somente a constatar a unidade que esse núcleo imprime à obra

como um todo, já que, pela via desse recorte temático, fica-se obrigado a reconhecer um

propósito inabalável operante na vida de nosso autor.

Pelo nexo desse posicionamento, adotamos diretamente a obra de Agostinho como

principal fonte de referência. Utilizamo-la de maneira ampla e flexível, abrangendo textos que

representam toda a extensão das quatro décadas de sua produção intelectual. Assim, isso foi

feito sem maiores necessidades de esclarecimento, excetuando as indicações de conexão e

contextualizações convenientes.

Por que santo Agostinho? Já não será suficiente o exército de estudiosos e eruditos que

por toda a história do ocidente se debruçaram sobre o pensamento desse gigante? O papa João

Paulo II relembrou, em palavras proferidas por Paulo VI, que “todo o pensamento da

antiguidade conflui em sua obra e que dela derivam correntes de pensamento que encharcam

toda a tradição doutrinal dos séculos posteriores” (Carta Apostólica Augustinum

Hipponensem, 1). Passavam os mil e seiscentos anos da conversão desse santo e ainda vinha

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aos fiéis, por meio de carta apostólica, a exortação do sumo pontífice a que se mantivesse

sempre vivo e atraente o encanto do gênio nascido em Tagaste, na África. E foi mais ou

menos com esse espírito que iniciamos esta pesquisa, acreditando que se tratava de ir a fundo

num pensamento que ilumina, partindo de seu próprio centro de emissão, tudo o que viera

antes e tudo o que sucedeu-se depois.

Isso significa que nossa primeira hipótese sustenta o caráter inesgotável dos estudos

em agostinologia. Não por insuficiência dos estudos anteriores, mas por constatar que cada

geração, e cada período da história do ocidente, para compreender a si mesmos, deverão

encontrar e reencontrar sempre a existência fundamental de um homem chamado Aurélio

Agostinho.

Entretanto, para além da defesa da importância histórica desse pensador, também

damos um passo a frente para concordar com o especialista que, com rigor científico,

certificou-se de que

cada vez mais, cresce o número daqueles que, buscando recuperar o verdadeiro espírito agostiniano, numa visão de totalidade de sua doutrina, vêm mostrando que o pensamento do santo Doutor serve, também, para orientar as reflexões filosófico-teológicas atuais, face aos desafios da contemporaneidade (COSTA, 2006, p. 80).

Não seria profícuo considerar aspectos isolados da doutrina. A visão de totalidade

permite distinguir entre o que é universal e o que é determinado historicamente. Porque como

homem histórico, é lógico que teve que “tomar posições radicais frente aos problemas

eclesiológico-doutrinários de seu tempo” (COSTA, 2006, p.79).

Ao lado da primeira, segue uma segunda hipótese. Será possível fazer ciência do

cristianismo? Defendemos a resposta afirmativa. Mas sabemos também que o fazer da ciência

não toca no questionamento da legitimidade da fé. Com o recorte em santo Agostinho,

conferimos a genealogia de uma experiência religiosa cristã; sua concepção antropológica;

seus propósitos, seu itinerário e meta final. João Paulo II também relembrou algo importante,

ao dizer que a “fonte secreta de sua busca constante foi a mesma que o havia guiado ao longo

do itinerário de sua conversão: o amor da verdade” (Carta Apostólica Augustinum

Hipponensem, II). Isso nos dá oportunidade de esclarecer que nossa pesquisa não aborda

diretamente a religião cristã, entretanto, estabelece um recorte que mostra como o

cristianismo solucionou para um homem o problema da busca pela verdade.

Agostinho concluiu que todas as grandes capacidades do ser humano, que houvera

descoberto pela via da filosofia, apontam para algo superior em sua natureza e o colocam num

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caminho de perfeição. O homem é imagem de Deus porque pode ser partícipe Dele; porque é

capax Dei, e isso significa que para o bispo de Hipona o sinal da grandeza humana é aquilo

que configura o “homem como uma tensão para Deus” (Carta Apostólica Augustinum

Hipponensem, II, 2). Nesse sentido uma das peculiaridades da experiência agostiniana é a

inquietude, justificada pela constatação de que nada abaixo do ideal Supremo pode oferecer

satisfação plena. Donde se vislumbra que, para ele, o destino final da criatura à imagem de

Deus define-se pela transcendência de termos como infinito, absoluto, eterno, pleno, feliz.

Diante da sublimidade de tal concepção, difícil seria encontrar um equilíbrio entre um

racionalismo cético ou um fideísmo irrefletido. Se existe esse equilíbrio, exemplar é a vida

daquele de quem é justo dizer: “Agostinho não tem qualquer ilusão sobre o alcance de nosso

conhecimento em relação à natureza divina [...] Não obstante [...] entrega-se a um esforço

considerável para alcançar pela inteligência o objeto de sua fé” (GILSON, 2007, p.413).

Agostinho é o homem a caminho, sua santidade é a caminho, sempre em busca de si mesmo,

jamais satisfeito consigo. Por isso, a melhor síntese de sua orientação espiritual enuncia-se no

duplo movimento que vai para dentro e para cima: interioridade e transcendência. E o

“término desse movimento interior é Deus” (CAPÁNAGA, 1957, p.125).

Quanto ao que se conquista durante a caminhada, com ajuda da graça divina, nenhum

dom é mais proeminente do que a caridade na doutrina agostiniana. A caridade realiza uma

ordenação no campo do amor, alterando a maneira como o homem frui de sua existência. O

progresso se dá à medida que há purificação e, por isso, não se progride sem que haja uma

mudança íntima em relação àquilo que é visado pelo desejo. Pois, se o “caminho da perfeição

é o caminho da caridade” (MORIONES, 1988, 17), e caminha-se amando, não pode haver

avanço enquanto a alma deleitar-se do mundo mais do que de Deus.

Encontraremos sempre em primeiro plano o cunho psicológico da ascese agostiniana.

A restauração da imagem de Deus na mente deve transformar o homem por completo, em

essência. O divisor de águas dessa transformação é o amor. Para Agostinho duas cidades

foram fundadas por dois amores e, na mesma medida, dois amores constituem homens

essencialmente diferentes. Essa distinção entre dois amores refere-se à caridade e

concupiscência. Isso permite caracterizar a restauração em dois sentidos. De um lado, a cura,

de outro, um embelezamento da imagem, que é o mesmo que dizer que a graça, pela qual

somos feitos participantes da natureza divina e filhos adotivos de Deus, é a operação divina

pela “qual a imagem de Deus no homem é não somente restaurada pela cura das chagas da

ignorância e concupiscência, mas também embelezada pela sabedoria e caridade”

(MORIONES, 1988, p. 36).

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Mas enfim, que sentido a ideia de restauração da imagem de Deus na mente tem na

trajetória da vida do santo Doutor? Com essa pergunta vamos de encontro ao primeiro

capítulo deste trabalho. Buscamos seguir os passos de Agostinho, encadeando as etapas de

seu itinerário. O cristianismo foi a melhor resposta aos problemas que a busca pela sabedoria

lhe impuseram. Somente aí encontrou uma concepção de homem satisfatória e uma mediação

eficaz. Entretanto, desde a leitura do Hortêncio de Cícero já entrevera a imortalidade da alma

como destino do sábio e, desde a conversão ao platonismo, a noção de que a ascese do espírito

deve implicar no retorno a algo fundamental.

Quais os fundamentos e as características da antropologia agostiniana? O capítulo

seguinte responde a essa pergunta a partir de três linhas de exploração. Uma delas trata das

relações entre fé e razão; sobre as quais é importante notar que a introdução da fé no ofício do

pensar se deve a um novo conceito de racionalidade, que distancia o jovem professor de

retórica do projeto filosófico platônico. Outra, talvez a mais cara das assunções agostinianas,

resume-se na crença de que a verdade habita no interior do homem. Não é possível ter uma

correta compreensão do posicionamento de Agostinho frente à verdade revelada sem o

entendimento da interioridade como pressuposto fundamental. A terceira linha de exploração

parte da fonte bíblica, e por isso resulta em conteúdos mais sistematizados. A antropologia

agostiniana é cristã e, consequentemente, bíblica, portanto, tem como enunciado capital a

criação do homem à imagem e semelhança de Deus.

Qual a direção e meta do processo de restauração? No capítulo final exploramos ao

máximo nosso foco temático. A experiência religiosa de Agostinho nos parece essencialmente

dinâmica. Isso significa que é preciso ter clara noção daquilo que constituía sua meta, tanto

quanto dos meios de consecução e etapas do percurso.

É importante ressaltar ainda que, como Agostinho entendeu a palavra religião a partir

de suas raízes etimológicas1, que remetem à noção de religar a algo transcendente e, também,

noção de releitura da vida, optamos por manter essa referência, no sentido de acreditar que o

aprofundamento no tema nos fornecerá algumas conclusões sobre as soluções agostinianas

para problemas fundamentais da experiência religiosa. Parece-nos certo que o sujeito religioso

procura resolver pelo menos três problemas: a origem, a finalidade e as regras do viver.

Seguindo essa orientação, sustentamos a hipótese de que a restauração da imagem de Deus na

mente é um tema que pode dialogar com aspectos universais da religiosidade e, da perspectiva

agostiniana, deve revelar desdobramentos teológicos, filosóficos, éticos e psicológicos.

1 Sobre essa assertiva ver a obra A verdadeira religião.

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2 TRAJETÓRIA DE AGOSTINHO EM BUSCA DA VERDADEIRA RELIGIÃO

Neste capítulo, elaboramos uma síntese temática do itinerário intelectual de Agostinho

no período anterior à sua conversão ao cristianismo. Para tanto, tangenciamos o campo da

biografia, na medida em que se fez necessário dar contornos mais concretos e menos

conceituais a esse itinerário, devido ao fato de tratar-se de um período anterior às produções

escritas do autor. Interessa traçar uma genealogia de seu pensamento, buscando enfatizar os

pontos de amarração entre cada etapa, de modo que seja plausível abordar esse itinerário

como uma “evolução” intelectual no plano filosófico e religioso. Interessa também manter

uma ligação com o plano existencial, enfatizando mais propriamente a complexidade das

motivações e conflitos que permeiam o processo.

2.1 O desejo dos pais de Agostinho

Se quisermos entender as motivações que mantiveram Agostinho numa busca

ininterrupta e crescente por toda a sua vida, devemos começar por sua raiz. Por que aquele

jovem rebelde, tal como descrito em suas memórias, não descambou por uma vida rude e

carnal? Por que não submergiu na brutalidade de espírito? Agostinho sem dúvida atribuiu sua

salvação à graça. Mas por que meios age a graça divina? Não temos uma resposta clara, nem

mesmo uma única resposta, mas, não nos excederemos se começarmos apontando algo na

genealogia de seu caráter: o desejo de seus pais.

Como salienta Costa (1999, p. 10), Agostinho é reconhecido e admirado por jamais ter

escondido ou camuflado sua humanidade. Santo, sim. Mas antes de tudo homem, incompleto

e cindido. A santidade que tanto buscou só foi apresentada no processo gradual de sua

conversão. Uma busca que teve a meta final postergada para além da duração de sua

existência. Do quê, Gilson (2007, p. 457) pôde denominar a experiência agostiniana como

metafísica da conversão. Com efeito, nas palavras de Agostinho não se encontra nem mesmo

o qualitativo da santidade. Se existiam santos ou sábios, Agostinho jamais se incluiu entre

eles. Assumiu sim sua humilde busca da felicidade e imortalidade em Deus, assim como sua

conversão e ascensão mística lenta e gradual, mas não era de seu feitio louvar a si mesmo.

Detalhe interessante: o Agostinho das Confissões não se arroga qualquer sinal, não carrega

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nenhuma estrela, e inicia o primeiro livro de seu relato autobiográfico fazendo de si uma

psicologia aplicável a qualquer criança comum, presente de atividades instintivas e afetos

primitivos.

Já o segundo livro das Confissões é intitulado “os dezesseis anos”. Aparece aí a

imagem de um jovem cheio de soberba, colocado em conflito com as autoridades. A idade dos

dezesseis anos é apontada como um marco, a partir do qual finalmente se entregou às paixões

do mundo. Acabava de nascer um pecador voluntário, capaz de roubar peras somente pela

satisfação do êxito no roubo. (Confissões, II, 4, 9)2.

É nítido o conflito do jovem com os ideais paternos e maternos. O pai ambicioso pela

fama intelectual do filho; a mãe esperançosa com o futuro espiritual dele. Agostinho

confessou que não correspondia bem a tais desejos, visto que se interessava pelo mundo.

Buscava mais a aceitação do grupo e superação dos colegas. Interpretou tal conduta como

busca por amar e ser amado. Em suma, apesar de ter se mostrado um jovem talentoso e de boa

índole, esses primeiros relatos mostram que o nosso Santo também foi vítima de uma

adolescência conflituosa e turbulenta.

Aurélio Agostinho nasceu em uma província africana no período do Baixo Império

Romano. Isso significa duas desvantagens graves quanto à situação geral: o império estava em

fase de declínio, passando por longa crise social, econômica e política; e por decorrência

desse movimento, as províncias eram as mais afetadas por injustiça e exploração. Quanto ao

aspecto religioso, ao contrário, isso significa patente vantagem: o cristianismo estava em

processo de oficialização pós-Constantino.

O Império Romano enfraquecido com a crise do século III depara-se com uma Igreja forte. O imperador Constantino [...] iniciou uma nova política com relação aos cristãos [...] seus vários éditos, expedidos em 313, simplesmente davam ao Cristianismo uma igualdade de situação com os cultos pagãos. Com isto foi pondo fim à primeira política de perseguição dos cristãos. Posteriormente, concedeu certos privilégios ao clero cristão e determinou que seus filhos fossem educados na nova fé, mas continuou a manter o culto imperial (SOUZA, 2001, p. 10).

O efeito da crise para as províncias era sentido na desigualdade social. Havia contraste

visível entre classes: idioma, moradia, estética, profissões; signos de inclusão e privilégio

numa África que “alimentava Roma mas não conseguia alimentar-se a si mesma” (SOUZA,

2001, p. 15). A Igreja, desde o século II, obtinha sucesso em constituir-se nesse ambiente,

2 Todas as citações de Agostinho aparecem com o título em tradução para o português, seguidas das referências: livro, capítulo e subcapítulo ou paginação original, quando for o caso. Optou-se por isso para facilitar a leitura. Entretanto, nas referências bibliográficas constam os títulos correspondentes ao idioma em que a obra foi consultada, no caso, português ou espanhol.

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mas o povo era marcado mais pela “incidência da mensagem na vida cotidiana, já que era

muito pragmático” (SOUZA, 2001, p. 14). Como característica negativa, havia uma divisão

crítica entre católicos e donatistas (cristãos extremistas e violentos) – que Agostinho viria a

combater no plano doutrinário.

De acordo com as pesquisas complementares da biografia de Peter Brown, Agostinho

cresceu num ambiente tipicamente rural da África romana. Isso significa que um orgulho e

amor pela cultura civilizada conviviam com a existência de uma dura competitividade entre,

digamos, supostos candidatos a emergentes. Ficar rico não era uma opção possível, o caminho

para se tornar um membro da cidade passava pela educação clássica, “era um dos únicos

passaportes para o sucesso” (BROWN, 2005, p.25). Nesse contexto, também é importante

notar que os africanos romanos se faziam conhecidos pelo gosto dos debates públicos. Para

aquele que se tornasse exímio orador, havia a possibilidade de ser tomado como advogado por

algum nobre benfeitor (patroni de alguma comunidade), e assim defender seus interesses em

fórum público. Esses esclarecimentos de contexto são o passaporte para chegar ao pai do

jovem Agostinho.

A memória de seu pai, Patrício, quase se perde num ostracismo inquietante para o

investigador de sua vida. Por que falou tão pouco dele, enquanto, ao contrário, encheu de

louvores sua mãe? Por que nem mesmo relatou as dores de sua morte, já que o perdera no

cume de uma adolescência turbulenta? Não obstante, o pouco que falou dele já é o suficiente

para especulações bem significativas. Patrício sem dúvida era o provedor da família. Era mais

ou menos pobre, mas não deixou relatos de nenhuma conduta grave que o desabone. Não

sabemos se era austero ou permissivo, sabemos que era agressivo, todavia, está claro no

primeiro livro das Confissões que esse homem efetivamente participou da educação de

Agostinho. Quis que o filho fosse homem de sucesso social e, para isso, investiu na única via

possível – a educação. Não há dúvidas de que houve esforço de sua parte para que Agostinho

concluísse seus estudos. Sem nos alongar nesta discussão, verificamos sem hesitar o desejo de

Patrício sobre o filho, a ponto de idealizá-lo. E concluímos: há um pai nessa história.

Mas o fato é que o cunho religioso da escrita das Confissões impede a exploração da

complexidade de uma obra verdadeiramente biográfica. Ali Agostinho julga mal seu pai. A

ênfase recai no erro do homem pagão, na futilidade de suas ambições. Não encontramos

gratidão pelos esforços, nem mesmo a confissão da dívida simbólica do filho que aprendeu

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valores com o pai. Paira aí qualquer coisa obscura (pano de fundo para especulações

psicológicas, talvez)3.

O caso de Mônica é diferente. Uma das vertentes importantes das Confissões é o foco

com que localiza a relação mãe-filho. Agostinho parece criar ali o paradigma da mãe cristã,

falando daquela que “pelo coração, fez-me nascer para a vida eterna” (Confissões, IX, 8, 17).

Mônica aparece sempre como um poço de virtudes cristãs, a começar pela fé

fervorosa. É interessante como o texto faz conjugar a pureza de espírito com a sabedoria nessa

mulher. É cristã, mas apoia e sabe julgar a importância da educação pagã clássica recebida por

seu filho. Não possui educação formal, mas é capaz de ter sonhos premonitórios e interpretá-

los com clareza intuitiva. No diálogo A vida feliz, fica-se surpreso com suas participações,

contribuindo com perspicácia quase filosófica aos debates. Por outro lado, é também figurada

como esposa fiel e submissa, além de ligada aos sacramentos e à vida comunitária da igreja.

Mas o ponto mais importante dos relatos de Agostinho reside no fato de que Mônica é

apresentada exercendo integralmente a função materna, de forma excepcional. O leitor fica

com a impressão de que o cuidado do filho - acompanhá-lo e fazê-lo cristão - foi algo como

uma missão de sua vida. Em algumas passagens tem-se a impressão de um exagero edípico de

Agostinho (por exemplo, seus irmãos quase nem chegam a entrar na história), mas, tomando a

antiguidade da obra, e tomando a intenção do autor de dedicá-la à memória de sua mãe, não

há como ter dúvidas de que há também ali a intenção de fundar a imagem imaculada de uma

mãe cristã. Agostinho, tal como o filho de Maria, também foi um filho ameaçado pela morte,

mas pela morte da vida mundana e, Mônica tudo fez para não perdê-lo na fé. Figuras e

coincidências à parte, o filho de Mônica também encontraria sua cruz espiritual aos trinta e

três anos. Cristão batizado, homem que ao ver a morte da mãe pôde calar-se vencido “pela

voz do espírito” (Confissões, IX, 12, 29).

Se esse quadro sumariamente apresentado acima for tomado como base, como

referência da bagagem familiar e cultural, um resumo pode ser oferecido com ênfase em três

aspectos. Sobre a herança paterna, o interesse de investigação volve aqui à educação de

Agostinho. A educação clássica constitui a matriz da estrutura intelectual desse sujeito, e

mais, em seu tempo, introduziu o jovem no turbilhão das oportunidades. O filho de Patrício

fez-se um exímio orador e homem ambicioso e competitivo. Guardou essas características por

3 Um indício de que talvez o relato das Confissões mascare o peso real da morte de Patrício, encontra-se no diálogo Contra os Acadêmicos (II, 2, 3). Ali Agostinho admitiu ter necessitado de consolações e conselhos da parte de Romaniano, patrono e amigo muito presente em sua vida.

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toda a vida, tais como traços de personalidade: intelectualmente competitivo e persistente

(autoritário?).

Sobre a presença de Mônica em sua vida haveria muito a se investigar, contudo, ao

interesse aqui assumido bastam as duas proposições seguintes. Mônica é a mãe cristã

exemplar, vinda de família cristã, e esse é o motivo pelo qual o cristianismo esteve desde

sempre situado num lugar privilegiado no universo de Agostinho. Tal como o primeiro idioma

falado, a língua mãe que se aprende em casa, tal como a intimidade do seio e do leite, essa

religião manteve-se longamente incrustada em seu coração, em estado latente. (Confissões,

III, 4, 8).

Mas há também outro aspecto mais sutil, que marcou o teor impresso à busca de

Agostinho; um teor ascético sempre presente, mesmo que em formas e momentos diversos.

Percebe-se que ele, sujeito paulino cindido entre a carne e o espírito, foi também um sujeito

que transportou consigo o sentimento de culpa tal como agente de sua divisão interior. É

possível que a presença e memória de sua mãe tenham projetado um tipo de sombra sobre ele,

algo que o leitor só percebe obscuramente, mesmo que essa sombra pareça cobrir o primeiro

plano da narração de sua trajetória nas Confissões. São muitos os exemplos, não é preciso

debruçar sobre eles minuciosamente, basta observar que de sua primeira conversão à filosofia

em Cícero, acabou sendo remetido quase que imediatamente a uma primeira leitura da

Escritura (em busca do Cristo “materno”); ou basta ver a importância que deu à lembrança das

posições contrárias de seus pais em relação aos sinais da puberdade em seu corpo; ou a

importância dada ao episódio em que enganou Mônica para que pudesse partir para outra

cidade em busca da carreira de professor; ou o abandono de sua concubina em favor de um

casamento arranjado por sua mãe, etc. Tais exemplos poderiam ir até o extremo de um

paradoxo que se apresenta ao leitor: que as Confissões constituam simultaneamente um louvor

à divina Providência e uma dedicatória à lembrança de sua mãe. Como é possível conciliar a

ideia de que Deus teria ouvido as preces de Mônica sobre o destino de seu filho com a ideia,

tão defendida por Agostinho, sobre a impossibilidade de haver influência de qualquer mérito

pessoal sobre a graça divina?

Não queremos insistir sobre esse ponto, principalmente porque aí parece residir a

grandiosidade dessa obra, Confissões, obra que se desenvolve em planos múltiplos e

paralelos, ao mesmo tempo em que parece cumprir objetivos diversos do autor.

18

2.2 O despertar para uma busca e o progresso intelectual e profissional

Apesar de nunca ter demonstrado vocação para continência e austeridade moral, a fase

de rebeldia adolescente parece ter durado pouco. A imagem a que somos remetidos quando

buscamos o Agostinho estudante é a de um jovem de espírito liberal, amante dos prazeres

lícitos e ilícitos, mas de boa índole, educação, provavelmente até dotado de inteligência

notavelmente eminente; amante do teatro, capaz de ler os livros da intelectualidade da época;

custeado pelo pai, para estudar retórica em uma cidade importante de sua localidade –

Cartago, na África mediterrânea.

Aos dezenove anos de idade, já há dois órfão de pai, esse jovem despertou para o amor

da sabedoria encantado com uma obra de Cícero chamada Hortênsio. O próprio Agostinho

informou sobre o livro: “é uma exortação à filosofia e chama-se Hortênsio. Devo dizer que

ele mudou os meus sentimentos e o modo de me dirigir a ti; ele transformou as minhas

aspirações e desejos” (Confissões, III, 4, 7).

O agente de tal transformação pessoal foi explicitado objetivamente: trata-se da crença

de alcançar a imortalidade pela sabedoria. Tem-se aí o marco, o nascimento de um propósito

de vida para o homem Aurélio Agostinho. Foi notavelmente fiel a tal propósito: uma vida

dedicada à busca do Bem-supremo.

O modo como o jovem compreendeu a mensagem de Cícero nos parece peculiar e até

inesperado. Qualquer estudante moderno, mesmo de família cristã, pensaria que o despertar

para a sabedoria filosófica deveria abrir um longo caminho de estudos e erudição. Mas, ao

contrário, o relato do ocorrido refere-se a uma súbita mudança íntima de seus desejos e

aspirações. Ao fazer da sabedoria o objeto de uma busca, no caso de Agostinho, tratava-se de

vivenciar um novo sentimento de prospecção ao futuro, acompanhando uma experiência de

cunho religioso; e não meramente a curiosidade ou interesse intelectual.

Esse marco na vida de Agostinho deve esclarecer muito do que se procura aqui em

termos de genealogia da busca espiritual. Na verdade, pelo menos simbolicamente, somente a

partir daí é que se pode localizar o inicio de uma busca em sua vida ou, de acordo com

Étienne Gilson, esse evento “permaneceu para ele como o primeiro passo no doloroso

caminho que deveria conduzi-lo para Deus” (GILSON, 2007, p. 17). Tinha dezenove anos e,

logo já seria um professor de retórica em Cartago, um homem da sociedade do baixo império

romano; seria professor, e adepto (ouvinte) numa seita gnóstica denominada maniqueísmo.

19

2.2.1 O sentido da busca pela sabedoria

Antes de localizar a busca de Agostinho em seu período maniqueísta, é preciso

primeiramente indagar sobre a identificação entre um despertar para a filosofia e o despertar

para uma vida religiosa. Recebemos das Confissões um relato que produz algo como um

bloco cronológico homogêneo: Agostinho lê Cícero e decide buscar a sabedoria, vai daí

diretamente para uma leitura das Sagradas Escrituras e, também de súbito, segue no bonde do

maniqueísmo. E por incrível que pareça, esse estranho relato aparece como algo normal,

quase como se houvesse uma causalidade óbvia nesse trajeto. Seria isso uma peculiaridade

agostiniana? O que o ambiente cultural da época pode esclarecer sobre isto? A influência de

Mônica sobre Agostinho deixa a certeza de que ele foi criado sob influência cristã, e que,

assim, trazia certa tendência religiosa consigo. Mas como os homens de sua época viam a

relação entre sabedoria filosófica e religião? Como deve ser entendida a presença do

cristianismo no baixo império romano? Qual o tamanho e proporção desse movimento

chamado maniqueísmo? Essas e outras perguntas poderiam render uma longa investigação,

motivo pelo qual não nos cabe respondê-las aqui, entretanto, é possível oferecer algumas

informações que ajudam no andamento da presente pesquisa.

“Já se iam séculos que a ideia da filosofia era cercada por uma aura religiosa”

(BROWN, 2005, p. 49). Com essa afirmativa, Peter Brown põe imediatamente por terra o

estranhamento que acompanha algumas das questões colocadas acima. Um de seus exemplos

faz referência a uma passagem de Agostinho, na obra A Trindade, em que Cícero é citado

defendendo ideias que, em síntese, exortam o leitor a vencer os erros da humanidade para

ascender ao Paraíso. E, na sequencia do raciocínio, acaba por estabelecer o pressuposto de que

a busca pela sabedoria seria “como a cabeça-de-ponte da ideia de uma conversão religiosa”

(BROWN, 2005, p. 49) nos tempos de Agostinho.

Gilson (2007, p. 17, 18) dá uma valiosa dica para a compreensão dessa convergência

entre filosofia e religião no mundo de Agostinho: o ponto principal que as faz convergir deve

ser localizado no fato de ambas estarem prioritariamente relacionadas à busca de um bem

capaz de conferir a verdadeira felicidade. Fato este corroborado pelo estudo da história da

filosofia, como se vê em Reale (2007, p. 16), ao tratar da gênese da filosofia, demonstrando

que ainda no período arcaico grego, ideias como justiça, justa medida e conhecimento de si já

20

apareciam, constituindo-se como o grande patrimônio herdado pela tradição filosófica (e

ocidental de uma maneira geral).

A palavra que vem exprimir o significado da felicidade que se dá na posse desse Bem

é beatitude. Um exemplo interessante que pode demonstrar a presença dessa busca filosófica e

religiosa pela felicidade no mundo romano é Sêneca, em período bem anterior a Agostinho.

Sêneca deixou um escrito que leva quase o mesmo nome de um escrito de Agostinho. Não

seria difícil estabelecer um paralelo entre as duas obras: De beata vita, de Agostinho, e De

vita beata, de Sêneca.

Para Sêneca (assim como para Agostinho) o tema da felicidade coincide com o tema

da busca pelo supremo bem. O supremo bem é aquele que o sábio possui, ou ainda, aquele

que faz sábio aquele que busca. Existem dois aspectos interessantes de se notar: a busca

remete ao plano da interioridade e estabelece a via da virtude como caminho em direção a

Deus (ou aos deuses).

“O bem do espírito, o espírito o há de encontrar” (SÊNECA, 2009, p. 94), e é

considerando o alcance desse bem que Sêneca pôde falar numa “profunda alegria que vem do

interior” (SÊNECA, 2009, p. 97). Sêneca pensou num bem interior; a felicidade que dele

provém não pode aumentar nem diminuir sob o efeito da acidentalidade dos acontecimentos

externos. Para ele, feliz é quem julga corretamente, quem conduz sua vida pela razão e, em

último grau, feliz é quem possui a virtude.

A noção de virtude sugere aí o uso da verdadeira razão, a tal extremo que chega à

semelhança de Deus. Sêneca parece ter concebido a ação criadora de Deus como um ato de

exteriorização em que Ele “dirige-se às coisas externas, mas novamente retorna a si mesmo”

(SÊNECA, 2009, p. 103). E assim concebeu no mesmo sentido a verdadeira razão que,

“quando seguir seus sentidos e se estender por meio deles através das coisas exteriores, seja

dona destas e de si própria” (SÊNECA, 2009, p. 103). Descreveu a partir dessa concepção a

harmonia da alma como bem supremo: para ele isso significa unidade de força e poder da

alma em conformidade consigo mesma; uma alma sem hesitações, contradições, divergências

ou desvios. Esse é o ponto de tangência entre sabedoria e religião.

Para esse pensador romano, se a síntese da felicidade se realiza na noção de virtude,

esta virtude pode ser entendida como o modo de “imitar Deus dentro dos limites” (SÊNECA,

2009, p. 115) da capacidade humana. Retomando a noção de busca e de prospecção para uma

vida futura, a sabedoria é apresentada como um caminho e, “qualquer pessoa que pretenda,

21

que queira, que se proponha a fazer isso estará trilhando a estrada que leva aos deuses”

(SÊNECA, 2009, p. 122).

Mas como não é somente o exemplo de Sêneca que vem ao socorro da tentativa de

compreender essa “aura religiosa” da filosofia indicada por Peter Brown, seria possível ir a

fundo nessa questão e vasculhar toda a tradição da filosofia antiga. Já em Contra os

Acadêmicos, por exemplo, o primeiro livro escrito após a conversão, isso parece encontrar

confirmação, pois, o próprio Agostinho atribuiu aos “antigos” o conceito de sabedoria como

“ciência das coisas humanas e divinas” (Contra os Acadêmicos, I, VI, 16). Mas, para manter a

coerência com o propósito da presente investigação, segue-se aqui somente um comentário de

linhas gerais.

A origem da palavra filosofia está inextricavelmente atrelada à religiosidade na Grécia

antiga. Mais precisamente, o período helênico foi marcado por uma transformação em que

explicações racionais do mundo tentavam substituir as explicações mitológicas até então

vigentes. É consenso entre os historiadores da filosofia que “a filosofia surgiu como uma

forma de explicar o mundo em contraposição às formas narrativas mitológicas”

(GHIRALDELLI JR., 2008, p. 14). Hadot (2008) corrobora essa afirmação. Esse autor

demonstra que a filosofia é um movimento difuso que nasce por volta do século VI a.C., um

movimento que pode ser mais apropriadamente entendido como uma reviravolta no

pensamento vigente na Grécia arcaica. Não há uma conexão explícita entre os diversos

pensadores que viveram nessa época, todavia, de acordo com Hadot, “esse pensadores

propõem uma explicação racional do mundo” (HADOT, 2008, p. 28).

Está implícita na ideia de ‘cosmogonia’ a elaboração de fundamentos para responder

às questões últimas que se apresentam ao espírito: a criação do mundo e a criação e o sentido

do homem. De acordo com Hadot (2008, p. 29), a noção expressa pela palavra physis e a

tentativa de caracterizar a physis universal seria como que um ponto de convergência entre as

primeiras cosmogonias surgidas nesse período de florescimento intelectual no qual nasce a

filosofia. Era uma noção que continha certo automatismo, e servia para expressar a ideia de

um processo físico natural com início, desenvolvimento e resultado. E, tamanha é a

importância dessa intuição originária que, mesmo posteriormente, as “as teorias racionais, em

toda a tradição filosófica grega, serão influenciadas por esse esquema cosmogônico original”

(HADOT, 2008, p. 29).

É dentro desse contexto, em que o saber sobre a physis pode significar triadicamente

tanto ciência física, como conhecimento da alma, ou ainda saber moral e político, que a ideia

de sabedoria emerge como algo presente e importante na vida daqueles povos. Filo-sofia virá

22

a significar assim um honroso interesse por uma atividade nobre e pouco acessível. No texto

de Hadot (2008, p. 43), sophia é algo que aproxima o homem dos deuses, carregando todas

essas conotações entre saberes práticos, os saberes da boa vida e da política, os saberes das

ciências e da contemplação.

Ao que tudo indica, os desenvolvimentos da filosofia e das cosmogonias racionalistas

resultaram numa profunda modificação do politeísmo mitológico da Grécia arcaica (exemplo

disso encontra-se entre as acusações que levaram à condenação de Sócrates). Tomando-se

uma definição clara e resumida do que configura um panteísmo, essa afirmação torna-se

justificável. Segundo a síntese de Russel (1991, p. 131)4, o panteísmo é a crença de que Deus

é o próprio universo; não há o ato de criação, e sim uma força criadora que causa o

desenvolvimento e a evolução em si mesmo. Sendo assim, é possível afirmar que a mais

profunda relação entre filosofia e religião veio a se expressar primeiramente numa

modalidade de panteísmo. Mas, não obstante nossa preferência por tal afirmação, não há uma

unanimidade entre os especialistas sobre o uso do termo panteísmo em relação ao contexto

daquele longo período de séculos – o helenismo. E, de fato, não é necessário nos prendermos

aqui a essa problemática. O que mais interessa é localizar uma relação, que acabou por se

estabelecer na tradição, entre a ideia de sabedoria e a ideia de uma Inteligência divina – ideia

que o próprio Agostinho (Contra os Acadêmicos, III, XVII, 37) resgatou do platonismo, na

doutrina da oposição entre mundo sensível e mundo inteligível.

Todavia, Pierre Hadot propõe que em quase todas as escolas filosóficas da antiguidade

esteve presente a ideia de um tipo de relação entre a alma e o cosmos. Isso é um primeiro

dado. Nesse sentido, “um dos exercícios espirituais recomendados por Platão consistia em

uma espécie de dilatação do eu na totalidade do real” (HADOT, 2008, p. 290). Trata-se de

uma ideia profundamente religiosa que tinha por principal função alterar o modo do homem

se colocar diante da morte, e o modo de se portar diante das coisas do mundo humano. Ideia

que também resultava num distanciamento e elevação do pensamento. O autor demonstra a

presença desse tipo de ideia na contemplação aristotélica da natureza, no mergulho epicurista

no infinito, no voo dos estoicos até a felicidade plena da integração à totalidade, além de

Ptolomeu, Cícero, Sêneca, Ovídio, entre outros, sempre com o mesmo sentido de tomar

consciência da participação no Todo. E é justamente essa representação de um Todo,

entendido a partir da noção de physis, sem uma referência explícita a um Criador, que permite

localizar na Grécia clássica uma espécie de tendência ao panteísmo.

4 Todas as citações diretas e indiretas de textos consultados em outros idiomas aparecem em tradução nossa para o português.

23

Quanto à noção de Inteligência divina ordenadora do cosmos, sua origem remonta a

um filósofo do século V a.C, Anaxágoras de Clazômenas. Segundo Agostinho (A Cidade de

Deus, VIII, 2), esse homem teria sido o precursor de Sócrates. Pensava ele que, no mundo

material, uma infinidade de substâncias-qualidade estariam dispostas diversamente nas coisas,

em proporções diferentes, e regidas por certo princípio inteligível:

Todas as outras coisas têm parte de cada coisa, mas a inteligência é ilimitada, independente e não misturada a alguma coisa, mas é só em si mesma [...] ela é a mais sutil e mais pura de todas as coisas, possui pleno conhecimento de tudo e tem imensa força. E todas as coisas que têm vida, as maiores, são todas dominadas pela inteligência [...] todas a inteligência reconheceu; e as coisas que estavam para ser, as que eram e agora não são mais, todas as que são agora e as que serão, todas a inteligência dispôs (ANAXÁGORAS apud REALE, 2007, p. 63, 64).

A intuição original de Anaxágoras tornou explícita a intuição mais profunda e

marcante do pensamento grego para a tradição metafísica ocidental: a intuição do mundo

inteligível. Platão foi quem melhor se apoderou dessa concepção, e seus herdeiros acabaram

por garantir que ela viesse a enriquecer a teologia cristã – tal como veremos mais adiante no

encontro de Agostinho com o neoplatonismo. Reale (2007, p. 64) aponta que Platão nos diz

dessa influência, pela boca de Sócrates, quando este relata que passou a trilhar o caminho da

metafísica após ler um livro de Anaxágoras. Esse pensamento foi mais bem trabalhado por

Sócrates, por eliminar os fundamentos físicos e buscar provas racionais da existência de Deus.

Assim, de modo mais direto, afirma-se que o Deus de Sócrates “é a inteligência, que conhece

todas as coisas sem exceção e é atividade ordenadora e providência” (REALE, 2007, p. 94).

As informações acima remetem à herança recebida por Agostinho, mas com a ressalva

de que a “cultura ‘helênica’, na sua difusão entre os vários povos e raças, tornou-se

‘helenística’” (REALE, 2007, p. 230). Incluem-se nessa transição, principalmente, influências

orientais e a apropriação romana dessa cultura. Mas foi mesmo pela adequação ao realismo

latino que ocorreu que “o pensamento helenístico tenha se concentrado sobretudo nos

problemas morais” (REALE, 2007, p. 230), culminando num ecletismo de gigantes eruditos

como Cícero.

Não há dúvidas entre os pesquisadores, portanto, que para Agostinho não houve a

necessidade de traçar uma distinção nítida entre busca filosófica e busca religiosa5. Por isso,

5 Não se trata de afirmar que santo Agostinho não soubesse distinguir os campos da filosofia, teologia e religião, até porque, jamais se pronunciava temerariamente e, mais ainda, fora sempre cuidadoso com a etimologia das palavras. Trata-se somente de pontuar uma convergência entre esses campos no que se refere à busca pela sabedoria. Basta-nos aqui a citação: “se a sabedoria é Deus, por quem foram feitas todas as coisas, como demonstraram a autoridade divina e a verdade, o verdadeiro filósofo é aquele que ama Deus” (A Cidade de Deus, VIII, 1). Note-se também a especificação “verdadeiro filósofo”.

24

para o presente propósito, em que é de suma importância localizar a busca agostiniana em sua

raiz, preferimos fixar-nos nesse campo de lindes imprecisas. Sabemos dos contatos de

Agostinho com a leitura de Cícero, e das profundas modificações interiores sofridas. Assim,

com base no que foi dito acima, torna-se possível vislumbrar de relance a origem histórica do

que para ele significou despertar para a busca da sabedoria.

2.2.2 Nove anos entre maniqueus

Agostinho relatou que seu primeiro movimento após essa súbita conversão filosófica

foi buscar nas sagradas escrituras adotadas pelos cristãos. Afora a ideia que se fez acima sobre

a origem e uso filosófico da palavra sabedoria, que, para Agostinho (A Cidade de Deus, VIII,

2), remonta a Pitágoras, que teria forjado o nome filosofia justamente para marcar o aspecto

superior aos limites humanos com respeito à sabedoria; além do que foi visto sobre a

influência de Mônica, talvez isso tenha ocorrido também devido a:

O cristianismo do século IV deve ter sido apresentado a um menino desse tipo como uma forma de ‘Verdadeira Sabedoria’. O Cristo da imaginação popular não era um Salvador agonizante. Não havia crucifixos [...] Nos sarcófagos da época Cristo é sempre exibido como um Mestre, ensinando sua sabedoria a um séquito de filósofos novatos (BROWN, 2005, P. 50).

O relato de santo Agostinho deixa algumas reticências quanto ao que realmente

ocorreu. Ficou decepcionado com o texto, considerou chulo, fez críticas quanto ao estilo

literário e sabe-se lá mais o quê. Mas o fato é que o sentido profundo contido ali foi-lhe

impenetrável. (Confissões, III, 5, 9). Diante disso, abrem-se algumas perguntas quanto à

forma de presença do cristianismo naquele século e no meio em que viveu Agostinho. Não

sabemos como um jovem era educado no cristianismo. Não sabemos bem como as pessoas

em geral interpretavam a bíblia. Não sabemos da presença dos grandes autores e eruditos

cristãos.

Tal como será visto ainda neste capítulo, Agostinho veio a ser capturado na pregação

profunda e filosófica de santo Ambrósio, altamente aplicado no neoplatonismo. Será que

devemos atribuir a deficiência dessa primeira leitura bíblica ao pouco conhecimento do

próprio Agostinho? Suas referências são aos estudos sobre Cícero, Virgílio e outros grandes

autores do paganismo latino, mas, e os autores cristãos? E Fílon de Alexandria, Justino,

25

Orígenes, Gregório de Nissa, Cipriano, entre tantos outros? Havia séculos o cristianismo se

confrontava com as doutrinas filosóficas e, seguindo Étienne Gilson (2006, p. 31), em O

espírito da filosofia medieval, desde Fílon ou Justino, já seria possível pensar na ideia de

filosofia cristã. Como entender que santo Agostinho simplesmente tenha passado os olhos

sobre as escrituras descartando-as com desdém, se logo em seguida aceitou uma seita mais ou

menos cristã, o maniqueísmo?

Talvez devamos nos contentar com a suposição de que apesar de gênio promissor, o

jovem Agostinho jamais foi um leitor assíduo e minucioso. Peter Brown acha “difícil

imaginar Agostinho como leitor” (BROWN, 2005, p. 113). Mas isso não parece

suficientemente verdadeiro, até porque os relatos que ele mesmo deixou apontam para uma

boa atividade e competência na vida intelectual. Duas hipóteses nos parecem mais plausíveis.

Primeiramente é um fato que a boa educação naquele mundo romano era uma educação pagã.

Sabe-se que sua oratória e cultura geral foram formadas na leitura dos grandes autores do

paganismo latino, basicamente literatura. Não há em seus relatos qualquer referência a autores

cristãos e, pelo contrário, essa educação pagã carregava certo sentimento de superioridade da

tradição clássica. Em segundo plano, sua educação religiosa também não parece ter passado

pela introdução às grandes questões teológicas. Talvez até não fosse muito diferente daquilo

que um jovem brasileiro moderno na maioria dos casos aprende em casa, na escola e no

catecismo: a fé em Jesus Cristo, preceitos morais, vida comunitária, orações e sacramentos –

somente argumentos de autoridade. Ou seja, para o jovem, a razão provavelmente não era

convocada a justificar a fé.

