Interioridade, Experiência Da Duração e
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
INTERIORIDADE, EXPERINCIA DA DURAO E
EXPRESSO DO REAL: a instaurao metodolgica em Bergson
FBIO COELHO DA SILVA
So Carlos
2008
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FBIO COELHO DA SILVA
INTERIORIDADE, EXPERINCIA DA DURAO E
EXPRESSO DO REAL: a instaurao metodolgica em Bergson
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia e Metodologia das Cincias da Universidade Federal de So Carlos, como requisito parcial para a obteno do ttulo de mestre em Filosofia, sob a orientao da Profa. Dra. Dbora Cristina Morato Pinto.
So Carlos
2008
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Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria da UFSCar
S586ie
Silva, Fbio Coelho da. Interioridade, experincia da durao e expresso do real : a instaurao metodolgica em Bergson / Fbio Coelho da Silva. -- So Carlos : UFSCar, 2008. 117 f. Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2008. 1. Bergson, Henri, 1859-1941. 2. Interioridade. 3. Inteligncia. 4. Linguagem. 5. Expresso. I. Ttulo. CDD: 194 (20a)
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FBIO COELHO DA SILVA
INTERIORIDADE, EXPERINCIA DA DURAO E
EXPRESSO DO REAL: a instaurao metodolgica em Bergson
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia e Metodologia das Cincias, da Universidade Federal de So Carlos, como requisito parcial para a obteno do ttulo de mestre em Filosofia.
So Carlos, 29 de fevereiro de 2008
Banca Examinadora
____________________________________________________________
Profa. Dra. Dbora Cristina Morato Pinto (UFSCar)
___________________________________________________________
Profa. Dra. Silene Torres Marques (UFSCar)
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Adriana Camargo Cappello (UFPR)
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Para Vanessa
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Agradeo Profa. Dra. Dbora Cristina Morato Pinto
pela recepo em So Carlos e orientao.
Aos Profs. Drs. Bento Prado Neto e Silene Torres Marques
pelas valiosas observaes e sugestes.
Aos amigos Fbio Amorim, Marilda Fayad e Jos Andr
pela ateno e gentileza.
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Filosofar consiste em inverter a marcha habitual do trabalho do
pensamento. (BERGSON, 1979, p. 32).
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar a instaurao metodolgica do pensamento de Bergson. Nossa anlise parte de uma indicao do prprio autor, segundo o qual sua iniciao no verdadeiro mtodo apresenta dois aspectos correlatos: a recusa das solues verbais e a imerso na vida interior. O primeiro aspecto uma etapa de avaliao crtica dos pressupostos e demais recursos metodolgicos da tradio metafsica, sobretudo a nfase atribuda ao processo de conceituao. J o segundo aspecto relaciona-se com a investigao do tempo real, ou melhor, a apreenso da verdadeira durao. A dimenso profunda de nossa atividade consciente oferece a prova incontestvel do fluxo temporal, a saber: uma multiplicidade de estados heterogneos e qualitativos que se fundem reciprocamente e compem a nossa alma. importante destacar que a compreenso adequada do estatuto filosfico da interioridade s pode ser atingida com a crtica da linguagem e do pensar no espao. Esses dois elementos esto ligados estruturao da inteligncia que, para Bergson, uma faculdade de ao. A sua destinao definida pelo carter pragmtico, ou seja, a busca de meios eficazes para preparar e iluminar o campo das aes humanas. Dessa forma, o exerccio natural da inteligncia vincula-se fabricao de instrumentos para suprir as necessidades humanas e assegurar a sobrevivncia da espcie. Entre as diversas ferramentas produzidas o signo inteligente o mais sofisticado, sobretudo pela sua capacidade de potencializar o pensamento e de formular teorias. Contudo, de acordo com Bergson, no mbito especulativo, o procedimento intelectual encontra limitaes. O seu modus operandi desqualifica a realidade movente, pois, ao estabelecer os seus conceitos e ao recorrer anlise, apresenta uma traduo artificial e esquemtica da durao. Como podemos observar, a instrumentalidade da inteligncia incomensurvel com a peculiaridade do tempo, que se desenvolve em uma continuidade indivisa e irreversvel. Por outro lado, necessrio lembrar que o signo inteligente, convencionado pela sociabilidade, destaca-se pelo seu carter mvel, j que possui a tendncia de transportar-se de um objeto para outro. precisamente essa caracterstica que permite a perspectiva bergsoniana articular um discurso aderente s sinuosidades do real. Assim, metodicamente, a atividade filosfica aproxima-se do recurso imagtico e metafrico para expressar mais adequadamente a realidade que se encontra sempre em vias de formao. Palavras-chave: Bergson, interioridade, durao, inteligncia, linguagem, expresso.
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RSUM
Cette recherche a pour but danalyser linstauration mthodologique de la pense bergsonienne. Notre analyse part de lindication de lauteur selon laquelle son initiation dans la vraie mthode prsente deux aspects corrlatifs: le refus des solutions verbales et limmersion dans la vie intrieure. Le premier aspect est ltape dvaluation critique des prsupposs et dautres sources mthodologiques de la tradition mtaphysique. Il sagit des champs o le processus de conceptualisation met laccent. Le deuxime aspect se rfre linvestigation du temps rel, en dautres termes, lapprhension de la vraie dure. La dimension profonde de notre activit consciente offre la preuve incontestable du flux temporel, savoir, cest une multiplicit dtats htrognes et qualitatifs qui se fusionnent et composent notre me. Par ailleurs, cest trs important de noter que la comprhension correcte du statut philosophique de lintriorit ne peut tre atteinte quavec la critique du langage et du penser dans lespace. Ces deux lments sont attachs la structuration de lintelligence qui, pour Bergson, cest une facult de laction. La finalit de cette intelligence se dfinit par son caractre pragmatique. Ainsi, cest la recherche de moyens efficaces lis la cration doutils qui vont assurer les besoins humains et garantir la survivance de lespce. Parmi les outils produits, le signe intelligent apparat comme le plus labor, surtout par sa capacit potentialiser la pense et formuler des thories. Nanmoins, daprs Bergson, cest dans le champ spculatif que la procdure intellectuelle trouve ses bornes. Son modus operandi disqualifie la ralit mouvante puisquen tablissant ses concepts, en recourant lanalyse, il prsente une traduction artificielle et schmatique de la dure. Il vaut mieux dire que le maniement de lintelligence et les particularits du temps qui se dveloppe dans une continuit irrversible, sont incommensurables. Encore faut-il rappeler que le signe intelligent, admis par la sociabilit, se dgage par son caractre mobile puisquil a tendance se glisser parmi les objets. Cest cette caractristique, et seulement celle-ci, qui permet la philosophie bergsonienne darticuler un discours pousant les ondulations du rel. Ainsi, mthodiquement, lactivit philosophique sapproche de lutilisation des imageries et des conditions mtaphoriques afin dexprimer, avec prcision, la ralit qui est toujours en voie de formation. Mots-cls: Bergson, intriorit, dure, intelligence, langage, expression.