Sob a consideração de que “essa igreja africana era excepcionalmente tacanha e

conservadora” (BROWN, 2005, p. 51), é fácil imaginar que o jovem de espírito liberal e de

muitas ambições mundanas não se sentisse nem um pouco atraído ou motivado a aprofundar-

se por conta própria nos verdadeiros mistérios cristãos. Pelo contrário, o evangelho fechado

tal como lei, certo ranço de judaísmo, somando-se à postura autoritária dos bispos, seriam

mais dotados a reforçar sua postura reativa: o que mais se esperaria de uma personalidade

juvenil marcada pelo fascínio da autonomia racional? Tanto em Cícero quanto no

maniqueísmo foi a possibilidade de alcançar a sabedoria somente pela razão que atraiu

Agostinho – e, consequentemente, alcançar a verdade sem a dependência quanto à autoridade

da fé. (COSTA, 1999, p. 52).

Sendo assim, é sob esse prisma que se torna possível compreender o teor da primeira

leitura bíblica de Agostinho. Admite-se que o estilo não lhe pareceu agradável por falta de

sofisticação. Assim como também no conteúdo faltava a sedução dos argumentos puramente

26

racionais. Definitivamente não era isso que ele procurava, porquanto submeter-se à fé não

fosse uma alternativa naquele momento.

Mas por que caiu nas malhas do maniqueísmo, ao invés de seguir a trilha filosófica?

Há um primeiro motivo na importância especial da figura de Cristo em seu universo pessoal.

Acreditava que não daria crédito pleno a uma doutrina que não carregasse o peso desse nome.

(Confissões, III, 4, 8). E, por outro lado, além de arrogarem a si o qualitativo de cristãos, os

maniqueus prometiam um caminho para Deus através do exercício livre da razão. (COSTA,

1999, p. 52) sem necessidade de submissão à autoridade nenhuma. Agostinho não poderia

desejar nada diferente disso.

Até chegar a ultrapassar a visão materialista do mundo, Agostinho ainda precisaria da

influência fortuita da ideia de luz imutável do neoplatonismo de Plotino. Influência que veio a

ser também para ele a descoberta do sentido da interioridade. (Confissões, VII, 10, 16). Na

fase em que aderiu ao maniqueísmo, a influência filosófica que parece ter fortalecido sua

permanência nessa seita é outra, trata-se da obra As Categorias de Aristóteles, que lera aos

vinte anos de idade. Esta é uma esclarecedora indicação de Marcos Roberto Nunes Costa, que

considera que “tal obra – As Categorias -, iria, também, contribuir fortemente para a entrada e

permanência de Agostinho no maniqueísmo, ao oferecer-lhe o conceito de substância material

(Hyle)” (COSTA, 1999, p. 50), já que “a partir daí [...] passaria a pensar tudo como substância

material (Hyle) inclusive Deus” (COSTA, 1999, p. 51).

A pertinência dessa hipótese é corroborada pela própria visão de Agostinho sobre o

seu passado. O que o prendia a uma seita que pregava um Deus em forma de luz material era

justamente o seu materialismo. Se considerarmos “evidente que [...] Agostinho quer apontar a

reviravolta que provoca a tese platônica do atributo divino da incorporeidade, devidamente

conciliada com as primeiras palavras do evangelho de João” (RAMOS, 2009, p.198), torna-se

evidente que esse deve ser o sentido da ênfase no relato das Confissões sobre as

transformações ocorridas após o encontro com o neoplatonismo. Ele provavelmente quis

revelar que essa era a chave que precisava, para vencer o ultimo grilhão, o materialismo - e a

consequente impossibilidade de conceber a realidade da dimensão espiritual.

Uma rápida explicação sobre o que foi o maniqueísmo nos parece suficiente para

confirmar tanto o materialismo desta doutrina quanto outras características que, em conjunto,

deviam servir bem como atrativos a Agostinho.

Para começar, deve-se notar que essa doutrina foi fundada por um único homem, cerca

de pouco mais de um século antes do nascimento de Agostinho e, já no final do século IV, era

uma seita amplamente difundida por diversos países e regiões. Por ter sido mal vista por

27

ambas as classes ideologicamente dominantes, pagãos e cristãos, a seita maniqueísta se

mantinha com ares de grupo fechado, com atividades secretas. Isso devia ser um traço bem

sedutor da doutrina, já que, não obstante esse fato, o grupo era expansivo, com forte apelo

evangelizador. Os membros se espalhavam por todo canto, faziam fama por serem grandes

oradores, e por sustentarem a aparência de verdadeiros ascetas.

Tal como acontece hoje, e sempre, não é excessivo imaginar que esse caráter de grupo

fechado e secreto já constituísse por si só um elemento atrativo da doutrina. Além de instigar

a imaginação e a curiosidade dos que estavam de fora, assim como fazem os grupos desse

tipo, os maniqueus formavam uma rede de pessoas que se ajudavam socialmente. Ou seja,

tornar-se membro poderia ser um modo de ascensão social. E, com efeito, os relatos de

Agostinho sobre auxílios em sua carreira de professor ou hospedagens cedidas por parte de

irmãos maniqueus confirmam essas hipóteses. (COSTA, 1999, p. 75).

Outro fator importante na rápida expansão dessa seita pode ser atribuído ao

sincretismo religioso que formava a base da doutrina. Mani, seu fundador, foi “um homem

inteligente e culto, versado nas ciências conhecidas então na Babilônia, e no Irã, músico e

matemático, pintor e geógrafo, astrônomo e médico” (RIES apud COSTA, 1999, p. 56). Por

ter viajado por vários países, teve pelo menos duas grandes influências religiosas além da

tradição judaico-cristã: o budismo e o zoroastrismo. O trecho seguinte fala de sincretismo

religioso:

O maniqueísmo deriva sua vitalidade, popularidade e universalidade pela mistura de diferentes elementos os quais englobam: o budismo na Índia, zoroastrismo na Pérsia, cristianismo e gnosticismo, especialmente o marcionismo, do império Romano (Mc NALLY apud COSTA, 1999, p.62).

O sincretismo pode ter sido um fator determinante para favorecer a aproximação de

pessoas das mais variadas tendências religiosas. Cristo não era visto como a encarnação única

e original do Filho de Deus, mas somente recebia o estatuto de “uma das” encarnações da Luz

divina. Neste sentido era enquadrado na mesma categoria de personalidades como Buda,

Zoroastro e Lao-Tse. Mani se apresentava como o Paracleto e, Cristo, Buda, Zoroastro e Lao-

Tse, representavam mestres que vieram anteriormente para preparar os diversos povos para

sua vinda. (COSTA, 1999, p. 61). Só para exemplificar, pode-se facilmente encontrar

paralelos para esse tipo de crença. Trata-se de um esoterismo semelhante a escolas ainda

existentes nos dias de hoje, tal como a Teosofia, a Rosa Cruz, Maçonaria, dentre outras que se

acreditam parte de uma grande Fraternidade Branca universal. Todas essas escolas defendem

28

a ideia de que todos os grandes mestres da história, até mesmo Cristo, seriam como que

espíritos mais evoluídos que teriam descido à Terra para trazer ensinamentos aos homens e

contribuir com a evolução do planeta.

Dois aspectos do maniqueísmo devem ainda ser apontados, para facilitar o

entendimento da permanência de Agostinho nessa seita. Primeiramente o dualismo,

subjacente à ideia da existência de dois princípios antagônicos eternos no regimento do

mundo: o Bem e o Mal, a luz e as Trevas. Mas também a moralidade ascética exacerbada

entre os membros maniqueus.

Agostinho se achava intimamente preocupado com o problema da existência do mal.

Não somente o mal físico, mas o mal moral, algo que ele experimentava em si mesmo. Essa

questão o levava ao extremo de ter que se perguntar sobre a bondade de Deus. Haveria um

paradoxo: como um Deus bom criaria também o mal? Sobre esse questionamento, o

maniqueísmo lhe apresentaria respostas bem convenientes ao seu desejo íntimo: “eram

dualistas, tão convencidos estavam de que o mal não poderia provir de um Deus bom”

(BROWN, 2005, p. 58).

A solução maniqueísta para o problema do mal viria assim, paradoxalmente, propiciar

para Agostinho a solução para dois problemas íntimos seus. Diante da concupiscência

generalizada da carne, Agostinho mantinha dois desejos opostos. De um lado era corroído

pelo sentimento de culpa e de insatisfação consigo mesmo. Mas também, inversamente, não

encontrava força interior suficiente para querer abandonar os prazeres da vida. Sendo assim,

com a divisão irredutível de sua natureza a dois princípios opostos, poderia ao mesmo tempo

desculpar-se por saber existir o princípio bom, e resignar-se pela independência do principio

mal. O maniqueísmo servia somente para preservar o lado bom, pois o lado mal não seria

totalmente vencido em vida. Com isso é possível afirmar que a “evitação elaborada de

qualquer sentimento íntimo de culpa viria, mais tarde, a se afigurar [...] como o traço mais

evidente de sua fase maniqueísta” (BROWN, 2005, p. 61). E suas palavras provam que ele

chegou a ter consciência disso posteriormente.

O fato de estar sem culpa e de não dever confessar o mal após tê-lo cometido satisfazia o meu orgulho; desse modo eu não permitia que curasses minha alma que pecara contra ti preferindo desculpá-la e acusar não sei qual outra força, que estava em mim, mas não era eu (Confissões, V, 10, 18).

Tanto que Agostinho se manteve somente ouvinte entre os maniqueus por nove anos.

Apesar de ser atraído pelo ascetismo deles, postergou o quanto foi possível sua adesão entre

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os membros, já que aos ouvintes era reservada uma larga complacência moral. “Os maniqueus

eram homens austeros. Na época, eram conhecidos por seus rostos pálidos” (BROWN, 2005,

p. 61), mas, Agostinho preservou esse lado pecador do qual diz que “estava em mim, mas não

era eu”, apesar de ter sido convidado a se tornar membro.

Mesmo com o pé atrás, sem jamais adentrar plenamente ao maniqueísmo, nosso autor

cultivou por nove anos uma simpatia pelo ascetismo dos membros maniqueus. A eles eram

feitas árduas exigências sobre a vida sexual, alimentação e trabalho. (COSTA, 1999, p. 65).

Mas o cerne do que o mantinha em erro era a incapacidade de refutar o materialismo dualista,

central naquela doutrina. O bem seria uma substancia luminosa. E o mal seria o próprio

oposto de Deus, ou seja, a Matéria. Daí que o ascetismo proposto pela seita se lhe apresentava

pleno de sentido:

Com uma moral ascética, pensava-se afastar o homem do mundo material e com isso enfraquecer as amarras do corpo e libertar a alma para as coisas mais elevadas. Ou seja, a moral maniquéia faz parte do processo de libertação do Salvador (COSTA, 1999, p. 64, 65).

No período final de sua adesão ao maniqueísmo, dois problemas se impuseram à sua

intelectualidade cada vez mais amadurecida. Como que ao decorrer de um lento processo

cognitivo, sua simpatia pelo movimento foi se transformando em uma posição crítica severa.

Agostinho tinha grande apreço e admiração pela cultura clássica e as artes liberais.

Paralelamente acabou por descobrir que era este mesmo o grande ponto fraco dos maniqueus.

A começar por seus conhecimentos sobre a astronomia grega, pôde perceber o charlatanismo

de Mani e seu total desconhecimento da matemática dos astros. Dando seguimento a esse

movimento crítico, buscava também a oportunidade de interrogar algum dos célebres

maniqueus sobre suas questões íntimas. Quando se deparou com Fausto, um bispo maniqueu,

concluiu que tudo o que este possuía era uma bela oratória, algum conhecimento sobre

literatura e a dogmática fechada dos livros de Mani.

O golpe final que o libertaria do maniqueísmo girou em torno da noção de sabedoria.

Apesar da promessa de revelar racionalmente a verdade, aparentemente não foi isso que

Agostinho encontrou, e sim, uma religião estática e uma doutrina fechada. Parece que tudo se

resumia a ler os escritos de Mani e seguir estritamente suas prescrições. Por isso terminou por

concluir que não havia progresso na senda maniqueísta. (Confissões, V, 10, 18). Assim, se já

podia ser crítico quanto à falsidade da moral maniquéia, o

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mesmo se dava no plano intelectual. Para um homem da era clássica, a ‘Sabedoria’ era fruto de uma prolongada disciplina intelectual e de crescimento pessoal. Comparada a esse ideal, ficou claro para Agostinho, à medida que foi envelhecendo, que os maniqueístas lhe apresentavam meramente uma gnose em sua forma mais tosca (BROWN, 2005, p. 70).

Completava-se o ciclo de uma década, desde o despertar para a sabedoria em Cícero e

os términos de seus estudos, até o desencantamento com o maniqueísmo, já estabelecido na

carreira de professor. Deixara Cartago frustrado com o desempenho e comportamento dos

alunos dali, para chegar a Roma ao final do ano de 383, aos vinte e nove anos de idade. Ali,

foi imediatamente acolhido em casa de amigo maniqueu, o que mostra que até mesmo para

sair de Cartago fora pelo empenho e auspícios dos próprios maniqueus que obtivera coragem

e êxito.

Pode-se considerar que Agostinho conseguiu realizar uma carreira de sucesso.

Primeiramente professor em Cartago, depois Roma e, em pouco tempo, Milão, na cadeira de

professor de retórica, um cargo público de prestígio intelectual e político, também relacionado

à escrita e oratória para fins públicos.

Estavam finalmente rompidos os laços com o maniqueísmo, já que em sua ida para

Milão não havia mais qualquer dependência em relação aos amigos maniqueus. Para essa

nova etapa que o conduziu até a conversão ao cristianismo, a porta de entrada se dera por um

caminho inusitado: Agostinho aderira meio que furtivamente ao ceticismo da chamada Nova

Academia.

2.3 O ceticismo

No período de sua estadia em Roma, intimamente descrente quanto ao maniqueísmo,

mas ainda ligado aos laços de amizade com os membros da seita, Agostinho passou a nutrir

simpatia pelos filósofos do ceticismo, definidos como aqueles que mantêm a dúvida em

detrimento do conhecimento da verdade. Existem poucas informações sobre esse breve

período em sua vida. A primeira referência nas Confissões diz o seguinte:

Acudira-me de fato a ideia de que os mais esclarecidos entre os filósofos eram os chamados Acadêmicos, quando afirmavam ser preciso duvidar de tudo, e que o homem nada pode compreender da verdade. Eu conhecia o pensamento deles, pelo que lhes era comumente atribuído, pois não compreendia ainda seus reais propósitos (Confissões, V, 10, 19).

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Pouco mais adiante, explica que sua posição cética o encaminhava a um ecletismo

doutrinário. Já não acreditava ser possível alcançar a verdade. Por esse motivo mantinha um

interesse eclético por várias doutrinas filosóficas, flutuava por elas. Chega a dizer que as

opiniões da maioria dos filósofos sobre a estrutura do mundo e da realidade sensível lhe

pareciam bem aceitáveis.

Infelizmente Agostinho não relatou detalhadamente as influências pessoais, amigos ou

as leituras que embasavam essa sua fase de filósofo cético. Há motivos claros para pensar em

Cícero, o maior dos ecléticos, já conhecido e citado por Agostinho. Mas a impressão que fica,

em primeiro lugar, é que esse ceticismo temporário manteve-se meio em segredo. Pois ainda

frequentava os maniqueus em Roma e, posteriormente, em Milão, tornou-se catecúmeno na

igreja de Ambrósio, frequentando seus sermões (essa relação com a figura de santo Ambrósio

é um capítulo à parte no itinerário de Agostinho e será tratada adiante). (Confissões, V, XIV,

25). Sendo assim, fica difícil imaginar que ele pudesse sustentar um ceticismo declarado.

O meio mais confiável para definir as posições filosóficas que influenciaram

Agostinho nesse período é seguir aquilo que ele mesmo comunicou de sua compreensão a

respeito da filosofia dos Acadêmicos. O diálogo intitulado Contra os Acadêmicos traz uma

exposição sobre essa doutrina, a refutação dela e também uma reinterpretação de seus

propósitos. Não obstante ser uma obra posterior à conversão ao cristianismo (assim como

tudo o que temos de Agostinho), essa obra é o relato mais fidedigno do conhecimento que

Agostinho devia ter sobre o tema. Partindo do que se encontra escrito ali, abre-se a

possibilidade de imaginar o que essa adesão ao ceticismo acadêmico teria significado para o

jovem homem descrente do maniqueísmo, ao mesmo tempo sedento e desencantado da busca

pela verdade (sabedoria).

Agostinho afirma, em meio ao diálogo, que já havia refletido longamente sobre os

problemas suscitados pelas proposições dos céticos Acadêmicos. Essa afirmação e também as

citações dos principais nomes envolvidos com o tema, tais como Pólemon, Arcesilau,

Carnéades e Cícero permitem acreditar que ele teve contato íntimo com textos desses autores.

Ou, em caso contrário, que seu conhecimento deles foi possibilitado pelas compilações de

Cícero. A única alusão feita a um texto específico aparece no final do terceiro livro, trata-se

da obra Acadêmicos, de Cícero6.

6 Devido às citações constantes e exclusivas de passagens de Cícero, das limitações de leitura devido a Agostinho não dominar o idioma grego, além da forma sistematizada como expõe as doutrinas dos Acadêmicos, acreditamos que as principais fontes que conhecia provinham mesmo de Cícero. Outro fator que pode corroborar esse parecer é a centralização da análise no ceticismo Acadêmico, remontando sua origem à academia de Platão e aos conflitos com o estoicismo, o que pode indicar a referência básica dos manuais de filosofia. Agostinho não considera a linhagem cética de Pirro, também não faz distinção entre o ceticismo e o ecletismo, tal como fazem os historiadores da filosofia contemporâneos. (REALE, 1997).

32

Cícero era respeitadíssimo pelos homens cultos do império. Para Agostinho trata-se de

autoridade inegável. E apesar do cristianismo já ocupar nessa época lugar de religião oficial,

definitivamente o universo intelectual não era prioritariamente cristão. Como se vê na

formação do próprio Agostinho, o que prevalecia era a cultura pagã clássica. Muitos eram os

homens ainda avessos à religião cristã, como por exemplo, Símaco, prefeito de Roma, que

muito ajudou Agostinho em sua carreira. Diante desse quadro, não “chega surpreender,

portanto, que a ‘Nova Academia’ de Cícero, durante algum tempo, tenha conferido

respeitabilidade intelectual à decepção de Agostinho” (BROWN, 2005, p.96). E mais, como

aponta Peter Brown (2005), ao se distanciar de uma visão tão rígida e fechada quanto a do

maniqueísmo, o ceticismo possibilitou a Agostinho uma nova compreensão da busca pela

sabedoria, pois passou a aceitá-la como uma busca prolongada (talvez até sem um fim

possível).

Tal foi o impacto dessa doutrina, que Agostinho, interrogado sobre os fundamentos de

sua refutação, ainda se diz ali, meio ironicamente, afetado por ela. A afirmação acaba por

conter também uma crítica ao que o ceticismo produz de preguiça e indolência em seus

adeptos:

Não sabes, pois, que ainda não tenho nada como certo e que os argumentos e disputas dos Acadêmicos me impedem de procurá-lo? Pois não sei de que modo me fizeram admitir como provável [...] que o homem não pode encontrar a verdade. Isso me deixara preguiçoso e indolente e eu não ousava buscar o que homens tão inteligentes e doutos não conseguiram encontrar. Se não conseguir convencer-me da possibilidade de encontrar a verdade tão fortemente quanto os Acadêmicos estavam convencidos do contrário, não ousarei procurar e não tenho nada a defender (Contra os Acadêmicos, II, IX, 23).

Apesar da ironia, o cristão recém-convertido ainda se sentia embaraçado com o

ceticismo. Já de partida assumiu que ainda não havia chegado ao termo de sua busca, ainda

não conhecia a verdade. Por esse motivo, seu propósito era ainda demonstrar a probabilidade

de a verdade ser acessível ao conhecimento humano.

Nas suas Retratações, Agostinho ratificou essa informação. Disse claramente que os

argumentos céticos o perturbavam e que escrevera o diálogo principalmente para dissipá-los

de seu espírito. Chegou a criticar a si mesmo pelo excesso de apreço aos filósofos, tanto

Acadêmicos quanto platônicos. Mas não deixou de indicar qual era o verdadeiro e mais

profundo erro que o acometia, erro do qual tivera que se libertar para avançar em sua busca

espiritual: seu erro era valorizar demais a razão, em detrimento da autoridade da fé. Agostinho

se refere a uma passagem do diálogo, na qual diz que o supremo bem do homem estaria no

33

sentido da alma. E se corrige: “em verdade, deveria ter dito ‘em Deus’, porque o sentido da

alma goza Dele” (Retratações, I, 1, 2). E se esse ainda era um erro no período recente de sua

conversão ao cristianismo, mais ainda deve-se supô-lo em sua fase cética.

As duas premissas principais que Agostinho atribuiu a esses novos Acadêmicos são: a

impossibilidade de conhecer a verdade e o dever do sábio de não dar assentimento a nada.

Mas, não obstante, essa doutrina não se interessava por abandonar o exercício filosófico,

como se vê, por exemplo, no relato sobre Carnéades, que se recusava a ocupar-se de qualquer

outra coisa. Essa figura do homem que não dá seu assentimento a nada, que se mantém na

dúvida, essa é a imagem do sábio da nova Academia.

Os principais argumentos que Agostinho conheceu em favor da doutrina cética são

expostos brevemente no segundo livro do diálogo. Consta que tudo começou com uma

contenda entre Zenão e Arcesilau. Diante da posição de Zenão “segundo a qual só pode ser

percebida como verdadeira uma representação que é impressa de tal modo na alma pelo

objeto de onde se origina que não pode sê-lo por um objeto donde não se origina” (Contra os

Acadêmicos, II, IV 11), Arcesilau e, em consequência, os aqui chamados Acadêmicos,

negaram a possibilidade de ser encontrado tal sinal de verdade. Esse fora o pontapé inicial.

Outro argumento forte, para o qual há uma extensa citação de Cícero, são os inúmeros

desacordos entre os filósofos, o que é interpretado como demonstrativo de que a distância

irredutível entre as doutrinas talvez seja um indício do erro generalizado de seus defensores.

Em seguida considera-se a ilusão a que os sentidos estão expostos em sua atividade, de forma

a não se poder considerá-los como fonte idônea para o conhecimento. Pelo que parece,

exemplos como o do remo colocado na água eram usados neste sentido de convencimento. Há

também os sonhos e os delírios, os quais representam não realidades óbvias. Além das

mentiras, sofismas e sorites. Daí seguiu-se a conclusão de não se dar assentimento a nada. O

próprio estoico Zenão defendia que não se devia opinar, já que a opinião era algo menor,

desprezível, e então, operando o argumento sobre a impossibilidade do conhecimento

verdadeiro, concluíram os Acadêmicos que o sábio não deveria nunca aprovar nada.

Sob a consideração de que esse sábio sustenta um princípio de conduta, em detrimento

da verdade em si, imaginamos o cético Agostinho como um homem interessado na erudição e

modo de vida de homens como Cícero. Talvez esse tenha sido mesmo um momento de

mudanças marcantes no horizonte intelectual de Agostinho, após nove anos de maniqueísmo.

Poderia abandonar sua busca prioritariamente religiosa e concentrar-se mais na ambição de

uma carreira de sucesso. E de fato existem vários exemplos romanos de homens cultos e

influentes politicamente, amantes da boa vida, possuidores de bens e favores, tais como

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Cícero, Sêneca e outros senadores diletantes, e até um imperador, Marco Aurélio. Ou ainda

homens de seu tempo, como Romaniano, mecenas de Agostinho, ou o prefeito Símaco, e

muitos outros com quem poderia identificar-se, de modo que seria inútil investir em citações.

Se a prática da mecenagem a homens cultos, pelos chamados patronos, era um lugar comum

no mundo romano, tal como se propõe a seguir, então é certo que um horizonte de ascensão

social esteve aberto para aquele promissor professor de retórica.

Também em Roma, os grandes senadores ansiavam por ter em seu circulo de amizades ‘homens que fossem entusiastas do saber’. Símaco, por exemplo, era um senador que devia sua reputação e influência a seus talentos literários [...] Homens como Símaco e seus amigos romanos viam-se como a elite da raça humana. Estavam dispostos a proteger e, eventualmente, a cooptar homens como Agostinho (BROWN, 2005, p.80).

Mas, definitivamente não era esse o destino de Agostinho, tanto que essa fase foi

curtíssima, não resistindo à sedução do encontro com Ambrósio e o platonismo, que serviram

como novo impulso religioso. Ainda que as intenções iniciais dessa nova aproximação ao

cristianismo, como catecúmeno em Milão, sejam bastante duvidosas e questionáveis, além de

nos revelarem novamente um homem possivelmente ambicioso que não

tinha nenhuma razão para resistir às intensas pressões externas por esse ato de conformidade política. Tinha uma carreira por construir, e Mônica estava arranjando para ele um casamento com uma herdeira católica. A corte era cristã; Ambrósio, como bispo católico, dominava Milão (BROWN, 2005, p. 96).

Parece que o termo “conformidade política” é bem empregado. As verdadeiras

convicções de Agostinho se mantinham mais ou menos em segredo, tal como confessou sobre

seus encontros com o bispo Ambrósio: “não sabia que filho era eu, cético a respeito de tudo e

convicto de não poder encontrar o caminho da vida” (Confissões, VI, 2, 2).

2.4 A influência de Ambrósio e o neoplatonismo

O diálogo Contra os Acadêmicos foi escrito num período em que o neoplatonismo de

Plotino exercia grande influência no pensamento de Agostinho. Há autores que chegam a

sustentar a hipótese de que ele teria se convertido, mais verdadeiramente, ao próprio

35

neoplatonismo, ao invés do cristianismo7. A solução apresentada ali para o problema da Nova

Academia é bastante singular e curiosa. Apesar de não haver referências sobre quando tal

solução teria se apresentado para nosso autor, vê-se claramente como através dela atua uma

apologia ao platonismo. Trata-se de incluir a Nova Academia numa linhagem descendente de

Platão até a culminância em Plotino. Apesar dos muitos séculos que se interpõem entre esses

autores e, não obstante a clara posição cética da Nova Academia, a solução é a hipótese de

que o ceticismo seria unicamente um modo de disfarçar e proteger a herança de Platão contra

pessoas não preparadas para recebê-la. Até mesmo a etimologia do termo Academia

provavelmente seria um indício do esoterismo desta escola (segundo Agostinho o termo

remete à Ecádemo8, significa estranho, longe do povo). Pelo que é suposto, havia

conhecimentos reservados para pessoas já purificadas, membros mais antigos da escola,

homens nos quais se podiam confiar os segredos de Platão sem coloca-los em risco. Daí que

quando Zenão, líder dos estoicos, se aproximou da escola então dirigida por Pólemon, não foi

considerado merecedor de tais ensinamentos. Como se vê a seguir, hipoteticamente, o

sucessor de Pólemon pode ter encontrado uma estratégia para proteger os ensinamentos

esotéricos que não deviam ser expostos a misturas ou transformações indevidas:

Arcesilau, a meu ver, com muita prudência e utilidade, ao ver aquele mal espalhar-se largamente, ocultou completamente a doutrina da academia, enterrando-a como ouro para que alguma vez a descobrissem os pósteros (Contra os Acadêmicos, III, XVII, 38).

Agostinho acreditou que tal conflito tivera seguimento por baixo dos séculos, tal como

um lento estado de fermentação que prepararia o renascimento da doutrina de Platão na figura

de Plotino. A primeira alusão histórica a esse conflito entre a Academia e os estoicos é

atribuída a Metrodoro, um homem que dissera explicitamente que o ceticismo da Nova

Academia não passava de arma contra os estoicos. A restauração da autoridade da doutrina

platônica passou ainda por nomes como Antíoco, Filo de Larissa – e Cícero! Esse relato nos

chega de tal modo que sugere mesmo a existência de uma espécie de aura religiosa e esotérica

7 A questão é controversa e longamente estudada. A título de ilustração indicamos em síntese a posição de dois dos maiores representantes das correntes opostas: Prosper Alfaric e Charles Boyer (ver Referências). O primeiro é radical na defesa de uma suposta conversão ao neoplatonismo, e aponta discrepâncias entre os relatos das Confissões e o conteúdo dos Diálogos filosóficos. Argumenta que o jovem Agostinho parece indiferente ao rito do batismo, e considera o cristianismo como uma forma inferior e popular da sabedoria platônica. Boyer contesta tal posição, mesmo partindo de uma aceitação da influência de princípios platônicos: a realidade espiritual e as verdades inteligíveis. Mas faz intervir um principio de autoridade: Agostinho somente acolhe o platonismo naquilo em que verifica concordância com a fé cristã. Trata-se de uma subordinação ao cristianismo. 8 Ver o comentário de Agostinho em Contra os Acadêmicos, III, IX, 18 e nota explicativa do tradutor, sobre a referência a Ecádemo ao invés de Acádemo.

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sobre a tradição platônica. Plotino é situado numa culminância histórica: “Não muito tempo

depois daquela época, cessada toda obstinação e contumácia, a doutrina de Platão, a mais pura

e luminosa da filosofia, expulsou as nuvens do erro e voltou a brilhar, principalmente em

Plotino” (Contra os Acadêmicos, III, XVIII, 41).

Esse relato do diálogo Contra os Acadêmicos é precioso, no sentido de revelar a

novidade que o encontro com o neoplatonismo representou para Agostinho. Novidade que lhe

oferecia a segurança do alicerce de uma tradição antiga, preservada por gerações de filósofos

que aparentemente não compunham uma mesma linhagem. Essa novidade se mostrava na

existência de uma filosofia capaz de transmitir dogmaticamente os parâmetros do verdadeiro

conhecimento. E mais, filosofia esta que estava na boca dos cristãos cultos de Milão.

Principalmente na boca daquele poderoso bispo, Ambrósio, cuja autoridade foi determinante

para o futuro de Agostinho, de quem se diz que “os sermões [...] eram ‘doutos’, seu livro

principal moldava-se cuidadosamente em Cícero e suas ideias deixavam transparecer a

influência de expoentes contemporâneos de Platão” (BROWN, 2005, p. 85).

2.4.1 Sob a autoridade de santo Ambrósio

Agostinho remete os créditos de sua conversão ao contato com duas importantes

figuras: santo Ambrósio e o neoplatonismo. São dois encontros entrelaçados com o momento

de descoberta do “não material” e do verdadeiro sentido da interioridade na busca pela

sabedoria. Sobre a figura de Ambrósio, não é fácil esclarecer o modo como se deu essa

profunda influência na vida de Agostinho, tanto pela pouca afinidade entre eles quanto pela

falta de fontes de informação sobre o que e em que ordem ele teria escutado nos sermões do

bispo. Mas é certo que muito tempo depois desse encontro, na redação das Confissões, nosso

autor efetivamente dirá sobre a Providência divina: “Tu me conduzias a ele sem que eu o

soubesse, para que eu fosse por ele conduzido conscientemente a ti” (Confissões, V, 13,23).

Ambrósio foi uma celebridade, não uma autoridade eclesiástica qualquer, mas talvez o

homem mais influente na vida de Milão em seu tempo. Agostinho o define como “conhecido

no mundo inteiro como um dos melhores, e teu fiel servidor” (Confissões, V, 13, 23). Quando

foi convocado a ser bispo, residia na cidade e era governador da província (Ligúria). No

decorrer dos tempos de seu serviço, era amado pela plebe católica, assim como também pela

elite, incluindo o próprio imperador menino, Valentiniano. Uma contenda com a corte

37

imperial, em 386, deixou as marcas indeléveis de seu poder local. Ambrósio venceu a respeito

de uma igreja, que a mãe de Valentiniano queria ver confiscada e, para ampliar ainda mais a

confiança do povo em sua liderança, deu-lhes de presente o achado dos corpos de dois

mártires cristãos que jaziam sob o altar de uma nova basílica. Em consideração a esse fervor

religioso, somado ao poder político e ao respeito intelectual, não é difícil pensar que um

“homem assim teria pouco interesse em Agostinho. Conhecia bem demais o seu tipo: o

indivíduo que se tornava cristão para contrair matrimônio e se ajoelhava na igreja para

contrair algum cargo” (BROWN, 2005, p. 98).

Uma longa citação a seguir refletirá bem a ideia de Agostinho sobre a influência vital

de santo Ambrósio sobre ele e, também, sobre como o contato com seus sermões o

prepararam lenta e inconscientemente, mesmo antes de chegar ao platonismo, para sua futura

conversão. Isso porque através das interpretações espirituais das escrituras, chegou a admitir

que os argumentos em favor do cristianismo fossem defensáveis, obtendo também uma visão

completamente nova sobre o sentido do Antigo Testamento (atacado veementemente pelos

maniqueus). Após relatar que acompanhava assiduamente os sermões de Ambrósio, a título de

interesse pela eloquência do orador, mas desprezando o conteúdo, assim segue:

Permanecera em mim esse fútil interesse, perdidas as esperanças de que se patenteasse ao homem um caminho para chegar a ti. No entanto, junto com as palavras que me agradavam, chegavam-me também ao espírito os ensinamentos que eu desprezava. Não me era possível separar as duas coisas [...] entrava também, pouco a pouco, a verdade que ele pregava. Comecei então a notar que eram defensáveis as suas teses [...] sobretudo porque via resolverem-se uma a uma as dificuldades de várias passagens do Antigo Testamento que, tomadas ao pé da letra, me tiravam a vida. Ouvindo agora a explicação espiritual de tais passagens, eu me reprovava mim mesmo por ter acreditado que a Lei e os Profetas não pudessem resistir aos ataques e insultos de seus inimigos. Todavia não me sentia no dever de abraçar a fé católica [...] A fé católica não me parecia vencida, mas para mim ainda não se afigurava vencedora (Confissões, V, 14, 24).

Portanto, definitivamente não foi com um íntimo contato pessoal que Ambrósio

influenciou Agostinho. Este é quem seguia em sua busca, fervilhando, ora no silêncio de seus

angustiantes pensamentos, ora conversando com amigos como Alípio e Nebrídio. Diante da

imponente figura do bispo, requisitado ao extremo tanto pela plebe quanto pelos poderosos, e

além de tudo leitor assíduo, nosso autor relatou que o “certo é que nunca tinha oportunidade

de consultar teu santo oráculo, que residia no coração dele, sobre minhas duvidas, a menos

que se tratasse de questões rápidas” (Confissões, VI, 3, 3). Tal influência profunda só pode ser

explicada pela autoridade e respeito que essa figura lhe inspirava, e pela lenta assimilação do

conteúdo de suas pregações.

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Esse relato que se encontra nas Confissões atinge um marco para o recorte aqui

proposto. Pelos sermões de santo Ambrósio adveio uma nova descoberta, a partir da qual

Agostinho em breve transformaria definitivamente sua concepção de busca filosófica. A nova

descoberta teve como primeiro efeito abrir ou relativizar o julgamento que ele tinha sobre a

doutrina dos cristãos. Nos sermões ele aprendia uma nova interpretação do Antigo

Testamento, e isso agia tal como uma ruptura sobre uma barreira. A descoberta veio daí:

descobriu que o relato sobre o homem criado à imagem de Deus não se refere à imagem do

corpo humano, e sim a algo da ordem espiritual. O primeiro efeito de abertura foi devido a

não mais acreditar que os cristãos pregavam um Deus encerrado na forma de corpo humano.

Ultrapassada essa barreira foi possível investigar seriamente o sentido da verdade contida nas

Escrituras, ainda que, para vencer a concepção materialista do mundo, precisasse de mais um

tempo e do auxílio da filosofia platônica. A primeira ênfase do relato recai sobre o

reconhecimento dos erros em que incorria.

Eu, que nem de longe suspeitava o que era substância espiritual, então me envergonhei alegremente de ter vociferado por tantos anos, não contra a fé católica, mas contra as ficções criadas por imaginações carnais [...] sem antes me haver informado através de pesquisas sérias (Confissões, VI, 3, 4).

No trecho acima Agostinho fala sobre imaginações carnais, porque o método de

interpretação que lhe era apresentado progressivamente o surpreendia, de modo que o dizer do

Apóstolo em 2Cor 3, 6, repetido diversas vezes por ele em contextos ulteriores,

provavelmente, já lhe revelava um sentido profundo: “a letra mata, mas o espírito comunica a

vida” (Confissões, VI, 4, 6). Assim como o ceticismo acadêmico já lhe proporcionara o

entendimento de que a razão humana não é suficiente para alcançar a verdade da sabedoria,

agora não era esta a questão a ser colocada, pois não era o caso de se contrapor a isso, mas

sim a questão sobre os livros sagrados, cuja autoridade sentiu-se inclinado a admitir.

Agostinho contava com seus trinta anos quando decidiu aprofundar-se numa pesquisa

sobre as verdades cristãs. Nas Confissões relatou que esse fora um momento de muitas

angústias, já que desde os dezenove anos de idade despertara para o desejo de alcançar a

sabedoria, desejo este que implicava o sentido de encontrar um modo de vida mais perfeito e

feliz. Percebe-se que é como se ele mantivesse desde tempos remotos uma ideia pré-

concebida do que viria a ser essa vida, ou, pelo menos, fica claro que em suas projeções, as

ambições do mundo e as paixões não caberiam nesse novo viver. Sendo assim, mais do que

nunca, ele se vê diante do desejo de deixar tudo para imergir em sua busca espiritual. Desejo

39

que não se realizaria tão facilmente até que chegasse o dia de sua conversão: “Por que não me

decido a abandonar as esperanças do mundo para dedicar-me inteiramente à busca de Deus e

da verdadeira felicidade?” (Confissões, VI, 11, 19), o teor dessa pergunta expressa a

inquietude que tinha consigo.

Permaneciam os traços do materialismo, dificultando-lhe a contemplação da

verdadeira meta de sua busca. O materialismo que lhe parecia convincente se aproximava ao

epicurismo, com a diferença de que sentia a necessidade de imaginar a felicidade na posse de

um bem imortal, e se indagava “se fôssemos imortais e vivêssemos num perpétuo prazer do

corpo, sem temor de perdê-lo, por que não seríamos felizes?” (Confissões, VI, 16, 26),

ignorante de seu próprio erro que consistia em não conseguir pensar “no esplendor da luz e da

beleza, desejáveis por si mesmas, invisíveis aos olhos do corpo e só perceptíveis ao íntimo da

alma” (Confissões, VI, 16, 26).

2.4.2 No círculo platônico

Não foi mera coincidência que Agostinho tenha se deparado com o neoplatonismo

nesse exato período de sua vida, não só pelas disposições intelectuais em que se encontrava,

mas também pela estadia em Milão. De acordo com indicação de um especialista, nessa

cidade em que foi simultaneamente iniciado por Ambrósio na espiritualidade cristã e na

doutrina plotiniana (MADEC, 1996, p. 37), “era de maneira absolutamente natural que

passavam, nesse ambiente, das Enéadas ao Prólogo do Evangelho de João, ou a São Paulo”

(MARROU, 1957, p. 33). Assim, além da influência do bispo, como Agostinho ainda não era

um verdadeiro cristão, fez nessa cidade um novo círculo de amigos que lhe renderam um

renovado impulso filosófico. Em suas primeiras obras como cristão, as que foram escritas no

retiro em Cassicíaco, encontram-se dedicatórias a alguns deles – Mânlio Teodoro e Zenóbio9.

O primeiro avanço pessoal a ser considerado quando se trata dessa temática, é que

“através da leitura do neoplatonismo, Agostinho confirmaria o conceito de substância

espiritual que aprendera com Ambrósio” (COSTA, 1999, p. 91). Contudo, antes de chegar a

9 De acordo com Peter Brown, as pesquisas sobre a atuação intelectual dessas pessoas traz novos problemas a respeito da conversão de Agostinho, pois revela a influência de certo modismo, ou até de certo lugar comum que envolveria a ideia de uma conversão à filosofia platônica. Um exemplo interessante é Mânlio Teodoro, homem culto e influente, mais velho que Agostinho: consta que se retirara “da vida ativa cerca de três anos antes, por volta de 383, e, em seu retiro campestre, havia começado a escrever livros de filosofia e um tratado sobre métrica” (BROWN, 2005, p. 109) – qualquer semelhança não é mera coincidência.

40

essa compreensão, percebe-se, pelo relato das Confissões, que seu pensamento passava por

mais uma nuança, algo próximo de um panteísmo, mas sem a referência direta a alguma seita

ou filósofo. Com isso já conseguiu dar um importante passo, somando mais um

acontecimento em favor da futura conversão: tal como agente de uma transmutação do desejo,

chegou à compreensão íntima de que o eterno (imutável) é melhor, superior, preferível, ao

mutável (mundo sensível, prazeres, ambições). Pensava em Deus nestes termos, como

“incorruptível, inviolável, imutável” (Confissões, VII, 1, 1). Mas ainda estava preso ao

materialismo, não era capaz de conceber qualquer coisa que não ocupasse lugar no espaço.

Daí que não era capaz de crer no Criador, e acabava empurrado para um panteísmo,

acreditando num Deus imutável tal como corpo infuso no mundo ou difuso além-mundo. Em

suas palavras:

Eu te concebia como entidade que se estende por toda a parte, e vai penetrando, através dos espaços infinitos, em todo o universo, e alastrando-se também fora dele na imensidão sem limites. Desse modo, a terra o céu e todas as coisas te continham, e todas elas encontravam em ti seu limite, enquanto tu não eras limitado por nada [...] Com teu sopro misterioso governavas interna e exteriormente tudo o que criaste (Confissões, VII, 1, 2).

Por ser ainda uma posição instável, esse panteísmo não permitia qualquer repouso a

Agostinho em sua busca. Ainda que permanecesse certo empuxo ao cristianismo, também lhe

advinham toda sorte de angústias, na impossibilidade de se resolverem aí as grandes

interrogações sobre o problema da existência do mal.

Por outro lado, o neoplatonismo também foi a doutrina que trouxe para Agostinho algo

verdadeiro para a compreensão a respeito do mundo espiritual e, consequentemente, a respeito

da ideia de Deus sem referência a qualquer coisa material. Nessa linha de pensamento, ele se

viu noutra posição em relação a Deus, separado Dele. Tratava-se de uma revolução íntima

profunda e duradoura que “fez nada menos do que deslocar o centro de gravidade da vida

espiritual de Agostinho. Ele não mais se identificou com seu Deus: esse Deus era

completamente transcendental” (BROWN, 2005, p. 118).

Uma maneira eficaz de exemplificar sinteticamente o aprendizado proporcionado a ele

pelo platonismo pode ser utilizar o diálogo Contra os Acadêmicos, onde o cristão recém-

convertido admite adotar essa filosofia como instrumento para elaboração racional das

verdades da fé. Em poucas palavras, Agostinho resume o legado de Platão, naquilo que o

ensinamento traz de essencial:

41

Para o meu propósito basta dizer que Platão pensou que há dois mundos, um inteligível no qual habita a própria verdade, e este outro sensível, que se nos manifesta pela vista e pelo tato. Dizia que consequentemente aquele é verdadeiro, este é semelhante àquele e feito à sua imagem, que o primeiro é o princípio da verdade, na qual se aperfeiçoa e purifica a alma que se conhece a si mesma, enquanto o outro pode gerar na alma dos insensatos não a ciência, mas a opinião (Contra os Acadêmicos, III, XVII, 37).

Por um lado, pelo que as Confissões e os dados sobre a vida intelectual de Milão

daquele tempo permitem supor, aparentemente, a primeira leitura dos neoplatônicos foi feita

já sob o amplexo comparativo das Escrituras. Cada ensinamento é comparado com o seu

correspondente bíblico. O paralelo é estabelecido no sentido de apontar que ali está exposta,

somente com termos diferentes, uma doutrina sobre o Verbo como Filho de Deus; a

imutabilidade do Verbo anterior e acima de toda a criatura; o Verbo como luz verdadeira da

qual a alma dá testemunha, ou Sabedoria da qual a alma deve participar para ser sábia.

(Confissões, VII, 9). Por outro lado, para crédito de tal filosofia, Agostinho apontou que, por

eles, fora levado a entrar em seu íntimo para encontrar a luz imutável, a luz do criador; ou

seja, um novo sentido para o conhecimento de si mesmo nascera a partir daí, nascera como

descoberta e despertar para a interioridade. Quanto ao horizonte cristão que já se afigurava,

deve-se ter em vista que, patentemente, há nessa conversão ao neoplatonismo um nítido

conflito entre a busca da verdade baseada na autonomia da razão e a necessidade de uma

autoridade transcendente.

O neoplatonismo pode ser registrado com a mesma ênfase que se registra

biograficamente a leitura do Hortênsio de Cícero. (MADEC, 1996, p. 29). Ambos são

representativos, no sentido de marcar a partida de uma direção na vida de Agostinho.

Filosofia e religião novamente se encontraram e, se,

na Cartago da década de 370, fora possível a um jovem ler uma exortação ciceroniana à filosofia (...) e se transformar prontamente num maniqueísta, as repercussões da leitura de Plotino em Milão não poderiam ser menos imprevisíveis. ‘Conversão’ é um termo muito vasto [...] Também ‘Filosofia’ poderia significar muitas coisas: qual era a natureza exata dessa ‘Filosofia’? (BROWN, 2005, p. 123).

Qual é a natureza do platonismo agostiniano?10 Faz-se relevante determinar com mais

detalhes o que a obra de Agostinho nos permite dizer sobre seu entendimento a respeito dessa

doutrina, sobre o que foi assimilado e, também, o que foi definitivamente refutado.

10 Usamos aqui o termo “platônicos” somente para marcar que era esse o termo correntemente usado por Agostinho e seus contemporâneos. De acordo com nota de Ramos (2009, p. 37), deve-se considerar neoplatônicos os que se inspiram na segunda parte do diálogo Parmênides de Platão, considerando esta a obra onde se encontra o segredo da filosofia desse mestre. Ademais, Agostinho parece não priorizar a distinção entre o que é exclusivo de Platão em contraste com seus seguidores.

42

2.4.3 Platonismo agostiniano

Além da aura religiosa que há muito cercava a ideia de conversão à filosofia, o grande

fator determinante que merece ser ressaltado na experiência de Agostinho é mesmo essa

influência de um círculo de cristãos bem aplicados no platonismo, e que, como cristãos,

consequentemente, eram provavelmente tendenciosos em suas interpretações dessa filosofia.

Tudo indica que é preciso considerar o fato de que em “Milão grande parte do platonismo

desenvolto e elegante era cristão” (BROWN, 2005, p. 111). Do que se infere uma relação

perene entre as duas doutrinas no universo do pensamento agostiniano; com maior proveito

por parte do cristianismo, é claro.

Os principais nomes desse círculo foram Vitorino, Simpliciano, Ambrósio e Mânlio

Teodoro – com a ressalva de que não se trata de um círculo de convivência direta. Quanto às

fontes, primeiramente considera-se as traduções lidas por Agostinho. Por mais que não se

saiba exatamente quais foram essas obras, provavelmente eram traduções feitas por Mário

Vitorino, homem sobre o qual se sabe que, mesmo que tardiamente e de súbito, convertera-se

ao cristianismo. Contava também com os “sermões plotinianos” (MADEC, 1996, p.37) e

“com os escritos de Ambrósio, o qual teria divulgado o Platão do Fedro, Fédon e Banquete,

corrigido e revistado por Porfírio e Plotino” (RAMOS, 2009, p. 41). E ademais, por ambos

serem vistos como ligados ao nome do padre Simpliciano, sendo que este pode ser

considerado até “pai espiritual” de Ambrósio, é possível atribuir-lhe certa originalidade. De

modo que sua importância histórica, juntamente com a de Teodoro, situa-se na referência

explicita e consciente que, como cristão, fazia ao platonismo. (O’MEARA, 1958, p. 101).

É natural imaginar uma interferência na direção dos interesses de alguém que nesse

contexto fosse iniciado nos segredos do platonismo. Para tanto, basta tomar o fato de que,

para esses cristãos, “a história do platonismo parecia convergir muito naturalmente com o

cristianismo” (BROWN, 2005, p. 112). Essa suposta “história do platonismo”, tal como foi

possível extrair acima no Contra os Acadêmicos, talvez seja uma visão apropriada por esse

círculo, com origem em fontes que desconhecemos, e não um relato fidedigno da história.

Não nos cabe discutir a possibilidade de uma continuidade da escola platônica, sem ocasos e

rupturas, no decorrer dos séculos. Não obstante, ao que nos parece, o interesse desses cristãos

era aproximar seus argumentos aos dos platônicos. Alguns até já defendiam que Platão teria

43

extraído sua doutrina de um contato com as escrituras judaicas. Dentre esses estão incluídos

Ambrósio e, posteriormente, o próprio Agostinho. (A Doutrina Cristã, II, 29).

De fato existem estudos que buscam comprovar a existência de uma linhagem

platônica legítima que perpassaria a antiguidade e antiguidade tardia através de uma tradição

oral. Porém, se os cristãos buscavam essa aproximação entre as doutrinas, certamente não era

em favor da perpetuação da doutrina platônica. Nesse sentido, concordamos com Ch. Boyer

(1953, p. 172) a respeito da subordinação ao cristianismo na recepção da tradição filosófica

por parte de Agostinho. E provavelmente trata-se de uma tese aplicável a todo o cristianismo

primitivo.

Mas não se deve pensar que por isso o contato entre essas duas doutrinas seja

superficial: é contingente. Na medida em que conquistava espaço entre as classes intelectuais

do império o “Cristianismo teve que se abrir ao clima cultural da época [...] não [...] como

algo exterior e apologético, mas, sim, como uma tendência que enxerga na metafísica grega

uma possibilidade concreta de conciliação” (BEZERRA, 2006, p. 134). E isso se relaciona

com certo débito da teologia para com a filosofia, em termos de reflexão conceitual e

fundamentação. De tal forma que, nesse sentido, a subordinação de que falamos deve ser

também entendida como uma maneira para o cristianismo “se autocompreender e expressar-se

em nível racional” (BEZERRA, 2006, p. 133). Basta seguir a História Eclesiástica de

Eusébio de Cesaréia para confirmar que os maiores Padres gregos eram verdadeiros eruditos e

grandes letrados em filosofia: nomeadamente, Orígenes se destaca. Consta que filósofos e

homens cultos submetiam-se a seu ensino, com o seguinte método:

Introduzia os naturalmente bem dotados nas disciplinas filosóficas, na geometria, aritmética e outros elementos preparatórios. Em seguida, transmitia-lhes o conhecimento dos diversos sistemas dos filósofos, explicava-lhes seus escritos, comentava-os e examinava-os acuradamente, de sorte que os próprios gregos proclamavam-no grande filósofo (História Eclesiástica, VI, 18).

Os sermões de Ambrósio provavelmente representam um elo entre o círculo

neoplatônico de Milão e as aproximações anteriores da patrística grega ao médio-platonismo.

Podendo significar na história de Agostinho algo como uma espécie de impulso simultâneo ao

cristianismo e ao platonismo (O’MEARA, 1958, p. 99) – com a ressalva de que não se deve

negligenciar a influência das pessoas que eram de sua convivência íntima nesse círculo.

Há ainda outra tese a respeito da recepção do platonismo pelo cristianismo que, apesar

de ser menos defendida, merece ser mencionada. É o caso em que se interpreta o platonismo

cristão como um antiplatonismo. A tese parte do principio de que o “platonismo da época

44

imperial é substancialmente um ‘credo’ religioso” (SANTOS, 2003, p. 332). Sendo “religião”,

essa doutrina seria vista como uma forte concorrente do cristianismo. A partir do quê,

conclui-se que ocorrera algo estratégico na elaboração de uma “ficção apologética colocada

em ato para conduzir os pagãos cultos ao cristianismo” (SANTOS, 2003, p. 334). Deve-se

notar que Agostinho nasceu em um mundo em transição, já oficialmente, mas ainda não

essencialmente, cristão. Nesse contexto, considerar essa tese, mesmo que não seja plenamente

verdadeira, é levantar novamente a possibilidade de que um platonismo puro e legítimo

jamais tenha sido considerado por nosso autor.

Assim, tendo por base o exposto nos parágrafos acima, a proposição básica que se

estabelece aqui a respeito do platonismo agostiniano refere-se à falta de rigor ou aspecto

tendencioso da apreensão de Agostinho sobre essa filosofia: “não foi jamais neoplatônico”

(MADEC, 1996, p. 18); talvez somente usasse uma “linguagem que lhe pareceu flexível e

adequada para expressar as verdades apreendidas na Sagrada Escritura” (ALONZO, 1955, p.

27); ou, ainda, “utilizasse imediatamente o que lia em proveito de problemáticas pessoais [...]

crendo, contudo, ser fiel ao pensamento platônico” (JOLIVET, 1941, p. 99). Acrescenta-se a

essa proposição mais alguns fatos comprobatórios. Primeiro, a precariedade das leituras feitas

por um homem que não dominava o grego. Isso não prova nada, mas possibilita abrir uma

discussão sobre a qualidade das traduções usadas para a leitura. Inclusive permite questionar

também se as leituras se serviram de obras completas, incompletas ou somente compilações e

resumos didáticos. Segundo, há o fato de que não existem registros de exegeses ou

compilações sistemáticas por parte de nosso autor. E terceiro, tanto nos diálogos filosóficos

quanto na obra A Cidade de Deus, ambas contendo referências e citações sobre o platonismo,

encontra-se prioritariamente exposições de ideias gerais, e poucas são as abordagens rigorosas

limitadas a um autor ou texto específico. Platão, platônicos, filosofia, são termos que

Agostinho chega a usar sem distinção semântica.

Seguindo a linha dessa proposição, outro problema se apresenta para o investigador.

Quais teriam sido as obras lidas por Agostinho? Qual a extensão e profundidade de seu

conhecimento sobre a filosofia de Platão e de seus seguidores respectivamente? Ângelo

Zanoni Ramos é pesquisador agostiniano brasileiro e seu trabalho mais significativo é recente

e bastante atualizado. O problema da influência pagã em Agostinho parece ser um de seus

focos de interesse. Neste sentido, esse autor é capaz de sensibilizar o leitor sobre a

importância da questão das fontes platônicas:

45

Quando nos referimos à recepção da tradição platônica em Agostinho, o que mais nos toca, do ponto de vista metodológico, é a necessidade do rigor suficiente para definirmos se aquilo a que o Autor se refere é Platão, Plotino, Porfírio, ou outros autores inspirados em Platão (RAMOS, 2009, p. 28).

As pesquisas mais recentes e rigorosas sobre este assunto não obtiveram resultados

muito animadores. No caso de Ângelo Zanoni, a solução foi simplesmente abandonar o desejo

de determinar o conteúdo das leituras de Agostinho.

Diante da falta de rigor, e até mesmo do fato de Agostinho anunciar, em A Cidade de

Deus, que citaria Platão resumidamente, coloca-se outro problema. Estaria Agostinho fazendo

somente uma escolha deliberada devido a seus interesses argumentativos, ou haveria

realmente uma deficiência ou insuficiência em suas fontes sobre o platonismo? Existe a

possibilidade de a segunda hipótese ser correta, apesar de não haver confirmação científica

sobre o assunto. Um grande indício em favor de tal hipótese é a ausência de indicação das

fontes de Platão. O que os pesquisadores acabam por admitir é que Agostinho teria lido algum

tipo de material resumido, sintético, tal como um manual de filosofia. Infelizmente, não

obstante as traduções de Mário Vitorino e os escritos de Ambrósio – e arriscamos também

dizer Cícero11, grande divulgador do paganismo - serem considerados fontes de Agostinho,

não temos “um esclarecimento acerca do conteúdo dos libri platonicorum, e nem sequer

podemos delimitar com precisão o que Agostinho teria lido” (RAMOS, 2009, p. 41) 12.

Quanto à primeira hipótese, como já foi dito anteriormente, não há dúvida sobre sua

pertinência, já que Agostinho, assim como seus contemporâneos cristãos, fizera uso do

platonismo em favor do cristianismo. Tudo indica que “uma transposição inconsciente do

plotinismo ao sentido cristão” (JOLIVET, 1941, p. 99) acorre ao serviço da inteligência da fé.

O próprio Ambrósio, que no dizer de Brown (2005, p. 113) saqueava a obra de Plotino,

provavelmente teria sido exemplo para nosso autor, talvez até ensinando-o a citar a bíblia para

lembrar o ouro dos egípcios levado a serviço do povo de Deus. (Confissões, VII, 9, 15). A

posição é objetiva, assumida diversas vezes por Agostinho, e resume-se assim: “todo bom e

verdadeiro cristão há de saber que a Verdade, em qualquer parte onde se encontre, é

propriedade do Senhor” (A Doutrina Cristã, II, 19).

11 Cícero foi uma das fontes de Agostinho sobre o platonismo. A maioria dos autores que consultamos não trata dessa questão, exceto a indicação explícita de O’Meara (1958, p. 101). Ver também que no Contra os Acadêmicos, ao tratar de certa história oculta do platonismo ligada à Nova Academia, Agostinho dá a entender que se baseia em informações de obras de Cícero. 12 Preferimos crer no que o próprio Agostinho disse sobre tal problema: “Li entrementes algumas poucas obras de Platão” (A vida feliz, I, 4).

46

Quanto à segunda hipótese, por mais que possa ser considerada alguma insuficiência

no conhecimento que Agostinho demonstra ter a respeito do platonismo, estudos mostram que

não é possível descartar o fato de que seu leque de leituras platônicas não foi tão parco assim.

Isso é bem verdadeiro principalmente no tocante a Plotino e, quiçá, Porfírio. Mormente

considera-se Plotino como a grande influência filosófica da teologia e filosofia agostiniana.

Sem nos alongar, e para não sair de nosso propósito, introduzimos as teses de alguns autores.

Todavia, é certo que, sobre certos pontos de base comum, há poucas divergências a

respeito da presença do platonismo no pensamento de Agostinho. É possível pensar no

empréstimo de alguns princípios, relacionados à consideração do mundo inteligível como

mundo das verdadeiras realidades, aquelas que transcendem a dimensão espaço-temporal; de

modo que alcançar tais verdades só pode ser privilégio e finalidade da inteligência humana.

(BOYER, 1953, p. 172). Deriva daí uma doutrina da substância espiritual e da transcendência

de Deus. Ou, de forma semelhante, pensar que esses “livros o fizeram descobrir a

refletividade e lhe deram o sentido do espírito como ato; o fizeram retornar sobre si mesmo;

eles o colocaram na via da interioridade, pela qual o espírito se encontra a si mesmo e se

ultrapassa para reingressar seu fundamento, Deus, o Ser Absoluto” (MADEC, 1996, p. 39).

Ou, num esforço ainda mais sintético, tendo em vista a apreensão de Plotino, também é

possível encontrar uma concordância doutrinária básica na ideia de Deus como fundamento

de tudo - ideia que funda o pensamento sobre Deus como Ser Absoluto, como Luz da

inteligência e como Bem supremo: ele tomou de Plotino a cosmologia, a doutrina dos degraus

(ascese contemplativa) e a metafísica da beleza (o mal somente como privação). (JASPERS,

1962, p. 69).

Para Peter Brown, em síntese, cristianismo e platonismo convergiam por apresentar a

seus seguidores uma proposta de realização extramundana, projetada fora do mundo sensível

– ideia de voltar, religar a algo mais fundamental. Proposição esta que se confirma pela

constatação do fato de que, para o mundo em que viveu Agostinho, a base desta convergência

situava-se no encontro da doutrina do Intelecto, em Plotino, com a doutrina do Verbo de

Deus, no Evangelho de João13. Essa convergência

unia pensadores pagãos e cristãos num único horizonte de ideias. Para Plotino o Intelecto era um Princípio Mediador de suprema importância: ao tocar o Um, ele se voltava para fora, ao mesmo tempo, como fonte de Muitos. Era fácil ver nesse

13 No caso de Orígenes e dos Padres gregos, a referência ao platonismo não se funda no neoplatonismo, doutrina nascida no século III. Trata-se do médio-platonismo, “forma de platonismo que nasce depois da morte de Antíoco de Ascalona (filosofia acadêmico-eclética do século I a.C.) e que se desenvolve até os inícios do século III d.C.” (SANTOS, 2008, p. 21).

47

Princípio Mediador fundamental uma exploração filosófica do Verbo do Evangelho de São João (BROWN, 2005, p. 116).

Há também investigações mais ousadas, que buscam remontar as leituras agostinianas

através de trabalho exegético minucioso. É o caso de R. J. O’Connell14, que busca provar a

tese de que Agostinho teria lido um grande número de textos de Plotino, desde o tempo

anterior à conversão, em Milão, até o início do episcopado, através da verificação da

existência de empréstimos diretos do texto plotiniano em trecho das Confissões (VII, 10, 16 –

11, 17). Esses empréstimos são encontrados por ele em paralelos linguísticos, imagéticos e

doutrinários, entre o referido trecho e as seguintes Enéadas15: V, 8; I, 6; VI, 4-5; VI, 9 e V, 3.

Seguem alguns exemplos ilustrativos.

Um primeiro exemplo é relacionado à exortação à interioridade que se segue à leitura

dos platônicos. Agostinho insinuou que a Providência teria usado dessa leitura como uma

espécie de lembrete ou advertência para volver ao interior. O’Connell oferece um trecho da

Enéada V, 8 como paralelo: ali Plotino falou da visão interior, do homem preenchido com

Deus, e de ver Deus dentro de si mesmo. (O’CONNELL, 1963, p. 133).

Há outro exemplo que relaciona com o texto plotiniano o uso da ideia de pão, ou

alimento, como figura da Verdade: pão do espírito. É uma figura muito usada na bíblia e,

nesse caso, o autor reconhece prevalecer sobre o sentido neoplatônico. Entretanto, o trecho da

Enéada V, 8 é indicado como paralelo na inspiração da figura traçada por Agostinho. Plotino

insinua a verdade divina dos seres como alimento para a beatitude no céu inteligível (não só

alimento, mas também mãe, enfermeira e existência). (O’CONNEL, 1963, p. 140).

Agostinho associou o despertar para uma nova compreensão de Deus a sua leitura dos

platônicos. No trecho em questão, a iluminação se dá como se Deus clamasse: Eu Sou o que

Sou. É interessante que outro termo bíblico apareça imiscuído a esse relato. Trata-se da

compreensão sobre a natureza de Deus como espiritual, absoluto, idêntico à Verdade. O autor

também nos mostra aqui a concordância com Plotino: este fala de um Ser divino

transcendente, equivalente às Ideias consideradas como ser e essência. (O’CONNEL, 1963, p.

142).

Ao descobrir o Ser Absoluto, Agostinho descobriu também que as coisas mutáveis

existem numa modalidade inferior de ser, de modo que na própria essência da mutabilidade

14 O autor tem vários trabalhos relacionados ao tema da influência plotiniana em Agostinho, mas somente o artigo The Enneads and St. Augustine image of happiness é alvo de nosso comentário. 15 Plotino viveu no século III d. C. Foi um filósofo conhecido ainda em vida. Seus escritos foram organizados e editados pelo influente discípulo, Porfírio. Este subdividiu a obra do mestre por temas e não cronologicamente. O nome Enéadas refere-se a novenas. E assim, como havia 54 tratados, foram divididos em seis Enéadas.

48

descobriu um não-ser. A linguagem usada pelo bispo de Hipona nessa passagem das

Confissões encontra total ressonância em Plotino. Inclusive essa parece ser uma ideia

completamente estranha ao texto das sagradas Escrituras. Enquanto para Plotino, ao contrário,

parece ser uma ideia central: o Ser verdadeiro é Sabedoria, os entes recebem sua forma de

existência por participação nessa sabedoria e não são Seres Verdadeiros. (O’CONNEL, 1963,

p. 142).

O artigo de R. J. O’Connell é longo e minucioso. Portanto, não cabe aqui um

comentário detalhado. É relevante notar que, não obstante a refutação do platonismo que o

Agostinho da maturidade acabou por fazer, um fio de ligação com Plotino se manteve em sua

essência e estilo. A intelectualidade metafísica coexistindo com uma experiência mística

profunda foi como marca registrada de nosso Santo e, segundo o autor do artigo em questão,

trata-se de uma via encorajada pelo exemplo pessoal de Plotino, que se recusava a “manter

esses dois registros distintos” (O’CONNEL, 1963, p. 163).

Todavia, há ainda outro ponto de convergência com o texto plotiniano que merece

toda nossa atenção, pois incide diretamente sobre a investigação do presente trabalho. Trata-

se da teoria plotiniana de que a alma não é completamente caída, por sua parte superior ser

capaz de alcançar uma contemplação beatificante da Sabedoria. Para tanto, o homem deve

deixar-se a si mesmo para obter uma reintegração ao Todo. (O’CONNEL, 1963, p. 146 –

147). Para esse especialista, a extrema confiança que Agostinho depositou na filosofia em

seus primeiros escritos constitui corolário legítimo de sua aceitação sobre essa doutrina de

Plotino. E nessa perspectiva, isso implica que é possível identificar uma marca plotiniana

indelével na doutrina agostiniana da restauração da imagem de Deus no homem. O termo

usado é bíblico e prioritariamente paulino, mas, por outro lado, mantém clara conexão com a

crença da alma não ser inteiramente caída.

Em relação a Plotino, por conseguinte, parece certo afirmar que há mesmo toda uma

convergência que não pode ser descartada: a interioridade como caminho, a purificação, o

autoconhecimento, a luz transcendente, a beleza, a ascese e a contemplação. A grande

divergência é que a complacência para com a filosofia não foi mantida por Agostinho e,

efetivamente, a plena restauração da imagem de Deus na mente só assumiu sentido como

meta para uma vida futura.

Já foi dito acima que os especialistas incluem uma lista mais ou menos extensa e

imprecisa a respeito das influências platônicas de Agostinho: traduções, manuais, círculo de

amigos, e até mesmo Jâmblico e Apuleio. Mas comparado ao eminente nome de Plotino,

nenhum outro é tão considerado quanto Porfírio. Contudo, não há uma decisão unânime sobre

49

a dimensão de sua influência, e as opiniões podem ser até bastante extremistas. Por isso,

interessa mais apontar aqui a existência de alguns consensos.

São poucos os dados concretos, mas não inexistentes. Por exemplo, tendo em conta

que raramente nosso autor citou suas referências bibliográficas pelo nome das obras, é

relevante notar que um dos casos em que isso aconteceu foi justamente sobre uma obra de

Porfírio (De regressu animae, obra perdida). Por sua vez, o fato mais significativo é o

destaque dado ao combate a ele nas discussões dos trabalhos tardios, especialmente A cidade

de Deus. Agostinho empenhou-se ao extremo para vencer seus argumentos. E, certamente, há

que se considerar justificável esse destaque, devido a autoridade reconhecida desse platônico,

grande erudito, escritor muito divulgado em seu tempo, e compilador das obras de Plotino.

(O’MEARA, 1958, p. 97).

Não obstante essa notável dificuldade devido à falta de fontes diretas e fidedignas, o

mais importante a se considerar no caso de Porfírio é um tipo de “influência negativa”

(MADEC, 1996, p. 43) que o situa frente à escolha de Agostinho pelo cristianismo. Existe um

tratamento crítico e diferencial entre Plotino e Porfírio, principalmente no que tange ao tema

religioso e à relação de Porfírio com a teurgia. Desde o início a relação entre o neoplatonismo

e o paganismo foi mal vista por Agostinho: trata-se de uma contenda no que tange ao tema da

mediação religiosa e da idolatria. A posição dos platônicos era a seguinte:

Os platônicos, pelo uso da razão poderiam, de fato, chegar à verdade fundamental da existência do Pai e sua Palavra. Independentemente, entretanto, a massa humana, daqueles que não alcançam o uso da razão para tal, poderia chegar à mesma conclusão seguindo uma autoridade [...] Os platônicos reconheceram a necessidade desse caminho da autoridade para as massas (O’MEARA, 1958, p. 102).

A questão que se impõe é sobre quem ou quê pode se passar por tal autoridade. Ou

seja, é uma questão que atinge profundamente o tema da mediação religiosa. Porfírio foi

grande pesquisador das religiões, particularmente interessado por essa questão. Teve inclusive

conhecimento do cristianismo. Buscava realizar algo como uma “ciência da redenção”

(MADEC, 1996, p. 43). Mas rejeitou o cristianismo e a divindade de Jesus – mesmo não

rejeitando o valor da experiência humana de Jesus. Agostinho, por sua vez, sempre nutrira

simpatia pela religião cristã, e não tardou a condenar o orgulho dos platônicos, em nome dessa

diferença irreconciliável.

Agostinho jamais indicou qualquer mudança em sua compreensão sobre o platonismo.

Na verdade a mudança foi em sua aceitação, retificou-se por tê-lo adotado e elogiado mais do

que deveria no início de sua vida de escritor cristão. (Retratações, I, 1). Por esse motivo, na

50

ocasião de determinar o teor do platonismo agostiniano, tão importante na época de sua

conversão ao cristianismo, não encontramos dificuldades em nos servir de qualquer de suas

obras, de acordo com a conveniência, mesmo, por exemplo, A Cidade de Deus, escrita no

final de sua vida. Por ser obra apologética que visa o combate contra o paganismo, aborda

extensamente o platonismo e a filosofia em geral. Afora os Diálogos filosóficos, talvez seja a

melhor fonte para encontrar uma referência passível de ser transposta para o contexto da

presença do platonismo no processo da conversão. Para tanto, para avançar ainda um pouco

mais, seguimos aqui os comentários de Ângelo Zanoni.

O que interessa é que nessa obra Agostinho foi além da alusão à semelhança de certos

conceitos de Plotino ao Prólogo do Evangelho de João. Também não se limitou a indicar a

abertura para as realidades inteligíveis, ou a exortação à interioridade na busca da verdade. No

oitavo livro, uma discussão a respeito da teologia natural é iniciada, e aponta para a

elaboração platônica de uma filosofia tripartida capaz de mostrar o Deus uno e trino. De modo

que essa filosofia é tratada como sinônimo de teologia, e como efetiva via de acesso ao Deus

trino. Não há melhor e mais completa explicação daquele propósito que está enunciado em

sua primeira obra escrita, Contra os Acadêmicos, que defende que o aprendizado deve passar

pela autoridade e pela razão e, no caso do uso da razão para a inteligência da fé, declara

confiança em relação ao platonismo.

O ponto de partida da exposição, que encaminha o leitor à noção da filosofia tripartida,

é a divisão do estudo da sabedoria entre partes - ativa e contemplativa. Essa divisão remonta

aos mestres de Platão: Sócrates e Pitágoras. A partir daí a tripartição já está estabelecida: a

parte ativa remete aos modos de vida, a parte contemplativa reúne o estudo da natureza e os

fundamentos da verdade: “A ativa tem em mira organizar a vida, isto é estabelecer os

costumes; a contemplativa pretende considerar as causas da natureza e a verdade pura” (A

Cidade de Deus, VIII, 4). Segundo Agostinho, o mérito de Platão foi ter aperfeiçoado a

filosofia, por aproveitar seu conhecimento amplo, incluindo esses dois mestres, e fazer uma

tripartição da filosofia a partir dessa díade ação e contemplação. Segue o detalhamento da

tripartição:

Uma é a moral e diz respeito principalmente à ação; outra, a natural, compete à contemplação; a terceira, a racional, distingue o verdadeiro do falso. Embora necessária a ambas, ou seja, à ação e à contemplação, esta de modo primordial postula o conhecimento da verdade (A Cidade de Deus, VIII, 4).

51

Agostinho intuiu nessa tripartição uma via tríplice para o Deus uno; uma via que passa

pela interrogação a respeito dos fundamentos desses conhecimentos filosóficos referidos

acima. Seria necessário interrogar a causa da existência dos seres (natural), a razão que

sustenta a inteligência humana (racional) e a ordem justa das ações (moral) – interrogações

que devem apontar para a existência de Deus, tal como suporte do ser, da razão e da justiça16.

O trecho citado é concluído com a demonstração de como a filosofia serve ao cristão

que busca a Deus pela razão. De acordo com a interpretação do especialista, a descoberta da

tripartição da filosofia deve fortalecer a fé, na medida em que subentende uma exortação ao

verdadeiro Deus:

A causa da subsistência, a razão da inteligência e a ordem da conduta da vida pertencem às três partes da filosofia. Mas há um principio que exige essa correlação: o homem foi criado de tal maneira que aquilo que é mais excelente nele possa ter acesso ao que é mais excelente que todo o resto (RAMOS, 2009, p. 47).

O mérito dos platônicos no campo da moral reside em ter localizado o bem supremo

do homem fora dele mesmo. Isso se relaciona com a ideia de virtude, desde que por virtude

entenda-se imitar a Deus. O primeiro fundamento é a consideração de que o mundo sensível

existe subordinado a um mundo inteligível, incorpóreo, que o determina. Se a razão é a parte

mais excelente do homem, e se essa razão deve acessar e subordinar-se ao Excelente - aquilo

que confere a ela seu caráter racional -, isso significa que a norma de conduta ou de

organização da vida do homem no mundo já pode ser enunciada: o corpo e o mundo material

devem ser dominados e subordinados à razão humana e, esta, por sua vez, domina na medida

mesma em que é subordinada ao principio superior a ela – Deus. Daí que, além de uma norma

de vida, no campo da moral, a filosofia platônica também alcança a meta da vida feliz: o bem

supremo verdadeiro, que equivale ao gozo de Deus.

Basicamente é isso que está enunciado no trecho a seguir:

Cedam todos aos filósofos que disseram não ser feliz o homem que goza do corpo nem o que goza da alma, mas o que goza de Deus. E dele goza [...] como os olhos gozam da luz [...] Platão estabeleceu que o fim do bem é viver de acordo com a

16 Acontece algo curioso nesta passagem, algo que nos leva a pensar que talvez Agostinho tivesse um conhecimento maior sobre Platão do que somente um conhecimento baseado em manuais. Agostinho se recusa a indagar sobre a posição de Platão a respeito dessa tripartição da filosofia, se Platão conferiria ou não o lugar devido ao Deus único, justifica essa recusa devido ao método de Platão – refere-se ao método socrático, em que a construção dialética sobrepõe-se ao ensino direto mestre-discípulo. Ou seja, alega que Platão não comunica diretamente aquilo que pensa ou sabe. Não obstante, Agostinho não se recusa a falar dos seguidores de Platão, acredita que talvez estes tenham ligado a filosofia tripartida ao Deus transcendente. Não seria esse um claro indício de que Agostinho faz distinção entre textos de Platão e os textos de seus seguidores?

52

virtude, o que pode conseguir apenas quem conhece e imita Deus, e que tal é a única fonte de sua felicidade (A Cidade de Deus, VIII, 8).

Naquilo que interessa à filosofia natural, ou física, Agostinho considerou que os

platônicos puderam conhecer a Deus pela inteligência, já que souberam se elevar dos seres

corpóreos ao principio do qual dependem. Isso quer dizer que estabeleceram mais que uma

física, mas “uma metafísica fundada no princípio de participação dos seres sensíveis e

mutáveis num ser uno” (RAMOS, 2009, p. 51). Conseguiram transcender os corpos na busca

de Deus. Compreenderam a imutabilidade de Deus e, assim, que Deus é o Ser por excelência.

Ou seja:

Vendo que os corpos e os espíritos existem com mais ou menos forma e, destituídos de toda forma, careceriam, em absoluto, de ser, perceberam dever existir algo em que se encontrasse a espécie primeira e incomutável e, portanto, incomparável. Acreditaram, com muitíssimo fundamento, encontrar ali o princípio dos seres, que não fora feito e pelo qual foram feitos todos os seres (A Cidade de Deus, VIII, 6).

No campo da lógica, ou filosofia racional, as contribuições dos platônicos também se

mostraram valiosas para Agostinho. São dois aspectos importantes. Primeiro a consideração

de que não é pelos sentidos que acontece o conhecimento. Os sentidos são órgãos que

comandam a experiência de apreensão do mundo, contudo, o conhecimento acontece como

descoberta do espírito, ou seja, é racional. Além disso, os platônicos teriam antecipado a

doutrina da iluminação da inteligência - doutrina que Agostinho jamais deixou de defender,

por toda sua vida. Nesse sentido, o elogio foi cedido ao mérito de que eles

souberam distinguir entre o que o espírito descobre e o que o sentido apreende, sem que aos sentidos nada tirassem do que podem, nem lhes atribuíssem poder que não têm. Disseram existir certa luz das inteligências que ensina todas as coisas e é o próprio Deus, por quem todas foram feitas (A Cidade de Deus, VIII, 7).

Agostinho não chegou a dizer que os platônicos alcançaram o Deus trino, mas teceu os

elogios mais enaltecedores no sentido de que a filosofia deles contém todos os caracteres da

relação do homem com um Deus único e transcendente. Não há dúvidas de que se deve

questionar a fidedignidade da abordagem de nosso autor, fazendo ressaltar o fato

contingencial de seus interesses cristãos. O investigador sofre a infelicidade de não haver

referências textuais nas compilações de Agostinho, já que com um pouco de rigor por parte

dele resolver-se-iam muitas das indagações que se interpõem às soluções conclusivas. Em

nota, Ângelo Zanoni (2009, p. 52) enfatiza mais um problema: o mundo em que viveu Platão

53

era mais antropocêntrico que teocêntrico; ou seja, há que se questionar a possibilidade de

colocar Deus no centro dessa filosofia. Não obstante, consideramos que nada disso diminui o

valor da leitura agostiniana do platonismo, não só porque lhe serve bem a seus próprios

propósitos, mas, também pelo valor edificante e convincente de sua argumentação.

Recordamos a posição de Agostinho (Confissões, XII, 26, 36) ao interpretar alegoricamente

os textos bíblicos: não lhe interessava se Moisés atribuía, por exemplo, o mesmo sentido que

ele ao que escreveu, mas sim o efeito positivo na nova interpretação.

Não nos interessa, portanto, averiguar o valor teórico das interpretações de Agostinho

em relação ao platonismo. Até porque, sem temeridade, podemos afirmar que Agostinho é

história. No mínimo, suas interpretações têm alto valor para a história do cristianismo. Com

isso, pode-se aceitar que a abordagem desse capítulo de A Cidade de Deus contribuiu para a

compreensão do platonismo agostiniano. Principalmente para a obtenção de mais algumas

noções sobre o que essa filosofia significou para a sua conversão ao cristianismo.

Em síntese, conclui-se que a via de acesso racional a Deus aberta pelo platonismo, ou,

a “via detectada por Agostinho é a via da interioridade e da transcendência [...] onde, por

meio de sua razão, terá acesso a luz inteligível, que lhe transcende” (RAMOS, 2009, p.53).

Tal como o próprio mestre registra em suas Confissões:

Instigado por esses escritos a retornar a mim mesmo, entrei no íntimo do meu coração sob tua guia [...] Entrei e, com os olhos da alma, acima destes meus olhos e acima de minha própria inteligência, vi uma luz imutável [...] mas acima de mim porque ela me fez (Confissões, VII, 10, 16).

Todavia, a análise sistemática das duas doutrinas leva os especialistas a enfatizarem a

existência de discordâncias irreconciliáveis entre elas. Essa é a maior comprovação de que

Agostinho realmente apreendeu o platonismo de modo vinculado a seus interesses próprios; e

provavelmente também vinculado à leitura corrente no círculo cristão milanês. Elementos

doutrinais caríssimos ao cristianismo são completamente estranhos ao sistema neoplatonista, e

vice e versa.

O universo plotiniano, com efeito, não permite nenhum lugar à liberdade, nem à responsabilidade pessoal; a oração não tem sentido algum, e a ideia de pecado voluntário não pode ser concebida nele. A criação do mundo não é obra da liberdade e amor divinos, senão a expressão necessária da natureza do Princípio primeiro [...] a providência não é outra coisa que uma espécie de simpatia universal, ou alma única que, sob a forma de leis cósmicas, ou de determinismo, reúne na unidade e enlaça em si todos os seres do universo (JOLIVET, 1941, p. 91).

54

Por um lado, trata-se de opor o criacionismo monoteísta cristão ao panteísmo

plotiniano (e também ao politeísmo de Jâmblico e Apuleio, e de certa forma de Porfírio).

Pensar o ato deliberado de um Criador não condiz com a doutrina plotiniana. E visto mais de

perto, nem mesmo o Intelecto pode ser justamente equiparado ao Verbo: “como o intelecto é

uma visão e uma visão que está vendo, ele será uma potência que veio ao ato” (PLOTINO,

2008, p. 81). Para Agostinho Deus é ato puro, enquanto o Verbo é concebido como gerado

coeternamente, não há noção de potencialidade. Por outro lado, acrescenta-se a isso a total

estranheza do platonismo para com as ideias de encarnação e ressurreição. Considerando

ambas as doutrinas como fundadoras de princípios religiosos, fica estabelecido que “enquanto

o cristianismo se refere à ação salvífica de Cristo como sendo um fato histórico, o platonismo

se remete ao fato de que dispõe de um saber originário que jamais foi modificado” (SANTOS,

2003, p. 330). Consequentemente, enquanto para Plotino a fé é também necessária, mas

enquanto submissão à autoridade de alguém que aponta o caminho e coloca o discípulo sob a

“imagem do Ser Divino, colocando-o na senda da renúncia e do entendimento”

(O’CONNELL, 1953, p. 154); para Agostinho, diversamente, trata-se da fé no Deus que se

fez caminho.

Uma última nota ao platonismo agostiniano: lembramos que Agostinho foi cada vez

menos condescendente com essa filosofia, e chegou mesmo a se arrepender de tantos elogios

tecidos. O grande problema é que esses filósofos, que viram Deus, apesar disso, não

prestaram o culto devido a Ele. E, ademais, devem ser considerados como homens

orgulhosos, já que dispensaram o caminho da fé na busca da sabedoria e da beatitude; acabam

por ser considerados estultos por confiarem demasiadamente em si mesmos. (Confissões, VII,

9, 14).

Entretanto, há ainda um trecho digno de citação, somente a título de manter uma

interrogação em aberto:

concordando em que a divindade existe e cuida das coisas humanas, pensam não ser suficiente para conseguir a vida feliz, o culto a um só Deus incomutável. Por isso, dizem, é preciso render culto a muitos deuses criados e instituídos por Aquele uno (A Cidade de Deus, VIII, 1).

Agostinho parece supor que, por motivos de outra ordem, mesmo reconhecendo o

Deus uno, os platônicos teriam defendido o culto a muitos deuses como condição para a vida

feliz. O detalhe que nos provoca a interrogação é a distinção estabelecida entre conhecer o

Deus único e defender o culto politeísta a título de condição para a vida feliz. A acusação é

55

clara e decisiva, incide sobre uma inaceitável “dissociação entre o culto e a compreensão da

natureza divina” (NOVAES FILHO, 2007, p. 96).

Compreender a fundo em que se radica tal dissociação poderia ser objeto atual de

importante estudo comparativo, mas escapa inteiramente ao alcance da presente pesquisa. É

possível adiantar que, provavelmente, como vimos acima, essa é uma questão referente à

mediação religiosa, que toca diretamente a Porfírio e sua busca por determinar um caminho de

autoridade, para traçar um caminho de redenção para as massas inaptas ao uso da razão.

Finalmente, há que se esclarecer que, se houve aqui insistência na questão da

influência do platonismo no pensamento agostiniano, foi no sentido de assegurar,

principalmente, duas conclusões fundamentais para situar o que seguirá nos capítulos

seguintes. Considera-se que, tanto a experiência pessoal de Agostinho quanto seu pensamento

são inquestionavelmente cristãos. E, contudo, defende-se que tal influência platônica é

legítima e funcional. Não se deve esquecer a simplicidade e a transcendência da mensagem

primitiva do cristianismo: a revelação bíblica. O texto sagrado não é autoexplicativo, não

produz metalinguagem, muito menos tem sentido óbvio. Quando a palavra Verbo aparece no

Evangelho de S. João, por exemplo, não é possível ter certeza de tratar-se de uma imagem,

uma comparação, ou uma expressão completamente verdadeira da realidade divina.

Considerando o encontro de filosofia e teologia na obra agostiniana, esse é um dado que -

para o mal ou para o bem - prova que certas teses filosóficas foram úteis para uma melhor

articulação do discurso teológico e que, vive e versa, o dogma católico provocou progressos

efetivos nas análises filosóficas. (PAISSAC, 1951, p. 7).

56

3 DOUTRINA AGOSTINIANA DA IMAGO DEI

No capítulo anterior apresentou-se uma introdução à evolução intelectual de santo

Agostinho, a título de melhor localizar o objeto deste trabalho. Foi possível extrair da

biografia desse homem uma experiência íntima central em sua vida, expressa no termo “busca

pela sabedoria”. O cristianismo aparece como resposta a essa busca, dotando-a de novas

significações. Mas a conversão religiosa não marca o término dessa busca, pelo contrário,

acontece como um primeiro passo dado numa longa caminhada.

Não obstante, se a investigação visasse atingir uma perspectiva analítica mais

aprofundada sobre os passos percorridos por Agostinho e sobre a mirada de seu escopo, um

problema ficaria ainda por resolver, uma vez que a abordagem de suas relações com o

platonismo exigiria mais rigor do que foi possível oferecer aqui. Tal como já foi indicado

anteriormente, a conversão ao cristianismo levanta questões, e comumente não se mostra aos

especialistas contemporâneos da mesma forma com que foi apresentada por nosso autor em

suas Confissões.

O relato dos momentos que antecederam a conversão é deveras emocionante. O foco

incide sobre a sequência de fatos que favoreceram a aceitação da fé cristã. No desfecho, a

sobrenaturalidade de um sinal afasta as dúvidas: “Toma e lê” (Confissões, VII, 12, 29). O

fundamento da certeza age como elemento de transformação. E nesse contexto a própria

conversão é vista como sendo essencialmente a passagem da dúvida à certeza: certeza da

presença de Deus. Certeza sobre o caminho a seguir: “Meu espírito libertava-se agora das

preocupações torturantes da ambição e da avareza, dos pruridos da sarna das paixões. Só me

entretinha agora contigo” (Confissões, IX, 1,1).