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SUMRIO
CONSIDERAES INICIAIS ...............................................................................................9
1. INTERIORIDADE E EXPERINCIA DA DURAO ................................................19
1.1. O caminho filosfico da interioridade ...........................................................................19
1.2. A teoria das multiplicidades: uma estratgia crtica....................................................26
1.3. O processo de interiorizao e a verdadeira durao ..................................................32
1.4. O tempo homogneo e a desqualificao da realidade movente .................................37
1.5. Os nveis da atividade consciente e o problema da liberdade .....................................45
2. ATIVIDADE METAFSICA E TEXTURA DO MUNDO .............................................56
2.1. Da durao psicolgica existncia em geral ...............................................................56
2.2. Inteligncia e linguagem: a exigncia pragmtica ........................................................65
2.3. Pedagogia da razo: a manipulao de conceitos .........................................................76
2.4. A crtica da metafsica da linguagem: Nietzsche e Bergson .........................................84
3. A EXPRESSO DA INTERIORIDADE E O RETORNO AO EU PROFUNDO .......91
3.1. Os caminhos da metafsica: a questo do conhecimento .............................................91
3.2. Da palidez do conceito saturao de imagens ............................................................95
3.3. A arte no horizonte da investigao filosfica ............................................................101
3.4. Filosofia e literatura ......................................................................................................107
CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................111
REFERNCIAS ...................................................................................................................113
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CONSIDERAES INICIAIS
O que mais tem faltado filosofia a preciso. Os
sistemas filosficos no se ajustam realidade em
que vivemos. So demasiadamente vastos.
(BERGSON, 1979, p. 101).
Ao criticar a idia de sistematizao filosfica, Bergson almeja denunciar o
descompasso existente entre a especulao pura, de cunho estritamente intelectual, e o contato
direto e imediato com a prpria realidade. Segundo ele (1979, p. 101): A razo disto que
um verdadeiro sistema um conjunto de concepes to abstratas, e conseqentemente, to
vastas, que nele caberiam todos os possveis, e mesmo o impossvel, ao lado do real. Esse
desajuste abissal entre o pensamento abstrato e a experincia vivida, que, em ltima instncia,
um desacordo metdico, corresponde quilo que o filsofo considera ser a ausncia de
preciso no mbito filosfico. A idia de preciso vincula-se a uma proposta de adequao
metdica ao objeto investigado, ou seja, um esforo de reflexo que consiste em talhar sob
medida um conceito apropriado apenas ao seu objeto de estudo; em outra direo, como nos
lembra Prado Jnior (1989), a idia de rigor (ou exatido) a explicao por meio de termos
estticos1 ou matemticos, sendo que, neste procedimento, ocorre a submisso do objeto de
estudo a um plano pr-definido.
Pode-se dizer, ento, que a compartimentao do edifcio filosfico deixa escapar o
essencial na compreenso da realidade em que vivemos, pois a experincia concreta das
coisas substituda pela sbia arquitetura de um conjunto de concepes gerais e abstratas,
1 Metafsica em suas origens, tornou-se cientfica na medida em que se tornava rigorosa, isto , exprimvel em termos estticos. (BERGSON, 1979, p. 115).
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tendo como caracterstica bsica o selo da exatido. Essa maneira de filosofar que prpria
da velha metafsica e cuja inteno maior seria a de abarcar os mundos possveis, ou
melhor, a totalidade do real encontra inevitavelmente a sua limitao; pois, como a
experincia e os fatos atestam, a realidade transborda os quadros do pensamento.
A reflexo sobre a distncia entre o pensar abstrato e a experincia concreta est no
horizonte de toda a filosofia de Bergson. Contudo, antes de aprofundarmos o exame da
perspectiva bergsoniana e compreendermos a sua direo, torna-se necessrio, ainda que
rapidamente, a reconstituio do seu itinerrio. Isso permitir recuperar aquilo que seria o
estranhamento originrio de seu pensamento ou, como quer o prprio filsofo, a intuio
original que frutifica a atividade filosfica.
A inquietao inicial do pensamento de Bergson surge, como ele mesmo descreve
mais de uma vez, ao avaliar a filosofia de Spencer. No final do Captulo IV de A evoluo
criadora, o autor pontua e justifica a sua aproximao e a posterior censura teoria
spenceriana. Segundo ele, a conjuntura intelectual do sculo XIX reclamava uma renovao
filosfica que acompanhasse o advento das cincias morais, psicolgicas e a importncia da
embriologia como ramo crescente da biologia2. O pensamento de Spencer apresentou a
promessa desta renovao que almejava a particularidade dos fatos e, tambm, a necessidade
de instalar-se na experincia concreta da durao.