O investigador contemporâneo não se satisfaz plenamente com esse relato. Pois não

basta dizer algo do tipo “agora sou cristão e pronto” e o assunto está encerrado. Agostinho

falou de uma certeza que o levara a abdicar das expectativas mundanas. Mas sem dar

elementos de prova sobre uma efetiva separação em relação ao platonismo. Daí que se faz

relevante compreender e manter presente a influência dessa filosofia em seu progresso

intelectual e espiritual.

Respeitados os devidos limites e o propósito desta investigação, essas questões foram

apontadas e desenvolvidas no capítulo anterior, deixando em aberto a indicação de aspectos

representativos de tal influência, tais como: o teor dos primeiros diálogos escritos por

Agostinho e as referências diretas a algo como uma conversão à vida filosófica; os

57

paralelismos com o plotinismo; o contexto do cristianismo de Milão e as relações com o

platonismo mantidas por seus representantes; e até mesmo certo modismo na ideia de

conversão à filosofia (por exemplo, o retiro de Mânlio Teodoro). De modo que, para seguir

em frente, aceita-se os aspectos gerais da presença do platonismo na obra de Agostinho, sem

ulteriores necessidades de fundamentação. Porém, essa aceitação serve apenas para a fluência

e objetividade do texto que segue, ou seja, para não haver necessidade de traçar constantes

oposições e paralelismos entre as duas doutrinas. De uma maneira ainda mais ampla, mantém-

se aqui o pressuposto de que o cristianismo se beneficiou do encontro com o platonismo,

fazendo deste um meio de “se autocompreender e expressar-se em nível racional”

(BEZERRA, 2006, p. 133).

Neste capítulo, apresenta-se a doutrina agostiniana da imago Dei em seu conteúdo e

desdobramentos. O objetivo é penetrar no universo conceitual de Agostinho e descobrir como,

a partir de uma nova concepção de homem e de mundo, um pensamento pôde iniciar um

percurso em que obra, investigação, experiência pessoal e fé religiosa se reúnem no

monumento de uma vida cristã.

3.1 Novo sentido na busca da sabedoria

O marco cronológico situa-se entre os anos de 385 e 386, período em que Agostinho

decidiu frequentar os sermões do bispo Ambrósio. Descobriu uma maneira diferente e mais

profunda para interpretar o texto bíblico e, seguindo uma lenta aproximação ao cristianismo,

foi se purificando de um resistente materialismo intelectual. O texto das Confissões é claro em

atribuir ao famoso bispo o primeiro vislumbre de uma nova concepção de homem: “Logo

descobri também que teus filhos espirituais [...] não entendiam as palavras onde se diz que ‘o

homem foi criado por ti à tua imagem’ no sentido de te acreditarem e julgarem encerrado na

forma de corpo humano” (Confissões, VI, 3, 4).

Esse curto relato não permite que se aprofunde o assunto nem mesmo que se interprete

como teria Agostinho recebido essa nova doutrina. Mas é suficiente para que se verifique o

fato de que a aproximação ao cristianismo implicava já de partida uma transformação em suas

concepções de homem e de mundo. Ou seja, deve-se considerar que, parte das esperanças e do

ímpeto intelectual que precederam a conversão e o primeiro retiro em Cassicíaco, consistiu

em acreditar-se feito à imagem e semelhança de Deus. De quais esperanças? Será

58

fundamental responder a essa questão. Para isso segue uma análise sobre as primeiras e mais

importantes diretrizes de pensamento abertas por sua aproximação ao cristianismo. Com a

ressalva de que, aqui, essas diretrizes já são apresentadas plenamente desenvolvidas em

relação à totalidade da obra, o que implica a não restrição da abordagem somente aos

primeiros textos publicados pelo autor.

Na conversão ao cristianismo, a trajetória do jovem que iniciara sua busca a partir de

uma leitura em Cícero encontrou seu termo, não como ponto final, mas como correção de

direcionamento. Trata-se de uma transformação de base, essencial, que possibilitou o

surgimento da “valoração correta das realidades da vida pela conversão à sabedoria”

(GALVÃO, 2009, p.54).

Percebe-se nesse sentido que a identificação entre filosofia e religião cristã foi

fundamental para o Agostinho. Desenvolveu-se até a identificação máxima da verdadeira

religião com a verdadeira sabedoria, para aí perder parte de sua importância, com o preceito

“tudo o que reconheceres como verdadeiro, conservar e atribuir à Igreja católica” (A

verdadeira religião, I, X, 20). Com o passar dos anos e com a maturação na vida eclesiástica,

é fato que essa identificação perde ainda mais espaço em sua obra, assim como deixou de

nomear sua experiência pessoal a partir de termos como filosofia e vida filosófica. Mas, para

o escritor de Cassicíaco, não poderia haver nada mais importante, pois essa identificação agiu

como um elo entre suas experiências precedentes e o inicio da vida cristã. Então, em uma

década, com a fermentação desse substrato rico, surgiria o bispo maduro das Confissões, porta

voz de uma teologia promissora, convincente e sensata.

De toda forma a conversão é a partida desse processo. Tudo o que Agostinho

escreveu, desde o inicio de sua carreira como escritor, tem imenso valor, com a garantia de

que já se tratavam de progressões no verdadeiro caminho. Sua autodefinição, com base em

uma de suas cartas, é a de alguém que se esforça por pertencer ao número daqueles que

escrevem progredindo e progridem escrevendo. E, por isso, é preciso focar no que foi uma

transformação de base operada no modo de valoração das realidades. E fazer isso como quem

busca responder sobre a base de construção de determinado edifício. Nesse sentido,

considera-se verdadeira a seguinte afirmação:

Será pela purificação do seu espírito através de uma fé esclarecida e de uma verdadeira sabedoria humana, que Agostinho chegará à percepção de que só em Deus se encontra a luz da verdade cujo perfeito conhecimento só é possível mediante a fé em Jesus Cristo (GALVÃO, 2009, p.55).

59

Não se trata mais simplesmente de filosofar, a introdução da autoridade da fé como

continente e, simultaneamente, objeto do pensar, é garantia de que Agostinho não poderia

mais retroceder ao marco da filosofia (o que hoje nos habilita a classificá-lo como filósofo

cristão). Sem que isso implique num ocaso da razão. A relação entre razão e fé tornou-se mais

rica e complexa do que a imposição de realidades justapostas e ou concorrentes. Relação que

também não se limitou a encontrar um termo médio entre os extremos. A riqueza da solução

agostiniana é encontrada na reformulação do sentido desses termos, “reelaborando os

conceitos de fé e razão, de modo que seja dissolvida a oposição pressuposta por uns e outros”

(NOVAES FILHO, 2007, p. 94).

3.1.1 A unidade razão e fé

Não é de se espantar que o problema da relação entre esses dois termos ocupe longa e

recorrentemente o pensamento de Agostinho. Como defender a supremacia da verdadeira

religião, incluindo nela a verdadeira sabedoria e a verdadeira filosofia, sem cair no erro de ser

acusado pela defesa de uma fé cega? Suas reflexões foram sempre confiantes, provavelmente

por, conscientemente, darem seguimento à tradição bíblica, por exemplo, tendo Isaías 7, 9

como paradigma: “Se não crerdes, não entendereis”.

As palavras do Papa João Paulo II, tratando abertamente da cristianização do

platonismo, esclarecem a dimensão enorme dessa problemática no pensamento agostiniano. O

bispo de Hipona viveu num mundo em transição, e foi testemunha de uma confluência de

tradições, principalmente do encontro do cristianismo com a filosofia grega. No contexto

desse encontro, por um lado, os cristãos foram chamados a dar a sua razão ao mundo, ou seja,

a justificar racionalmente sua fé, mas, por outro lado, se beneficiaram por encontrar ali

elementos enriquecedores para sua teologia. Segundo a suprema autoridade eclesiástica, “o

bispo de Hipona conseguiu elaborar a primeira grande síntese do pensamento filosófico e

teológico, nela confluindo elementos do pensamento grego e latino” (JOÃO PAULO II, 1998,

p. 44).

Os esclarecimentos prestados na Carta Encíclica Fides et Ratio são muito úteis, deles

é possível retornar sobre Agostinho com maior compreensão. A começar por reconhecer que,

para além do livro de Isaías o “caráter peculiar do texto bíblico reside na convicção de que

existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão e o da fé” (JOÃO

60

PAULO II, 1998, p. 23). Ambas se unem numa visão mais completa sobre o mundo e a

história, em que o olhar aperfeiçoado pela fé percebe no curso dos acontecimentos a presença

ativa da divina Providência.

O primeiro pressuposto expresso nessa consideração sobre o texto bíblico é o de que a

razão humana é limitada para transcender-se por si mesma. Apregoa-se aí a ideia de que o

homem não tem capacidade para conhecer-se satisfatoriamente, ou conhecer o mundo e Deus,

mantendo-se fechado em sua própria racionalidade. O sumo pontífice indica que dessa

constatação já se pode extrair algumas regras para a razão:

A primeira regra é ter em conta que o conhecimento do homem é um caminho que não permite descanso; a segunda nasce da consciência de que não se pode percorrer tal caminho com o orgulho de quem pensa que tudo seja fruto de uma conquista pessoal; a terceira regra funda-se no ‘temor de Deus’, de quem a razão deve reconhecer tanto a transcendência soberana como o amor solícito no governo do mundo (JOÃO PAULO II, 1998, p. 24).

Compreende-se assim a necessidade de crer para compreender, o credo ut intellegam.

Todavia, existe outro lado do problema, que também vai de encontro às profundas reflexões

de Agostinho, e que permite uma inversão desses termos. Há que se avaliar tanto aquilo que

se usa da razão para que se chegue a crer, como a constituição mesma da postura investigativa

do homem no mundo.

O papa João Paulo II se vale de santo Agostinho, para lembrar que há no ser humano

algo como uma aversão ao engano - que talvez seja o mesmo que dizer que há um desejo de

verdade. Ninguém deseja ser enganado ou se enganar. Do que se conclui imediatamente que

para crer em alguma coisa, faz-se necessário algum entendimento do conteúdo da crença.

Mesmo que venha a ser aprofundado posteriormente, é preciso compreender as palavras lidas

ou escutadas para crê-las. Mas como não se compreende ainda a totalidade do que é crido,

senão já não seria crença e sim saber, entra em jogo a noção de autoridade, pois a crença é um

conhecimento que se afirma no outro. Esse conhecimento prévio funda a fé, e pode ser

classificado como um tipo de saber: “apresenta-se como uma forma imperfeita de

conhecimento, que precisa se aperfeiçoar” e “que inclui a relação interpessoal [...] a sua

capacidade mais radical de confiar noutras pessoas” (JOÃO PAULO II, 1998, p. 36).

Ainda nessa perspectiva da inversão do credo ut intellegam, é possível conceber outro

sentido para a consideração do homem como um ser que por natureza busca a verdade. O

pensamento do sumo pontífice novamente parece manter estreita ligação com a originalidade

dos postulados agostinianos. Trata-se de reconhecer a capacidade investigativa constitutiva do

61

ser humano, capaz de produzir as questões últimas sobre a realidade. Em outros termos, trata-

se de afirmar a religiosidade e a filosofia como inerentes à racionalidade. Nessa perspectiva,

entende-se que homem acaba por desembocar no absoluto, simplesmente porque não pode

evitar a pergunta sobre o sentido último da experiência de si e do mundo. De modo

semelhante ao De Trinitate, onde o homem é denominado capax Dei, a criatura capaz de

Deus, para simplificar basta dizer que ele “pode encontrar e reconhecer tal verdade. Sendo

esta vital e essencial para sua existência” (JOÃO PAULO II, 1998, p. 37).

O uso do termo “religiosidade” aparece nesse contexto. O termo serve para definir

essa dimensão da existência humana na qual o sujeito chega ao questionamento e busca da

resposta última ao porquê de tudo. Para João Paulo II, essa é a expressão suprema da natureza

humana, por ser o ponto mais elevado de sua racionalidade.

Aqui, retornando sobre Agostinho, descobre-se que as proposições do papa expressam

completo acordo com sua doutrina. Razão e fé caminham juntas. Basta volver aos primeiros

escritos de Cassicíaco para encontrar justamente essa solução, caríssima ao jovem cristão, que

buscava abraçar a vida cristã sem abandonar os sonhos do filósofo.

Necessariamente somos levados a aprender de dupla maneira: pela autoridade e pela razão. Em função do tempo a autoridade tem prioridade, mas em função da própria coisa a prioridade está com a razão [...] somente a autoridade abre a porta [...] Quem entra por esta porta sem nenhuma dúvida segue os preceitos de vida real por meio dos quais [...] finalmente aprenderá que as mesmas coisas que seguiu sem compreendê-las com a razão, estão dotadas de muita razão; aprenderá o que é a própria razão [...] aprenderá o que é o entendimento no qual estão todas as coisas ou, antes, ele é todas as coisas (A ordem, II, IX, 26).

Unida à reflexão filosófica, a fé também se torna teologia, somando mais um

significado para a ideia de fé em busca de compreensão: “a fé em busca de um entendimento

do que deve ser a natureza de Deus” (MATTHEWS, 2007, p. 143). Mas tal desenvolvimento

não assume o sentido correto senão do ponto de vista de uma economia da salvação,

“economia divina, na qual vive a humanidade desde o início da Criação [...] ordem

estritamente sobrenatural da Elevação, Queda e Redenção” (PRZYWARA, 1949, p. 130).

A seguir a linha de pensamento de Agostinho, descobre-se que há algo predeterminado

no mistério da fé, algo que deve ser entendido a partir dessa economia divina da salvação. Sua

doutrina da imago Dei, incluindo a restauração da imagem e semelhança de Deus no homem,

depende dessa economia. Mais adiante, por essa economia reservar ao homem um itinerário

rumo a um estado superior de existência, ver-se-á que o progresso no caminho que se abre

62

pela fé implicará numa “unidade formada por conhecimento e amor” (PRZYWARA, 1949,

129).

Por enquanto, como o papel da fé é o de purificar a razão, é importante aprofundar

primeiro na natureza da relação entre essas instâncias a partir da descrição de seu mecanismo

de ação. A purificação ocorre por dois meios. Pelo aperfeiçoamento da razão, no sentido de

atraí-la das coisas visíveis às invisíveis, e dos bens temporais aos eternos. E pelo enxerto da

esperança, que tem o efeito de impulsionar a razão a transcender seus próprios limites, de

modo a não desacreditar daquilo que ainda lhe é vetado.

No primeiro meio de ação, a fé possibilita primordialmente aquisição de

autoconhecimento: entenda-se humildade. Vislumbra-se o fato de que o homem criado à

imagem de Deus deformou-se, caiu, perdeu sua pureza racional, porque tal pureza só era

possível na dependência a um principio superior. O homem buscou autonomia e ficou cego,

nessa “desobediência original [...] causando à razão traumas sérios que haveriam de dificultar-

lhe, daí em diante, o caminho para a verdade plena” (JOAO PAULO II, 1998, p. 27). Em

síntese, o orgulho e a concupiscência são a causa dessa cegueira, na qual o homem só vê

multiplicidade e temporalidade.

O primeiro passo deve ser o reconhecimento dessa condição decaída. Inicia-se uma

transmutação do desejo. A fé indica à razão a significação correta da experiência sensível que

lhe serve: “há um significado ainda invisível daquilo que é visível, e é preciso procurá-lo”

(NOVAES FILHO, 2007, 109). Certa vez a Razão perguntou a Agostinho: já vencestes a

libido? O ponto essencial é o afastamento do desejo das coisas sensíveis, tal como segue na

metáfora: “devemos evitar inteiramente as coisas sensíveis e precaver-nos muito, enquanto

vivemos neste corpo, para que nossas asas não sejam retidas pelo visgo dessas mesmas

coisas” (Solilóquios, I, XIV, 24). Para que se entenda melhor o sentido da oposição entre

visível e invisível, inclui-se outro par de termos, donde o caminho é mormente inaugurado.

Essa oposição, que indica a noção de progresso, se refere à visível-temporal e invisível-

eterno: “Passar pois do temporal ao eterno concerne à purificação da alma, à transformação de

sua capacidade” (NOVAES FILHO, 2007, p. 111).

A razão decaída recebe novos impulsos, justamente porque é atingida em sua

capacidade de valorar as realidades, ou seja, porque novos horizontes são abertos aos seus

olhos. Nesse nível, a fé passa a atuar de modo intimamente associado à esperança. A fé é

temporal, e com os termos nomeados - invisível e eterno - induz a razão a uma relação

lançada ao futuro. A esperança é algo que articula no presente as ideias de caminho, progresso

63

e fim. Desses três termos somente um é percebido plenamente, o progresso. O caminho é

sempre visto em parte e, o fim, esperado.

Agostinho tratou disso em suas primeiras obras, o que reitera a ideia de que, para ele,

esses eram considerados os primeiros passos no caminho. Cada passo integra a preparação

para a visão. A partida do preparo consiste na aquisição da fé, da esperança e do amor em

relação àquilo que se busca, para assim, primeiramente, se afastar do desejo das coisas

mortais. Crer que verá; ter a esperança de que pela visão alcançará a sanidade, e amar essa

sanidade para que não queira mais se satisfazer com as trevas. Vê-se que, desde o início, lhe

parecia claro que “quanto mais aumenta a esperança de ver aquela beleza [...] tanto mais se

convertem a ela todo o meu amor e deleite” (Solilóquios, I, X, 17).

Neste ponto desta pesquisa, é legitimo dar uma breve pausa para perguntar: quantos

dos bilhões de homens que vieram à vida no decurso da História têm suas vidas

minuciosamente estudadas após mais de mil e quinhentos anos do fim de suas existências? O

número de zeros necessários para uma resposta estatística a tal questão fala por si mesmo.

Aurélio Agostinho foi extraordinário. Por diversas razões e, dentre elas, a sua flexibilidade e

rigor para consigo mesmo. O autor de Confissões e Retratações esteve sempre disposto a se

interrogar, a se corrigir e aprimorar. No caso do tema da relação entre razão e fé isso não foi

diferente. Há ainda um avanço em seu modo de situar o problema, que deve ser assinalado.

Falou-se acima de fé, esperança e amor (caridade). O terceiro desses termos, que

recebeu crescente ênfase do decorrer de sua vida, até se tornar a essência de tudo o que se

refere à vida filosófica e religiosa, merece atenção especial e será retomado ulteriormente.

Quanto ao tratamento do atual problema, deve-se notar que a ênfase na caridade promoveu

um progresso, um passo acima.

O que possibilitou a conversão de Agostinho e seu afastamento do racionalismo cético

fora a progressiva assunção da unidade fé e razão. Cinco anos após a conversão, o livro A

Utilidade de crer foi escrito, fechando as arestas de sua primeira posição frente a essa

questão. Na verdade, a solução assumida ali já aparecia nos escritos de Cassicíaco, para

jamais ser abandonada, mesmo quando a maturidade do filósofo religioso veio a impor novas

prioridades. Em um dos pilares, o argumento se sustenta sobre a afirmação da racionalidade

do ato de crer. Nosso autor admitiu a crença como uma necessidade universal do mundo

humano. Para ele, certamente tal racionalidade encontra exemplos justificáveis em qualquer

das instâncias da vida humana, inclusive a vida familiar, tal como no fato de que ninguém tem

provas sobre sua real origem e filiação. Na outra coluna de sustentação, está o que se refere à

64

primazia da autoridade: trata-se de elevar a esperança ao estatuto de impulso transcendente

para a razão.

Contudo, se sua primeira postura fora essencialmente ativa, fundada pelo desejo de

chegar ao conhecimento de Deus, diversamente, com a ênfase na caridade, a maturidade lhe

impôs mais clareza em seu propósito. A racionalidade da fé acabou por ceder espaço à atitude

contemplativa e ao reconhecimento da inefabilidade do mistério divino. Em Agostinho, fé e

razão se uniram primeiramente no projeto de entender Deus, entretanto, caminharam para o

propósito de se unir a Ele, numa atitude “que conduz para a experiência de Deus” (FINCIAS,

2003, p. 9). Pode-se enunciar uma síntese desse novo trajeto a partir da indicação de três

etapas: “O intelecto desempenha o papel de preparar para a fé. Em seguida a fé esclarece e

ilumina a inteligência humana, culminando esse processo no amor” (SILVA, 2003, p. 340).

Pela presente análise realizada sobre a problemática da relação razão e fé, descortina-

se aqui seu sentido mais amplo. Não se trata de uma questão meramente teórica e parcial. Pelo

contrário, assim como Agostinho visou a si mesmo, parece também que seus argumentos

visaram provar que todo homem deve se deparar com esses problemas no caminho de seu

progresso espiritual. Tal proposição pode ir de encontro à beleza do pensamento que descobre

que “fé e razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para

a contemplação da verdade” (JOÃO PAULO II, 1998, p. 5). De modo que a síntese do trajeto

indicada acima também pode ser entendida como um processo em que “a progressiva

iluminação [...] se une à visão de unidade com todas as coisas, em Deus” (FINCIAS, 1989, p.

145). No pensamento de nosso autor, essa Unidade é realizada pela Caridade.

Em De Ordine foram estabelecidas duas vias para o aprendizado, autoridade e razão.

No entanto, a apreensão do processo como um todo demonstra que uma coisa é aprender,

outra é caminhar: caminha-se pelo amor. Agostinho defendeu que cada pessoa é o que ama,

pois, para ele, o amor é o peso da alma: “Meu peso é o amor; por ele sou levado onde sou

levado” (Confissões, XIII, 9, 10). Existe íntima relação entre aprender e caminhar, pois, o

segundo é finalidade do primeiro. Em outras palavras: “o grau de desejo da vontade para o

bem estará em proporção à medida de conhecimento que do bem se possui, ou ao maior

deleite que proporcione sua posse” (MORIONES, 1988, p. 265). A partir do quê, conclui-se

ser evidente a função de arremate que cumpre o amor em relação ao tema razão e fé.

65

3.2 Interioridade e transcendência

Antes de dar o tratamento específico à nova concepção de homem abraçada por

Agostinho, iniciou-se acima um trabalho de caracterização do percurso aberto a partir de seu

encontro com o cristianismo, na tentativa de salientar as principais diretrizes de pensamento

envolvidas com o início de sua caminhada. Até aqui já se falou do novo sentido da busca pela

sabedoria e da abertura para uma nova perspectiva metodológica e epistêmica na unidade fé e

razão. E, como foram abordadas as noções sobre o aprender e o caminhar, agora é preciso

discorrer sobre o solo onde é traçado o caminho. A fé indica o caminho, a razão busca

conhecimento, o amor caminha, mas, é na perspectiva da interioridade que tudo isso toma a

correta significação.

“Instigado por esses escritos a retornar a mim mesmo, entrei no íntimo do meu

coração sob tua guia” (Confissões, VII, 10, 16). Com essa afirmação o autor informou que o

despertar para a vida espiritual interior nascera do contato com o platonismo. Mas “sob tua

guia”, pois buscava reconhecer os sinais da graça divina determinando seus passos. A meta

não lhe parecia ser o platonismo, e sim o despertar para a interioridade como uma etapa

necessária e decisiva em seu percurso.

A parte da profundidade e qualidade de sua experiência interior que logrou transmitir

em suas obras pode ser tomada como um de seus maiores legados, no sentido de que outros

homens puderam se ancorar nele ou por ele serem financiados em suas excursões no espírito.

Pode-se afirmar que o gênio de quem tratamos elaborou uma metafísica da interioridade que

atua “como um ‘arquétipo’ [...] de cuja participação nasce e caminha a dialética concreta do

espírito do Ocidente” (VAZ, 2001, p.78).

A concepção de homem que se investiga neste trabalho baseia-se na afirmação do ser

criado à imagem e semelhança de Deus. Existem diversos desdobramentos necessários para

realizar uma explicação satisfatória desses conceitos, todavia, um dos mais relevantes situa-se

no âmago da metafísica da interioridade agostiniana, e assim é enunciado: a verdade habita no

interior do homem. (A verdadeira religião, XXXIX, 72).

Para Agostinho, três são as principais conquistas que o retorno ao interior de si mesmo

oferece: o conhecimento de si; o conhecimento de Deus; as provas da existência de Deus.

Para evitar erros de interpretação em um tema tão importante, que jamais sejam confundidas

vida interior com fuga do mundo ou alienação; assim como também não há qualquer relação

66

com introjeção/projeção no sentido psicológico. Pelo contrário, da perspectiva aqui

considerada “as relações humanas se tornam mais autênticas” (ANDRÉS, 1990, p. 398).

3.2.1 O conhecimento de Deus e a prova de Sua existência

O fato capital que determina o estudo da interioridade agostiniana é a orientação à

transcendência. A conversão do ponto de vista da verdade interior “é ainda, na unidade de um

mesmo movimento, conversão ao superior” (VAZ, 2001, p. 79). E isso só é possível porque

pressupõe um Deus que “é ao mesmo tempo imanente e transcendente ao homem”

(PEGUEROLES, 1972, p. 58), Aquele que é definido por Agostinho como interior intimo

meo et superior summo meo: “mais dentro de mim que a minha parte mais íntima. E eras

superior a tudo o que eu tinha de mais elevado” (Confissões, III, 6, 11).

Basicamente isso resume o itinerário agostiniano: para dentro e para cima. Longe de se

perder em indeterminações espaço-temporais, a referência ao que está acima indica a

hierarquia entre Criador e criatura. Não o Criador em si, mas a identificação de sua Luz

imutável, a Verdade criadora. E apesar da absoluta transcendência dessa luz, em parte ela

pode ser conhecida. Assim, o conhecimento adquire um caráter específico sob a ótica da

interioridade. Se o conhecimento de Deus é equivalente ao conhecimento dessa Verdade

imutável, consequentemente existe um problema epistemológico referente ao objeto, ao

método e à especificidade desse tipo de conhecimento.

Mas há também uma distinção prévia a ser feita para se responder a tais questões,

tangente ao sujeito epistemológico. Agostinho deu seguimento à tradição paulina da

contraposição entre carne e espírito, e realizou uma divisão interna ao sujeito para distinguir

dois tipos de conhecimento, a saber, sensível e inteligível, que correspondem à cognição

própria de cada uma das instâncias nomeadas homem exterior e homem interior.

Quanto ao homem exterior, esse termo é usado para definir o conhecimento sensível, a

memória das experiências sensíveis, a imaginação, fantasia e o juízo primitivo

atração/repulsão.

Tudo o que temos na alma em comum com o animal dizemos com razão que pertence ao homem exterior [...] não é apenas definido pelo seu corpo, mas também por certa manifestação de vida que confere vigor a todas as articulações e sentidos corporais, instrumentos esses da percepção do mundo exterior. E quando as imagens

67

percebidas pelos sentidos e fixadas na memória são revistas mediante a recordação, elas também referem-se ao homem exterior (A Trindade, XII, 2, 2).

Mas, para que cumpra sua real função, a esse homem exterior é permitido o uso da

razão inferior, instância que no seu ápice constitui o que se chama ciência. Isso é importante

de ser ressaltado porque Agostinho não dividiu o homem em uma parte ruim e outra boa, não

se trata disso, já que o mal só pode advir do mau uso daquilo que em sua natureza fora criado

essencialmente bom. Ao visar essa bondade essencial, deu relevo a uma parte do ser humano

que é superior ao nível animal, mas que ainda não corresponde ao homem interior. Trata-se de

reconhecer que

essa parte de nosso ser que se ocupa da ação das coisas temporais e corporais e que não nos é comum com os animais, certamente relaciona-se com a razão [...] ela está entretanto como destinada ao trato com as coisas inferiores e apta a governá-las (A Trindade, XII, 2, 3).

O homem exterior efetivamente cumpre sua função quando é dirigido e julgado pelos

parâmetros do homem interior, servindo à ascensão deste. Por isso convém assim defini-lo:

“O homem exterior tem seu valor e complementa o interior, colaborando com suas tarefas

especificas a sua maneira, mas é uma ordem inferior” (DE LA NOI, 1981, p. 5). De maneira

que, se a noção de seu devido valor é obtida com o reconhecimento de sua funcionalidade, por

outro lado, tudo o que deverá ser esclarecido sobre a imago Dei, será referente ao homem

interior, aquele que é a imagem de Deus e tem como finalidade existencial ter sido criado

para Deus. Aproxima-se desse conceito a ideia de algo como “um centro de vida ou coração,

que impulsiona um circuito de atividades, transbordando ao exterior e uma espécie de

depósito espiritual onde sobrevive o que chega à consciência [...] nele estão a razão e a

vontade” (DE LA NOI, 1981, p. 12).

Desde que o valor de instrumento do homem exterior seja mantido, ainda que

implicitamente, o trecho seguinte pode sintetizar a relação do homem interior com sua própria

renovação.

Se pois, nós nos renovamos pela transformação espiritual, no interior de nossa mente, e é o homem novo o que se renova para o conhecimento de Deus segundo a imagem do Criador, não resta dúvida de que o homem foi criado à imagem de quem o criou, não segundo o corpo nem segundo alguma parte da alma, mas segundo a mente racional, onde pode residir o conhecimento de Deus (A Trindade, XII, 7, 12).

68

Fica claro que esse homem interior, imagem de Deus, só atua nas coisas temporais

através de seu julgamento sobre o homem exterior. Não é a ação a sua atividade própria, e sim

a contemplação das razões eternas. E isso explica a exortação de Agostinho à interioridade,

como meio de atingir a contemplação típica dessa razão superior. Pois no que concerne ao

conhecimento, é isso o que é buscado no interior: as razões inteligíveis e imutáveis do mundo

visível e temporal.

O objeto desse conhecimento é algo de difícil definição, que pode ser chamado de

ideias, razões, formas ou espécies, mas, ao mesmo tempo, é algo que Agostinho afirmou ter

sido conhecido por todos aqueles na História que puderam com justiça nomearem-se

filósofos. Ou seja, o bispo cristão desvencilhou-se do campo estrito do platonismo, negando

que a descoberta do inteligível fora exclusividade de Platão.

Duas características do cristianismo agostiniano são fundamentais: as teorias do

exemplarismo e da participação. A crença sobre a qual residem tais teorias estabelece que as

razões de todas as coisas existentes estão num ato de criação, estão “contidas na mente divina,

e na mente divina não pode existir coisa alguma que não seja eterno e imutável” (Oitenta e

três questões diversas, 46, 1). Isso significa que tudo o que existe participa de uma forma

arquetípica primordial, exemplar, eterna e imutável: as Ideias.

Mas acrescenta-se à crença principal uma segunda: a crença de que é possível

conhecer algo das ideias, ou seja, contemplá-las. Essa segunda crença é que realiza a ligação

entre o tema do conhecimento de Deus e o tema da interioridade, pois a razão superior é

considerada como o olho interior e inteligível da alma racional. Para melhor compreender

isso, algumas distinções de base devem ser consideradas.

Quanto à alma, há que negar que possa contemplar as ideias, a não ser a alma racional, essa parte de seu ser pela qual se excele, isto é, pela mente e razão, que é como seu rosto, ou seu olho interior e inteligível. Ademais, não toda e qualquer alma, mesmo que racional, senão a que for santa e pura (Oitenta e três questões diversas, 46, 2).

Que cada criatura exista por participação em seu exemplar, isso é ditado pelo

exemplarismo, no entanto, além disso, chegar à contemplação das verdades inteligíveis já é

uma forma superior de participação. O conhecimento é descoberto como algo no qual a parte

superior da alma tem sua existência; parte essa que precisa ser iluminada para como que

relembrar o que já sabia.

A separação de sujeito e objeto perde sua nitidez. A mente se recorda do

conhecimento. Não porque o tenha apreendido em existência anterior, mas por haver certa

69

equivalência entre o que é sua parte superior e o que é o campo da verdade. Essa é a

mensagem de Agostinho no diálogo O mestre: o desvelamento do mestre interior, sobre o

pressuposto de que o intelecto situa-se em Deus. (Solilóquios, II, III, 3). Ou ainda, seguindo

um texto posterior para clarificar o conceito, pressuposto de que a “alma humana está em

união com os exemplares divinos, dos quais ela depende” (O livre arbítrio, III, II, 5, 13).

O questionamento de base que impõe a noção de mestre interior a Agostinho, no

referido diálogo, trata da natureza da relação entre mestre e discípulo e da relação entre a

palavra e o ensino. Uma análise séria desses problemas deve provar, a princípio, que não há

uma correspondência imediata entre palavra e pensamento, de modo que o ensino pudesse ser

entendido como o ato de introduzir ideias em outrem pela via da linguagem. De acordo com o

que nosso autor propõe, é preciso reconhecer que em “nenhum caso, o professor teria feito

penetrar no espírito de seu aluno qualquer ideia que ali não se encontrasse ou cujos elementos

componentes ali já não se encontrassem” (GILSON, 2007, p. 144). Ou seja, para ele, todo

conhecimento ocorre dentro e a partir de dentro. Quem ensina é Cristo, o mestre interior, mas,

aquele que aprende é habitado por esse mestre que jamais esteve ausente: interior intimo meo

et superior summo meo. O que significa que da perspectiva da riqueza interior, a autoridade

da fé não ensina a verdade, somente estimula a busca, tal como se enuncia na crença de que

“o que haja nos céus no-lo ensinará aquele que interiormente nos admoesta com sinais por

intermédio dos homens para que, voltando para ele no interior, sejamos instruídos” (O mestre,

XIV, 46).

Para caracterizar o conhecimento das verdades inteligíveis é preciso distingui-lo de

outras formas de conhecimento. A distinção básica é entre conhecimentos sensíveis e

inteligíveis, mas é possível graduar detalhadamente a atividade cognoscitiva da mente

racional. Através dessa graduação traça-se um dos itinerários agostinianos a Deus. Uma boa

descrição da hierarquia das atividades da mente encontra-se na obra O livre arbítrio, inserida

no contexto de dar provas da existência de Deus. Prova essa que se apresenta justamente

quando resplandece nítida a natureza da Verdade.

A primeira pergunta poderia ser se a mente humana é mesmo capaz de chegar a

alguma verdade sobre as coisas. Agostinho lutou veemente contra o argumento dos céticos já

em Contra os acadêmicos, contudo, ali seus argumentos foram puramente lógicos. O interesse

e os argumentos agora em questão são diversos, e o fundamento da certeza é estabelecido na

irredutibilidade existencial do espírito como presença a si mesmo. Esse argumento, que a

seguir é colocado sinteticamente, foi repetido em outras obras, sempre que Agostinho

procurava ascender ou dar a prova de Deus:

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[...] para partirmos de uma verdade evidente, eu te perguntaria, primeiramente, se existes. Ou, talvez, temas ser vítima de engano ao responder a essa questão? Todavia, não te poderias enganar de modo algum, se não existisses (O livre arbítrio, II, I, 3, 7)

Vencido o primeiro desafio, donde já é legitimo sacar as três primeiras intuições do

espírito, a saber, que aquele que sabe que existe, necessariamente também vive e entende,

prossegue a argumentação. O primeiro nível de conhecimento advém dos sentidos. Cada um

dos cinco sentidos do corpo promove um determinado tipo de conhecimento sobre o objeto

adequado à sua atividade. É um conhecimento objetivo, irredutível, não permutável e não

reflexivo.

A esse nível de atividade anímica acrescenta-se outro, um sentido interior. Agostinho

buscou nomear com isso a atividade psíquica que reúne e reconhece a especificidade desses

sentidos, e julga as sensações pela polarização da experiência em atração e repulsão. Trata-se

da vida instintiva dos seres que sentem e se percebem como sujeitos da percepção, comum a

qualquer animal.

Para chegar a ser ciência, o conhecimento sensível passa pelo crivo de uma instância

superior: a razão. As três primeiras formas de conhecimento são: a sensação direta, o juízo de

acuidade da sensação (da não percepção até a percepção ótima), o juízo de qualidade

(agradável/desagradável). A razão tem a tarefa de ordenar cientificamente todas essas

experiências e, a partir delas, refinar-se até a percepção das realidades inteligíveis imutáveis.

Nas Confissões aparece a ideia de que existe a memória das noções que compõem as

ciências liberais, tais como a geometria, a dialética e a música, por exemplo. Todas essas

noções formam um tipo diferenciado de conhecimento, chamado racional, que ao mesmo

tempo em que não advém diretamente dos sentidos externos ou do sentido interior, tem o

poder julgá-los e governá-los. Sobre elas, diz que foram depositadas “na memória não suas

imagens, mas as próprias substâncias” (Confissões, X, 10, 17). São conhecimentos que têm

existência própria, tal como os números, por exemplo.

Essas verdades inteligíveis não são, obviamente, equivalentes à Verdade em si, mas

são imutáveis e universais, e nisso guardam certa semelhança ao Verbo gerado criador de

todas as coisas. Os números, por exemplo, não são conhecidos pela atividade dos sentidos.

Nosso santo buscou demonstrar que os números são como que intuídos a partir da intuição

originária da unidade. E, efetivamente, demonstrou ser impossível a percepção da unidade

pelos sentidos do corpo e, da mesma forma, a percepção da extensão da série infinita dos

71

números e suas possibilidades combinatórias. Para ele, a natureza dos números é conforme

uma lei imutável e universalmente acessível à racionalidade.

Na verdade, Agostinho jamais alcançou a plenitude do desenvolvimento dessa linha de

raciocínio. Chegara mesmo a se empenhar em um projeto de interligar todos os

conhecimentos encontrados nas ciências liberais na busca pelo conhecimento de Deus, porém,

abortou prematuramente a empresa, deixando apenas duas tentativas incipientes, uma ligada à

Dialética e, outra, à Música. A seguinte passagem de O livre arbítrio é bastante ilustrativa das

enormes barreiras que se erguem frente a quem siga por essas alturas:

[...] quando considero em mim mesmo a verdade imutável dos números e, por assim dizer, as moradas ou o santuário ou região sublime onde habitam [...] nesse caso, eu me sinto bem longe do mundo corpóreo. E se nessa região sublime descubro alguma realidade, na qual talvez me seja possível pensar, nada encontro que possa ser traduzido em palavras. Caio então no cansaço e volto aos objetos que nos cercam, a fim de conseguir me exprimir (O livre arbítrio, II, II, 11, 30).

No caso da música, na obra intitulada A música, a arte torna-se instrumento de

contemplação de Deus. Ao invés de ser tomada como meio para o deleite carnal, Agostinho

propôs a possibilidade de racionalizá-la, revelando seu caráter inteligível. A harmonia, o

ritmo, a métrica, foram lidas na perspectiva da participação da música na inteligibilidade do

número. O conjunto dessas proposições vem em defesa de

sua concepção da musica estar em harmonia com o amor dedicado a Deus, beleza terrena a caminho da Beleza Suprema e criadora. A música, assim elaborada, ascenderia a Deus e, presente Nele, liberta de toda forma corpórea, estabeleceria morada celeste (AMATO, 2007, p. 134).

Para concluir a explicação sobre a teoria do conhecimento racional de Deus, é preciso

seguir ainda a transposição do problema do campo da ordem e medida de todas as coisas para

o campo da sabedoria aplicada à vida dos homens, uma vez que santo Agostinho também

demonstrou a inteligibilidade das virtudes. Uma belíssima passagem bíblica ilustra a

argumentação: “Explorei, igualmente, meu próprio coração para conhecer, examinar e

escrutar a sabedoria e o número” (Eclo 7, 26).

A demonstração parte do dado universal de que todos desejam ser felizes e, associando

tal dado ao de que todos também desejam a verdade, de modo que a primeira não pode ser

conseguida sem a segunda, estabelece a universalidade do dever da busca pela sabedoria. Na

mesma linha de raciocínio, tomando o conceito de justiça, propõe a universalidade de

máximas como “subordinar as coisas menos boas às melhores; comparar entre si as

72

semelhantes; e dar a cada um o que lhe é devido” (O livre arbítrio, II, II, 10, 28). E outras,

que conduzem à inteligibilidade de certas normas de valoração: o íntegro melhor que o

corrompido; o eterno melhor que o temporal; o inviolado melhor que o sujeito à violação.

Todas essas regras são chamadas luminares das virtudes, consideradas verdadeiras e

imutáveis, devido ao fato de cada uma delas poder ser objeto comum de compreensão entre os

homens. Isso acontece porque tais regras não colocam em jogo formas básicas de

conhecimento, mas, mais especificamente, algumas estruturas básicas ligadas ao

funcionamento da razão: superioridade, inferioridade, igualdade e especificidade. É o que a

pergunta sugere: “poderia fazê-lo se não visse quais são as coisas inferiores a serem

subordinadas às superiores; e quais as iguais a serem postas no mesmo plano; e quais as

coisas particulares que devem ser devolvidas a cada um?” (O livre arbítrio, II, II, 10, 29).

Donde segue a conclusão:

Portanto, quanto verdadeiras e imutáveis são aquelas leis dos números, das quais, como dizias anteriormente, apresentam-se de modo imutável e universal a todos que as consideram; e tanto são igualmente verdadeiras e imutáveis as regras da sabedoria (O livre arbítrio, II, II, 10, 29).

O texto bíblico como sempre é inspirador: “ela atinge com força desde uma

extremidade à outra, e dispõe todas as coisas com suavidade” (Sb 8, 1). Ela é a Sabedoria. A

abordagem do tema da busca de Deus na interioridade culmina na própria prova da existência

de Deus, ou, talvez, melhor dizer que ambas estão implicadas desde o principio: “Eu te havia

prometido, se te lembras, de haver de provar que existe uma realidade muito mais sublime do

que nossa mente e nossa razão. Ei-la diante de ti: é a própria Verdade! Abraça-a, se o podes.

Que ela seja teu gozo” (O livre arbítrio, II, II, 12, 34). A prova da existência de Deus é a

prova da dependência da razão a um principio superior; nessa prova, a Sabedoria se impõe

àquele que busca a Deus, já que Ela não é senão a Verdade, Medida suprema de todas as

coisas.

3.2.2 O conhecimento de si

Em Solilóquios, santo Agostinho declarou o desejo de conhecer a Deus e a si mesmo,

resumindo sua busca. Duas vias unificadas no âmbito da interioridade. Há originalidade nesse

modo de expressar a busca espiritual, porquanto no seguimento desse caminho a elevação

73

espiritual deva integrar perfeição e autoconhecimento ao conhecimento e amor de Deus. O

autoconhecimento é engajado na tarefa da espiritualização, de modo a gerar uma crescente

conformidade com o divino, até a divinização ou deificação do homem. Assim, considerando

essas vicissitudes que afastam as interpretações socráticas, o especialista faz a leitura: “O

nosce teipsum é o principal mandato na ascética do cristianismo” (CAPÁNAGA, 1957, p.

213).

O autoconhecimento deve proporcionar respostas a três classes de questões, referentes:

à natureza do homem; suas limitações; suas potencialidades. Nessa linha de investigação, o

pesquisador encontra na obra de Agostinho tanto uma antropologia, como uma psicologia,

uma mística, uma teologia analógica – termos que servem a uma ampla compreensão da

doutrina da imago Dei e que serão retomados mais a frente.

Quanto à natureza do homem, ou de sua mente, o que a interiorização proporciona de

mais significativo é uma depuração ou separação de suas instâncias. O resultado dessa

depuração será justamente a divisão indicada anteriormente entre homem exterior e homem

interior.

“O desnudamento é o verdadeiro caminho da interioridade” (CAPÁNAGA, 1957, p.

215). Tudo aquilo que é o homem exterior, sua memória e conhecimento, sua sensibilidade, o

visgo dos afetos das experiências vividas a partir do corpo e da matéria, deve ser colocado em

segundo plano, para se chegar ao conhecimento da parte superior da mente, o homem interior.

A divisão agostiniana do homem revela neste a conjunção desordenada do animal ao

espiritual como fruto de sua queda e expulsão do paraíso – a base de sua antropologia.

Reconhecida tal divisão, o mérito do autoconhecimento é proporcionar uma escolha; a

escolha da parte melhor, a que deve governar. Nesse sentido o autoconhecimento é saber amar

aquilo que se deve amar no homem. Donde já se conclui que o conhecimento verdadeiro de si

constitui o fundamento do progresso na caridade, já que é eleição que contrapõe dois amores,

cada qual possuindo sua respectiva origem. E por proporcionar essa escolha, conhecimento de

si e de Deus acabam por se mostrar mais uma vez integrados, “na medida em que conhecer a

si é, necessariamente, conhecer o objeto do seu amor” (FERNANDES, 2007, p. 59).

Por outro lado, talvez até mais importante do que a descoberta da participação da

razão superior em Deus, saber-se criado à imagem de Deus significa a descoberta da queda e

o despertar da humildade. De outra maneira o homem jamais encontra a mediação do Cristo

crucificado. Na voz de E. Przywara é o próprio Agostinho quem dá o sinal de alerta: “que

orgulho pode curar-se, se com a humildade do Filho de Deus não se cura?” (PRZYWARA,

1949, p. 246).

74

A humildade agostiniana é rica de significações. Humildade é buscar na fé; é também

a conversão; é curvar-se a um longo trabalho de purificação; é reconhecer a sublime

transcendência da meta final. Quando se trata da humildade, mais do que em qualquer outro

lugar, é aí que se impõe o exemplo de Jesus, do Cristo Mediador, o Deus que se fez caminho.

A essência do pecado é a soberba e a desobediência: “Eis porque a Sabedoria, sendo a pátria,

fez-se também caminho para levar-nos a pátria” (A doutrina cristã, I, 11).

Diante do imenso poder do Verbo eternamente proferido, poder-se-ia pensar,

orgulhosamente, que a encarnação de tamanha majestade só teria único sentido: transmitir aos

homens seu Poder. E se, ao contrário, veio ensinar a humildade, veio para a crucificação, quão

grande não deve ser o valor dessa humildade. Isso Agostinho aprendeu e pregou. Com qual

espanto não se recebe a mensagem de que não “veio Jesus Cristo ensinar-nos a criar o mundo,

nem a ressuscitar os mortos, senão ensinar-nos a virtude da humildade” (MORIONES, 1988,

p. 201).

De acordo com o agostinólogo Francisco Moriones, em matéria de autoconhecimento,

humildade cristã significa “conhecimento do que somos e do que não somos” (MORIONES,

1988, p. 202). Não se trata de se rebaixar, ou de se ser pior do que se é, e sim, reconhecer com

precisão a dignidade do homem: “Se te mandas que sejas humilde, não se manda que te faças

besta. O que era Deus se fez homem; tu, homem, reconheça que és homem. Toda tua

humildade consiste em que te conheças” (Sobre o evangelho de são João, 25, 16). Daí que, se

Agostinho exortou o fiel a entrar em si mesmo para conhecer a si e a Deus, é também porque

interioridade e humildade foram para ele dois estandartes de tal exortação, devendo ser

compreendidos numa relação intrínseca e direta.

A humildade é filosófica e teológica. Isso porque, pelo lado filosófico, o homem que

se conhece deve se valer do argumento metafísico para se saber criatura, ou seja, reconhecer

sua completa dependência quanto à essência mesma de sua existência. Basta a pergunta

“Perante tão grandioso ‘É’, que se torna o homem” (Comentário aos Salmos, 101, II, 10)? Um

passo além e se depara com a grandiosidade de sua inteligência, onde se encontra a imagem

do Criador. Pois eis que aí é mais nítida a dependência, sendo a inteligência apenas um

reflexo participante da luz, iluminada pela simplicidade poderosa do Verbo criador. Resume o

agostinólogo: “Da condição ontológica de limitação e defectibilidade que é própria de toda

criatura brota a ciência da humildade, que ensina ao homem que ‘por si mesmo é nada e que

tudo o quanto é vem de Deus, e é de Deus’” (MORIONES, 1988, p. 204).

As razões teológicas da humildade são ao mesmo tempo consequência e confirmação

das razões filosóficas. O bispo de Hipona é também chamado de Doutor da graça, devido a

75

sua defesa da necessidade soteriológica da graça. Nesse caso, a palavra necessidade já diz

tudo: mais uma exortação à humildade. Falou-se alhures do trauma que a desobediência

original causara na pureza racional humana. Agora é possível entender melhor do que se trata.

A psicologia também advoga a favor da humildade, desde que se compreenda a fundo a

dialética do homem exterior e do homem interior. Existe um sentido psicológico na

proposição de que a natureza humana foi profundamente ferida, ou afetada, pelo pecado de

Adão. Não se entende o sentido da humildade, se não se considera que à “rebelião da alma

contra Deus seguiu a rebelião da carne contra o espírito. Duas chagas em particular, a da

ignorância e a da concupiscência, afligem gravemente todo o gênero humano” (MORIONES,

1988, p. 205).

Destarte, como já se disse que não é preciso rebaixar-se para ser humilde, entenda-se

que o segredo da humildade em Agostinho é a graça, ou seja, a atribuição de tudo o que há de

bom a Deus e a atribuição de todos os erros ao próprio homem. O sentido disso é louvar “a

Deus em ti, não a ti mesmo. Não pelo fato de seres o que és, mas porque ele te fez; não

porque tu podes algo, mas porque ele pode em ti e por ti” (Comentário aos Salmos, 144, 7).

Ele pode em ti e por ti. Saber-se criado à imagem de Deus é também abertura às

maiores potencialidades. Nesse terceiro aspecto, mais do que nos outros dois, o conhecimento

de que se trata constitui-se fundamentalmente na unidade fé e razão. Em seu interior, é dado

ao homem conhecer-se como um ser predestinado à felicidade no gozo da sabedoria.

Desde o principio de sua cristandade, santo Agostinho aprendeu a reconhecer em si,

em sua racionalidade, os sinais de que um caminho de elevação lhe prometia um futuro gozo

do Supremo Bem. Mas, como tal percepção foi adotada por ele a partir de um plano

soteriológico, estreitamente amarrado ao campo da fé revelada, seu modo de progredir no

caminho distinguiu-se significativamente da maneira dos filósofos; inclusive daqueles de

quem mais havia se aproximado, os platônicos. Especialistas em filosofia antiga - dentre eles

G. Reale - debruçados sobre o estudo comparativo das experiências filosóficas de Platão e

Agostinho puderam daí propor a legitimidade de uma filosofia cristã a partir da ideia do

estabelecimento de uma terceira navegação. Se a segunda navegação de que se trata é aquela

em que Platão desbrava o mundo inteligível por seu próprio esforço de elevação, a terceira é

aquela que reconhece a insuficiência da razão autônoma. Navegação a ser empreendida por

quem reconhecer que “a felicidade seja considerada um dom do próprio Deus” (MOREIRA

DA SILVA, 2005, p. 52).

Efetivamente, a metáfora da navegação tem uma função central no modo como o

diálogo A vida feliz introduz o conceito de felicidade em sua relação com a busca filosófica e

76

religiosa. A seguir o raciocínio desenvolvido ali, convém admitir que, por mais que existam

diversos tipos de navegantes, todavia, a realidade do navegar em direção a uma condição

diversa de existência é universal, esse é o dado fundamental; a felicidade, outra realidade,

além da temporalidade, da multiplicidade, da finitude, da impotência e da ignorância. E como

o pensamento de santo Agostinho desenvolveu-se inteiramente dentro de um plano

soteriológico e cristocêntrico, a operação da Providência divina manteve-se situada sempre no

primeiro plano da articulação, no que se refere ao conhecimento das potencialidades humanas.

Nessa perspectiva, se o destino do homem é visto como cumprindo um plano divino, a

compreensão desse plano deve supor uma navegação: uma busca, um esforço, um caminhar;

e, noutro extremo, deve supor a graça, uma determinação transcendente.

Na sequência do mesmo raciocínio sobre as orientações primordiais do

autoconhecimento, e da mesma maneira como dois polos de forças já foram estabelecidos, a

ruptura que precede o alcançar da meta supõe um corte temporal. De um lado trata-se da

ascese do espírito pelos passos que devem ser galgados nesta vida, de outro, fé e razão se

unem na expectativa da fruição de um gozo supremo: fruição que deve se dar no estado

superior de perfeição da imagem restaurada. Ao tratar do tema da restauração da imagem, o

bispo de Hipona sempre se valeu da autoridade do Apóstolo para estabelecer tal divisão: “No

presente vemos por um espelho e obscuramente; então veremos face a face” (1Cor 13, 12).

No presente, se existe já motivação interior para a busca, se algo leva o homem a

querer encontrar felicidade, ou verdade, sabedoria e, enfim, Deus, é porque é próprio do

homem ter uma inquietude existencial quanto ao sentido do seu ser. Esse dado a priori da

inquietude conduz à base da interpretação da presença divina operante: “Certo impulso

interior que nos convida a lembrar-nos de Deus, a sentir sede dele, sem nenhum fastio, jorra

em nós dessa mesma fonte da Verdade” (A vida feliz, IV, 35).

Por mais que tal impulso não possa conduzir o homem ao gozo final nesta vida,

Agostinho buscou sempre demonstrar os progressos reais acessíveis e necessários, pois “a

perfeita plenitude das almas, a qual torna a vida feliz, consiste em conhecer piedosa e

perfeitamente” (A vida feliz, IV, 35). Apontou três perguntas fundamentais e norteadoras de

todo o progresso filosófico, perguntas que podem ser usadas como chave de leitura para uma

descrição e uma avaliação do progresso espiritual de um homem. A primeira se dirige à

Providência, que determina o impulso inicial; a segunda trata de qual Verdade deve ser fruída;

a terceira estabelece o vinculo que deve unir o homem à Verdade.

As respostas às duas primeiras questões já podem ser supostas pelo que se disse acima.

Quanto à terceira, há ainda um fator importante a ser considerado. O santo que decidiu buscar

77

a Deus no interior, e que o fez por crer num propósito maior para inteligência humana,

também agiu confrontado com outro dado de fé apresentado à sua racionalidade: a exortação

ao governo de todas as criaturas, veiculada nas palavras reveladas. Isso significa que o

conhecimento das potencialidades interiores que aqui se procura explicitar em suas injunções

de base prevê que o “ser racional – se for puro de todo pecado, e submisso a Deus – domina

sobre todas as coisas a ele sujeitas” (A verdadeira religião, III, 23, 44).

Vistos por essa lente, ciência e sabedoria admitem significações específicas. A

começar pela distinção prioritária a ser realizada no que concerne à intencionalidade do ato.

Por diversas vezes em sua obra, e até mesmo como síntese de sua doutrina moral, santo

Agostinho firmou a posição de que, para cumprir a reta conduta, o homem deve distinguir

entre aquilo de que se deve utilizar para um propósito maior e aquilo que deve ser objeto

imediato de gozo. Todos os bens temporais são valorados a partir dessa concepção de

utilidade e, de maneira idêntica, todas as vicissitudes da experiência sensível. No sentido

oposto, a orientação ao gozo deve se inclinar ao eterno, em vista da finalidade absoluta que é

o gozo de Deus. Em suas palavras: “devemos gozar unicamente das coisas que são bens

imutáveis e eternos. Das outras coisas devemos usar para conseguir o gozo daquelas” (A

doutrina cristã, I, 22, 20). Nisso deve consistir a perfeição do homem que caminha, na

prática, no caminho desta vida, entre os santos que “pelo entendimento, só amam a verdade;

na ação, só amam a paz; no corpo, só a saúde” (A verdadeira religião, VI, 53, 103).

Em A Trindade, um texto tardio agostiniano resumiu com clareza aquilo que desde

sempre fora para o santo a distinção entre sabedoria e ciência: “A contemplação é atribuída à

sabedoria e a ação à ciência” (A Trindade, XII, 14, 22). O critério fundamental ergue-se entre

as noções de ação e contemplação. De modo que se nomeia ciência o que é próprio da ação e,

consequentemente, restrito ao campo do uso. E é por considerar a basilar importância do

correto uso dos bens temporais, tanto como meio de purificação como de progresso, que a

ciência adquire uma função insubstituível, pois, “sem a ciência, não se pode sequer adquirir as

virtudes pelas quais levamos uma vida reta e governamos de tal modo esta mísera existência”

(A Trindade, XII, 14, 21b).

O texto bíblico diz: “a piedade é sabedoria; e apartar-se do mal é ciência” (Jó 28, 28).

Também o Apóstolo distinguiu entre os termos: “a um, o Espírito dá a mensagem da

sabedoria; a outro, a palavra da ciência” (1Cor 12, 8). Agostinho parecia certo do sentido de

apartar-se do mal, tanto prático como moral, de modo que não há erro em reconhecer nele o

uso do termo ciência, ora se referindo à ciência da fé, ora às ciências liberais. No tanger da

sabedoria, sustentando a nota da piedade inspirada em Jó, o culto de Deus situa-se nos lindes

78

da temporalidade humana, admitindo significados equivalentes aos de temor e amor a Deus. E

ainda que tal concepção apareça com maior clareza nos escritos finais de sua vida, trata-se do

mesmo impulso que levou o navegante de Cassicíaco a lançar-se no filosofar na fé.

O temor é piedade e é o principio da verdadeira vida espiritual cristã. Não foi por outra

força que Agostinho lançou-se na busca interior. Descobriu sim o interior como sendo a

direção excelente para a busca e louvor de Deus, mas, para tamanha empresa lhe aprouve o

temor, como garantia de um desejo reto. Poderíamos propor um trajeto inspirado na

experiência agostiniana: “aos que perguntassem de onde chegaríamos à sabedoria, a partir da

inteligência; de onde chegaríamos à inteligência, do conselho; ao conselho, da fortaleza; à

fortaleza, da ciência; à ciência, da piedade; à piedade, pelo temor” (TONNA-BARTHET,

1995, p. 19).

Desse marco do temor se chega à compreensão do que há de mais importante nas

diretrizes assumidas pelo jovem pensador a partir de sua conversão ao cristianismo. Assim

como já se falou aqui sobre fé, esperança e potencialidades humanas, e também sobre

transformação no modo de valorar as realidades, agora é preciso elucidar toda essa tessitura

temática em torno da interioridade agostiniana com a definição da função do amor no

progresso espiritual. Pois, se há tanta ênfase no sentido existencial da conversão, no dramático

relato das Confissões, é porque antes de qualquer coisa houvera no interior daquele jovem

inquieto uma descoberta, ou seja, a consciência de que há “dois amores, o do mundo e o de

Deus” (TONNA-BARTHET, 1995, p. 50).

Sempre houve uma nota específica da experiência filosófico-religiosa agostiniana,

ligada às exigências de purificação e progresso na caridade. Quando se trata de pensar as

etapas da vida espiritual, daquilo que é possível ser alcançado nesta vida, as expectativas

recaem sobre o amor, porque é por ele que tanto as virtudes, como a inteligência e o governo

das criaturas tornam-se verdadeiros. O amor, este do qual foi escrito: “Quem conhece a

verdade conhece esta luz, e quem a conhece conhece a eternidade. O amor a conhece”

(Confissões, VII, 10, 16), ou melhor, o verdadeiro amor constitui o maior bem a ser alcançado

nesta vida, já que “ninguém pode ser feliz, sem possuir o que deseja e, por outro lado, não

basta aos que já possuem ter o ambicionado para serem felizes” (A vida feliz, II, 10). Isso

também é confirmado pela doutrina moral do uti e do frui apresentada acima, criando

embasamento para uma noção de progresso espiritual dependente de um correto

direcionamento do desejo.

O filosofar na fé agostiniano assume, finalmente, um caráter cristológico explícito e

preeminente. Isso porque é o exemplo de Jesus - o Cristo homem - que revela o sentido

79

profundo da interioridade. Esse exemplo é também anunciação de uma novidade, que consiste

“no cumprimento verdadeiro da lei” (ARENDT, 2009, p. 329). Quando santo Agostinho se

decidira por buscar a verdade no interior, ainda não conhecia bem esse exemplo, porém, com

o advento da fé cristã, instalou-se um movimento de buscar saber para amar: o que torna

presente um sentido teleológico na busca agostiniana pelo conhecimento, de cunho espiritual,

que não remete nem à pura teoria, nem à pura prática.

O livre arbítrio é a qualidade mais delicada e contraditória do homem criado à imagem

de Deus. Isso ocorre porque por ele o homem peca e se afasta de Deus e, também por ele, a

graça opera em seu retorno e unificação. Toda a complexidade da forma como Agostinho

compreendeu o progresso espiritual deriva do fato de que, para ele, o amor é como o peso da

alma, determinante de seu movimento e, em acréscimo, do fato de conceber o amor como

desejo, ou seja, ligado a um deleite: “Porque amar não é outra coisa que desejar uma coisa por

si mesma” (Oitenta e três questões diversas, 35, 1). Desejar uma coisa por si mesma equivale

ao desejo de fruição, contudo, na concepção agostiniana, a fruição não pode findar e recair no

estado de desejo, ou seja, não pode existir em função de um bem temporal; donde se conclui

que a principal conquista interior é uma eleição no campo do amor, cuja perfeição só pode

acontecer numa vida futura não determinada pela temporalidade.

“Regressando de um futuro absoluto, o homem pôs-se fora do mundo e ordenou-o.

Vivendo no mundo ele tem o amor ordenado, ama como se não estivesse no mundo mas como

se fosse o ordenador do mundo” (ARENDT, 1997, p. 44). Talvez essa frase expresse bem o

sentido da busca agostiniana, tema tão recorrente aos escritos desse mestre da espiritualidade,

que apresentou a vida humana como uma viagem de ascensão a Deus. E se conhecer a Deus

foi para ele amá-Lo, nada pode ser mais pertinente ao agostinianismo do que pensar no amor

como a mais excelente potencialidade do espírito humano.

Fez-se até aqui uma breve exposição das características gerais da experiência cristã de

santo Agostinho, caracterizada como uma busca filosófica e religiosa. Segue abaixo uma

investigação detalhada da antropologia agostiniana, de modo a esclarecer a concepção de

homem que fundamenta a crença na restauração da imagem de Deus na mente. Em seguida,

no próximo capítulo, são descritas as especificidades desse processo de restauração. Mas, na

verdade, considera-se tratar de três perspectivas da doutrina da imago Dei: primeiramente

uma perspectiva antropológica e, na sequência, as perspectivas mística e teológica.

80

3.3 Perspectiva antropológica

Uma das maneiras de caracterizar a antropologia agostiniana é partir da distinção de

duas grandes correntes que “influem na antropologia de santo Agostinho, como na da cultura

ocidental: a corrente bíblica e paulina do homem, imagem de Deus e ser caído na culpa, e a

corrente grega do homo rationalis” (CAPÁNAGA, 1957, p. 58). Porém, tal distinção tem

valor meramente didático, visto que a segunda dessas correntes encontra seu desenvolvimento

último dentro da primeira. Ou seja, o homem é concebido como imagem de Deus naquilo que

há de superior em sua racionalidade.

A distinção mais profícua é aquela que revela o caráter dinâmico dessa antropologia.

O homem não é apreendido em sua plenitude de significações senão a partir da noção de

processo. E, se santo Agostinho é conhecido por sua inquietude existencial, pela profunda

estranheza sobre si mesmo, e por ter tomado o homem por “enigma e grande milagre”

(CAPÁNAGA, 1957, p. 58), certamente é por ter-se elevado a essa dinâmica antropológica

fundamental. Quem é o homem? A resposta dessa pergunta percorre um itinerário histórico-

temporal em três momentos. O homem é Adão, criado no paraíso à imagem e semelhança de

Deus. O homem é herdeiro do erro de Adão, expulso do paraíso e mortal: imagem deformada.

Assim como é também a futura perfeição do homem renovado em Cristo.

3.3.1 Criado à imagem e semelhança

No que concerne à criação do homem, a doutrina agostiniana não comporta uma

redução dualista da realidade. Existe sim uma preeminência hierárquica do homem interior

sobre o homem exterior, contudo, admite-se que o homem foi integralmente criado à imagem

do Criador17. Assim como também se admite a restauração integral na ressurreição final, “em

que será renovado também o homem exterior” (TURRADO, 1971, p. 277).

O modo como Agostinho abordou direta e concisamente essa temática em duas das

questões de Oitenta e três questões diversas é exemplar. A começar por estabelecer que “se o

17 Aproveitamos os esforços de Ludger Hölscher (1986) para enfatizar a unidade do homem agostiniano. Em Agostinho, mesmo quando as relações entre o corpo e alma são tratadas de modo a sugerir uma separação, na verdade subentende-se o homem como “um todo que consiste nas duas realidades distintas das substâncias espiritual e corporal, mas que, ao mesmo tempo, constitui uma nova realidade tendo sua própria natureza única específica como um ser psicofísico” (HÖLSCHER, 1986, p. 215).

81

homem exterior é Adão e o interior é Cristo” (Oitenta e três questões diversas, 51, 1), há que

se admitir em ambos a imagem de Deus, ou seja, no homem integral. A distinção entre eles

mostra-se somente hierárquica, entre aquele que é o homem velho a ser superado, e aquele

que é o homem novo renovado interiormente em Cristo.

Não obstante haver uma importante diferença teológica entre os termos imagem e

vestígio de Deus, no que se refere à compreensão antropológica da concepção integral do

homem criado a imagem de Deus, em complemento, toda a criação deve ser incluída nessa

categoria. A base de tal afirmação é bíblica: Deus criou todas as coisas boas e, no conjunto,

muito boas. Seguindo esse raciocínio:

É certo que as realidades podem dizer-se semelhantes a Deus em muitos sentidos: umas criadas segundo a virtude e a sabedoria, porque Nele estão a virtude e a sabedoria; outras somente enquanto vivem, porque Ele vive soberana e originalmente; outras enquanto existem, porque Ele existe soberana e originalmente (Oitenta e três questões diversas, 51, 2).

Todas as criaturas possuem uma semelhança divina de menor grau, porém, somente o

homem existe, vive e entende, de maneira a caracterizar a imagem de Deus por excelência,

sem intermediários, porquanto as outras coisas possuam a imagem devido à ordem e beleza de

que participam. Pelo mesmo tipo de participação, o corpo humano também mostra alguma

semelhança – teologicamente nomeada vestígio. Na verdade, em maior grau, já que a postura

ereta é interpretada como um sinal que veicula um sentido de elevação espiritual. De maneira

que a mais alta semelhança dentre toda classe de corpos encontra-se no corpo humano por um

motivo ainda mais relevante: o corpo humano e o homem exterior guardam a possibilidade de

serem submetidos pela mente que os rege.

Se essa indeterminação do conceito de imagem serve a uma compreensão geral da

questão tratada, por outro lado, pode gerar um entendimento muito superficial e passível de

erros. Santo Agostinho concebeu uma definição mais precisa do conceito de imagem:

[...] se entende unanimemente que tenha sido criado à imagem de Deus esse espírito no qual está a inteligência da verdade; porque se adere à verdade sem criatura alguma intermediária. O restante do homem, querem que pareça feito à imagem, porque toda imagem certamente é semelhante, mas nem toda semelhança é também propriamente imagem, ainda que às vezes possa chamar-se abusivamente (Oitenta e três questões diversas, 51, 4).

Na questão de número setenta e quatro, em complemento ao que foi dito na passagem

acima, Agostinho realizou uma revisão de conceitos, definindo o sentido de três termos:

82

imagem, semelhança e igualdade. Essa distinção de conceitos tem valor egrégio para a

exegese da passagem bíblica que funda a doutrina da imago Dei (Gn 1, 26). R. Markus indica

- em “Imago” and “similitudo” in Augustine - que aí reside tanto um ponto de

desenvolvimento na obra do bispo de Hipona, como a originalidade de sua interpretação em

relação aos exegetas anteriores a ele18. Não significa que haja aí uma ruptura de pensamento,

mas somente uma maturação necessária para clarificar o conteúdo da doutrina.

As dificuldades que se apresentavam a Agostinho antes da introdução do terceiro

termo, a igualdade, eram referentes ao uso da correta terminologia. Num primeiro momento

houve dúvida quanto ao modo como o homem poderia ser considerado à imagem de Deus e,

nosso autor “cuidadosamente se abstém de falar sobre o homem como monumental imagem e

semelhança de Deus” (MARKUS, 1963, p. 132), preferindo o uso do termo para ao invés de

à imagem e semelhança de Deus. Mas tais dificuldades são compreensíveis, se for

considerado que ainda havia pouco discernimento sobre o tratamento da temática nos três

períodos de existência da raça humana: antes do pecado, depois do pecado e na ressurreição

final. E certamente é a partir desse discernimento que o presente trabalho deve analisar o

significado antropológico da afirmação do homem criado à imagem e semelhança de Deus.

O primeiro passo é a definição dos conceitos. Nosso santo situou da seguinte forma o

problema:

[...] onde se dá a imagem, em continuidade se dá a semelhança, e não necessariamente a igualdade; onde se dá a igualdade, em continuidade se dá a semelhança, e não necessariamente a imagem; onde se dá a semelhança, nem se dá em continuidade a imagem, nem necessariamente a igualdade (Oitenta e três questões diversas, 74)

Logo, quando o termo é imagem, fala-se de algo que é imagem de alguma coisa e,

nesse sentido, traz necessariamente uma semelhança que tem somente a possibilidade de

chegar à igualdade. Quando o termo é igualdade, a semelhança é necessária e perfeita,

contudo, não necessariamente a igualdade deve provir daquilo a que é igual, de modo a

constituir imagem. Já o termo semelhança possui o significado lógico de uma coisa que se

mostra semelhante à outra, podendo tanto ser imagem ou não, como ser semelhança perfeita

ou não.

18 Segundo H. Somers em, Image de Dieu: les sources de l’exégèsis augustiniennes, a santo Agostinho não caberia o mérito da originalidade, nem quanto a sua doutrina da imagem de Deus, nem quanto às exegeses dos Gênesis bíblico. Para esse estudioso, a principal contribuição do bispo de Hipona teria sido a síntese crítica das tradições precedentes. E, principalmente porque sua síntese efetivamente se erguera sobre vasta fonte de referências, essa contribuição prestada ainda hoje mostra seu caráter extraordinário.

83

O objetivo dessas digressões no léxico e na lógica é delimitar o sentido da imagem e

semelhança no homem, na medida em que o termo igualdade permite assinalar uma relação

no âmbito trinitário do Filho ao Pai. Somente o Filho é imagem, semelhança e igual ao Pai, ou

seja, por ser coeterno, “é lógico que seja não somente sua imagem, porque é Dele, e a

semelhança, porque é a imagem, senão também a igualdade, tanta que nem sequer se dá o

mínimo intervalo de tempo” (Oitenta e três questões diversas, 74).

Dessa forma, situada no limite de perfeição da semelhança, a introdução da ideia de

igualdade dava mais liberdade terminológica a Agostinho. A partir daí as dificuldades eram

superadas pela afirmação de que o homem “é também imagem de Deus, e consequentemente,

necessariamente, sua semelhança; mas naturalmente, uma semelhança não igual” (MARKUS,

1963, p. 135). O uso do termo para poderia situar-se lado a lado com à, devido ao fato de que

a ideia de semelhança servia para contextualizar o destino do homem numa escala ascensional

rumo à semelhança perfeita. Essa concepção vem em defesa da ideia de que a imagem de

Deus não foi perdida no pecado original, mas somente deformada, de modo que no progresso

espiritual o que “muda é o grau de semelhança entre a imagem e o original” (MARKUS,

1963, p. 142).

Qual foi então o estado original do homem em sua criação? A resposta a essa pergunta

deve seguir a interpretação agostiniana do Gênesis bíblico. Mais especificamente, interessa

sua exegese para Gn 1, 26: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. Em relação à

particularidade das palavras usadas na passagem, Agostinho voltou sua atenção para quatro

questões: a ausência da expressão “segundo sua espécie”; o uso do plural “façamos”; a

ausência da expressão “e assim se fez”; a ausência do comentário conclusivo “Deus viu que

era bom”.

Sem que haja necessidade de prolongar a discussão nesse sentido, sobre a questão da

espécie, basta a consideração de que o homem não fora feito “segundo sua espécie” “porque

estava sendo criado apenas um, do qual fora criada a mulher. Pois não há muitas espécies de

seres humanos, como os há de ervas, de arvores” (Comentário literal ao Gênesis, III, XII, 20)

etc. Não somente o gênero humano é único e exclusivo, mas também é único seu espírito.

O uso do plural sustenta o desenvolvimento teológico da doutrina da imagem de Deus,

que será realizada no capítulo seguinte deste trabalho. Refere-se à pluralidade de Pessoas da

Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Agostinho acreditou encontrar aí uma insinuação do

mistério do Deus uno e trino: “está dito em outras obras: Deus disse: ‘Faça-se’; e aqui: Deus

disse ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança’, ou seja, para insinuar, por assim

dizer, a pluralidade das pessoas” (Comentário literal ao Gênesis, III, XIX, 29).

84

Quanto à natureza da criatura humana, é na ausência da expressão “e assim se fez” e,

em seguida, “Deus fez”, que santo Agostinho encontrou as possibilidades de interpretação

mais profundas. A começar porque a continuação do texto bíblico contém a afirmação do

governo do homem sobre todos os seres criados, ou seja, afirmação de sua superioridade. E a

única forma de explicar essa superioridade seria a partir da inteligência. A parte intelectual do

homem é considerada como sendo da mesma natureza dos anjos, que compõem o céu, a

chamada criatura racional. Quando o texto bíblico diz “e assim se fez”, deve ser entendido

que a criatura racional tomou conhecimento daquilo que fora feito no Verbo divino. Quando

diz em sequência “Deus fez”, significa a criação propriamente dita, daquilo que

primeiramente fora feito no Verbo e que, em seguida, foi conhecido pela criatura racional. De

modo que daí se extrai uma interpretação coerente e conclusiva, pois não seria necessário

dizer “e assim se fez”, como se o homem criado fosse primeiramente conhecido pela criatura

racional, sendo ele da mesma natureza dessa criatura, ou seja, porque a natureza do homem,

no que concerne a ser imagem de Deus, “é também intelectual, como aquela luz e, por isso,

para ele ser feito é a mesma coisa que conhecer o Verbo de Deus, pelo qual foi feito”

(Comentário literal ao Gênesis, III, XX, 31). Ou ainda: “ele é também a verdadeira e própria

criatura racional e é perfeita pelo conhecimento” (Comentário literal ao Gênesis, III, XX, 32).

E se não está dito “Deus viu que era bom”, mas somente o superlativo muito bom

sobre o conjunto da criação, para Agostinho tratava-se de clara alusão à presciência divina

sobre a queda do homem. Na totalidade, o universo criado jamais perde sua beleza e bondade,

mesmo que algumas de suas partes se corrompam. Nisso também está incluído o pecado do

homem. Entretanto, pelo pecado, o homem perde sua bondade particular que, como ser

superior e prometido ao governo das criaturas, está determinada por sua relação ao todo. Por

isso, o santo incluiu em seu ensino o determinante de que, quanto ao ser humano, somente

“quando é bom com todos, conclui-se que é bom considerado em particular” (Comentário

literal ao Gênesis, III, XXIV, 37).

Assim sendo, de acordo com a exegese agostiniana, o estado original do homem na

criação é um, enquanto criado no Verbo e, o estado original do primeiro homem, outro,

enquanto efetivamente presente no mundo. Isso significa que as coisas não foram criadas ao

mesmo tempo concretamente, a não ser no conhecimento de Deus, onde “todas as coisas se

acham acabadas” (Comentário literal ao Gênesis, inacabado, VII). E. Gilson explica que para

entender como cada criatura vem a ter sua existência no tempo a partir de sua Ideia em Deus,

é preciso distinguir “dois tipos de criaturas: as que foram afixadas em sua forma definitiva

desde a obra de seis dias e aquelas que foram criadas apenas em germe [...] de modo que

85

ainda resta desenvolvê-las” (GILSON, 2007, p. 387). Dentre as coisas criadas em forma

definitiva encontra-se a alma do homem, criatura espiritual.

Porém, para que o homem viesse um dia a existir concretamente, foi preciso que desde

o principio já estivessem criadas as sementes de tudo o que se desenvolve no tempo. A

concepção de Agostinho é a de que “o cosmos está grávido de causas germinais” (A Trindade,

III, 9, 16). Esse é o modo como Deus governa “externamente” o mundo. Existem forças e

faculdades que regem o comportamento do universo, de modo que cada coisa criada venha a

se manifestar temporalmente no momento exato já previsto pela ciência divina.

A primeira maneira de compreender a imagem e semelhança é tomá-la no sentido do

que foi criado desde sempre de maneira definitiva. Nesse sentido, ela equivale à criatura

racional, ou seja, o homem é semelhança do Verbo, porque assim é a criatura racional. A

Semelhança do Pai é o Filho, e a criatura racional é criada pela semelhança e à semelhança;

quanto a essa criatura, “à sua semelhança somente a alma” (Comentário literal ao Gênesis,

inacabado, XV, 59).

Outra coisa é falar de Adão, o homem concreto formado de corpo, alma e espírito,

criado à imagem de Deus. A ele se aplica mais propriamente a função do termo imagem

enquanto imagem da Trindade – tema que será mais bem abordado na perspectiva teológica

das analogias trinitárias. Quanto à semelhança, a situação é de instabilidade, pois ela se dá em

graus que, pelo pecado, pode chegar até o estado de deformação da imagem.

Considerando a presciência divina, falar de Adão já é situar-se na economia da

salvação. O paraíso de Adão é ainda uma perfeição intermediária, da qual é possível cair na

mortalidade. Não que sua natureza intelectual não fosse perfeita, mas estava suscetível a uma

escolha. Foi por isso que Agostinho conceituou a instabilidade da existência adâmica em

relação ao modo de sua criação, situando desde o principio a deliberação operante da

providência divina que:

Criou-o, porém, de tal forma, que, se sujeito a seu Criador [...] lhe cumprisse piedosa e obedientemente os preceitos, passaria sem morrer, em companhia dos anjos, a gozar de imortalidade feliz e eterna, mas se, pelo contrario, usando soberba e desobedientemente do livre arbítrio, ofendesse o Senhor seu Deus, seria sujeito à morte e viveria bestialmente, escravizado pela libido e destinado depois a suplicio eterno (A cidade de Deus, XII, XXI).

Adão também pode ser considerado a infância da existência humana, a partir da qual

foi decidido o futuro dos homens: “todo homem, primeiramente, ao nascer e sair para a luz,

vive a infância, a primeira idade. Esta idade do mundo estende-se de Adão até Noé”

86

(Comentário literal ao Gênesis, inacabado, XXIII, 35). Assim inicia-se uma interpretação

histórico-sociológica que, levada a seu termo, permitiria tanto compreender o sentido

soteriológico da historia da humanidade como diferenciar o estado do homem adâmico da

perfeição do homem restaurado em Cristo. Para Agostinho, a vida futura será gozo eterno, não

mais sujeito à queda. Como infante, o primeiro homem mantinha a perfeição espiritual

somente como potencialidade, porque “foi criado com alma vivente, não com espírito

vivificante, reservado para prêmio de sua obediência” (A cidade de Deus, XIII, XXIII, 1).

3.3.2 Imagem deformada

O pressuposto fundamental que deve ser levado em conta para compreender o estado

atual em que se encontra o homem determina a impossibilidade dele vir a deixar de ser a

imagem de Deus. Esse pressuposto encontra respaldo na crença que eleva a economia da

salvação a primeiro plano, visto que “tudo o que Deus fez em Adão, foi feito visando Cristo”

(SOUZA, 2009, p. 135). Neste sentido, santo Agostinho “releva o problema do pecado como

‘deformação’ da imagem de Deus no homem. Afirma que, a Imago Dei, por ser a essência do

ser humano, não está inteiramente perdida e nem totalmente corrompida” (SOUZA, 2009, p.

136).

É possível descrever esse estado de deformação tomando como base o trecho de A

cidade de Deus citado acima, onde está dito que “se, pelo contrario, usando soberba e

desobedientemente do livre arbítrio, ofendesse o Senhor seu Deus, seria sujeito à morte e

viveria bestialmente, escravizado pela libido e destinado depois a suplicio eterno” (A cidade

de Deus, XII, XXI). Trata-se de um trecho paradigmático, por estabelecer com clareza e

precisão tanto a causa do pecado como suas consequências. Dos castigos, três são as

modalidades a se considerar: a mortalidade, a perda da liberdade, o futuro funesto dos não

redimidos.

A causa do pecado define-se por dois termos: soberba e desobediência. À primeira

vista parece simples erro de escolha ou de percurso, mas, tomada numa perspectiva

ontológica, a causa do pecado é uma falha, uma falta, algo que impede o desenvolvimento

normal da parte superior do homem e, a “esta defecção, Agostinho a chama pecado original”

(FLOREZ, 1954, p. 555).

87

Algumas pessoas poderiam pensar que, se Deus é o supremo Criador e tem ciência

absoluta, então a causa do pecado deve provir Dele. Agostinho refutou veementemente tal

solução do problema, defendendo a absoluta bondade de Deus. Arguido por seus

companheiros sobre a causa da perversidade, a resposta não poderia ser mais enfática: “Para

que o homem se faça perverso, a causa está ou nele mesmo, ou em algum outro, ou no nada”

(Oitenta e três questões diversas, 4). E, para fim de conversa, mesmo considerando o nada

como uma parcela de não ser na existência da criatura, “a causa de sua perversão retorna à

mesma vontade do homem, seja pervertido com ou sem um sedutor” (Oitenta e três questões

diversas, 4).

A solução do problema parte de uma espécie de metafísica da vontade. Agostinho

concluiu que a vontade é causa de si mesma e não pode ser determinada senão interiormente,

sem qualquer vínculo exterior. O que pode ser justo ou injusto é a própria origem interna da

causação, e não o objeto ou a ação à que a vontade se dirige. Dessa forma, como nada pode

impelir a vontade a si mesma, resulta que “ninguém é obrigado por sua própria natureza a

pecar” (O livre arbítrio, III, 16, 46). Peca-se pelo mau uso do livre arbítrio, ou seja, por uma

vontade má, chamada propriamente de cobiça ou cupidez. “Enfim, encontra-se a cobiça em

tudo o que alguém quer além do que lhe é suficiente” (O livre arbítrio, III, 17, 48).

Todavia, somente os primeiros pais tiveram a livre opção sobre a boa ou má vontade.

Tendo escolhido pelo mau caminho, tornaram-se mortais e passaram a gerar na carne. Da

carne desencadeou-se um movimento libidinoso desobediente, sinal da primeira morte, “em

que Deus abandonou a alma” (A cidade de Deus, XII, XV). Essa primeira morte constitui-se

de dois momentos, do abandono de Deus que corresponde a um desequilíbrio interno da alma,

e da morte física propriamente dita. Por esses parâmetros, na doutrina agostiniana do pecado

original, todos os seres humanos são considerados herdeiros do casal primitivo e, como tal, já

nascem condenados à morte; sem autonomia para não pecar; e sujeitos a outro tipo de escolha,

entre a possibilidade de redenção ou condenação eterna. Só que, para sua danação, essa

escolha não é tão simples quanto à dos pais primitivos, pelo contrário, supõe o esforço,

porém, de modo incompreensivelmente restrito aos eleitos pela graça divina. O trecho a seguir

alude explicitamente à separação entre o que é próprio da natureza humana e o que é

decorrência do castigo.

Na verdade. Tais são as duas reais penalidades para toda alma pecadora: a ignorância e a dificuldade. Da ignorância, provém o vexame do erro; e da dificuldade, o tormento que aflige [...] Ora, aprovar o falso como se fosse verdade, e assim enganar-se sem o querer, tornando-se incapaz de se abster de atos libidinosos, em consequência das resistências e dos dolorosos tormentos dos vínculos carnais –

88

essa não é a natureza primitiva do homem, mas, sim, o seu castigo depois de ter sido condenado (O livre arbítrio, III, 18, 52).

Encontra-se nessa doutrina agostiniana um aprimoramento da tradição paulina da

divisão entre carne e espírito: “A carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito

contrárias às da carne” (Gl 5, 17). Em santo Agostinho, de maneira mais propriamente

psicológica, a natureza dessa divisão é esclarecida, no sentido de que se trata de uma divisão

interna da própria vontade. Somente assim se explica o sentido de não conseguir ‘se abster de

atos libidinosos’, como um não conseguir não querer: “a cisão se dá na própria vontade; o

conflito não surge de uma cisão entre o espírito e a vontade e tampouco de uma cisão entre a

carne e o espírito” (ARENDT, 2009, p. 357).

Uma análise criteriosa do conceito de libido forneceu a Agostinho a correta

compreensão dessa desordem interior da alma humana. Por apresentar uma independência

desconcertante, a libido se mostra justamente como a força motriz da cisão da vontade. É algo

que domina inteiramente o homem, podendo levá-lo em múltiplas direções, “reunindo e

misturando entre si o afeto do ânimo e o apetite carnal, produzindo desse modo a

voluptuosidade” (A cidade de Deus, XIV, XVI). Acrescenta-se também a indefinição do

objeto da libido, visto que o santo considerou a existência de muitas classes de libido. Em

suma, trata-se de uma excitação autárquica, que não se resume aos processos internos do

corpo, nem se submete aos comandos do espírito.

Se vontade livre e inteligência sintetizam a essência da semelhança do homem à

divindade, então a compreensão da deformação da imagem deve focar-se justamente naquilo

em que essas duas capacidades são afetadas negativamente. Para tanto, os dois termos usados

por Agostinho são esclarecedores: ignorância e dificuldade.

Como já foi visto a respeito da relação ente fé e razão, esta, ao mesmo tempo em que

busca conhecimento, deve passar por uma purificação, para que se eleve às realidades

inteligíveis, porquanto seja “manchada, carregada de imagens da materialidade e da

temporalidade” (NOVAES FILHO, 2007, p. 106). Esse é o sentido da ignorância. Mostra-se

como impedimento absoluto de contemplar plenamente a verdade inteligível nessa vida. E

também como incapacidade de compreender o valor real de sua existência no mundo, o que

significa que o homem não pode se justificar por si mesmo.