Portanto, quando surgiu um pensador que anunciou uma doutrina de evoluo, na qual seria retraado o progresso da matria em direo perceptibilidade ao mesmo tempo que a marcha do esprito em direo racionalidade, na qual
2 Talvez, aqui, o testemunho da histria seja importante. A filosofia de Bergson insere-se em um contexto cientfico no qual o paradigma lgico-matemtico substitudo: a evidncia da exatido, com seus quadros rgidos e suas cadeias de razo, d lugar a uma observao minuciosa dos fatos. Segundo Gouhier (2001, p. XII): O bergsonismo se apresenta como a conquista da conscincia de uma situao nova na histria das cincias. O sculo XIX v constituir uma biologia positiva, com toda extenso que sua etimologia permite dar a palavra biologia, para designar vrias cincias da vida; e, naturalmente, logo aps as cincias da vida orgnica, o aparecimento das cincias da vida social, da vida psquica.... justamente nesse sentido que o comentador pde sugerir, com a filosofia de Bergson, o fim da era cartesiana; pois, nesse momento de profundas alteraes metodolgicas, surgiu a possibilidade de pensar uma metafsica positiva, mais malevel, que se aproxima das cincias da vida, sobretudo ao se modelar e talhar os seus conceitos de acordo com o detalhe dos fatos.
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a complicao das correspondncias entre o externo e o interno seria seguida grau por grau, na qual a mudana se tornaria por fim a prpria substncia das coisas, para ele voltaram-se todos os olhares. A atrao poderosa que o evolucionismo spenceriano exerceu sobre o pensamento contemporneo provm da. (BERGSON, 2005, p. 392).
Apesar da sua apologia inicial, inspirada na proposta filosfica de modelao e adeso
completa ao real, Bergson concluiu que o evolucionismo spenceriano tambm apresentava o
estigma da impreciso, pois, como ocorria com outros sistemas filosficos, a sua teoria
constitua-se sobre generalidades vagas. A fragilidade dessa perspectiva residia em sua
compreenso superficial das idias ltimas da mecnica, o que, para Bergson, evidenciava
uma incoerncia no interior de uma pretensa teoria da evoluo. Tudo se passa como se o
filsofo ingls tivesse fechado os olhos para a caracterstica primordial da realidade, a saber: a
prpria mudana. Assim, utilizando uma expresso de Gouhier (1989, p. 38), a perspectiva
spenceriana pode ser caracterizada como um evolucionismo sem evoluo. Digamos,
simplesmente, que o artifcio bsico do mtodo de Spencer consiste em reconstituir a
evoluo com fragmentos do evoludo. (BERGSON, 2005, p. 392, grifo do autor). Ou
melhor:
Tal , no entanto, a iluso de Spencer. Ele toma a realidade sob sua forma atual; quebra-a, espalha-a em fragmentos que joga ao vento; depois, integra esses fragmentos e lhes dissipa o movimento. Tendo imitado o Todo por um trabalho de mosaico, imagina ter retraado o seu desenho e feito sua gnese. (BERGSON, 2005, p. 393).
Ora, isso significativo e ser reiterado na introduo de O pensamento e o movente.
Ao recapitular parte de seu itinerrio, Bergson destaca que a inteno de aprofundar e
desenvolver a fraqueza terica de Spencer o conduziu idia de Tempo e, ento, ao
reconhecimento de uma insuficincia: [...] chocou-nos bastante ver que o tempo real, que
desempenha papel de destaque em toda a filosofia da evoluo, escapa s matemticas. Sua
essncia consistindo em passar, nenhuma de suas partes pode permanecer ainda, quando outra
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se apresenta. (BERGSON, 1979, p. 101, grifo do autor). Qual seria o significado de tal
constatao?
Apesar da aparente simplicidade dessa afirmao, importante ressaltar, desde j, que
ela se configura como o fio condutor da filosofia de Bergson, pois, essencialmente, est
vinculada distino entre tempo matemtico e tempo real. Ao comentar esse trecho, Worms
(2004, p. 129, grifo do autor) identifica o seu carter basilar: toda a sua filosofia, com
efeito, que Bergson apresenta como decorrncia, no da questo do tempo, mas da simples
constatao da passagem do tempo, do simples fato de que o tempo passa. Se o decorrer do
tempo um fato que pode ser atestado, isso nos conduz, inevitavelmente, a colocar algumas
questes: por que o pensamento filosfico, at ento, nunca abordou a temporalidade em si
mesma? Como pensar a passagem do tempo diante da carga reflexiva da tradio, com seus
inmeros conceitos, pressupostos, hipteses, etc.? Enfim, quais seriam os recursos
metodolgicos de investigao dessa experincia surpreendente, uma vez que, aparentemente,
o expediente habitual do pensamento desconsidera o essencial de seu objeto? Ou ainda, como
nos adverte Worms (2004, p.130) necessrio pensar, [...] como uma filosofia inteira pode
fundar-se em sua capacidade de esclarecer a integralidade dessa experincia, colocada como
irredutvel.
Evidentemente, como j podemos entrever, o olhar de Bergson sobre a histria da
filosofia crtico3. No quarto captulo de A evoluo criadora, o autor apresenta sua
apreciao negativa em relao aos principais expoentes da tradio. Por ora, o simples exame
genealgico de constituio e filiao da metafsica, exposto na introduo de O Pensamento
e o movente, suficiente para ilustrar a posio bergsoniana.
3 Particularmente, enfatizamos mais o carter crtico em relao histria da filosofia. Contudo, esta perspectiva no definitiva na obra de Bergson. Em seu texto A intuio filosfica, Bergson aponta o que ele considera a fora motriz de toda a filosofia: a intuio original; isto , o ato criador e nico que est na origem de toda a elaborao filosfica.
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A metafsica nasceu no dia em que Zeno de Elia assinalou as contradies inerentes ao movimento e mudana, tais como nossa inteligncia os representa. Ultrapassar, contornar, por um trabalho intelectual mais e mais sutil, essas dificuldades levantadas pela representao intelectual do movimento e da mudana, tal foi o principal esforo dos filsofos antigos e modernos. (BERGSON, 1979, p. 104).
Se as aporias da escola eletica inauguram a compreenso equivocada da realidade
movente, suscitando uma srie de mal entendidos e problemas para a histria da filosofia, a
questo que se impe a de saber qual o modo de acessar a experincia da passagem do
tempo, a mobilidade. Qual a maneira de atingir e conhecer a realidade temporal que no seja
reduzida ao esquema matemtico? Como elaborar uma filosofia que adere ao dinamismo de
seu objeto ou, mais especificamente, debrua-se sobre a verdadeira durao, sem se precipitar
em concepes abstratas e gerais?