Através de uma fé salutar, nesta vida, a piedade é verdadeira sabedoria, como temor e

gratidão a Deus, donde se evita atribuir ao homem aquilo que não é próprio de sua autonomia:

inclusive a capacidade de agir bem. Mesmo que a razão deformada possa chegar a um

89

conhecimento de Deus através dos vestígios dele nas criaturas, que significa “conhecimento

das coisas invisíveis do Criador por meio das visíveis da criatura” (O espírito e a letra, XII,

19), sem o auxílio da graça divina veiculada no exemplo de Cristo, o homem é tomado por

seu próprio orgulho e amor ao poder. Agostinho se valeu das palavras do Apóstolo: “se

perderam em vãos arrazoados e seu coração insensato ficou nas trevas. Jactando-se de possuir

sabedoria, tornaram-se néscios e trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens do

homem” (Rm 1, 21-23).

Da ignorância, como obstáculo para a junção do conhecimento à correta valoração das

coisas, segue que os tormentos decorrentes da deformação da imagem são intensificados pela

dificuldade, entendida como a impossibilidade do homem determinar livremente sua vontade.

Se o amor é o peso da alma, isso significa que a alma é dirigida por seu próprio deleite,

porque só prevalecem os bens que “de tal modo deleitam, que mantêm o ânimo” (Exposição

da epístola aos Gálatas, 49) e, se a libido não responde aos comandos do espírito, isso

significa que, por decorrência do pecado original, a razão não é capaz de determinar o objeto

do deleite. O grande tormento é ser lançado de um lado a outro por um querer essencialmente

múltiplo e inconstante.

Por sua vez, santo Agostinho não foi somente um teórico do pecado original, ao

contrário, relatou com detalhes a profunda angústia que sentia por estar sujeito a essa cisão

interior, denominada como estado de pecado. Mesmo em sua maturidade cristã, num estágio

avançado da consecução de uma vida santa e piedosa, a humildade da confissão da

incapacidade de vencer a atração da concupiscência, até nos recônditos mais profundos do

inconsciente, é reveladora da profundidade investigativa desse santo: “sobrevivem ainda na

minha mente [...] as imagens daqueles prazeres [...] Quando acordado, elas não têm força,

mas, durante o sono, chegam não somente a suscitar em mim o prazer, mas até o

consentimento” (Confissões, X, 30, 41).

3.3.3 O homem restaurado

Santo Agostinho usou de mais de um termo para nomear o estado de perfeição do

homem na ressurreição final. Os mais comuns são: renovação, reforma, restauração e até

recriação (bem menos usado). Por motivos de preferência e por maior adaptação ao sentido na

90

língua portuguesa, optou-se neste trabalho por utilizar primordialmente o termo restauração,

que aparece com maior frequência nas obras A verdadeira religião e A Trindade.

O sentido final da restauração equivale à recuperação da semelhança perfeita à criatura

racional angélica. Não se trata de recuperar o estado do primeiro homem antes do pecado,

mas, sim, o estado em que foi o homem criado no Verbo de Deus. Com a diferença de que, na

ressurreição, a perfeição racional será coexistente ao corpo, num estado em que “com clareza

assombrosa veremos a Deus, que está presente em todas as partes [...] vê-lo-emos, por

intermédio de nossos corpos transformados, e em todos os corpos a que volvermos os olhos”

(A cidade de Deus, XXII, XXIX, 6). Basicamente, então, para apresentar essa concepção final

do homem a partir da obra de Agostinho, faz-se necessário agregar essas duas ideias, o

tratamento da ideia de perfeição racional na visão da face de Deus – que pode ser chamada de

deificação, filiação ou adoção -, de um lado, e a ideia da presença do corpo nesse estado de

imutabilidade, de outro.

Na verdade, o caráter antropológico da restauração da imagem de Deus se insere

inteiramente no contexto da cristologia dos primeiros trabalhos de Agostinho. Naquele tempo

não era tanto o problema dificílimo da união das naturezas - humana e divina - na pessoa de

Jesus que ocupava seu pensamento, mas, estava mais interessado em interpretar o mistério da

encarnação para responder aos seus interesses filosóficos (entenda-se busca pela sabedoria).

Nesse sentido, se a busca pela sabedoria já se afigurava como retorno a um estado original de

perfeição, a concepção da divindade encarnada se oferecia como a descoberta do verdadeiro

caminho.

A encarnação é vista como um ato histórico de Deus, que teria rebaixado até um corpo

humano a Autoridade da Razão divina para trazer as almas de volta ao inteligível, visto que

pela “encarnação Ele ensina ao homem seu Poder por seus Atos, sua clemência por sua

Humildade e sua Natureza por sua Doutrina” (VAN BAVEL, 1954, p. 6). O lado humano do

Cristo é entendido como uma manifestação exterior reveladora da sabedoria; é a forma como

se torna conhecida a autoridade divina, “aquela autoridade que não somente transcende em

seus milagres sensíveis toda faculdade humana, mas, também, dirigindo o próprio homem,

mostra-lhe até que ponto se rebaixou por ele” (A ordem, II, IX, 27).

Essa inserção cristológica do tema também revela três aspectos da dinâmica da

restauração da imagem. Pois, que o homem seja imagem de Deus, isso é tomado como fato,

que independe de consentimento. Porém, para que a imagem seja restaurada, “a situação ideal

é quando crê ser imagem de Deus, quando sabe ver uma relação viva entre ele mesmo e Deus,

e vive sendo consequente” (VAN BAVEL, 1988, p. 97). Pela autoridade divina e pela

91

autoridade humana que a representa, são comunicados o estatuto da fé e o conhecimento

correto do meio de ascensão a Deus. O viver sendo consequente a isso, na doutrina

agostiniana, depende do esforço e da concessão da graça.

Vista como ato histórico de Deus, a encarnação revela a universalidade da dinâmica da

restauração, de modo que deve ser reconhecido “que foi da noção da comunhão da

humanidade caída em Adão que Agostinho derivou sua visão da comunhão da humanidade

redimida em Cristo” (BONNER, 1984, p. 502). De uma perspectiva restrita, a doutrina da

imagem poderia ser tomada apenas pelo viés de uma filosofia mística de elevação espiritual,

contudo, em sua real articulação, ela se apresenta como uma verdadeira antropologia, que

busca abarcar uma concepção total do homem. Ou seja, é a inserção daquilo que é uma

crença, a doutrina da imagem, num contexto de uma crença ainda mais ampla, a economia da

salvação, que constitui a extensão total da antropologia agostiniana.

Reitera-se: a ideia de perfeição racional a ser conquistada na restauração não deve ser

entendida como retorno ao estado original do primeiro homem. Talvez a maneira mais

objetiva com que Agostinho tenha expressado tal concepção esteja na seguinte passagem:

A primeira liberdade da vontade era poder não pecar; a última será muito mais excelente, ou seja, não poder pecar. A primeira liberdade era poder não morrer; a ultima será muito mais vantajosa, a saber, não poder morrer. A primeira possibilidade da perseverança era poder não deixar o bem; a última será a felicidade da perseverança, isto é, não poder deixar de praticar o bem (A correção e a graça, XII, 33).

Esse é um divisor de águas nas linhas de interpretação sobre o conceito de restauração

como retorno a um estado original. Aquilo que no neoplatonismo significa um retorno ao

Uno, no cristianismo agostiniano significa ao mesmo tempo um retorno e uma conquista, uma

vez que, em sua existência histórica e corporal, o homem jamais esteve em correspondência

real ao modo como fora criado no Verbo. Para esse estado final da transmutação do homem,

Agostinho “está preparado para usar a palavra deificação” (BONNER, 1984, p. 511). Somente

pelo amor de Cristo, não pelo estado original de Adão e, se “nos tornamos filhos de Deus,

também nos tornamos deuses; mas pela graça da adoção, não por geração natural”

(Comentário aos Salmos, 49, 2).

Finalmente, quanto ao modo de existência do corpo nesse estado final de perfeição,

não é possível dizer muito. Santo Agostinho falou disso diversas vezes, mas com pouca

fundamentação, ou com fundamentação estritamente dogmática, assim como quem trata de

um mistério insondável, ou ainda não acessível à inteligência humana.

92

Em A verdadeira religião, consta a promessa da glória corporal, resultante do Espírito

Santo, que é dado como dom tanto à alma como ao corpo, “corpo que ficará vivificado em sua

ordem, na maior pureza” (A verdadeira religião, II, 12, 25). Mas, como afirmou ali que o

corpo será restituído ao seu estado original, em Retratações, Agostinho corrigira o erro de tal

afirmação, fazendo ver que aquele corpo

terá ainda mais, de maneira que não necessitará de alimentos corporais, senão que será vivificado para subsistir somente pelo espírito, quando houver ressuscitado no espírito vivificante, pelo qual será também espiritual. Por outro lado, aquele corpo que fora o primeiro, ainda que não houvesse morrido se o homem não tivesse pecado, não obstante, fora feito animal (Retratações, I, 13, 4).

A distinção basilar é clara e objetiva: o corpo de Adão era animal; o corpo

ressuscitado em Cristo, não. Não obstante, como já se disse, o fundamento de tal afirmação é

dogmático, e não exatamente racional. Não é possível conceber realmente o que seja a ideia

de um corpo espiritual, ao menos a considerarem-se somente os argumentos de Agostinho.

Entretanto, na obra A cidade de Deus, talvez a obra mais significativa no que concerne

a esse tema, a especulação é levada até o extremo. Encontra-se a referência a duas

ressurreições, uma, a que se dá pela fé, em vida, é a ressurreição da alma em relação à morte

pelo pecado; outra, a ressurreição final, segundo a carne, na qual aquele corpo espiritual é

definido como carne, mas “incorruptível e imortal” (A cidade de Deus, XX, VI, 2). Quanto a

esse fato de que o corpo será mesmo corpo, no sentido estrito, mais explicito ainda é o

depoimento a favor da permanência da diferenciação dos sexos. Agostinho defendeu que não

haverá mais libido, porém, “que ressuscitarão ambos os sexos” (A cidade Deus, XXII, XVII).

Evidentemente, pela força mesma da direção das especulações, à medida que uma

cadeia de questões interdependentes ligadas ao tema foi surgindo, Agostinho chegou a

proposições confusas e pouco compreensíveis para o leitor atual. Afinal, como saber se haverá

corpo, ou se esse suposto corpo congregará toda a substância que conteve em vida, incluindo

os cabelos e unhas cortados; ou ainda se a estatura será maior ou menor; e se os olhos serão

instrumentos da visão? Melhor é o caminho das questões menos específicas.

Que seremos quando se cumprir a promessa? Como seremos? Que bens receberemos naquele reino, se como penhor já recebemos a morte de Cristo? Como estará o espírito do homem, não sujeito a vícios, e livre deles, sem paixões a combater nem sequer louvavelmente, num estado de paz perfeita? Quanta, quão formosa e quão certa será a ciência de todas as coisas, sem trabalho e sem erro, quando, soberanamente livre e feliz, beber na própria fonte a Sabedoria de Deus? Como será o corpo, quando, plenamente submetido ao espírito e suficientemente vivificado por ele, não tenha necessidade de alimentos? Já não será animal, mas

93

espiritual, conservando, é certo, a substância da carne, isento, porém, da corrupção carnal (A cidade de Deus, XXII, XXIV, 5).

Essa forma de questionamento parece mais plausível e sensata, por restringir-se ao

campo da inteligência da fé, sem o risco das afirmações temerárias. E contra aqueles que

consideram tal fé excessivamente abusiva e irracional, a desmesura do poder de Deus serve de

questão: “será que não pode fazer que a carne ressuscite e viva eternamente? Ou é obra má e

indigna de Deus?” (A cidade de Deus, XXII, XXV). Não se prova nada com isso, mas se

afastam os argumentos daqueles que julgam poder afirmar o que pode ou não pode existir, ou

o que é mais ou menos provável de existir no universo. O que, de fato, não nos parece sem

razão, visto que ninguém pode dizer que a ressurreição é mais difícil de explicar do que a

vida, ou, mais essencialmente ainda, o ser.

94

4 A RESTAURAÇÃO DA IMAGEM

Sob a fundamentação que se pretendeu dar ao tema nos primeiros capítulos, que inclui,

em síntese, a caracterização da busca religiosa e filosófica de santo Agostinho e a

apresentação de sua antropologia a partir da doutrina da imago Dei, pretende-se chegar a uma

compreensão aprofundada do processo de restauração da imagem deformada. Para esse

objetivo, a restauração será abordada em duas vias, a saber, teológica e mística, sendo que a

primeira constitui o ápice da cognição de si e de Deus e, a segunda, a aplicação prática do

conhecimento enquanto meio efetivo de transformação e ascese espiritual.

Para a via teológica, adota-se aqui a carta magna da teologia agostiniana, a obra A

Trindade. Serão esclarecidos os conceitos de imagem e vestígios de Deus. Esses conceitos

devem revelar tanto o modo como Agostinho concebeu a legitimidade do discurso sobre

Deus, como os limites do uso da razão para efetivamente produzir conhecimento direto da

realidade divina. Por sua vez, enquanto se constitui como conhecimento produzido por

analogias, o discurso em questão faz-se instrumento prioritário da restauração.

Na perspectiva mística, a abordagem buscará uma síntese possível dos principais

itinerários de ascensão a Deus propostos por santo Agostinho. Se o saber é orientado ao

estabelecimento da ordem no amor, tal como já se falou anteriormente, os progressos

espirituais deverão ser descritos em todos os campos da vida: intimidade, relação ao próximo,

vida comunitária, interpretação da História.

4.1 Perspectiva teológica

Para obter uma compreensão justa da proposta teológica do De Trinitate, é preciso ter

em mente as ressalvas com que a obra é introduzida pelo próprio autor. Três são as principais

possibilidades de erros a serem evitadas nesse campo. Tomar Deus por equivalente às

substâncias corpóreas. Tomá-lo por equivalente às almas. E o mais grave, expressar sobre ele

opiniões fantásticas sem fundamento comprovado na autoridade da fé ou nas experiências

comuns a todos os homens. Antes de empreender os esforços de reflexão em direção ao

conhecimento de Deus, deve-se ter em conta os cuidados necessários em relação aos dois

primeiros desses erros e, quanto ao terceiro, a necessidade de total afastamento desses que

95

estão “tanto mais longe da verdade quanto mais seus conhecimentos não se apoiam nos

sentidos corporais nem no espírito criado; nem no próprio Criador” (A Trindade, I, 1, 1).

Guardadas as corretas proporções, o empréstimo de palavras derivadas ou das

experiências sensíveis ou das características da atividade mental pode ser aceito não como

erro, mas como meio para transcender a inteligência humana a partir de seus próprios

parâmetros de apreensão da realidade: assim é o caso das Escrituras sagradas, que

“acomodando-se aos pequenos, não evitou expressões designando esse gênero de coisas

temporais, mediante os quais nosso entendimento, como que alimentado, pudesse ascender

por degraus, às coisas divinas e sublimes” (A Trindade, I, 1, 2).

A fé para essa concepção de vida religiosa é alimento para a inteligência, assim como

também é instrumento de purificação, por apresentar algo como um caminho factível,

palpável, praticável. Da mesma forma é também entendida a mediação de Jesus Cristo, “não

como o poder divino pelo qual é igual ao Pai, mas na fraqueza humana na qual foi

crucificado” (A Trindade, I, 1, 3). Santo Agostinho manteve sempre em mente a

inacessibilidade de Deus Criador, visto a total transcendência daquilo que é imutável e eterno

em relação ao universo conhecido, por essência mutável e temporal. De modo que, em sua

acepção mais plena, a contemplação de Deus não se dá estritamente pela via da teologia, mas,

da mística: “Faz-se mister, por isso, purificar nossa mente para contemplarmos inefavelmente

o inefável” (A Trindade, I, 1, 3).

De acordo com os estudos de Fulbert Cayré, o conteúdo da segunda parte do De

Trinitate revela que o valor da teologia agostiniana como instrumento para a restauração

reside no método usado, que se explica não pela necessidade de demonstrar Deus, porém, de

mostrá-Lo. A demonstração é objeto da primeira parte da obra, que explicita e elucida o

dogma trinitário resumido nos termos: distintos em suas relações e atributos, mas inseparáveis

em suas operações “o Pai, o Filho e o Espírito Santo perfazem uma unidade divina pela

inseparável igualdade de uma única e mesma substância” (A Trindade, I, 4, 7). No intuito de

mostrar Deus, a segunda parte da obra investiga uma série de imagens trinitárias, que se

pretendem em acordo com a teologia paulina da visão em espelho e enigma19.

Há hierarquia entre as imagens oferecidas, que são múltiplas, porém, distantes da

Trindade que é Deus; a proposta é subir por degraus até aquela que é mais semelhante e que

pode ser considerada imagem verdadeira. Cayré tornou possível uma exposição mais didática

dessa sequência de imagens, dividindo-as em três grupos principais: as emprestadas da

19 1Cor 13, 12.

96

atividade natural do homem; as que concernem à atividade moral do cristão; a sabedoria

sobrenatural propriamente dita. Portanto, vê-se que as duas perspectivas a serem trabalhadas

neste capítulo estão inteiramente interligadas, tomando-se como verdadeira a afirmação de

que esse “método leva Agostinho a desenvolver, paralelamente a seu estudo teológico, toda

uma doutrina ascética e mística, porque a imagem considerada mais perfeita é a sabedoria,

coroação da ascese e ponto central da mística” (CAYRÉ, 1927, p. 103).

Se aqui a teologia será abordada como uma perspectiva da doutrina da imago Dei, é

porque não se encontra um tratamento tão aprofundado para essa doutrina em nenhuma outra

obra de Agostinho e, da mesma forma, edificada sobre o patamar sólido dessa doutrina, a

teologia agostiniana do De Trinitate é de caráter único e original. É uma teologia positiva e

estreitamente ligada aos aspectos práticos do progresso na vida espiritual e, por esse motivo,

bastante diferente de outras formas de teologia desenvolvidas por Agostinho: seja o

exemplarismo de teor neoplatônico; as exegeses bíblicas; as articulações estritamente

apofáticas. De certa forma, toda essa bagagem teológica é unificada e ampliada numa

tentativa assaz audaz de oferecer um conhecimento positivo do Criador, através dos traços

que Ele deixou em sua obra. Esses traços podem ser entendidos como um estilo ou até uma

assinatura que um artista deixa em sua obra, e são classificados em dois tipos: os vestígios e

as imagens de Deus.

4.1.1 Os vestígios da Trindade

O conceito de vestígio está intimamente ligado ao exemplarismo agostiniano. A partir

do conceito das Ideias, o universo é concebido como uma múltipla e complexa participação na

natureza do ser divino. O que em suma significa a crença de que cada coisa possui a razão de

ser como é, ou seja, sua essência, por recebê-la passivamente de um plano de realidade

superior ao plano sensível: trata-se da crença na realidade de um mundo inteligível, ou

suprassensível. Donde é possível fazer derivar o conceito de vestígio, como algo que se deva

buscar “elevando-se da obra ao obreiro [...] reencontrar os traços ou vestígios que ele aí

deixou” (GILSON, 2007, p. 406).

A premissa fundamental que deve guiar a investigação nesse campo é a de que “se há

vestígios de Deus na natureza, eles devem trazer em si o testemunho da trindade tanto como

de sua unidade” (GILSON, 2007, p. 406). Também com importância basilar, existe uma

97

distinção entre as ideias de vestígio e imagem, da qual não se pode abdicar sem prejuízos na

compreensão da matéria em questão. Os vestígios são constituídos a partir do conhecimento

sensível em relação a qualquer criatura do universo. Existem variadas analogias trinitárias

entre o Criador e as criaturas, mas, nesse caso, as tríades são exteriores, no sentido de serem

provenientes da atividade do homem exterior ou a ele diretamente referidas. A limitação

dessas analogias reside em dois aspectos: a impossibilidade de por elas exprimir a verdadeira

unidade em sintonia com o aspecto relacional; a impossibilidade de que elas representem

Deus direta e imediatamente. O que sugere a conclusão de que para “chegar a analogias mais

profundas, é necessário passar do homem exterior ao homem interior e, para além dos

vestígios, buscar as imagens do criador em nós” (GILSON, 2007, p. 411).

Alguns dos principais exemplos de vestígios apontados por Agostinho podem ser

citados para explicitar a natureza e a limitação dessas analogias trinitárias. A trindade do

homem exterior inclui-se na categoria de vestígio, é aquela derivada das relações trinitárias na

atividade sensível, por exemplo, a visão. Na visão três realidades podem ser distinguidas: o

objeto, a imagem do objeto (visão), a atenção que direciona o sentido da vista para o objeto

específico. O que faz dessa tríade um vestígio é o fato de ela poder ser tomada como uma

semelhança imperfeita da Trindade. Nesse caso, as três realidades são completamente

distintas e, simultaneamente, perfazem certa unidade (também imperfeita). Não compartilham

da mesma substância nem demonstram uma simetria de relações, contudo, apresentam-se

como que amalgamadas numa unidade.

Derivada dessa primeira tríade da visão, uma segunda, que também compõe a trindade

do homem exterior pode ser apontada. No entanto, já se trata de uma relação trinitária

interiorizada e, por isso, um pouco mais perfeita. Essa é a tríade formada por memória, visão

interna e vontade: “quando essas três coisas estão reunidas em um só todo, essa reunião é dita

ser o pensamento (cogitatio)” (A Trindade, XI, 3, 6). Agora, a relação entre os elementos é

mais perfeita, porquanto não exista diversidade de substância na unidade formada. Todavia, a

ação da vontade sobre a preferência cedida a um ou outro conteúdo da memória é fruto de

concupiscência, porque se deriva de medo ou desejo, atração ou repulsão e, eis “a razão

porque esta segunda trindade não é a imagem de Deus: ela é produzida na alma mediante os

sentidos do corpo, criatura inferior” (A Trindade, XI, 5, 8).

Num sentido mais amplo, pelo qual todo o universo chega a constituir vestígio de

Deus, as analogias trinitárias podem assumir expressão a partir do registro de certas

características comuns a todos os seres. O fato de que santo Agostinho versou sobre essa

temática em seus primeiros escritos é prova de que, em seus constantes esforços para

98

racionalizar o mistério divino, sempre houvera essa mirada de investigação em relação aos

vestígios trinitários nas criaturas. Em um dos exemplos possíveis, encontra-se o seguinte:

“conhecida essa Trindade [...] sem dúvida alguma a mente percebe que toda criatura

intelectual, animal e corporal, recebe dessa mesma Trindade criadora: o ser para ser o que é; a

sua forma; e a direção dentro de perfeita ordem universal” (A verdadeira religião, 7, 13).

Noutro texto, tratando da mesma questão, a ideia de vestígio é ainda mais bem

definida, ao relacionar a Trindade divina à possibilidade de se perceber uma causa trina para

tudo o que existe. Para isso são estabelecidos como que três parâmetros pelos quais se dá a

existência de cada coisa: a essência, a diferença e a concordância. Pois

toda criatura, se certamente é de alguma maneira, se certamente dista infinitamente do nada absoluto, se certamente coincide consigo mesma em todas as suas partes, convém também que sua causa seja trina: por que é, por que é tal como é, por que coincide consigo (Oitenta e três questões diversas, 18).

A pergunta pela essência busca responder ao ser de cada coisa. Se nenhuma das

criaturas possui o ser por excelência, justamente porque são temporais e tendem ao não ser,

abre-se a questão sobre a partir do que recebem o ser. A diferença se refere ao aspecto

qualitativo, visto que todas as coisas, além de não determinar originalmente sua essência,

também não a determinam qualitativamente, ou seja, não tem em si a causa de seu modo de

ser. Quanto à concordância, naquilo em que ela remete a criatura à coincidência consigo

mesma, parece tratar-se de uma questão sobre a identidade própria de cada criatura, no

sentido de que esses aspectos ditos qualitativos se organizam em cada coisa de modo a formar

uma estrutura interna, uma perfeição específica e não permutável.

Entretanto, a investigação da causa trina das criaturas encontra um desenvolvimento

significativo na obra A cidade de Deus. Para além do estudo sobre a tripartição da filosofia,

que também pode revelar a natureza trina do Criador, Agostinho apontou uma maneira

simples e objetiva de vislumbrar um vestígio Dele na criação através de três perguntas. As

três perguntas vão de encontro àquela distinção da essência, diferença e concordância, e como

que complementam o raciocínio: “é fora de dúvida ser direito da razão [...] descobrir, sob o

véu de obscura expressão [...] o secreto sinal da Trindade nas perguntas que cada criatura nos

sugere: Por quem, como e por que foi feita?” (A cidade de Deus, XI, XXIV).

A teologia dos vestígios atinge sua formulação máxima e paradigmática na trilogia:

medida, número e peso. Assim como ser, forma e ordem, esses também são atributos

existentes em todas as coisas criadas. Mas o uso desses termos acaba por prevalecer sobre os

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outros, por serem respaldados de maior clareza e dupla autoridade, e podem ser tomados

como os vestígios por excelência daquele “que a criação e a própria Escritura atestam que

dispôs tudo em número, medida e peso” (A Trindade, XI, 11, 18; Sb 11, 21). A Medida

suprema é tomada por equivalência ao Pai. O número como que engendrado na suprema

medida faz a referência ao Filho, determinante do aspecto qualitativo essencial de cada coisa

existente. O peso garante que todas as coisas sejam ordenadas à totalidade harmônica

universal, epifania do Espírito Santo como bondade do Criador.

Em De ordine, a palavra vestígio aparece com uso semelhante, porém em contexto

diferente. Ao invés de se referir a Deus, ali essa palavra é usada para delimitar uma relação

entre o sensível e o inteligível. Tratando do uso das disciplinas liberais como meio de

elevação ao conhecimento da realidade inteligível, santo Agostinho figurou a descoberta dos

números inteligíveis por parte da razão que “refletindo em si mesma tudo isso, contemplava-o

como muitíssimo verdadeiro; mas considerava as coisas que se percebem pelos sentidos

apenas como sombras e vestígios daquelas intuídas pela mente” (A ordem, II, XV, 43).

Deixando claro com isso que o conhecimento racional não se origina do conhecimento

sensível, embora encontre uma espécie de correlação, e possa ser como que despertado pela

contemplação desses vestígios sensíveis. A importância da inserção desse comentário no

presente contexto situa-se no paralelismo possível de ser estabelecido com o que está sendo

aqui investigado. Pois, da mesma forma que do sensível é plausível alçar-se ao inteligível, os

conceitos teológicos de vestígio e imagem oferecem uma nova interpretação para o itinerário

de elevação espiritual a Deus.

4.1.2 A imagem de Deus

Somente a alma humana é imagem de Deus. O raciocínio básico que serve à

diferenciação entre os conceitos de vestígio e imagem pode ser resumido no seguinte trecho:

“É evidente que nem tudo o que dentre as criaturas é semelhante a Deus pode- se denominar

sua imagem, apenas o é a alma, à qual unicamente Deus lhe é superior. Só a alma é a

expressão de Deus, pois natureza alguma se interpõe entre ela e ele” (A Trindade, XI, 5, 8).

Desde os primeiros escritos, santo Agostinho passou a se valer do conceito de imagem

para caracterizar a completa superioridade do homem sobre todo o universo criado. Mesmo

que a ideia de restauração da imagem deformada se valha de argumentos sobrenaturais, a

100

imagem por sua vez é a denominação daquilo que na própria natureza humana permite

atribuir-lhe essa superioridade. Num tratado dedicado à natureza da alma, concluiu: “se há

alguma coisa mais das que Deus criou, alguma é inferior, alguma é igual à alma humana:

inferior, como a alma do animal, igual, como a do anjo; porém, melhor, nada” (A grandeza da

alma, XXXIV, 78). Com a ressalva de que isso exclui o estado da alma devido à deformação

pelo pecado.

Como já se adiantou acima, em A Trindade, Agostinho desenvolveu imagens

progressivas, com o intuito de traçar um itinerário ascendente a Deus pela via de analogias

cada vez mais perfeitas. Dividi-las em três grupos possui valor analítico e didático: as

emprestadas da atividade natural do homem; as que concernem à atividade moral do cristão; a

sabedoria sobrenatural propriamente dita. A partir dessa divisão torna-se possível delinear os

passos para a consecução do objetivo do autor que é “exercitar o leitor, a fim de que este

aprenda a procurar Deus através da imagem da Trindade que é nele, a fim de que este possa

caminhar” (TEIXEIRA, 2003, p. 179).

Contudo, primeiramente outra divisão pode ser proposta, para melhor situar a

amplitude da abordagem agostiniana: “A mente, como imagem de Deus, é essencialmente

representativa; em sua face interior se desenham alguns traços divinos que a glorificam, e

podem incluir-se em dois grupos: traços do absoluto e traços do relativo em Deus”

(CAPÁNAGA, 1957, p. 216).

Assim, os conhecimentos racionais - ou as chamadas verdades inteligíveis – são

dotados a habituar o homem ao vislumbre dos atributos de Deus, ser absoluto, através das

características de incorporeidade e imutabilidade desse tipo de conhecimento. Por outro lado,

o estudo das analogias trinitárias na mente humana revela algo da vida interior do Deus trino.

O primeiro grupo de traços deve revelar a absoluta transcendência de Deus. Deus é

conhecido como Verdade; Deus é conhecido como Sumo Bem; Deus é visado na

transcendência da Justiça. O homo religiosus agostiniano se volta para a interioridade e

descobre o Deus que é Luz da Verdade. Essa é uma primeira descoberta que revela Deus no

interior do homem. O homem descobre que o conhecimento das coisas verdadeiras depende

de uma verdade que contém a parte superior de sua interioridade. “O conceito de Bem segue o

mesmo procedimento daquele de verdade. Bondade e Verdade são conceitos absolutos que se

identificam em Deus” (TEIXEIRA, 2003, p. 152), sendo assim, a seguir o pensamento de

Agostinho, chega-se à denominação de um “Bem de todos os bens” (A Trindade, VIII, 3, 4),

espécie de critério de bondade para toda a gradação dos bens temporais e inteligíveis. Verdade

e Bondade: fundamentos transcendentes da Justiça da alma. A justiça é como uma ordenação

101

interior, ou beleza da alma. O homem não pode ver a Justiça em si, somente vislumbrar sua

existência a partir de um tipo de verdade interior que o ilumina. Para Agostinho a justiça é

como o amor de uma Forma, um modelo e, enquanto o homem não pode ainda ver essa forma

diretamente, pode “amar a essa Forma, valendo-se da fé, como [...] algo semelhante a ela” (A

Trindade, VIII, 6, 9).

No entanto, ainda que esse tipo de conhecimento revele mais a inacessibilidade do

Deus inefável, por mostrar apofaticamente a absoluta transcendência da Verdade, o modo

como o saber humano é articulado no interior da mente permite ainda a afirmação de uma

analogia a Deus. Essa é a principal via em que o De Trinitate investiga a imagem de Deus no

homem sem objetivar especificamente o âmbito relacional trinitário das analogias. Ou melhor,

a considerar somente uma das vertentes da investigação, isoladamente, encontra-se um ponto

de apoio para a articulação do primeiro grupo de traços referido acima. Trata-se da análise da

correspondência entre aquilo que Agostinho chamou verbo interior e o Verbo divino.

A análise desse verbo interior pressupõe de saída que nossa “linguagem tem algo de

corpóreo e incorpóreo” (CAPÁNAGA, 1957, p. 219). Isso significa que a analogia com o

Verbo divino não deve ser buscada nas palavras proferidas, determinadas por qualquer

idioma. A ideia de verbo interior busca definir algo mais fundamental, anterior à articulação

da linguagem e, portanto, causador desta.

Para santo Agostinho, a sonoridade da palavra proferida é um tipo de sinal de outra

“palavra”. Nesse sentido, aquilo que deve ser mais propriamente denominado verbo, não são

as palavras contidas em um discurso, mas uma realidade interior, condensada, algo que pode

ser conhecimento, ou simplesmente memória, contudo, algo que tem origem anterior às

palavras. O aparelho vocal produz sons. Os sons por sua vez servem à comunicação desse

“algo”, de acordo com as convenções do idioma de cada povo. Essa distinção de realidades

sustenta já uma analogia ao divino: “O Verbo Fez-se carne, como nosso verbo faz-se voz” (A

Trindade, XV, 11, 20).

A definição do que é o verbo humano é complexa e supõe o estabelecimento de uma

psicologia do conhecimento. Seguindo as análises de Paissac (1951, p. 59), ao considerar a

busca do parentesco do verbo ao Verbo, a psicologia acaba por conduzir a uma metafísica do

verbo; leva a estudar sua estrutura ontológica. De fato, Agostinho considerou três realidades

envolvidas na expressão do conteúdo da mente humana. As palavras proferidas situam-se

como que na etapa final do processo. A primeira instância tem a função de gerar o verbo

interior, é definida como um “saber imanente à alma” (A Trindade, XV, 11, 20).

102

Para compreender a natureza dessa primeira instância é preciso tomar o raciocínio de

Agostinho pela base. Ali se descobre que esse algo denominado verbo interior não se aplica

propriamente a qualquer modo de expressão linguística. O verbo interior por excelência se

refere à participação da mente racional na inteligibilidade das verdades imutáveis. A ideia de

razão superior primeiramente supõe essa participação, que se dá como que num juízo intuitivo

que permite ao homem comparar às realidades – sejam elas sensíveis ou mnêmicas – a uma

forma, ou modelo, que sugere uma gradação valorativa de perfeição. Segundo Agostinho, a

forma é contemplada na própria Verdade segundo a qual todas as coisas foram feitas. Sendo

assim, a partir da crença no conhecimento verdadeiro que o homem pode ter das coisas,

descobre-se a noção de verbo interior, pois, esse conhecimento “é como o verbo por nós

gerado em uma dicção interior” (A Trindade, IX, 7, 12).

Entretanto, esse conhecimento verdadeiro não paira como que inerte num fundo da

mente humana. Para Agostinho, tudo o que exista realmente no interior do homem foi

concebido a partir de um querer, e isso implica em uma importante distinção estrutural: “nem

tudo o que nos toca, de alguma maneira, é concebido. Há algumas coisas que são

simplesmente conhecidas, e como tais não chegam a ser verbo” (A Trindade, IX, 10, 15).

Portanto, como esse verbo é concebido a partir da ação do amor, o que implica certa

intencionalidade do sujeito cognoscente, a natureza do amor em questão pode desviar a

mirada do sujeito das verdades imutáveis para as coisas mutáveis: de modo que caridade e

concupiscência se estabelecem diametralmente em oposição na geração do verbo interior.

No caso do verbo concebido pela concupiscência, Agostinho fez valer uma distinção

entre a concepção e o nascimento do verbo: tal como na geração dos animais. Essa distinção

parece apontar uma imperfeição, pois, “o que foi concebido pela concupiscência só nasce ao

ser possuído” (A Trindade, IX, 9, 14). Esse algo concebido não se basta no conhecimento e no

querer, pelo contrário, gera uma espécie de doença na alma. A alma fica como que grávida do

verbo, mas isso significa que ela padece pela falta daquilo que é cobiçado. Isso não significa

que as boas ações também não tenham sua origem no nascimento de um verbo, pois essa

teoria do verbo o pressupõe em toda intencionalidade do espírito. Acontece que o

conhecimento verdadeiro e amado já produz em si um ato do espírito, não gera necessidade

alguma em relação ao exterior, como, por exemplo, a noção de justiça que, ao ser concebida,

nasce, e faz justo aquele em quem nasceu. Nesse sentido, vê-se que o homem justo não

necessita de um ato exterior de justiça para ser justo.

Se for preciso, portanto, sintetizar o conceito agostiniano de verbo interior, que seja

dito simplesmente que ele é o conhecimento unido ao amor. No entanto, há algo mais a ser

103

dito, visto que Agostinho considerou a igualdade da mente a seu verbo. Nota-se que o sentido

da doutrina da imago Dei recebe uma complementação e torna-se mais complexo no De

Trinitate. O uso do termo imagem aparece em auxílio à teoria psicológica, e isso permitiu a

Agostinho não somente levar a busca por analogias ao extremo, como também adentrar numa

meditação sobre a natureza e as relações das Pessoas de Trindade.

A teoria do verbo mental não é somente uma analogia distante e metafórica. Ao

empenhar-se ao limite de seus esforços de reflexão, as intenções do bispo de Hipona visavam

tanto a elevação espiritual como uma descrição real das características da segunda Pessoa

divina. Ou seja, o testemunho de Agostinho efetivamente revela a busca de alguém que

almeja dizer algo da realidade mesma da vida divina. (PAISSAC, 1951, p. 58).

A pequena exposição sobre a teoria do verbo interior realizada acima já permite a

passagem para o segundo grupo de traços do divino indicado: os traços do relativo em Deus.

Isso porque a partir da análise da natureza do verbo interior, Agostinho chegou a uma nova

perspectiva frente à imago Dei enquanto imagem da Trindade. Tal perspectiva pode ser

formulada da seguinte forma: a mente com seu conhecimento unido ao amor – verbo interior

– é imagem da Trindade. A compreensão de como essa proposição pode ser verdadeira se dá

com a observação de uma trilogia no homem interior: mens (mente), notitia (notícia ou

conhecimento) e amor.

Essa primeira trilogia se enquadra no primeiro grupo de imagens trinitárias definidas

no princípio do capítulo: emprestadas da atividade natural do homem. A tese basilar pode ser

enunciada na ideia de que a vida divina é semelhante à atividade intima da alma, que se

conhece, pensa em si e se ama. Isso ocorre de modo mais perfeito em Deus, mas, em suma, é

algo da mesma natureza. (CAYRÉ, 1927, p. 105). Essa é a interpretação para a doutrina

paulina da visão de Deus em espelho.

A imagem da Trindade aparece mais clara a Agostinho quando a trilogia mens, notitia,

amor – trilogia que se refere ao engendramento do verbo interior - é aplicada ao

conhecimento da mente sobre si mesma. É preciso primeiramente vislumbrar uma relação

epistemológica perfeita da alma, quando esta se faz objeto de si mesma: “quando a alma se

conhece e aprova o conhecimento que tem de si mesma, esse conhecimento que é seu verbo,

lhe é perfeitamente igual e adequado, e isso a cada instante” (A Trindade, IX, 11, 16). A

oscilação entre o desejo que busca e o amor pelo que é encontrado estabelece uma

circularidade, ou uma constante atualização, na imagem trinitária que provém do

conhecimento da mente sobre si mesma. E por isso é possível encontrar nesses três termos

104

uma existência relativa e individual simultaneamente à formação de um conjunto unitário e

indissolúvel em que a

mente aparece, portanto, como o ato primeiro (o Pai, na divina Trindade), do qual procede o desejo e a vontade de autoconhecer-se, ou seja, a consciência de si (o Filho ou Verbo). Conhecendo-se, necessariamente procede também o amor de si, (Espírito Santo), último dos três termos, unificando os outros dois numa unidade trina (TEIXEIRA, 2003, p. 184).

É costume de alguns especialistas reconhecerem aí, no íntimo dessas funções inter-

relacionadas, a proposição de uma espécie de lei do espírito, que pode ser denominada de lei

da circularidade. A mente gera o verbo, como que fecundada pelo ser mesmo das coisas

cognoscíveis. O verbo de certa forma produz o amor e, este, age tanto no fluxo como no

refluxo; como foi dito acima, é desejo de busca e é amor pelo encontrado. Compreende-se,

assim, que o “amor tende a mirar e remirar o que ama. Implica um movimento de reversão ao

verbo e ao objeto amado para descobrir novas excelências e beleza” (CAPÁNAGA, 1957, p.

227).

De acordo com Étienne Gilson, essa primeira imagem trinitária deve ser analisada

conjuntamente com uma segunda, com a qual mantém íntima relação, a saber, a trilogia

formada por memoria, intelligentia, voluntas. Cada um dos três termos corresponde

respectivamente aos termos da outra trilogia. Uma sutil diferença se estabelece entre eles:

trata-se de perceber que a primeira trilogia se refere a uma trindade substancial que compõe a

alma humana, enquanto a segunda figura a colocação em ato dessa trindade substancial.

Ou seja, aquilo que foi descrito como a concepção do verbo no conhecimento que a

mente tem de si mesma já está situado na segunda trilogia, pois, “o caráter distintivo dessa

primeira imagem é o de se desdobrar toda no interior da substância da mens, anteriormente

aos atos que a manifestarão” (GILSON, 2007, p. 421). A substancialidade da primeira

imagem significa que a mente é compreendida ali como “sendo substancialmente

conhecimento e amor [...] naturalmente em estado de se conhecer” (GILSON, 2007, p. 421)20.

De fato, a contribuição fundamental da busca por imagens trinitárias como modo de

caracterizar o sentido da imago Dei reside na primeira trilogia, da qual se derivam as outras.

Agostinho mesmo sintetizou seu trabalho no início do último capítulo do De Trinitate,

20 De acordo com nota de Étienne Gilson, existe discordância quanto a essa interpretação. Por exemplo, M. Schmaus - em Die psychologie Trinitälehre des hl. Augustinus - propõe a existência de certa confusão entre essas duas imagens trinitárias, pois Agostinho teria evoluído em seu pensamento entre os livros IX e XIV do De Trinitate. Para ele, a palavra notitia já estaria no livro IX com o sentido de colocação em ato, e não somente no sentido substancial ou habitual.

105

deixando claro que, a investigação sobre as outras trilogias vem em continuação do que fora

estabelecido na primeira. Uma maneira eficaz de entender a derivação dessas trilogias em

relação à primeira delas é perceber que se trata de um desdobramento em “um duplo objeto –

consciência de si e a consciência de Deus – e que por sua vez se dividem em dois: memoria,

intelligentia, voluntas [...] e memória Dei, intelligentia Dei, amor Dei” (TEIXEIRA, 2003, p.

180). Já que, enquanto colocação em ato da trindade substancial da mente, a trilogia memória,

inteligência e vontade pode ser posta em função de si ou de Deus.

Para concluir a apresentação dos pontos mais importantes da perspectiva teológica da

doutrina do homem feito à imagem de Deus, naquilo em que isso interessa à presente

investigação, faz-se necessário analisar a trindade que se dá no conhecimento de Deus. A

trilogia que será encontrada aí pertence ao terceiro grupo, denominada como concernente à

sabedoria sobrenatural. Entretanto, as analogias trinitárias concernentes ao segundo grupo

devem ser antepostas a essa realização final. Por isso, para que a articulação integral do

raciocínio não seja ofuscada, é importante tratar de como Agostinho concebeu a imagem da

Trindade na vida moral do cristão, na qual o conhecimento da sabedoria é veiculado pela

mediação da fé.