Como se pode observar, um duplo movimento correlato esboa-se na construo
metodolgica da filosofia bergsoniana: de um lado, uma atitude negativa que se constitui na
recusa das solues filosficas armazenadas no seu arcabouo conceitual; de outro lado, em
consonncia com essa abertura crtica, acompanhamos a possibilidade de vislumbrar o acesso
passagem do tempo que, depurado de toda a formulao matemtica, apresentaria sua
caracterstica irredutvel, a durao. Essa orientao geral tornar-se- mais evidente no ensaio
Introduo metafsica. O texto, de carter metodolgico, apresenta a distino da atividade
metafsica na fronteira entre dois modos de conhecer uma coisa. O verbalismo seria a
expresso do modo de conhecer relativo e analtico, isto , um proceder que se instala na
superfcie das coisas atravs de smbolos e pontos de vista; em outra direo, encontramos a
descrio de uma maneira de conhecer que penetra no interior da coisa, sem estabelecer a
primazia de um ponto de vista e independente dos smbolos. Esse modo de proceder, absoluto
e intuitivo, prprio de uma atividade que aspira singularidade do real, em sua dinmica
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interna, sem a imposio fragmentria do pensamento ordinrio4. A exposio desses dois
modos de conhecer tem como alvo estabelecer o campo de atuao dos mesmos na
compreenso do real; assentado o alcance, o limite e a possibilidade de ajuda mtua entre
ambos. Em resumo, o que se v, e talvez isso seja uma das marcas fundamentais da filosofia
bergsoniana, a tentativa de reestruturao da metafsica, bem como o estabelecimento do
dilogo entre as cincias e a filosofia.
Em relao questo do conhecimento e ao direcionamento da filosofia, somos
obrigados a sublinhar um deslocamento operado por Bergson. Se, como destaca o prprio
autor, a sua ocupao inicial incidia sobre a apreciao da obra de Spencer isto , sobre a
anlise de uma teoria evolucionista significativo notar que a sua elaborao filosfica
atingir e se desdobrar, inicialmente, em uma dimenso psicolgica. Segundo ele, a durao
que eliminada pelo proceder cientfico na compreenso dos fenmenos naturais, o qual
institui o calculvel e o previsvel, pode ser atingida no contato com a nossa prpria
intimidade. Ou seja, se a passagem do tempo um fato, isso pode ser afirmado porque ns a
sentimos e vivemos: o nosso eu que dura. A partir dessa apreciao, sobre a apreenso
do tempo real, surge o interesse pela vida consciente ou, mais especificamente, a relao
ntima da passagem do tempo com o olhar da conscincia.
Se procurarmos saber o que ela [a durao], como apareceria a uma conscincia que desejaria apenas v-la e no medi-la, que a agarraria sem imobiliz-la, que se tomaria a si mesma por objeto, e que, expectadora e atriz, espontnea e refletida, aproximaria at fazer coincidir a ateno que se fixa e o tempo que escapa? (BERGSON, 1979, p. 102).
4 De acordo com Bergson (1979, p. 14): Chamamos aqui intuio a simpatia pela qual transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que ele tem de nico e, consequentemente, de inexprimvel. Ao contrrio, a anlise a operao que reduz o objeto a elementos j conhecidos, isto , comum a este objeto e a outros. Analisar consiste, pois, em exprimir uma coisa em funo do que no ela. Sobre a questo do mtodo intuitivo, Deleuze (1999, p.7) esclarece o seu teor: A intuio o mtodo do bergsonismo. A intuio no um sentimento nem uma inspirao, uma simpatia confusa, mas um mtodo elaborado, e mesmo um dos mais elaborados mtodos da filosofia. Ele tem suas regras estritas, que constituem o que Bergson chama de preciso em filosofia. No decorrer do trabalho elucidaremos algumas mediaes que compem o mtodo intuitivo.
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De acordo com a sua proposta de abordagem da temporalidade, podemos dizer que
Bergson distancia-se tanto da especulao filosfica tradicional quanto do tratamento
cientfico, pois, em ambos os casos, prioriza-se o paradigma lgico-matemtico na
investigao. O trecho destacado acima demonstra a preocupao em assimilar a durao, a
necessidade de v-la sem medi-la, ou seja, de apreend-la sem descaracteriz-la,
recusando, sobretudo, tom-la como um objeto esttico diante do espectador. Ao aprofundar-
se, em seu prprio interior, a conscincia toma a si mesma como objeto, assumindo assim a
dimenso de expectadora e atriz. Isso significa que ela coincide consigo mesma, com a
sua prpria atividade: seria o conhecimento interior do eu pelo prprio eu.
Sobre esse movimento inicial da filosofia bergsoniana importante destacar as
questes que orientam a nossa discusso: ao eleger a vida interior ou consciente como o
primeiro campo de experincia metafsico, Bergson no estaria instituindo uma regio de
articulao axiomtica? Ou, em outras palavras, assim como Descartes, por exemplo, ele no
estaria estabelecendo um ponto de partida necessrio da especulao filosfica? Como se
sabe, uma das heranas do cartesianismo a prioridade da subjetividade no processo de
conhecimento, que, conduzido de maneira rigorosa, apresentaria o conjunto das
representaes que habitam o interior da conscincia. Ora, essa perspectiva de uma
conscincia substancial seria o plo irradiador que iluminaria o caminho do verdadeiro
conhecimento das coisas. Assim, poderamos facilmente indicar uma herana cartesiana na
filosofia bergsoniana, sobretudo se considerssemos eu que duro, o aspecto interior da
conscincia que flui atravs do tempo, como uma espcie de cogito. Evidentemente, uma
aproximao precipitada pode ofuscar a verdadeira inteno de Bergson. Mas, em todo caso, a
questo bastante pertinente e ainda revela outra mais complexa: a fenomenologia
husserliana.
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A metodologia desenvolvida por Husserl, em alguns dos seus desdobramentos,
permitiu colocar em xeque a noo de interioridade. Em linhas gerais, a fenomenologia
pretende marcar a passagem, ou melhor, a ruptura com o cartesianismo, no qual a evidncia
de si mesmo como ser pensante seria uma posio indubitvel. Apesar de Husserl
reconhecer a influncia de Descartes, a sua posio apresenta restries que aparentemente
neutralizam a exaltao inicial. Com Bergson tambm ocorre essa constatao, e a
possibilidade crtica de superao da herana cartesiana. No entanto, adeptos da
fenomenologia, como os filsofos franceses Sartre e Merleau-Ponty, parecem no reconhecer
o alcance dessa filosofia. A ttulo de exemplo podemos destacar a averso sartreana:
Eis nos livres de Proust. Livres ao mesmo tempo da vida interior; em vo buscaramos [...] como uma criana que abraa os ombros, as carcias, os afagos de nossa intimidade, j que finalmente tudo est fora, tudo, at ns mesmos: fora, no mundo, entre os homens. No no eu que descobrimos no sei que retrato de ns mesmos, sobre a estrada, na cidade, em meio multido, coisa entre as coisas, homem entre homens. (SARTRE, 1998, p. 12).
Apesar do autor remeter seu ataque literatura proustiana, possvel estend-la
filosofia bergsoniana, e isso se tornar mais explcito em comentrios de A imaginao e de O
ser e o nada. Se a intencionalidade permite pensar em novos termos a relao conscincia e
mundo, esvaziando a substancialidade interna do sujeito, isso no nos desobriga da tarefa de
investigar os termos da filosofia bergsoniana; necessrio compreender o estatuto filosfico
da interioridade, a sua peculiaridade e suas implicaes na filosofia da durao. Ou, em outras
palavras, possvel o conhecimento de si, a partir da auscultao espiritual proposta por
Bergson, sem cair nos impasses da herana cartesiana, por exemplo?
Alm disso, outra questo apresenta-se com enorme dificuldade. Como salienta
Leopoldo e Silva (1994, p. 16): Uma das teses fundamentais do pensamento de Bergson
que a linguagem da filosofia desfigura o objeto filosfico. E o faz porque traduz num discurso
formalizado o fluxo da durao. Como pretendemos demonstrar, a linguagem, para o autor,
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sempre ser um meio imperfeito para exprimir as nuanas do real, sobretudo a riqueza e
sutilezas da vida interior. O projeto crtico de Bergson apresenta a desconstruo inevitvel
dos conceitos das cincias e da filosofia, principalmente aqueles que so responsveis em
erigir as iluses no campo metafsico. Assim, poderamos levantar mais uma questo
intrnseca ao fazer filosfico de Bergson: seria a filosofia bergsoniana, como quer Merleau-
Ponty5, uma espcie de introspeco solitria, cega e muda? Isso nos leva a questionar a
maneira de expressar a durao real, uma vez que o retorno ao imediato e profundo poderia
provocar uma espcie de perda em si mesmo, o que nos obrigaria a reconhecer o limite da
experincia vivida pelo sujeito. Em outros termos, como expressar essa experincia vivida
subjetivamente?
A inteno deste trabalho avaliar a metafsica de Bergson a partir da instaurao de
seu mtodo, que se concentra na recusa das solues verbais e no mergulho na vida interior.
a partir desse eixo crtico que acreditamos analisar a obra bergsoniana de maneira coerente,
e isso porque o prprio filsofo nos instrui de sua iniciao metodolgica e da sua
possibilidade de alargamento6. Para tanto, o caminho que propomos apresenta trs partes:
primeiramente, a anlise interna do Ensaio em que se evidencia a anlise da conscincia e
seus termos correlativos a teoria das multiplicidades, distino entre espao e tempo, a
verdadeira durao, o aspecto negativo da linguagem e o problema da liberdade enfim, o
momento de fundamentao do estatuto filosfico da interioridade; na segunda parte,
verificamos o alargamento destas questes, isto , a temtica da interioridade e sua relao
5 Na Fenomenologia da Percepo, Merleau-Ponty (1994, p. 90, grifo nosso) afirma: No era apenas a comunicao das intuies filosficas aos outros homens que se tornava difcil ou, mais exatamente, se reduzia a um tipo de encantamento destinado a induzir neles experincias anlogas s do filsofo , mas o prprio filsofo no podia dar conta daquilo que ele via no instante, j que seria preciso pens-lo, quer dizer, fix-lo e deform-lo. Portanto, o imediato era uma vida solitria, cega e muda. E, ainda, no resumo dos cursos da Sorbonne, ele (1990, p. 179) dir: E o prprio Bergson, quando explica longamente que no pode dizer o vivido, recorre a uma teoria esboada numa linguagem encantatria e metafrica que lhe oferece argumentos. Essa teoria uma soluo desesperada; consiste em convidar o leitor, atravs de mltiplas imagens, a instalar-se no centro de uma intuio filosfica. 6 Nossa iniciao no verdadeiro mtodo filosfico data do dia em que rejeitamos as solues verbais, tendo encontrado na vida interior um primeiro campo de experincia. Todo o progresso posterior foi um alargamento desse campo. (BERGSON, 1979, p. 151, grifo nosso).
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com os diferentes nveis de durao, a investigao sobre a inteligncia e a linguagem e, por
fim, seus desdobramentos e suas conseqncias para a elaborao filosfica; na terceira parte,
analisamos o momento de positivao dos mecanismos intelectuais, quando a linguagem ou,
mais precisamente, as metforas e as imagens so tematizadas como recursos metdicos na
expresso da interioridade.
Acreditamos que essa anlise permitir apreciar o projeto de Bergson, antecipando a
clebre expresso de Jean Wahl, como um retorno ao concreto, em que ocorre a ruptura
com a hegemonia do intelectualismo. Essa inteno bergsoniana pode ser observada, por
exemplo, no final da conferncia A intuio filosfica, de 1911:
preciso optar, em filosofia, entre o puro raciocnio que visa a um resultado definitivo, imperfectvel pois suposto perfeito, e uma observao paciente que fornece apenas resultados aproximativos, capazes de ser corrigidos e complementados indefinidamente. (BERGSON, 1979, p. 98).