A sabedoria sobrenatural propriamente dita não pode ser imaginada como algo

pertencente ao estágio em que se encontra a mente humana. Para a doutrina da restauração da

imagem de Deus na mente, o homem está sempre a caminho, esse é o significado de sua

temporalidade e finitude. Mesmo a mais alta racionalidade, ou seja, mesmo a razão superior

que contempla as verdades inteligíveis, encontra-se como que enraizada no mundo sensível, a

tal ponto que não pode mais do que tangenciar essas realidades altíssimas, e não sem enorme

esforço de elevação. Quanto a essas razões inteligíveis, pouquíssimas pessoas “conseguem

elevar-se [...] pela penetração do olhar da mente e, caso aí cheguem, o quanto é possível [...]

não chegam a permanecer nelas. O próprio olhar é rechaçado [...] surgindo apenas um

pensamento passageiro” (A Trindade, XII, 14, 23). Sendo assim, é justificável que o caminho

seja de elevação e purificação e, para isso, dependa da ciência e da fé.

A partir da relação entre razão superior e razão inferior no homem interior, Agostinho

desdobrou sua reflexão em dois planos interdependentes. A consideração sobre essas duas

instâncias da razão possibilitou a ele o desenvolvimento de uma percepção clara a respeito das

relações recíprocas entre ação-contemplação e ciência-sabedoria. Uma tensão dialética é

assim estabelecida e, para se compreender estruturalmente os recursos que o homem possui

para progredir no caminho da restauração da imagem, é preciso tomar parte do polo

106

constituído pela tríade razão inferior, ciência e ação, e avaliar seriamente o alcance das

possibilidades abertas nessa linha.

Falar em razão inferior não implica numa dicotomia de realidades. Em Agostinho só

existe uma substância racional ou espiritual. Na verdade, trata-se mais de uma consequência

lógica, devido à temporalidade essencial da existência humana e sua consequente impotência

para apreender a realidade senão pela materialidade e pelo movimento. Ou seja, a mente

racional participa de algo imutável e não material, entretanto, na condição de imagem

deformada, o homem não pode evitar experimentar ao mundo e a si mesmo limitado em sua

essencialidade: isso inclui o corpo e os sentidos na base de todo ato de conhecer, obviamente.

Assim, falar em uma parte da mente que se destina à ação e à ciência das coisas temporais e

corporais, e que, nessa destinação mesma diferencia o humano do animal, é abordar a

existência de algo situado no campo da razão: contudo, razão inferior: desde que o termo

inferior seja entendido como relação de derivação. E santo Agostinho não poupou esforços

para formatar a função verdadeira e idônea dessa instância nos parâmetros da economia da

salvação. Em seu ensino, toda ação propriamente humana no mundo deve ser fruto do labor

dessa razão inferior, todavia, quanto a ela, fica estabelecido que “se deriva dessa substância

racional [...] pela qual aderimos à verdade superior inteligível e imutável, ela está entretanto

como destinada ao trato com as coisas inferiores e apta a governá-las” (A Trindade, XII, 3, 3).

O uso do verbo governar assume aí um sentido específico e não admite deturpações.

Isso porque esse governo poderia ser exercido de forma perversa caso se comprometesse com

os objetivos da concupiscência. O significado desse governar se refere à ação do homem que

ama a Deus e busca viver conforme a esse amor. É um governo submetido à razão superior,

ou seja, sempre voltado para o eterno, o verdadeiro, o caritativo. Pois o fato de quase a

totalidade da alma estar comprometida com o trato da dimensão da corporeidade não significa

que ela deva viver conformada a essa limitação; conformidade que seria uma distorção de seu

anseio pela felicidade, fixando sua finalidade nos bens sensíveis. Definitivamente não é assim

que o agostiniano se coloca no mundo, pelo contrário, se deve dirigir sua atenção ao dado da

realidade material, será sob a exortação daquele que propõe que toda ação necessita ser “a fim

de que em tudo o que fizermos, sem cessar de contemplar os bens eternos a serem atingidos,

caminhemos por meio daqueles, não nos apegando senão a estes últimos” (A Trindade, XII,

13, 21).

Insinua-se uma solução de continuidade entre ação e contemplação, de modo que a

problemática aparece transposta inteiramente para o âmbito moral, no qual se impõe a

distinção irredutível entre aquilo que deve ser fruído e o que deve ser usado: uti e frui. É sob

107

essa perspectiva que o conceito de ciência adotado por Agostinho vem a ser esclarecido.

Segundo F. Cayré, no pensamento do santo, ciência equivale à investigação sobre o que se

deve fazer para caminhar para Deus: é uma ciência moral, e forma a regra da virtude. Mas não

somente isso: é a junção sobrenatural do conhecimento especulativo das criaturas e da ciência

moral, graças à luz da fé. (CAYRÉ, 1927, p. 108).

Com efeito, não é sem valor a afirmação que aproxima a ciência das virtudes, por

dizer que sem a ciência não se pode adquirir as virtudes “pelas quais levamos uma vida reta e

governamos [...] esta mísera existência” (A Trindade, XII, 14, 21b). A ciência é definida de

modo bastante sugestivo (por inspiração do Livro de Jó), como o conhecimento pelo qual se

chega a evitar o mal e desejar o bem. Isso faz com que esse conceito se estabeleça em relação

à fé e, consequentemente, a uma definição da sabedoria tal como esta se aplica à vida dos

mortais.

Em Jó 28, 28 está dito: “Eis, a piedade é sabedoria; e apartar-se do mal é ciência”.

Piedade é um termo que, para Agostinho, remete às ideias de culto e amor a Deus. E, se o

amor implica numa valoração distintiva das realidades que resulta em aproximação ou

afastamento, é lógico que, para chegar a induzir ao desejo do bem, a ciência deve se submeter

a um processo valorativo que ultrapasse seu próprio objeto. Esse é o lado moral da ciência,

que significa ser iluminada pela autoridade da fé, ou seja, conhecer os dados da fé.

A maneira de evitar o mal e desejar o bem poderia ser interpretada nas mais variadas

vertentes, até as mais perversas, se não estivesse intrinsecamente relacionada à busca

universal pela felicidade. Isso porque a felicidade como fim supõe uma plenitude, de tal forma

inabalável, que seria impossível, senão por meio de um bem eterno fruído por uma alma

igualmente eterna. Agostinho foi deveras perspicaz ao solucionar o problema dos erros de

interpretação sobre essa questão: a solução é a própria imposição da autoridade da fé. Curto e

grosso: é inquestionavelmente impossível à razão humana responder sobre a existência da

imortalidade ou da felicidade plena. Percebe-se que assim as alternativas são restringidas em

três: assumir a autoridade da fé, desistir da busca desesperadamente, ou escamotear a busca

pelo gozo dos bens temporais, como poder, riqueza, prazeres etc.

Se o caminho da fé é o único, então Cristo é o único caminho, é o Mediador. Um dos

segredos da cristologia agostiniana é atribuir à encarnação a junção da ciência e da sabedoria.

Sobre a ciência, já é possível entender o porquê de afirmar que tudo “o que o Verbo feito

carne fez e sofreu por nós, no tempo e no espaço [...] diz respeito à ciência e não à sabedoria”

(A Trindade, XIII, 19, 24). Em síntese: imitar o exemplo do amor, humildade e obediência de

108

Jesus é o caminho para as virtudes e a vontade reta; o que significa que é “por ele que

caminhamos até ele; e pela ciência que tendemos para a sabedoria” (A Trindade, XIII, 19, 24).

O sentido do ascetismo e da mística agostiniana já pode ser claramente vislumbrado

aqui. A sabedoria representa Deus perfeitamente e excede a fé, porém, antes de atualizar-se

como imagem no homem, ela supõe a fé como fundamento necessário nesta vida: a vida

moral do cristão, a vida ativa, conduz à sabedoria contemplativa. (CAYRÉ, 1927, p. 110).

Enquanto vive na fé, a mente humana ainda não expressa a verdadeira imagem de Deus,

todavia, Agostinho volveu grande parte de suas energias à compreensão do itinerário

ascensional a Deus e, assim, é de muito valor a percepção de que “quando se crê como

verdadeiro e se ama o que deve ser amado, nesse caso se vive conforme a trindade do homem

interior, pois se vive de acordo com o que se ama” (A Trindade, XIII, 20, 26).

De certa forma, a ciência da fé conduz a uma atualização progressiva da trindade

composta por memoria, intelligentia e voluntas. Essa é a trindade do homem interior, que,

para Agostinho, só é verdadeira quando trabalhada dentro de algumas condições ideais. Essas

condições pressupõem uma relação entre inteligência e fé, e também uma eleição (ou

transmutação) no campo do amor. Explicando a dinâmica dessa trindade, nosso autor

escreveu o seguinte trecho: “Todos os conhecimentos existentes na alma do fiel cristão que

vêm dessa fé e da vida conforme a fé, quando são retidos na memória e contemplados pela

lembrança, e agradam à vontade, eles evocam uma espécie de trindade, em seu gênero” (A

Trindade, XIII, 20, 26).

Entretanto, por mais que essa trindade da ciência e da fé represente uma importante

transformação interior em direção à restauração da imagem e, na verdade, sustente um

contínuo trabalho de elevação, antes de chegar à trilogia mais próxima da verdadeira imagem

de Deus é preciso adentrar ainda mais à trindade do homem interior em seu puro estado

autorreflexivo, para desvinculá-la de conteúdos temporais. Trata-se da mente conhecer-se

como presença a si mesma, num estado em que desvinculada “do passado, a memória assim

concebida perfaz uma trindade mais interiorizada que a tríade da ciência” (RAMOS, 2009, p.

283).

A trindade da fé deixará de existir quando a fé tornar-se conhecimento direto. Sendo

assim, o que ainda existirá dela será somente uma trindade formada pela lembrança daquilo

que um dia foi crença. Para chegar ao campo da verdadeira imagem é preciso considerar algo

que não seja passageiro. Por esse motivo, memória de si, inteligência de si e amor de si devem

constituir a trilogia mais próxima daquela em que inicia a senda da sabedoria sobrenatural.

Mesmo que a imagem de Deus verdadeira seja referida à alma que se volta para Deus, retém-

109

se, portanto, o valor da consideração de que “a trindade da alma reflexiva é a que mais se

aproxima desta, uma vez que indica o caminho da interioridade e da eternidade, em

detrimento da exterioridade e da temporalidade” (RAMOS, 2009, 283).

Na investigação agostiniana, a atividade reflexiva da mente é vista como possuindo

certa vocação para resultar em contemplação do divino. Enquanto imagem do Criador, o

homem é capax Dei – capaz de Deus -, é capaz de recordar e aderir a Deus. Quando chega a

realizar essa vocação, a mais alta trilogia é posta em exercício: memoria Dei, intelligentia

Dei, amor Dei. É pela possibilidade de recordar de Deus, de entendê-lo e de amá-lo que

Agostinho formulou uma de suas frases célebres sobre o estatuto da alma: “ela é imagem de

Deus, porque precisamente é capaz de Deus, e pode ser partícipe dele” (A Trindade, XIV, 8,

11).

O exercício dessa trindade da sabedoria só existe, portanto, quando se realiza uma

memória de Deus na mente. Nenhum homem jamais viu Deus, para dele se recordar, assim

como, também, ninguém tem qualquer recordação de uma felicidade primitiva, para que possa

almejar ser feliz. A própria razão é capaz de inspirar o desejo da felicidade através da

evocação dos conceitos transcendentes: Ser absoluto, Verdade imutável e Bem supremo. Ou

seja, não se trata de lembrar-se de ter conhecido Deus, mas de que a alma “pode ser lembrada

para se voltar para o Senhor, como que para aquela luz que já a tocava de certa forma, mesmo

quando dele estava afastada” (A Trindade, XIV, 15, 21).

A memoria Dei pode ser compreendida como participação da mente racional ao

mundo inteligível. Essa participação se expressa por certas noções fundamentais e universais

que se encontram como que impressas em todo espírito humano, em qualquer povo, lugar ou

época. Um dos maiores especialistas sobre essa temática é o agostinólogo Lope Cilleruelo,

que informa grosso modo ser Deus mesmo o objeto da memória de Deus, desde que se

perceba que o sentido disso está na afirmação de que Deus é encontrado nas noções

elementares que iluminam a vida racional: “ser, unidade, modo, número; verdade, sabedoria,

proporção, relação, beleza, harmonia, semelhança; felicidade, bondade, ordem,

obrigatoriedade, lei, causalidade; temporalidade, eternidade, espacialidade, etc”

(CILLERUELO, 1954, p. 503). E também que se perceba que viver segundo Deus é viver de

acordo com normas ou virtudes que não são mais do que extensões ou aplicações desses

fundamentos: prudência, justiça, fortaleza, temperança; incluindo a própria inteligibilidade da

fé.

Destarte, o verbo interior concebido a partir da memoria Dei não representa a

expressão de uma experiência sensível, entretanto, representa um juízo racional sobre essa

110

classe de experiências; do que se deve chamá-lo mais propriamente de sabedoria, e não

ciência. A recordação de Deus é aquela que contrapõe o eterno ao temporal, o imutável ao

mutável, o modelo inteligível ao exemplo empírico, a unidade à multiplicidade, a harmonia à

complexidade etc. Concebida como “disposição para produzir a visão intelectual”

(CILLERUELO, 1954, p. 507), define-se que se trata de algo que é “um antecedente, não

pertencente à psicologia, porque não pertence à esfera da consciência. Tem um caráter

ontológico, metafísico. Sua existência se deduz e demonstra por argumentação”

(CILLERUELO, 1954, p. 108). E, dessa forma, também não é demais sugerir que isso a que

se chamou por participação, significa o modo de uma presença, a “presença de Deus na

imagem” (SOMERS, 1961, p. 6).

Finalmente, a partir do que foi possível demonstrar a respeito da ideia de Agostinho

sobre a verdadeira imagem de Deus na mente, conclui-se com o próprio autor que a relevância

da abordagem teológica para a restauração da deformidade nessa imagem é efetiva. A

começar por dizer que a imagem se “renova dia a dia no espírito da mente pelo conhecimento

de Deus” (A Trindade, XIV, 19, 25). Ou seja, não há progresso sem que se progrida também

no entendimento. Inspirado e salvaguardado pela mediação de Jesus Cristo, o santo descrito

por Agostinho é aquele que desejará cada vez mais e melhor viver de acordo com a verdade

que já compreende, visto que o caminho “consiste no amor e na investigação da verdade” (A

Trindade, XIV, 19, 26).

4.2 Perspectiva mística

A mística agostiniana inclui pelo menos três vertentes: a elevação no campo

intelectual, que se resume na via do conhecimento filosófico e teológico; a contemplação, que

é a via mística propriamente dita; o progresso gradual na caridade, também caracterizada

como ordenação do amor. Segundo F. Cayré (1927, p. 110), a verdadeira sabedoria representa

Deus perfeitamente e excede a fé, mas, antes de atualizar-se como imagem no homem, ela

supõe a fé como fundamento necessário nesta vida. A vida moral do cristão – uma vida ativa -

deve conduzir à sabedoria contemplativa final, todavia, ascetismo e mística mantêm intima

relação, na mesma medida em que o conhecimento se relaciona ao amor por servir ao

progresso na caridade.

111

Ainda com Cayré, também é relevante notar que o ponto de vista de Agostinho não se

detém no aspecto ascético negativo dos místicos e de suas experiências diretas e impessoais

de Deus. Há também o aspecto positivo e filosófico. (CAYRÉ, 1927, p.112). Não se limita a

dizer o que deve ser removido da alma para que seja iluminada; porquanto mostre também o

que deve permanecer nela para ser utilizado: trata-se das chamadas primeiras noções do

espírito (ou mente), sobre o ser, a verdade, o bem. Noções das quais os primeiros princípios

intelectuais e morais derivam imediatamente, e que são a luz mesma do espírito. São noções

supremas e gerais, anteriores a conhecimentos específicos, mas, longe de serem suprimidas

pela luz superior da graça, são, ao contrario, o ponto de apoio dessa luz, como algo que

prepara e atrai essa luz, como um complemento. Esse é o papel da sabedoria, considerada

ainda nesta vida. Uma definição dessa sabedoria consiste em pensar a recuperação progressiva

do espírito do homem em suas intuições iniciais, através do amor. (CAYRÉ, 1927, p 113).

Nesse sentido, descobre-se que o ponto de vista de Agostinho sobre a restauração da

imagem de Deus na mente visa uma transformação integral da alma que se encontra em

estado de pecado. A noção de caminho encontra aí um paralelismo com a noção de progresso.

Trata-se efetivamente de algo que pode ser medido, traduzindo-se pelos dons concedidos pela

graça divina a cada um. Em suma, a “caridade, que é o dom divino mais excelente e a

expressão mais fiel de nossa liberdade pessoal, é a que faz com que Deus esteja presente em

nosso coração” (TURRADO, 1971, p. 170), ou seja, é sinal de que Deus passa a habitar

naquele que é santificado pela graça.

A medida do progresso é a liberdade. Quanto mais infundida a caridade no coração do

homem, tanto mais livre para não condescender ao pecado ele se torna. Agostinho valorizava

muito a enunciação de Jesus, frente aos judeus, como aquele que viera para cumprir a lei,

porque a plenitude da caridade no coração deve equivaler ao encontro do deleite na boa obra,

expressão máxima da liberdade. A caridade não luta contra o pecado, nem o teme diante de

Deus, ela é ordenação no campo do amor, por ser o amor de Deus e, num sentido psicológico,

equivale ao prazer numa modalidade superior, não egoísta.

Em se tratando da oposição paulina entre a graça e a lei, Agostinho postulou que a

“plenitude da lei é a caridade” (Exposição da epístola aos Gálatas, 44). Para ele, agir de

acordo com o deleite é uma necessidade humana. Entretanto, a vontade pode buscar o

contentamento do deleite em objetos completamente opostos, o que justifica o Apóstolo ter

colocado em oposição o que seriam, de um lado, as obras da carne e, de outro, os frutos do

espírito. Estes não podem conviver mutuamente com os pecados, de sorte que, quando

presentes, “não reinando o pecado em nós para obedecer a seus desejos, senão imperando a

112

justiça pela caridade, com grande deleite fazemos tudo o que conhecemos que nela agrada a

Deus” (Exposição da epístola aos Gálatas, 49).

Com exemplar humildade, a oração final do De Trinitate resume a busca de

Agostinho: “Que de ti me lembre, que te compreenda e que te ame! Faze-me crescer nesses

dons, até que me restaures totalmente” (A Trindade, XV, 28, 51). Encontra-se aí o sentido da

habitação divina pela graça, desdobrada nos dons da lembrança (ou memória), compreensão e

amor de Deus. Não obstante o afastamento de sua obra em relação a um misticismo puro,

também não caberia de forma alguma a classificação de intelectualista para santo Agostinho.

Pensá-lo como teólogo místico é pensá-lo como “teólogo da mente e do coração”

(MORIONES, 2004, p. 39).

Enquanto místico, nosso santo é teólogo da interioridade. Tal como numa teologia

negativa, seguiu numa via de eliminação ou negação, selecionando tudo o que não se faz

atributo de Deus, para tornar mais nítida a via da luz interior. Não descartou a experiência

sensível, mas selecionou aquilo que pertence verdadeiramente ao homem interior. Numa

espécie de mescla de imanência e transcendência, o amor a Deus foi descoberto como amor

da “luz, a voz, o odor, o alimento, o abraço do homem interior que habita em mim, onde para

a minha alma brilha uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo

não destrói” (Confissões, X, 6, 8). E como se realizasse uma destilação da memória,

aprofundando por camadas sobrepostas, os lances fugazes da contemplação se tornaram mais

e mais explícitos nos encontros com a luz inteligível: interior intimo meo et superior sumo

meo. Como retrato do mestre da retórica, da teologia e da mística, o trecho seguinte é muito

significativo:

Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste [...] Fulguraste e brilhaste [...] Espargiste tua fragrância [...] Eu te saboreei [...] Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz (Confissões, X, 27, 37).

Os termos imanência e transcendência explicam a continuidade progressiva da busca

agostiniana, definida como um movimento em que se busca para encontrar, e em que se

encontra para seguir buscando. Primeiramente o fundamento da transcendência baseia-se “no

reconhecimento sábio da sublime inefabilidade dos mistérios divinos” (MORIONES, 2004, p.

57). E numa outra perspectiva, descobre-se que “essa busca do sumo bem já é um ato de amor

que aperfeiçoa o homem” (MORIONES, 2004, p. 57). Desse modo, é possível dizer que a

113

graça santificante produz um movimento imanente ao homem, e constitui-se, com “seu

séquito de dons e virtudes, como o único elemento temporal e realmente novo da habitação

divina nos justos” (TURRADO, 1971, p. 171).

De acordo com o que a presente investigação já logrou demonstrar, a meta da

santidade buscada e ensinada pelo bispo de Hipona pode ser bem definida tal como no trecho

seguinte: “A meta de santidade consiste no embelezamento da imagem de Deus, segundo a

qual fomos criados. O conhecimento e amor de Deus são os meios que devemos usar”

(MORIONES, 2004, p. 384). Porém, as modalidades de conhecimento e de amor assim

definidas extrapolam os limites que lhes são próprios para convergirem na sublimidade dos

efeitos da experiência mística.

Classifica-se como mística um tipo de experiência profunda, intima e próxima do

inefável, em que se realiza, ou se busca realizar, a união com a divindade: daí que é costume

tradicional nomear essa experiência de união mística. Considerando o fundo psicológico das

incursões teológicas agostinianas, é possível localizar algumas notas específicas desse clímax

da espiritualidade, e compreender seus efeitos de transformação pessoal.

Em primeiro lugar, ressalta-se a peculiar interioridade agostiniana, como via e meta da

busca por Deus. O ponto de partida da caminhada situa-se na volta sobre o mundo interior.

Não há dúvidas que em Agostinho isso difere muito de uma pura introspecção. Ao invés de

modular-se numa alienação, a interioridade figura como abertura à alteridade absoluta e

transcendente do Outro divino, “é uma interioridade que sob o influxo de uma ação mais

profunda [...] transcende esta mesma introspecção desprendendo a alma ainda das últimas

formas da experiência intelectual” (MUÑOZ VEGA, 1954, p. 604). Na sobrenaturalidade

dessa “ação mais profunda” reside a especificidade da experiência mística a ser alcançada

nessa via. A ideia da ação da graça divina supõe tanto um chamado no ponto de partida como

o acesso a algo simultaneamente superior e estranho aos limites das faculdades naturais da

mente.

Como consequência disso, o que se segue ao primeiro vislumbre dessa região superior

é o dilema da escolha entre a grandeza e a miséria do homem. A entrada nesse dilema é

determinada pela fé, porque a escolha somente se impõe àquele que crê ter experimentado a

realidade de algo superior, que se apresenta como Verdade, Beleza, Ser. Isso explica a

inquietude do santo em sua busca incessante, por participar duplamente do ser e do não ser; da

vida e da morte; da beleza e da deformidade; da ciência e da ignorância; e explica sua súplica

em Confissões: “fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em

ti” (Confissões, I, 1, 1).

114

Entretanto, a participação que o místico pode ter nesse mistério está marcada por outro

mistério: a revelação da Verdade na pessoa de Jesus Cristo. O próprio eu é identificado com o

princípio de morte e de não ser, visto que a Verdade viva é vislumbrada em sua pessoalidade

e, portanto, em caráter espiritual. Essa espécie de negação de si mesmo - enquanto condição

de transcendência - é o que explica o paradoxo da interioridade agostiniana, naquilo em que

ela define algo mais interior que o próprio interior, “porque na experiência mística ela é

percebida como contraste crucial entre uma Pessoa que se comunica com luz inefável desde

as profundezas da alma e o próprio ‘eu’, sentido como estorvo mortal para a aproximação e

união com essa Pessoa que é Amor infinito” (MUÑOZ VEGA, 1954, p. 605).

Destarte, a perspectiva mística da doutrina da imagem de Deus revela a teleologia

inerente ao plano soteriológico da antropologia agostiniana. Todavia, trata-se de uma

revelação experiencial, íntima, mas no plano metafísico, ou seja, trata-se de uma apercepção

temática que pode também ser expressa conceitualmente, fundamentada na experiência do

transcendente interior. Em síntese, para além da pura assunção da fé, o fato místico vivido

desvela o verdadeiro potencial humano, e efetivamente orienta “a estrutura íntima da alma

para uma meta interior: a união suprema com Deus” (MUÑOZ VEGA, 1954, p. 605).

A noção de deificação coroa a investigação do misticismo espiritual agostiniano. Ao

mesmo tempo em que delineia a mais alta interpretação a que chega a doutrina da restauração.

O pastor de almas aproveitava a exegese dos Salmos para elevar seus fiéis: “O Deus

verdadeiro fez deuses que nele creem, e deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus [...]

fez-nos deuses, porque nos iluminou os olhos interiores” (Comentário aos Salmos, 94, 6).

Descobre-se nessa noção também o sentido último da mística propriamente cristã, que não é

nada menos do que considerar a deificação como a grande obra de Jesus e finalidade da

encarnação. Donde decorre a exclusividade da mediação do Cristo, um processo de mediação

insubstituível em que Deus “se faz partícipe da natureza humana, e o homem se faz partícipe

da natureza de Deus” (CAPÁNAGA, 1954, p. 747).

Justificação, filiação adotiva e deificação são conceitos interligados pelo conceito de

participação. Juntamente com o aperfeiçoamento da caridade, esses termos constituem o que

há de mais essencial do legado da doutrina da graça. A deificação significa efetivamente uma

elevação sobrenatural da condição humana. Para os deuses que serão na vida futura, reservado

está um destino de imortalidade, perfeição, justiça, felicidade, sabedoria: lá a participação se

elevará à visão da face de Deus. Por outro lado, há o uso do termo adoção. Isso significa que a

participação jamais igualará os homens a Deus. Somente o Filho é Deus com Deus, gerado e

115

coeterno e, por isso mesmo, é mais correto dizer que a “filiação de cristo é perfeitíssima e

fundamento e exemplar da filiação adotiva” (CAPÁNAGA, 1954, p. 749).

4.3 Compilação temática a partir de textos agostinianos

Selecionamos alguns textos de santo Agostinho, para fazer o fechamento da

apresentação do tema da restauração da imagem de Deus na mente com uma abordagem mais

direta. Em A verdadeira religião e A Trindade o uso do termo restauração tem prioridade

sobre renovação, reforma e recriação. A partir dessas duas obras é possível delimitar o sentido

do processo e a meta da restauração. Com os chamados tratados sobre a graça, focaliza-se a

centralidade do progresso na caridade, o papel da fé e as noções de predestinação e

perseverança. Finalmente, através das exegeses do Genesis bíblico, delineia-se a restauração

da imagem no plano escatológico de uma teologia da história.

4.3.1 O sentido e a meta

Na obra A verdadeira religião, a ideia de restauração é trabalhada a partir do nível

moral, e associada diretamente com uma transformação pessoal, que resulta numa reversão da

condição de pecado caracterizada pela deformidade da imagem de Deus. São consideradas as

três modalidades fundamentais do pecado, a partir da influência do Evangelho de são João:

concupiscência, orgulho e curiosidade. Sendo assim, os exercícios da ascese espiritual podem

ser sistematizados de acordo com aquilo que deve ser curado no homem.

Dois princípios devem ser considerados como pressuposto para o caminho a ser

seguido. De acordo com nosso entendimento, podem ser denominados como princípio da

interioridade e princípio cósmico ou da universalidade. Na verdade esses princípios são inter-

relacionados, e funcionam aqui como um embasamento racional e teológico da potencialidade

da mente humana subentendida na ideia de restauração. De modo que, por eles, não somente a

fé na revelação se torna melhor compreendida, como também a alma pode reconhecer-se

deformada em sua essência.

116

O princípio da interioridade é aquele que celebra a verdade habitando o coração do

homem. Não obstante as verdades concebidas na alma que raciocina serem compostas através

de sua própria natureza mutável, quando se pensa nessa afirmação sobre a verdade em si,

considera-se aquilo que permitiu a Agostinho a exortação: “dirige-te à fonte da própria luz da

razão” (A verdadeira religião, 39, 72). Sem que isso signifique afirmar que o raciocínio

humano alcance mesmo a verdade, mas, de toda forma, legitimando a finalidade da busca pela

mesma.

O segundo princípio busca uma perspectiva de conjunto, ou de totalidade, para

sustentar que “todos os seres, por seus ofícios e finalidades ordenam-se para a beleza do

universo” (A verdadeira religião, 40, 76). E isso pode ser entendido tanto como a afirmação

de uma harmonia determinante para a existência das criaturas, imutavelmente estabelecida

sobre a totalidade dos movimentos, ou como legitimação da possibilidade do ser racional

emitir juízo sobre todas as coisas. Ou seja, trata-se de uma ideia que veicula a crença no

mundo inteligível platônico, enquanto dimensão da existência substancial das “leis secretas da

natureza, reguladas pela imutável lei dos números, origem de toda harmonia” (A verdadeira

religião, 42, 79); todavia, ideia que logicamente também prevê uma compreensão da luz

racional como interiorização dessas leis ou números por parte do homem.

Somente com a base dessas proposições fundamentais a natureza do pecado torna-se

evidente, naquilo em que concupiscência, orgulho e curiosidade constituem modalidades

características de deturpação da própria essência humana, no sentido de ruptura com toda

ordenação e hierarquia. Por esses três tipos de erros o ser dotado de livre arbítrio deixa de

ocupar seu lugar e de cumprir sua finalidade. Donde já se torna evidente que a restauração

deva transmitir o desenho de uma nova vida plena de bondade e liberdade frente ao desejo

pelas coisas mutáveis, pressupondo, portanto, o domínio do espírito sobre a carne; da mente

sobre o corpo; da razão sobre a paixão.

Nessa obra, em que uma tríplice restauração é proposta, a primeira delas é atribuída

justamente aos efeitos benéficos da descoberta e da reflexão sobre as realidades comunicadas

na elocução desses dois princípios. A partir dessa reflexão, a nova vida é concebida como

meta e finalidade do homem, podendo este compreender um pouco da natureza imaterial,

eterna e imutável da Sabedoria do Criador, a quem deve buscar unir-se. A nova vida torna-se

efetivamente meta, porque a reflexão desvela a superioridade do supremo bem frente aos bens

mundanos. E torna-se também finalidade, porque o homem entende ter sido feito para a

Sabedoria, como que destinado a ela, assim como “toda criatura racional e inteligente entre as

quais, com muita razão está incluído o homem, por ser feito à imagem e semelhança de Deus”

117

(A verdadeira religião, 43, 82). Destinação esta que mostra sua grandiosidade cosmológica na

incumbência do governo sobre todas as criaturas, sob a intuição de que “se a alma racional

serve ao seu Criador, de quem, por quem e para quem foi feita, todas as demais criaturas o

servirão também” (A verdadeira religião, 43, 82).

Se a primeira restauração enfraquece a concupiscência, a segunda ataca o orgulho. O

remédio é a caridade. Agostinho descobriu na soberba certa tentativa de imitar Deus

perversamente, a tal ponto que psicologicamente pode ser definida como “apetite de unidade e

onipotência, mas dentro do plano das coisas temporais” (A verdadeira religião, 45, 84).

Tomada na perspectiva da cobiça gerada por essa tentativa perversa de imitação, a

caridade deve ser considerada remédio, justamente porque ao buscar o domínio das coisas

temporais por si mesmas, as paixões do mundo é que se tornam senhoras do espírito. O amor

a Deus liberta. Ao amar aquilo que deve ser amado e da maneira como deve ser amado, o

objeto do amor deixa de ser algo fugaz e que pode ser perdido, mesmo quando se trata do

amor ao próximo, pois, o homem que adentrou na senda da perfeição “possui dentro de si

aquele a quem ama como a si mesmo” (A verdadeira religião, 46, 86). Não se trata de apego a

essa ou aquela pessoa, mas um amor por Deus, que visa o que há de melhor em cada criatura

ou na ordenação delas. No caso do homem, ama-se a natureza humana naquilo em que ela é

potencialidade para a perfeição. Assim, de um estado penoso de luta e disputa, os homens

passam a um estado de comunhão e fraternidade no qual os “que amam a Deus e fazem a sua

vontade, formam com ele uma só família” (A verdadeira religião, 46, 89).

Deste modo, como Agostinho buscava ver a mão de Deus operando em tudo o que

acontece ao homem, chamando-o de volta a pátria, nesse caso também não foi diferente. O

orgulho - enquanto imitação - guarda alguma semelhança com aquilo para o que o homem

caminha em seu aperfeiçoamento, em resumo, “o orgulho é sombra da verdadeira liberdade e

do verdadeiro domínio. É também instrumento pelo qual a divina providência nos lembra

aquilo do que nossas paixões são sinais” (A verdadeira religião, 48, 93).

A terceira restauração serve a direcionar a busca pela verdade, e afastar o espírito das

vãs curiosidades. A curiosidade também gera a cobiça, mas seu efeito é um tipo de dispersão

do espírito na multiplicidade das coisas temporais, de modo que ele fique às voltas com suas

próprias imaginações. Para curá-la, antes de qualquer coisa é preciso compreender

corretamente a luz do espírito, para descobrir a verdade que a ilumina. Depois se deve ter em

conta o real valor da fé e da revelação da verdade nas escrituras.

Agostinho propôs que as escrituras revelam certa estratégia da divina Providência,

para conduzir os homens como que por degraus a um estado de depuração do olhar interior.

118

Essa estratégia passou pelo uso de sinais, parábolas e comparações. Com isso, o povo de Deus

foi conduzido rumo a uma inteligência da fé. Porém, visto que os fatos relatados ali são

históricos e, certamente, fazem parte de uma realidade material e temporal, o clímax da

investigação reside na questão: “de que nos serve crer nas realidades temporais para chegar a

compreender e possuir os valores eternos, fim de todas as boas ações?” (A verdadeira

religião, 50, 99).

A resposta a essa pergunta reside na abertura para a verdadeira religião, porquanto a

compreensão e a posse dos valores eternos constituam progresso no caminho a Deus. A

respeito da descoberta da natureza imutável e incorpórea da sabedoria do Criador revelada nas

escrituras, admite-se então que nisso consiste o impulso inicial para “a passagem do temporal

ao eterno, a transformação vital do homem velho no homem novo” (A verdadeira religião, 52,

101).

A tríplice restauração se opõe, portanto, a cada uma das três raízes dos piores vícios

humanos. Devido a isso, é bem claro que se deve considerar que aquilo que se opõe a esses

vícios é justamente nomeado como prática das virtudes. E isso é importante principalmente

porque, nessa concepção, está previsto que os próprios pecados imitam de certa forma a

perfeição das virtudes. Ou seja, concebe-se uma relação entre essas tendências da alma, de

modo que a curiosidade pressupõe a existência do verdadeiro conhecimento; o orgulho

pressupõe o poder absoluto; o prazer carnal almeja o pleno descanso que, na verdade, é gozo e

paz. Dentro desse contexto, a santidade dos que caminham para a restauração, dos que já

foram reformados na caridade, caracteriza-se por um tipo de vida neste mundo em que o

homem deve procurar, pelo entendimento, amar somente a verdade; na ação, amar somente a

paz; no corpo, só a saúde apreciar. (A verdadeira religião, 53, 103). Essas são as condições

para que seja possível usar bem a existência corporal, e para dirigi-la para seu verdadeiro fim

em Deus: nesta vida, dedicam-se todos os esforços em crer, ajudar o próximo a crer, amar e

conhecer a Deus e, em tudo isso, superar e transcender a própria natureza deformada no

pecado.

Não restam dúvidas de que a ideia de restauração visa sustentar e motivar um esforço

de transformação interior nesta vida e, nisso, é uma ideia de cunho profundamente moral. Não

obstante, o que realmente se espera nesta e na outra vida não é tão fácil assim de determinar.

Principalmente, a meta final da restauração é quase impossível de ser descrita com exatidão,

visto que se trata de pensar algo ainda não existente e, logicamente, algo superior aos homens.

As páginas finais da obra A Trindade são o suprassumo do pensamento agostiniano no que

119

concerne a esse assunto. Encontram-se nelas, tanto o sentido psicológico do trabalho visado

nesta vida, como a ousadia metafísica de uma descrição da meta final.

Em linguagem paulina, a perfeição se dará com a visão da face de Deus na

ressurreição final. Nesta vida, a contemplação é visão em espelho: e a imagem vista é

enigmática. Todo o trabalho teológico estudado um pouco acima se baseia, com as analogias

trinitárias propostas, na expectativa de, “pela imagem que somos nós, ver de algum modo,

como em espelho, aquele que nos criou” (A Trindade, XV, 8, 14). E o que primeiramente reza

a interpretação de Agostinho é que a semelhança que essa imagem possa ter a Deus é obscura,

ou, nas palavras de são Paulo, é um enigma. No entanto, por mais enigmática, não deve ser

descartada como incompreensível, pois se trata de visão legítima, única permitida nesta vida,

e também a que melhor revela aquilo que ainda deve ser aperfeiçoado no homem.

O homem é imagem de Deus segundo aquilo que tem de melhor, que é a alma

racional. Entretanto, essa imagem é mais bem delimitada naquilo que Agostinho nomeou

verbo interior. Sua tese é a de que realmente há semelhança entre nosso verbo e o Verbo de

Deus.

Ao escrever isso, o santo bispo se referia à “palavra (verbum), antes de ser

pronunciada, e mesmo antes de se formar pelo pensamento a imagem de seus sons” (A

Trindade, XV, 10, 19). É uma ideia que pressupõe uma divisão psicológica da atividade

cognitiva. Primeiramente é preciso que algo já esteja retido na memória, seja porque foi

experimentado pelos sentidos ou porque já fora pensado e refletido anteriormente. O verbo

interior faz-se presente no momento em que o sujeito sabe que sabe determinada coisa

enquanto verdade. Da forma como Agostinho o apresentou, não há como entender esse verbo

senão como algo imediato, tipo de expressão imediata de um saber e, portanto, algo que

possui uma temporalidade singular; mesmo que aquém da eternidade, contudo, não

pronunciado no tempo, mas como que contido num único instante do presente. O pensamento

em si já é uma tradução desse saber pela articulação de um idioma. O pensamento possui

duração, gasta um tempo para ser pronunciado interiormente, possui começo, meio e fim. E,

consequentemente, por sua vez, a fala é coisa, é som, é expressão concreta do pensamento e,

depois de pronunciada, só mantém alguma relação com o pensamento em si, quando escutada

e assimilada em seu sentido.

O Verbo de Deus fez-se carne. O verbo do homem faz-se voz. Entretanto, o verbo

humano verdadeiro é o verbo interior, e é na geração dele que a verdade é concebida. O verbo

é idêntico à ciência de que procede, tal como o Filho é idêntico ao Pai que o profere como seu

Verbo. Se o pensamento comunica fielmente o verbo interior, então ele expressa a verdade, ou

120

ainda, ao menos, a medida humana da verdade. Agostinho se valeu de Mateus 5, 37, para

defender com ainda mais autoridade essas proposições, que buscam definir a correta relação

do homem com a verdade que habita em seu interior. Ali está escrito: “a vossa palavra seja

sim, se for sim; não, se for não. Tudo o que passar disso vem do mal”.

Isso expressa bem a importante via de semelhança entre o verbo e o Verbo. O Filho é

substancialmente semelhante ao Pai, sua semelhança vai até o extremo da igualdade. O

verdadeiro verbo também comunica integralmente o conteúdo de memória donde provém,

conteúdo este nomeado “saber imanente à alma”. Nisso, o verbo não pode mentir, sua

determinação não permite permuta de significados, de modo que Agostinho pensou nessa

equivalência ao sim, sim; não, não, que define algo como uma retidão de espírito na qual

“aquele que está na verdade está no verbo” (A Trindade, XV, 11, 20).

Outra semelhança digna de nota encontra-se no modo como o verbo é o determinante

da vontade. O querer não constitui um tipo de conhecimento, porém, comunica também um

tipo de verdade interior que, para Agostinho, também provém do verbo. Essa característica do

verbo é comparada com aquela com a qual se afirma que tudo foi feito pelo Verbo de Deus.

Da mesma forma, nada é feito pelo homem sem que corresponda a uma palavra interior, o que

é o mesmo que dizer que todo ato é fruto de uma intenção do espírito.

Para essa doutrina, de nada valem as boas ações, se não corresponderem

verdadeiramente a intenções semelhantes, pois, caso contrário, seriam denominadas

hipocrisia. Ao considerar o verbo verdadeiro, encontra-se nele a origem da boa obra, desde

que haja comprometimento para reconhecer e fazer valer o preceito de que, caso exista nele

“o princípio ordenador da vida, exista também a norma do bem agir” (A Trindade, XV, 11,

20).

E, finalmente, um terceiro ponto de semelhança decorre do antecedente. Se o princípio

de toda ação é o querer, ou intenção, então o verbo pode existir sem desdobrar-se em ato, mas,

a ação não pode existir sem que a preceda o verbo. Isso se verifica, da mesma maneira que

“criatura alguma poderia existir sem Aquele pelo qual tudo foi feito” (A Trindade, XV,

11,20).

A ideia de restauração sempre esteve aliada à crença na existência de um fundamento

natural como garantia das potencialidades humanas. Como já foi descrito anteriormente, esse

fundamento é a própria doutrina da imagem de Deus, embasada na teoria sobre a criação do

homem e sobre a deformação da imagem no pecado. Todavia, a investigação da

correspondência do verbo interior humano ao Verbo divino é praticamente mérito exclusivo

da obra A Trindade. Os resultados dessa investigação oferecem subsídios para um

121

esclarecimento ainda maior sobre a natureza da mediação do Cristo encarnado, no sentido de

elevar a compreensão que se possa ter sobre o motivo de ter sido o Filho a encarnar, e não a

Trindade, ou o Espírito Santo, e também no sentido de demonstrar o valor da imitação para

quem toma a existência de Jesus como exemplo. Tendo explicitado as semelhanças tal como

se encontra acima, o texto de Agostinho se refere ao propósito da encarnação, apontando que

sua vinda teria sido “a fim de que, com o nosso verbo, seguindo e imitando o exemplo do

Verbo de Deus, pudéssemos viver retamente, ou seja, evitando a mentira, na contemplação e

na ação de nosso verbo” (A Trindade, XV, 11, 20).

O modo de vida que pode satisfazer as exigências desse ascetismo virtuoso, tal como

já foi dito, resume-se nos exercícios da fé, do amor ao próximo, do amor e do conhecimento

de Deus; e na constante busca de superação. Mas essencialmente o que faz a diferença maior é

a postura mental daquele que procura exercitar-se nas virtudes cristãs. Não foram poucas as

vezes em que o bispo de Hipona escreveu sobre o lugar de governo que o homem deve ocupar

na hierarquia das criaturas. Também não é difícil perceber que nisso consiste o poder e a

liberdade que se conquistam pela caridade. Nada abaixo de Deus pode submeter a criatura que

é imagem de Dele; nenhum dos seres inanimados, nem os irracionais e menos ainda as

concupiscências da carne. A mente racional julga sobre todas as criaturas, é a ela que cabem

os exercícios da contemplação, “a ela que situada como que em lugar superior e interior e

como na presidência de honra dos sentidos corporais, os quais lhe comunicam tudo o que é

objeto de juízo. Acima dela, nada há a quem deva se submeter, a não ser a Deus” (A Trindade,

XV, 27, 49).