Se essa atividade filosfica permite a imagem do inacabamento7, de uma atividade
incessante, isso ocorre porque a sua metodologia constitui-se no decorrer da prpria
investigao, e nunca de maneira prvia e acumulativa. Ou, como diria Merleau-Ponty (1991)
em seu texto Bergson fazendo-se, uma filosofia que se constri medida que o caminho
percorrido, e que exige coragem e sobriedade para no se perder no desconhecido e na
indolncia do pensamento. A partir dessa proposta de um fazer-se incessante, a metafsica
desce das alturas e aproxima-se da prpria vida, em seu jorro ininterrupto de novidade,
ocasionando a constituio de um empirismo verdadeiro.
7 Ao destacar o campo metafsico de experincia em relao postura dogmtica, hipottica e dedutiva, de um lado, e aquela que apela para o factual, de outro, Bergson dir: a primeira tese tinha a beleza do definitivo, mas estava suspensa no ar, na regio do simples possvel. A outra inacabada, mas tem slidas razes no real. (BERGSON, 1979, p. 124).
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1. INTERIORIDADE E EXPERINCIA DA DURAO
Ora, creio que a totalidade de nossa vida interior
algo como uma nica frase comeada com o primeiro
despertar da conscincia, frase semeada de vrgulas,
mas em nenhuma parte cortada por pontos finais.
(BERGSON, 1979, p. 97).
1.1. O caminho filosfico da interioridade
Desde as primeiras linhas de sua obra inaugural, o Ensaio sobre os dados imediatos da
conscincia8, Bergson nos oferece o esboo de sua orientao filosfica. Ali, de maneira
concisa, ele expe a sua inteno crtica de reestruturao da atividade metafsica: a distino
renovada entre o tempo e o espao ou, mais especificamente, como veremos no interior da
obra, a verdadeira durao e a sua projeo no espao. O resultado desse esforo reflexivo de
purificao e de rearticulao do pensamento filosfico incide sobre a dissipao de certos
impasses especulativos, considerados, at ento, como insolveis.
A frase de abertura do prefcio do Ensaio j revela o teor e a densidade da reflexo:
Ns nos expressamos necessariamente por palavras e pensamos o mais freqentemente no
espao (BERGSON, 2001, p. 3). Essa afirmao categrica conduz-nos a um conjunto de
questes que no se restringe apenas ao seu primeiro livro, mas percorre toda a obra
bergsoniana, a saber: o modo de pensar e de expressar-se do homem; a relao intrnseca
desses elementos com a produo de conhecimento; e, ainda, como indica a expresso quase
8 Doravante chamaremos apenas de Ensaio.
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sempre, a possibilidade de encontrarmos, mesmo diante da imperiosidade do pensamento no
espao, outra maneira de pensar.
A exigncia das expresses verbais e do pensar no espao, como nos adverte a
exposio subseqente do prefcio, atende inexoravelmente aos interesses da vida prtica e
aos procedimentos da maior parte das cincias, e vincula-se, em ltima instncia,
necessidade humana de agir sobre o mundo. A reflexo de Bergson concentra-se sobre os
limites deste proceder, quer dizer, do conhecimento decorrente dele: ser que essa interveno
pode colocar o homem no mago da realidade? Em um posicionamento crtico, o filsofo
investigar o impacto desse modus operandi sobre as questes referentes metafsica. O
resultado da avaliao de Bergson ser negativo. A conseqncia disso recair sobre o seu
prprio projeto: a demarcao do campo de investigao das cincias e a renovao do
pensamento filosfico, o que ser acompanhado de uma reflexo sobre o comrcio entre essas
duas maneiras de penetrar e conhecer a si mesmo e o mundo.
Desde o incio, o processo de depurao da metafsica ocorre atravs da constatao de
que o senso comum e o proceder cientfico, e mesmo a tradio filosfica, encontram-se em
uma situao similar, a saber: a de desqualificar a passagem do tempo atravs de
representaes estanques, de conceitos e demais esquemas de traduo da realidade movente.
Como pretendemos demonstrar, esse procedimento segue a direo natural da inteligncia que
compreendida como faculdade de ao circunscreve a eficcia de sua atuao sobre
pontos fixos e programticos. Contudo, uma vez introduzida no interior da investigao
filosfica, tal desqualificao ocasiona uma srie de mal entendidos e a formulao precria
de problemas que adquirem a atmosfera de insolveis9. A esse respeito, ainda no Prefcio do
Ensaio, Bergson (2001, p. 3, grifo nosso) afirma:
9 A reflexo sobre a edificao e a dissipao dos problemas filosficos amplamente abordada por Bergson, e isso, segundo Deleuze, corresponderia primeira regra do mtodo intuitivo. A descrio deleuzeana do aspecto complementar dessa regra ilustra de maneira satisfatria a dimenso do mtodo bergsoniano: Os falsos problemas so de dois tipos: problemas inexistentes, que assim se definem porque seus prprios termos
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Mas poder-se-ia perguntar se as dificuldades insuperveis que certos problemas filosficos provocam no viriam por teimarmos em justapor no espao fenmenos que no ocupam pontos do espao, e se, fazendo abstrao das grosseiras imagens em torno das quais a disputa se entrega, no lhe colocaramos, s vezes, um termo.
Ora, como j destacamos, esse descompasso aponta para o critrio metodolgico da
preciso, isto , a exigncia de colocar os problemas do esprito em termos de esprito, e no
mais com os instrumentos de atuao sobre a matria. Em resumo, a dificuldade dos
problemas filosficos decorrente da confuso entre o espao e o tempo. E, assim,
inevitvel interrogar: afinal, o que significa pensar no espao e utilizar-se de palavras? Como
ultrapassar os esquemas do pensamento ordinrio? Qual seria a relao dessas questes com a
temporalidade? Enfim, qual seria a alternativa para a especulao filosfica?
Convm recuperar, mais uma vez, o relato bergsoniano de seu horizonte filosfico
inicial. Em correspondncia com William James, ao destacar o seu interesse pelas teorias
mecanicistas, influenciado por Spencer, Bergson (1972, p. 765-766, grifo do autor) dir:
Minha inteno era a de me consagrar quilo que chamvamos ento de a filosofia das cincias [...] Foi a anlise da noo de tempo, tal qual intervinha na mecnica ou na fsica, que subverteu todas as minhas idias. Para o meu grande espanto, percebi que o tempo cientfico no dura, que no haveria nada a mudar em nosso conhecimento das coisas se a totalidade do real fosse desdobrada em um lance instantneo, e que a cincia positiva consiste essencialmente na eliminao da durao.
Ora, se o tempo cientfico, como assinala Bergson, no apresenta o escoamento ou o
decorrer de seus momentos (ele no dura), e se a histria do pensamento refm do
conforto proveniente das solues verbais, torna-se ento inevitvel questionar qual seria o
implicam uma confuso entre o mais e o menos; problemas mal colocados, que assim se definem porque seus termos representam mistos mal analisados. (DELEUZE, 1990, p. 10). Em relao ao primeiro tipo, podemos citar o problema do nada e o da desordem (discutidos no Captulo IV de A evoluo criadora); e, em relao ao segundo tipo, o problema da liberdade seria o exemplo privilegiado (problemtica explicitamente abordada no Ensaio).
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caminho filosfico adequado para a apreenso da realidade. Nesse sentido, podemos dizer que
a deficincia verificada nos procedimentos cientficos conduziu a investigao bergsoniana a
uma nova direo, cuja inteno seria pensar e inovar os recursos metodolgicos da
especulao filosfica. Esse despertar inesperado, como nos indica o relato de O Pensamento
e o Movente, acarreta um deslocamento da reflexo bergsoniana, isto , o interesse pela
natureza cede lugar, neste momento, ao estudo de um domnio menos evidente: a abordagem
da vida consciente. Qual seria o significado de tal encontro? Vejamos.
Apesar da passagem do tempo escapar ao senso comum e ao proceder cientfico,
inegvel reconhecer um fato simples: o homem o nico ser que pode experimentar em si
mesmo o escoamento de sua existncia, isto , a mudana, o amadurecimento e o
envelhecimento. Ainda que seja difcil conceb-la e explic-la, em sua pureza original, a
verdadeira durao uma experincia que pode ser sentida e vivida no interior de nossa
conscincia. Alis, justamente esta durao imediatamente percebida, apreendida quando o
eu toma a pose de si, que nos permite ter a prpria idia de tempo. , ento, por esse vis que
a abordagem da vida interior impe-se como opo metodolgica na ultrapassagem do
verbalismo.
Para Bergson, a realidade interior da conscincia humana apresenta-se como campo
experimental irredutvel aos esquemas de compreenso do mundo exterior, e isso porque a
apreciao dessa dimenso nos coloca no domnio do vivido. Se a todas as coisas podemos ter
o acesso atravs da conceituao e de pontos de vista o que nos coloca de fora das coisas e
apenas em sua superfcie necessrio reconhecer a dimenso imediata e profunda da nossa
prpria existncia. Podemos perceber a incessante mutao das nossas sensaes, sentimentos
e desejos, que compem e apresentam a colorao de nossa vida psicolgica. Isso significa
reconhecer que o desenrolar da nossa interioridade apresenta o selo da durao, ou, como quer
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Bergson (1979, p. 15, grifo nosso): a nossa prpria pessoa em seu fluir atravs do tempo.
nosso eu que dura.
Se purificssemos a observao da nossa prpria dimenso interna compreenderamos
a radicalidade de sua maturao, a transio contnua e crescente, em que o prprio estado
psicolgico apresenta-se como mudana10. Apesar disso, a sondagem da vida interior, que
constitui o primeiro campo de experincia da metafsica bergsoniana, no se oferece de
maneira fcil como se estivesse ao alcance da mo. A auscultao espiritual proposta por
Bergson apresenta dificuldades extremas. Isso porque, como ele mesmo destaca, nenhuma
das concepes j feitas de que se serve o pensamento em suas operaes cotidianas se presta
a isto. (BERGSON, 1979, p. 23). Se o pensamento ordinrio em seus traos mais gerais
inadequado, tampouco a observao de si para si pode ser alcanada, simplesmente, por uma
introspeco solitria, muda e cega ou um devaneio qualquer. O que se pode constatar na
filosofia bergsoniana, distante de qualquer caracterizao depreciativa, a elaborao de uma
nova metodologia cuja especificidade ou melhor, a adequao ao critrio da preciso
delineia-se como tarefa de apreenso da durao real. O contato com a vida interior uma
opo metodolgica pertinente medida que recusa as tradues gerais da experincia, e
procura simpatizar espcie de contato direto e imediato com a singularidade dos estados
de alma. No entanto, neste ponto, uma advertncia importante. Como nos lembra Prado
Jnior (1989, p. 73):
O salto para o imediato no , ele prprio, imediato. Ele apenas feito atravs da longa srie de mediaes constitudas pelo recurso ao testemunho do pensamento positivo. No se trata de opor, simplesmente, mediao deformadora dos conceitos, a presena difana dos dados imediatos. O imediato objeto de uma conquista, e a volta s fontes uma longa viagem.
10 Sobre a radicalidade de maturao dos estados de conscincia, o autor (2005, p. 3) dir: Cada um deles no mais que o ponto mais iluminado de uma zona movente que compreende tudo o que sentimos, pensamos, queremos, tudo aquilo, enfim, que somos em dado momento. essa zona inteira, na verdade, que constitui nosso estado. Ora, de estados assim definidos pode-se dizer que no so elementos distintos. Continuam-se uns aos outros num escoamento sem fim.