Não obstante o esforço para conhecer as semelhanças pertinentes à imagem de Deus e,

com isso, determinar as lindes da contemplação nesta vida, Agostinho jamais deixou de

apontar o abismo que ainda separa mesmo o mais santo dos homens da perfeição final. Tudo o

que se alcança nesta vida são os progressos no aperfeiçoamento moral, o progresso na

compreensão intelectual de Deus, que inclui a chamada visão em espelho, e, talvez, os

instantes fugidios da experiência mística. Ainda assim todos se encontram longe da visão face

a face.

Dificilmente a especulação filosófica poderia ir além do que já está dito a respeito da

restauração. Somente uma única vez Agostinho se adentrou na dificílima tarefa de descrever o

que será o verbo humano no estado de semelhança perfeita, que corresponde à restauração

completa da imagem de Deus e que, por conseguinte, corresponde ao estado final de

deificação. Nada na obra de Agostinho se compara ao que está dito no trecho seguinte:

122

Mas então nosso verbo nunca será um falso verbo [...] Talvez, nossos pensamentos não serão mais volúveis, indo e vindo de uma coisa a outra, mas com um só olhar abrangeremos toda nossa ciência. Quando isso acontecer, porém, e se acontecer, a criatura que esteve em formação possuirá a plenitude, de modo a nada lhe faltar àquela forma, à qual deverá chegar. Contudo, nunca se há de igualar àquela simplicidade divina na qual nada há em formação, formado ou reformado, mas que é apensa pura forma; não sendo informe nem formável, mas uma substância eterna e imutável (A Trindade, XV, 16, 26).

O texto fala por si mesmo. Entretanto, a fim de concluir a presente investigação, no

que diz respeito à meta e ao sentido do processo da restauração, indicamos três pontos que nos

parecem praticamente resumir toda a doutrina.

Agostinho usou ali uma expressão inédita para se referir ao processo histórico no qual

toda a humanidade está envolvida, desde a criação. O texto contém a expressão criatura que

esteve em formação. Logicamente isso realiza um contraste com a ideia de reforma ou

restauração. Aquilo que está em formação não pode estar simultaneamente em processo de

reforma, trata-se de dois conceitos distintos. Uma questão pode ser colocada legitimamente:

estaria o homem em formação, ou deve ele ser reformado? A primeira hipótese indica

continuidade; a segunda, ruptura. A resposta a essa questão pode ser formulada a partir de um

estudo das exegeses agostinianas sobre o Genesis bíblico, e por isso será brevemente

postergada. No entanto, se a piedade de Agostinho for levada em conta, para quem a ciência

de Deus não comporta rupturas ou imprevistos, não há qualquer dificuldade em afirmar que a

primeira hipótese é mais correta. Com isso, sugerimos que o uso dos termos reforma,

restauração e renovação deve se restringir ao âmbito comparativo, por se referirem ao estado

original perdido. E, portanto, são termos de valor doutrinário, que não devem ser tomados na

literalidade.

Por outro lado, o trecho citado demonstra explicitamente que o estado final dessa

formação difere muito do estado original de Adão. Este foi criado em corpo animal e dotado

da possibilidade da obediência, de modo que lhe seria desconhecido o sofrimento e, em se

mantendo obediente, seria premiado com a imortalidade. Não foi dotado de ciência plena,

nem muito menos qualquer conhecimento que viesse a ter estaria desvinculado da

temporalidade de sua carne. Nota-se que o texto fala de abranger toda nossa ciência com um

só olhar, sem necessidade de incidir sobre a multiplicidade dos objetos e pensamentos. É uma

descrição que parece se aplicar mais à criatura angélica do que a Adão. Afinal, é impossível a

qualquer corpo animal atingir tal estado de conhecimento uno e imutável. Isso também pode

implicar numa relativização no uso do termo restauração sob a preeminência da simples

formação, sendo que aquilo que nos aguarda no futuro não equivale ao estado original. De

123

acordo com as interpretações agostinianas, tal como indicadas anteriormente, a restauração

equivalerá ao estado original em que o homem foi criado no Verbo de Deus, e não

concretamente ao estado de Adão; consequentemente, equivalerá a um estado historicamente

novo.

Uma última nota, para o arremate da doutrina, deve-se esclarecer que o estado de

deificação jamais fará com que o homem se iguale a Deus em sua natureza. O Deus uno e

trino é apresentado como eterno e imutável, ou seja, como algo a que não se aplicam

conceitos como formar e reformar. Isso remete ao uso do termo adoção, que significa que os

homens não se igualarão jamais ao Filho gerado do Pai. A filiação será adotiva, sendo que a

criatura será sempre criatura, mesmo que um futuro de perfeição lhe aguarde.

4.3.2 A doutrina da graça e o progresso na caridade

Agostinho defendeu a correta relação entre a liberdade e a graça. Para ele, era preciso

refletir sobre essa relação, sem subestimar a liberdade do homem e, ao mesmo tempo, sem

exaltá-la em demasia, a ponto de menosprezar a função da graça. Na base de seu pensamento

encontra-se a crença na predestinação dos santos, crença esta que atribui ao auxílio divino e

gratuidade da Providência “a conversão a Deus e o crescimento no mesmo Deus” (Carta 194,

7). A conversão é o advento da fé. O crescimento está divido entre o progresso na caridade e

na compreensão dos conteúdos da fé.

Em carta ao mosteiro de Hadrumeto escreveu que o “compreender com sabedoria é

próprio do livre-arbítrio” (Carta 194, 7). Entretanto, a questão é extremamente complexa,

pois a verdadeira liberdade é fruto da infusão da caridade, de modo que também se deve

atribuir à graça a possibilidade de vir a compreender. Dizendo de maneira mais objetiva,

Agostinho quis fazer-nos entender que “nosso merecimento consiste em procurá-lo; a

concessão da graça está, portanto, no fato de o encontrarmos” (A graça e a liberdade, V, 11).

Os pelagianos acreditavam que a graça estava na natureza humana, por ter sido esta

criada à imagem de Deus, sendo dotada de razão e apta a governar sobre todas as criaturas.

Todavia, acreditar nisso seria justamente o contrário do sentido da mediação do Cristo, seria

como que anular o valor de seu sacrifício e, Agostinho não pouparia esforços para vir a

corrigir esse grave erro. Jesus anunciou que não viera para revogar a lei, mas para cumpri-la.

Esse exemplo é contundente no sentido de advertir quanto ao fato de que a lei e a natureza

124

humana não são suficientes para a justificação dos homens. O erro de Pelágio foi subjugado

pela força do argumento que demonstra que, se Cristo morreu, “morreu para que a natureza

decaída em Adão fosse restaurada por ele” (A graça e a liberdade, XIV, 25).

A fé é o primeiro dom concedido, e é considerada como o alicerce do edifício.

Diferindo entre o que é próprio da natureza e o que só pode ser alcançado pelo dom,

Agostinho definiu que “o ser capaz de ter fé, assim como o ser capaz de ter caridade, é

próprio da natureza humana. Mas ter fé, assim como ter caridade, é próprio da graça” (A

predestinação dos santos, V, 10). Sendo assim, o vir a ter fé constitui o primeiro sinal da

predestinação. Pois na imutabilidade de sua presciência dos fatos, Deus já tem preparado toda

a construção do edifício, ou seja, já tem reservado a cada um dos eleitos a estrutura de sua

salvação. E nisso, quando advém o dom, confirma-se que “a graça é doação efetiva da

predestinação” (A predestinação dos santos, X, 19).

Sobre os santos, Agostinho disse que o Deus encarnado “retirou-os do mundo quando

ele vivia no mundo, mas já eram eleitos em si mesmos antes da criação do mundo” (A

predestinação dos santos, XVII, 34). Essa retirada do mundo pode ser entendida como um

tipo de vida. Outro importante fator de relevância doutrinária consiste na afirmação de “ser

dom de Deus a perseverança com a qual se persevera no amor a Cristo até o fim” (O dom da

perseverança, I, 1).

O tema da perseverança busca definir a principal característica dos eleitos que se

mantêm, tendo iniciado no caminho da fé, no amor a Cristo até o fim da vida, o que implica

também a persistência na prática das virtudes. A manutenção da própria fé vem em primeiro

lugar, a tal ponto que com “mais razão se pode dizer que perseverou no dom da fé o que foi

fiel durante um ano, ou menos, se viveu na fé até a morte, e não dizer daquele que foi fiel

durante muitos anos, mas que momentos antes da morte veio a perder a fé” (O dom da

perseverança, I, 1). Sobre esse alicerce são edificadas as virtudes da continência, da justiça,

da piedade, e outras, desde que garantidas pelo “grande dom de Deus que garante a

continuidade de todas as suas dádivas” (O dom da perseverança, II, 4).

Lê-se sobre os santos que Deus os “escolheu antes da fundação do mundo, para serem

santos e irrepreensíveis diante dele no amor” (Ef 1, 4). Isso é mais uma comprovação de que a

caridade é o grande dom, sendo aquilo que, infundido nos corações, os mantêm no caminho

que Agostinho denominava reto. Os santos de Deus devem sim pedir que o nome de Deus

seja santificado em seus corações; devem pedir que lhes venha o reino; devem clamar por não

cair mais em tentação; entretanto, é a caridade que explica aquilo que lhes é concedido,

125

porque não cair em tentação equivale a uma transformação íntima da vontade, ou seja,

equivale a verdadeiramente deleitar-se nas virtudes.

A autoridade do Apóstolo atinge com pertinaz contundência o argumento dos

pelagianos, cuja crença atribuía somente à natureza humana a qualificação de fruto da graça

divina. Agostinho sempre se valeu dessa autoridade, praticamente impossibilitando falsas

interpretações a respeito do tema, diante de tantas provas, como na Carta aos Filipenses,

quando Paulo objetivamente “asseverou que Deus opera em nós os dois, ou seja, o querer e o

operar” (A graça de Cristo e o pecado original, V, 6). O agir depende logicamente do querer;

o querer, em Deus, da caridade.

Compreender o que realmente significa essa operação divina é confessar o pecado

original, e assim, também a deformidade da vontade humana, incapaz de escolher livremente

pela justiça, pela continência, pela fraternidade. Essa compreensão age tal como advertência,

a partir da influência salutar da humildade, que se verifica naqueles que entendem; veem e

confessam que “Deus, não pela lei ou pela doutrina que soam externamente, mas por uma

força interna e oculta, admirável e inefável, opera nos corações humanos não apenas

revelações, mas também a boa vontade” (A graça de Cristo e o pecado original, XXIV, 25).

Finalmente, para emitir um parecer conclusivo sobre o dom da caridade como

elemento de transformação interior fundamental, que opera na restauração da imagem, é

preciso ter em mente as implacáveis limitações impostas ao homem pela transmissão do

pecado original. Agostinho não afirmou que a vocação dos eleitos consiste na plena realização

da caridade nesta vida. Pelo contrário, suas afirmações sempre visavam enaltecer em primeiro

plano a virtude da esperança, para daí sim falar em cura, mas, não no gozo e liberdade plenos,

pois que essencialmente em esperança.

A descoberta da nudez e a vergonha a que se seguiu a necessidade de cobrir as partes

íntimas, por parte de Adão e Eva, podem revelar o conflito interior dos primeiros pais. Ao

interpretar essa passagem, nosso autor destacou justamente que o casal primitivo “cuidou de

cobri-los porque se excitavam, não ao arbítrio da vontade, mas ao estímulo da sensualidade,

como se fosse a própria vontade” (A graça de Cristo e o pecado original, XXXIV, 39). Tendo

isso em consideração, para ele, pensar no aniquilamento total da concupiscência seria

desconsiderar a transmissão do pecado original. E como seu ensino fala de “maus desejos que,

não consentidos, não implicam culpabilidade, e que deixarão de existir, não nesta, mas na

outra vida” (A graça de Cristo e o pecado original, XL, 44), é preciso focalizar dois aspectos

da caridade, que entram em jogo no processo de restauração com ajuda da graça divina. O

primeiro deles é o amor a Deus, que é também amor das criaturas em Deus, e que propicia o

126

deleite em obrar bem. Entretanto, esse aspecto da caridade não chega à plenitude nesta vida e,

portanto, não aniquila a suscetibilidade à tentação. O segundo aspecto é o que

verdadeiramente se confirma no dom da perseverança, e é o que possibilita que também se

interprete a caridade, nesta vida, como a capacidade de não consentir ao mau desejo.

4.3.3 Horizontes históricos da restauração da imagem

A antropologia agostiniana está inteiramente comprometida com a questão das origens

e fins da humanidade. Talvez seja esta uma das mais notáveis conclusões a que o tema da

restauração da imagem de Deus na mente conduz. Principalmente porque o tema só se torna

acessível sob esse prisma, sendo incompreensível se tomado isoladamente. Foi também neste

sentido que se descobriu que o termo usado poderia mais propriamente ser substituído

simplesmente por formação, devido ao fato de se poder interpretar a ruptura, operada pelo

pecado na origem, como algo que compõe o pleno desenvolvimento da criatura humana.

Misteriosamente, as potencialidades que estão reservadas ao homem restaurado na vida futura

são superiores ao que foi prometido a título de prêmio à obediência do primeiro Adão. Mas,

isso pode ser verificado mais detalhadamente a partir do conteúdo das exegeses do Gênesis

bíblico. O agostinianismo encontra ali recursos de autoridade, para transpor as especulações

teológicas e filosóficas sobre a redenção do plano individual para o plano escatológico da

História.

Se todo o desdobramento dos tempos está contido na absoluta e imutável ciência de

Deus, é preciso confessar que não há nada do ocorre às criaturas que fuja a seus desígnios, e

que, da mesma forma, tudo o que possa acontecer no mundo cumpre sempre sua destinação.

Por esse motivo, faz-se necessário compreender o pensamento de Agostinho dentro da

perspectiva de que a criação possui como que duas faces, uma que corresponde ao modo

como tudo está criado desde sempre em Deus e, outra, referente ao tempo histórico em que

cada coisa efetivamente vem à existência. Para ele o texto bíblico revela que “tanto estão

concluídas como estão iniciadas as obras que Deus, ao criar o mundo, criou no princípio ao

mesmo tempo para se desenvolverem nos tempos posteriores” (Comentário literal ao

Gênesis, VI, XI, 18).

Nesse sentido, a narrativa do primeiro livro das escrituras assume alto valor profético,

muito além de uma simples tentativa de pensar a historicidade da criação. Usando de uma

127

espécie de mistura de literalidade e alegorismo, as exegeses do bispo de Hipona oferecem

profundas interpretações a respeito dos seis dias da criação, assim como sobre a origem e

destinação do homem. São essas interpretações que permitem dizer que o que está reservado

às criaturas humanas ainda está em formação, até que advenha o juízo final, pois, a doutrina

das razões causais permitia a Agostinho conceber um Deus que “concluiu estas coisas,

quando criou todas elas ao mesmo tempo e tão perfeitamente que nada seria preciso criar na

ordem dos tempos que já não tivesse sido criado por ele na ordem das causas” (Comentário

literal ao Gênesis, VI, XI, 19). Mas “concluiu” de tal maneira, já que essas razões primordiais

visam designar as sementes de tudo o que existiu, existe e existirá, que não parece errado

acreditar que todas as coisas na verdade estão sempre mal por começar. Todos desconhecem o

lugar e o tempo em que cada uma deverá existir.

Muitas e complexas são as possibilidades de interpretação sobre os seis dias da

criação. Mais de uma vez, Agostinho discursou longamente sobre o assunto. Por mais que sua

capacidade para captar o sentido alegórico dos textos fosse das maiores de seu tempo, a

primeira constatação básica deve reconhecer como “árdua e difícil tarefa para as forças de

nossa intenção penetrar, com a mente vivaz, na vontade do escritor a respeito destes seis dias”

(Comentário literal ao Gênesis, IV, 1). Entretanto, para o propósito assumido aqui, basta a

indicação de que tudo foi criado imutável e eternamente no Verbo de Deus. E, se aqui

consideramos uma larga distância entre as potencialidades dos primeiros pais no paraíso, aos

quais o prêmio pela obediência reservava-lhes a imortalidade, e as potencialidades que

aguardam os santos na ressurreição, aqueles que esperam o feliz gozo da participação na luz

verdadeira da Sabedoria; e se também, seguindo essa direção de pensamento, o livro do

Gênesis pode transmitir uma tradição a respeito das origens e fins da humanidade, então, para

o esclarecimento da doutrina da restauração basta mesmo o enunciado de que “a Sabedoria de

Deus, pela qual todas as coisas foram feitas, conhecia as primeiras, divinas, incomutáveis e

eternas razões das coisas, antes que fossem criadas” (Comentário literal ao Gênesis, V, XIII,

29).

Não havendo nada que Deus já não tivesse previsto na totalidade de sua criação, como

poderia gerar espanto a ideia de que no fim dos tempos uma imensa comunidade de santos

compartilhará de uma perfeição espiritual jamais alcançada por Adão? O corpo animal deste

provavelmente não diferia tanto do corpo de qualquer homem, a não ser por ter tido a chance

de não morrer, e por ter sido muito mais dócil ao comando da mente. O que significa que,

para Adão, fácil teria sido não pecar. Entretanto, não pecando, por herdar a imortalidade não

seria mais animal e, se seu corpo foi mesmo animal, “não receberemos o que nele perdemos,

128

mas um outro tanto melhor quanto o espiritual se avantaja ao animal, quando seremos iguais

aos anjos” (Comentário literal ao Gênesis, VI, XIX, 30).

Nesse contexto, o ensino de Agostinho sugere que, o principal motivo para continuar

usando o termo renovação (ou restauração) consiste na verificação de que parte daquilo que o

homem receberá na ressurreição já estava prometido desde as origens. Nesta vida, certamente,

não há como eludir a morte. Todavia, uma parte do estado original já é restaurada, aquela que

diz respeito à justiça, pois, com a ajuda da graça, a caridade efetivamente vence o pecado pelo

não consentimento. Já naquela vida futura, também serão renovados os revestidos pela

incorruptibilidade de um corpo espiritual, mas, não porque esse estado foi perdido devido ao

erro de Adão, e sim por receberem algo no que ele “transformar-se-ia, se não tivesse merecido

a morte” (Comentário literal ao Gênesis, VI, XXIV, 35).

Em acréscimo aos esforços descritivos empreendidos, na medida em que a transmissão

do pecado original se estabelece como o marco zero da história da humanidade, a restauração

da imagem deformada acaba por ser mais bem compreendida se tomada também em sua

virtualidade prospectiva, compondo um projeto magnífico que teria recebido somente seu

início em Adão. Toda a História passa a ser interpretada em relação a esse projeto, de modo

que o próprio termo história não deve designar senão o intervalo de tempo que se dá entre a

origem e o fim. A isso dá-se o nome de escatologia, porque esse intervalo de tempo não

transcorre aleatoriamente, mas cumpre em cada movimento sua destinação.

Mais de uma vez, Agostinho falou da história do povo de Deus valendo-se de uma

separação das idades do mundo, ou eras. Na maturidade sua cautela era maior, quanto a

interpretar alegoricamente o Gênesis nesse sentido. Entretanto, apesar da temeridade de uma

interpretação mais ousada, não é sem valor que, em uma de suas exegeses, os sete dias da

criação tenham sido apresentados como sete épocas, que culminam com a ressurreição final.

A tentativa de descrever as idades do mundo implica na percepção de que toda a

História possui certa unidade, e que pode ser abordada não somente em suas partes, mas

também na sua totalidade. O fato de que o Gênesis mostre uma diferença entre os juízos

divinos sobre cada etapa da criação em relação ao conjunto final, atribuindo o qualitativo

bom, para as criaturas tomadas individualmente e, muito bom para o conjunto, sugere uma

preferência. Além disso, santo Agostinho descobriu um fundo psicológico que parece

promover ou incentivar a busca pela intelecção da totalidade. Incentivo este que pode revelar

algo de proposital no modo como os seres humanos experimentam a relação entre harmonia e

prazer. Seria como se uma divina Providência houvesse cuidado para que fossem “tamanhos a

força e o poder da integridade e da unidade que, mesmo que sejam muitas as coisas, causam

129

prazer quando se juntam e contribuem para formar um todo” (Sobre o Gênesis, contra os

maniqueus, I, XXI, 32).

Portanto, a fé na futura perfeição do homem renovado poderia ser manchada ou

deturpada por intromissões de uma propensão egoísta, que nisso visse a sedução de um poder

perverso. Isso possivelmente aconteceria, caso não estivesse claramente declarada a completa

dependência do desenvolvimento desse plano à presença de uma Providência divina operante

na História. Nessa perspectiva, a vinda do Cristo, a justificação dos santos e a futura vida feliz

adquirem significação no processo histórico do povo eleito. Para Agostinho, desde Abrão, ou

talvez desde Abel, esse povo foi como que separado da grande massa do pecado, e dirigido

rumo ao fim glorioso objeto desta investigação.

As Escrituras também foram abraçadas por ele a partir do ponto de vista da unidade

dos textos. Sob essa ótica, os textos do Evangelho cristão se colocam em continuidade aos

textos judaicos do antigo testamento, revelando um encadeamento significativo entre cada um

dos relatos bíblicos, de forma que cada qual assuma a figuração de uma etapa atravessada

pelo povo de Deus rumo à redenção em Cristo. Essas etapas foram chamadas por ele de

idades do mundo. Conseguira discernir referências a seis desses períodos singulares nos livros

sagrados e, retrocedendo ao cunho profético do Gênesis, acreditou poder sustentar “também

que as mesmas seis idades apresentam semelhanças a esses seis dias, nos quais foram criadas

as coisas que a Escritura afirma terem sido criadas por Deus” (Sobre o Gênesis, contra os

maniqueus, I, XXIII, 35).

De acordo com a curta exposição encontrada na exegese do Gênesis dirigida à disputa

com os maniqueus, uma primeira idade do mundo fundara-se nos primórdios da humanidade,

num período que Agostinho propôs se estender de Adão a Noé. O ato de fazer a luz, realizado

no primeiro dia, compara-se ao surgimento do primeiro homem, pois o nascimento equivale a

vir à luz. Essa primeira infância teria cessado traumaticamente sua existência, sob as águas do

esquecimento figuradas por um terrível dilúvio.

A segunda idade é equiparada à puerícia do homem. De Noé a Abraão, a humanidade

resguardava-se num processo de maturação, para alcançar um estágio de fecundidade. A arca

de Noé pode figurar o firmamento entre as águas. A tarde desse dia metaforiza o caos e o

desencontro na confusão das línguas entre os construtores da torre de Babel. Talvez por falta

de uma raiz integradora, essa idade não foi capaz de gerar o povo de Deus, findando na

completa dispersão e desunião dos homens. Somente por meio de Abraão foi separado o povo

de Deus, tal como a terra separada das águas no terceiro dia. Assim, o povo eleito, “adorando

130

a um só Deus, como uma terra irrigada, para que pudesse produzir bons frutos, recebeu as

sagradas Escrituras e as Profecias” (Sobre o Gênesis, contra os maniqueus, I, XXIII, 37).

De Abraão até Davi, no intervalo de quatorze gerações, completou-se como que a

adolescência desse povo. Após o ocaso desse dia, figurado pela violação dos mandamentos,

no quarto dia os astros foram criados no firmamento do céu. A estabilidade do reino de Davi é

comparada a um firmamento, e se o sol demonstra esplendor; se o brilho da lua é como um

povo obediente reunido na sinagoga; se as estrelas são como príncipes; o quarto dia também

tem seu ocaso, pois o brilho desses astros é obscurecido como que pelos pecados dos reis.

A quinta idade prolonga-se até a chegada de Jesus. Nela o povo é mantido em

cativeiro em meio aos pagãos e, “com razão é comparada àquele quinto dia em que nas águas

foram criados os animais e as aves do céu, depois que os judeus passaram a viver entre os

pagãos, como num mar, e a ter, como as aves, uma morada instável” (Sobre o Gênesis, contra

os maniqueus, I, XXIII, 39). Mais uma vez a tarde vem com o peso dos pecados, deixando

cego o povo para reconhecer a vinda do Senhor.

A sexta idade é considerada a velhice, até mesmo no sentido do tornar-se aparente

dessa velhice do homem - aquele denominado velho por são Paulo. Dessa decrepitude

agonizante aprouve nascer o homem novo, para viver segundo o espírito. Para Agostinho, a

manhã desse dia foi a pregação do Evangelho por Jesus. Pelo texto bíblico, no sexto dia “foi

criado o homem à imagem e semelhança de Deus, assim como, nesta sexta idade, nasce na

carne nosso Senhor [...] Assim como naquele dia foram criados o homem e a mulher, assim

também nesta idade o foram Cristo e a Igreja” (Sobre o Gênesis, contra os maniqueus, I,

XXIII, 40). E também, se naquele dia o homem foi posto à frente dos animais, de maneira

semelhante nesta idade Cristo governa as almas. Portanto, aqui, todo homem é ministro e

imitador de Cristo.

O descanso do sétimo dia não pode ser senão o descanso eterno dos santos de Deus em

Deus. Agostinho temia por esse dia, dando claro sinal de não se aprovar precipitadamente,

caindo numa falsa consideração de perfeição. Entretanto, não obstante a ousadia de sua

interpretação das palavras do Gênesis, sua abordagem sempre foi restrita, limitada pela

sensata aceitação da inefabilidade divina, chegando a alegar a impossibilidade de se descrever

com palavras a maneira como Deus fizera toda a criação. Por isso, não é demais afirmar que,

sendo imperativa a impenetrabilidade dessas questões, o alegorismo acabou por se mostrar um

método mais profícuo do que interpretação literal. E, neste caso, mesmo com a tentativa de

defender a razoabilidade do sentido literal do texto, nosso autor jamais abandonou o sentido

alegórico, baseado no pressuposto de que a “exposição pela ordem dos dias retrata de tal

131

forma a história das coisas criadas que ela tem em conta sobretudo a predição das coisas

futuras” (Sobre o Gênesis, contra os maniqueus, I, XXIII, 41).

O fechamento dessa interpretação das idades é ainda mais interessante, pois, de certa

forma, descobre-se que cada homem deve como que atravessar os mesmos degraus da história

do povo celeste. Agostinho utilizou-se dos elementos principais da criação de cada dia para

sintetizar os progressos do homem no caminho da restauração, mas a partir do sexto dia, ou

seja, na era cristã. Em suas palavras “cada um de nós tem nas boas obras e na vida justa como

que esses seis dias diferentes” (Sobre o Gênesis, contra os maniqueus, I, XXV). Os seis dias

são como seis etapas da ascensão para a vida espiritual, assim como segue:

No primeiro dia tem a luz da fé, quando primeiramente acredita nas coisas visíveis [...] No segundo dia, tem o fundamento da doutrina, pela qual discerne entre o carnal e o espiritual, assim como aconteceu entre as águas inferiores e superiores. No terceiro dia, no qual dirige sua mente para produzir os frutos das boas obras, afasta-se do pecado e das ondas das tentações carnais, assim como a terra seca se separa das agitações do mar [...] No quarto dia em que, já naquele firmamento da disciplina, o homem, lidando com os conhecimentos espirituais e os discernindo, percebe o que seja a verdade imutável que refulge em sua alma como um sol; percebe como a alma se torna participante da mesma verdade e comunica ao corpo a ordem e a beleza, como a lua que ilumina a noite; percebe como todas as estrelas, ou seja, as inteligências espirituais, cintilam e resplandecem nas trevas desta vida [...] Fortificado pelo conhecimento destas coisas, no quinto dia, começa a agir nas agitações do mundo turbulento, como que nas águas do mar, em favor da sociedade fraterna [...] começa a produzir os répteis de almas vivas, ou seja, as obras que aproveitam às almas vivas; e também grandes cetáceos, ou seja, ações deveras poderosas [...] e aves do céu, ou seja, as vozes dos que anunciam coisas espirituais. Mas, no sexto dia, [...] Assim se faça também o homem à imagem e semelhança de Deus, homem e mulher, ou seja, inteligência e ação, com cuja união encham a terra de frutos espirituais, ou seja, submetam a si a carne e as demais coisas que foram ditas (Sobre o Gênesis, contra os maniqueus, I, XXV, 43).

Devido à peculiaridade dessas incursões agostinianas ao Gênesis, melhor teria sido

recorrer a outras tantas longas citações, o que, infelizmente, não corresponde ao escopo deste

trabalho. Isso porque a liberalidade do método alegórico pouco deixa a comentar, a não ser

que se buscasse confirmar ou confrontar as proposições a partir da base de outras referências.

Como o objetivo desta investigação está ligado a uma abordagem estrita do pensamento de

Agostinho, o que mais interessa nessas exegeses bíblicas é captar elementos de doutrina que

mantenham coerência com a totalidade da obra.

Portanto, se, em síntese, o que foi obtido acima revelou a ligação do tema da

restauração da imagem de Deus com uma teologia escatológica da história, então, a obra A

cidade de Deus oferece a maior prova de que Agostinho desenvolvera essa perspectiva até

suas últimas consequências. Ali, a noção de que os predestinados a Deus peregrinam nesta

terra desde as origens, separados dos homens que fixam seu domínio no mundo, vem

132

complementar e esclarecer o sentido do cristianismo enquanto doutrina para o final dos

tempos.

A fé de Agostinho abraçava a ideia de uma separação original no seio da criatura

Angélica. Para essa fé, a existência do diabo é tão certa quanto à de Deus. Criado na perfeição

angelical, esse anjo caído “não peca desde o princípio de sua criação, mas desde o princípio

do pecado, que começou a ser pecado com sua soberba” (A cidade de Deus, XI, XV). Sendo

assim, antes que se possa falar numa separação entre os homens, deve-se pensar que a raiz

dessa separação reside no recolhimento dos anjos em como que duas sociedades distintas21.

Esta crença também é baseada nas Escrituras, e nosso autor sobre isso diz

que as duas sociedades dos anjos, tão díspares e contrárias entre si, uma boa por natureza e reta por vontade, a outra, boa também por natureza e perversa por vontade, expressas de modo mais claro noutros lugares das Divinas Escrituras, estão, por sua vez, insinuadas com os nomes de luz e de trevas no livro intitulado Gênesis (A cidade de Deus, XI, XXXIII).

Portanto, encontra-se suposto no pensamento do bispo de Hipona um fundamento

sobrenatural para a cisão entre os homens. A argumentação sobre esse ponto faz referência

direta a essas “duas sociedades de anjos, tão diversas e contrárias entre si, em que se encontra,

no humano, o principio das duas cidades” (A cidade de Deus, XI, XXXIV) .

Se a verdadeira religião, para ele, reconhece e proclama o Criador do mundo e de

todas as criaturas vivas, das almas e dos corpos, e se entre todos os animais terrestres o

homem ocupa a mais alta posição hierárquica, por ter sido criado à imagem Dele, então toda e

qualquer característica da natureza humana compõe um propósito, ou seja, nada tem de

acidental. Uma dessas características certamente é a sociabilidade, atestada até mesmo pela

origem em comum de todos em Adão. Entretanto, essa tendência à união não garante um bom

uso da associação entre os homens, motivo pelo qual se amplia a legitimidade da consideração

de “que no primeiro homem, o primeiro criado, tiveram origem [...] segundo a presciência de

Deus, duas sociedades de homens ou duas espécies de cidades” (A cidade de Deus, XII,

XXVII, 2).

Primeiramente, é claro, antes que duas cidades tivessem origem, toda a humanidade

caiu em Adão. Esse é o pressuposto número um. Mesmo que os corpos possam vir a ser

espirituais, o “corpo animal é o primeiro, qual o teve o primeiro Adão, que não haveria de

21 Marcos R. N. Costa (1998) também defende em artigo a dupla origem da separação das cidades. Parece claro que Agostinho pensou primeiramente numa origem sobrenatural, anterior ao advento da humanidade na terra e, nesse sentido, “trata-se [...] de duas cidades de natureza mística ou meta-empírica, isto é, uma referência aos conceitos metafísicos de bem e mal” (COSTA, 1998, p. 1054).

133

morrer, se não pecasse, qual o temos agora, procedente de sua natureza” (A cidade de Deus,

XIII, XXIII, 2). É da massa humana caída em Adão que Deus selecionou os predestinados

para o seu amor, ou seja, selecionou aqueles que, por amar mais a Deus que ao mundo, da

queda iniciariam o caminho de ascensão. Em um dos trechos mais célebres dessa obra assim

está dito: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao

desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial” (A

cidade de Deus, XIV, XXVIII).

Seguindo esse raciocínio, a separação entre as duas cidades torna-se visível desde os

primórdios dos tempos relatados nas Escrituras, o que levou Agostinho a atribuir a Caim e

Abel o papel de respectivos fundadores. Caim é arquétipo dos poderosos deste mundo. Dele

está dito: “O fundador da cidade terrena foi fratricida. Levado pela inveja, matou o irmão” (A

cidade de Deus, XV, V). O exemplo do fundador de Roma, também fratricida, é aproveitado

para enfatizar o sentido daquilo que aí está representado. Quanto a Abel, cuja oferenda

agradara Deus, depois de morto pelo irmão, foi substituído por Set, sendo este então

legitimamente o primeiro pai da cidade celeste na terra. O nome Set significa ressurreição, de

acordo com os estudos etimológicos de Agostinho. Sem que seja preciso aprofundar nisso

aqui, basta a indicação do sentido profético original das Escrituras, visto que “a morte e a

ressurreição de Cristo estão figuradas naqueles dois homens, em Abel, que significa Luto, e

em Set, seu irmão, igual a Ressurreição. Dessa fé nasce a Cidade de Deus, quer dizer, o

homem que pôs a esperança em invocar o nome do Senhor” (A cidade de Deus, XV, XVIII).

Segundo a tradução usada pelo bispo, assim está escrito em Gênesis 4, 26: “Também a

Set lhe nasceu um filho, a quem deu o nome de Enós. Este pôs a esperança em invocar o

nome do Senhor”. O que pode significar também que desde então começou-se a invocar o

nome de Deus. Sendo este, de acordo com os propósitos do ensino de santo Agostinho, o

verdadeiro princípio da Cidade de Deus na terra: a busca, ou seja, a invocação e culto ao

verdadeiro Criador.

134

5 CONCLUSÃO

O que é ser cristão de acordo com Aurélio Agostinho? Definitivamente a fé desse

homem não buscava conforto. É também uma fé que não se conforma às interpretações

psicológicas que caracterizam a religião simplesmente como projeção da mente humana. A fé

de Agostinho não tornava sua vida mais fácil, nem encobria um suposto desamparo

existencial. Sua experiência religiosa é fundamentalmente dinâmica. E se podemos definir sua

cristandade a partir da ideia de uma busca íntima pelo Ser, pela Verdade e pelo Bem, sua fé

nos revela então um forte impulso à transcendência. É nesse sentido que tomou o exemplo do

Cristo Mediador como caminho.

O caminho para a restauração da imagem de Deus na mente é a religião verdadeira.

Essa é a única via: o cristianismo e, logicamente, a vida cristã. Assumir essa fé traz mais

responsabilidades do que conforto. Porque saber-se criado á imagem daquele que É significa

comprometer-se com Seus desígnios. Nesse sentido, o exemplo de humildade de Jesus

desvela a potencialidade dos seres humanos. Mas constitui também uma exortação ao

combate contra o orgulho, a ignorância e a concupiscência. Antes de tudo Agostinho teve que

se assumir deformado, fraco, insuficiente em si mesmo. E, na verdade, jamais se contentou

consigo, pois sabia que assim acabaria por parar no meio do caminho. Isso nos permite

caracterizar sua vivência religiosa como uma constante autossuperação. Até mesmo sua obra

responde a esse propósito central. Sem diminuir os benefícios concedidos à humanidade, o

bispo de Hipona escrevia com o propósito de progredir, e progredia escrevendo.

Na introdução deste trabalho nos referimos a três problemas universais da experiência

religiosa. Fizemos isso porque pensamos que todo sujeito religioso possui o ímpeto de

responder às questões últimas da existência e, a nosso ver, essas questões se resumem nos

problemas filosófico-teológicos da origem e finalidade da vida humana, e no problema ético-

psicológico da correta conduta. É justamente por ter respondido a essas questões que a vida

religiosa de Agostinho mostra um caráter dinâmico que nos parece exemplar. Pois, obtidas as

respostas necessárias pela via da fé católica, viveu como quem cumpre um propósito maior,

uma missão. E, pela maneira como fomos conduzidos pelo tema da restauração da imagem de

Deus, podemos dizer que o santo Doutor assumira a dádiva e o dever de ter sido criado

homem.

Uma análise de suas principais crenças pode explicitar o teor dessas respostas

fundamentais. Essas crenças se encadeiam sistematicamente e formam uma visão de mundo

135

coesa. No centro de tudo está a crença no único Deus Criador, eterno, imutável e sumamente

bom. Esse Deus é o Ser por excelência, o único que É verdadeiramente. Toda a criação foi

feita eternamente em seu Verbo. Para ele não existe o tempo, tudo o que compõe o passado, o

presente e o futuro do universo são conhecidos eternamente em sua ciência absoluta. Derivada

desses princípios situa-se a crença no mundo inteligível. Pois no principio Deus criou o céu e

a terra, opondo a criatura espiritual à criatura material. O mundo inteligível é mais verdadeiro

que o sensível, porque contém a medida, o número e o peso de tudo o que existe. Em suma,

esse outro mundo representa a crença numa determinação transcendente para o mundo

material.

Gravitando em torno do centro que é Deus está o homem. No universo agostiniano a

imagem e semelhança de Deus é a criatura criada para Deus. Como os anjos que contemplam

diretamente a face de Deus são seres puramente espirituais, o ser humano, criado em corpo

material, possui em sua mente a substância racional, idêntica à dos anjos, porém, passível de

deformidade. Em sua natureza única, paradoxalmente, podemos dizer que esse ser corporal

compartilha de duas naturezas diferentes, e por isso apresenta tendências opostas que o

dilaceram. Enquanto os sentidos do corpo têm objetos transitórios e por isso são voltados ao

efêmero, ao múltiplo, ao egoísmo, ao conflito e à falta constitutiva do desejo, a mente

racional, por outro lado, possui por objeto o imutável, e é voltada à unidade, à harmonia, à

caridade, à plenitude do desejo. Sendo assim, essa oposição de tendências faz parte da dupla

natureza humana. O homem fora criado assim por Deus. Mas Agostinho acreditou que Deus

criara o homem para Si, de modo que sua finalidade seria a resolução desse conflito, até a

equivalência final à criatura angélica. Para esse destino final reservam-se os termos filiação

adotiva e deificação. Não se trata de questionar o porquê dessa situação, como se bastasse que

os homens tivessem sido criados como anjos. É assim porque Deus quis. Os anjos são

exatamente aquilo que devem ser; e são imutavelmente perfeitos. Os homens podem vir a ser,

a possibilidade de passar de um estado a outro, alterando sua própria essência, faz parte de sua

natureza.

Agostinho também creu no Cristo como único mediador, esse dado é fundamental para

compreender corretamente o teor de sua busca religiosa. Foi um homem cristão que viveu há

mais de mil e quinhentos anos e, ainda assim, sua experiência continua a ter enorme valor

para responder aos significados possíveis da cristandade. Foi um homem que comunicou sua

crença de que a divindade descera até um corpo humano para ensinar o caminho aos homens,

e que, entretanto, mais do que seu poder, revelara seu amor. O ensinamento de Jesus foi para

ele o amor de Deus. Por esse motivo o comprometimento agostiniano com os altos propósitos

136

divinos para a humanidade se evidencia por um modo de viver pautado nesse amor. A

santidade foi para ele progredir sempre no amor. Progrediu de duas formas: purificando a si

mesmo e atuando concretamente para o bem do próximo. Uma via é o ascetismo e o amor

pelo conhecimento. A outra é o serviço comunitário.

O modo de vida agostiniano se resume pelo crescimento nas virtudes cristãs: fé,

esperança e caridade. A fé e a esperança equivalem à orientação e perseverança no caminho.

A caridade é amar por Deus, e nesse aspecto equivale a uma profunda transformação

psicológica. Essa transformação pode ser definida como liberdade. Porque uma das

percepções psicológicas mais profundas de Agostinho foi a respeito da incapacidade do

homem em determinar sua própria vontade.

Para ele a caridade não pode ser simplesmente conquistada pelo esforço pessoal, visto

ser dom da graça divina. Uma vez infundida no coração do homem, a caridade restaura a

cisão interior da alma. Ao invés de desejar coisas contraditórias; ao invés de lutar contra os

maus desejos sem conseguir alcançar o não querer; através da força para não consentir, que já

constitui alguma liberdade, a caridade progride até o deleite do bem, ou seja, até o efetivo não

querer o mal. Assim, com um esforço de reflexão, descobrimos que nesse horizonte estão

traçadas as linhas da liberdade. E se explicarmos isso por uma perspectiva psicológica,

falaremos de uma unidade do eu a ser alcançada; um eu que deve sair de uma condição de

divisão subjetiva para alcançar a autodeterminação da vontade.

E como vimos neste trabalho, o modo de vida agostiniano não constituirá jamais uma

fuga do mundo, nem muito menos uma postura passiva diante do mundo. A imagem de Deus

é a criatura que tem por dever governar todas as criaturas do universo. Agostinho não foi um

asceta extremista, a ponto de abdicar de todo conforto, da boa saúde, da boa alimentação e dos

privilégios concedidos pelo engenho humano. Na verdade, pode-se dizer até que era um

amante da cultura e, inclusive, conhecedor de muitas das ciências de seu tempo. O fator

determinante de suas escolhas pessoais era saber distinguir entre o que deve ser gozado e o

que deve ser usado para um bem maior. Mantida essa distinção, tudo o que há no mundo e

toda invenção da arte humana podem ser tidas como um bem.

Para concluir, reiteramos nossa opinião de que o uso do termo formação, em lugar de

reforma, no trecho citado no capítulo anterior, possui grande valor para a compreensão da

doutrina desse santo Doutor, e deve servir para afastar toda interpretação sobre um hipotético

pessimismo agostiniano. Pelo sentido profético que aprendemos a ler no livro do Gênesis, o

homem criado à imagem e semelhança de Deus no sexto dia da criação não é o Adão que

habitava o paraíso. Este fora formado de corpo animal e, somente em potencial, poderia ter

137

ascendido à imortalidade espiritual; aquele será angélico, e não poderá cair novamente. Os

anjos não podem cair ou elevar-se, e contemplam Deus imutavelmente. Para os homens, os

erros servirão à futura perfeição; os castigos, aos méritos; a dor, à felicidade. Aquilo que

alguns autores chamam de eudemonismo agostiniano aponta justamente para um humanismo

positivo e cheio de esperança, no qual nada há de pessimismo. Agostinho ensinou sempre a

doutrina da bondade absoluta de Deus e, ainda hoje, podemos aprender muito com suas

intuições, para recuperar, talvez, a capacidade de contemplar o sentido pleno de nossa jornada

neste mundo, de modo que a longa e sofrida formação dessa criatura humana da qual todos

participamos seja compreendida em sua misteriosa grandiosidade.

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