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Esse comentrio ilustra perfeitamente aquilo que j havamos indicado: a dificuldade
metodolgica de Bergson para fundamentar e explicar o objeto de sua proposta metafsica. A
imerso na interioridade, o contato com o dado imediato ou a coincidncia com essa
realidade sempre em vias de formao, s pode ser atingida atravs de um conjunto de
mediaes. Aparentemente isso pode parecer absurdo, pois o nosso interior e a nossa
personalidade deveriam ser instncias facilmente conhecidas. Porm, isso no ocorre porque
aplicamos os mesmos mecanismos de acesso ao mundo exterior realidade imediata, e dessa
maneira s conhecemos uma maquiagem de nossa vida interior11.
nesse sentido que o retorno s fontes exige um esforo reflexivo de interiorizao
e, tambm, de busca pela diferenciao interna, perpassado, sobretudo, por um
posicionamento crtico. Nesse sentido, a conscincia deve ser compreendida como atriz e
espectadora em um processo no qual ela comporta-se como protagonista e observadora de si
mesma. Sendo assim, j podemos presumir que o dado imediato no apenas um contedo
que aparece para a conscincia, como se fosse um objeto invarivel e passivo de ser
contemplado; ele a prpria conscincia em seu processo de estruturao interna ou,
utilizando a noo jamesiana, em seu fluxo12.
Assim, o projeto do Ensaio mostra-se bastante claro: em uma perspectiva mais crtica
que positiva, a inteno maior do filsofo consiste em desfazer, como diria Deleuze (1999), os
mistos mal analisados, ou seja, a confuso inveterada entre as noes de tempo e espao,
estabelecendo assim um projeto de depurao e adequao da filosofia realidade que dura. A
partir de sua perspectiva metodolgica, que comeava ento a esboar-se, e a ttulo de 11 Todos j tiveram ocasio de notar que mais difcil avanar no conhecimento de si do que no do mundo exterior. Fora de si, o esforo para apreender natural [...] Em relao ao interior, a ateno deve permanecer tensa e o progresso torna-se cada vez mais penoso; quase acreditamos ir contra a natureza. No h nisso algo de surpreendente? Somos interiores a ns mesmos e nossa personalidade o que deveramos conhecer melhor. Nada disso; nosso esprito move-se a como em terra estrangeira [...]. (BERGSON, 1979, p. 121). 12 Segundo James (1979, p. 132, grifo do autor): A conscincia no algo juntado; ela flui. Um rio ou um fluxo so as metforas pelas quais ela mais naturalmente descrita. Ao falar dela, daqui por diante, chamemo-la o fluxo do pensamento, da conscincia ou da vida subjetiva.
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experimentao, Bergson escolhe uma problemtica comum psicologia e metafsica, a
saber: o problema da liberdade.
necessrio, desde j, enfatizar que a posio bergsoniana frente psicologia ser
crtica. Se, como dizamos anteriormente, o proceder cientfico desqualifica a mudana ou a
passagem do tempo na compreenso dos fenmenos naturais, isso tambm pode ser
facilmente verificado na cincia psicolgica do sculo XIX. Sobre a configurao do quadro
histrico desse perodo e suas implicaes no mbito cientfico, Foucault (2002, p. 133)
oferece um diagnstico preciso:
A psicologia do sculo XIX herdou da Aufklrung a preocupao de alinhar-se com as cincias da natureza e de encontrar no homem o prolongamento das leis que regem os fenmenos naturais. Determinao de relaes quantitativas, elaborao de leis que se apresentam como funes matemticas, colocao de hipteses explicativas, esforos atravs dos quais a psicologia tenta aplicar, no sem sacrifcio, uma metodologia que os lgicos acreditaram descobrir na gnese e no desenvolvimento das cincias da natureza.
O comentrio demonstra que a psicologia cientfica absorvia, em seus procedimentos e
campo de atuao, o processo de matematizao prprio das cincias naturais. Ora, o
alinhamento da psicologia s cincias da natureza apresentar problemas extremos na
compreenso do humano. S para exemplificar, ainda no primeiro captulo do Ensaio,
Bergson destaca a equao de Fechner-Weber que possua a inteno de calcular a variao
quantitativa das sensaes decorrentes de uma excitao externa. Em outras palavras, esse
modelo de psicologia racionalista, por assim dizer, desejava uma descrio exata dos
fenmenos e fatos de conscincia, como se estivessem submetidos a uma determinao da
natureza.
Por ora, sem entrar demasiadamente no mago de tais questes, necessrio destacar
que, como observa Leopoldo e Silva (1994, p. 117-118): A anlise dos conceitos e dos dados
estritamente psicolgicos tem como funo abrir os horizontes para a reproblematizao do
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tempo enquanto categoria metafsica fundamental. No se trata, ento, de desenhar uma nova
teoria psicolgica ou de determinar e clarificar metodologicamente as categorias de uma
cincia da alma, o que poderia suscitar a acusao de psicologismo; a inteno bergsoniana
a de purificar o terreno para a compreenso da durao no nvel psicolgico e, ento,
apresentar, de maneira adequada, a articulao da liberdade13.
Esses elementos configuram o eixo crtico do Ensaio: a observao dos fatos
subjetivos, a avaliao negativa dos conceitos da psicologia e a orientao renovada do
problema liberdade, desarticulando o impasse existente entre os deterministas e os defensores
do livre-arbtrio; e , justamente, no cruzamento de tais informaes que encontramos a
articulao da metodologia de Bergson. Vejamos.
1.2. A teoria das multiplicidades: uma estratgia crtica
Apesar de Bergson destacar, no Prefcio do Ensaio, que os dois primeiros captulos do
livro (Da intensidade dos estados psicolgicos e Da multiplicidade dos estados de
conscincia: a idia de durao) so a preparao para o ltimo (Da organizao dos estados
de conscincia: a liberdade), foroso reconhecer que o mago da discusso articula-se no
segundo captulo, quando o autor apresenta a distino entre espao e tempo, e, tambm,
descreve sua primeira formulao da noo de durao.
13 importante destacar que as consideraes do Ensaio so fundamentais para a elaborao deste trabalho. Isso se deve a dois aspectos principais: a imerso na vida interior e a recusa de aceitar a articulao de problemas filosficos em um nvel estritamente discursivo (problemas mal formulados). Apesar do propsito do Ensaio ser a abordagem adequada da liberdade, a nossa anlise concentrar-se- naquilo que pode ser considerado como a elevao do estatuto filosfico da interioridade.
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Inicialmente, a estratgia crtica concentra-se na distino entre dois tipos de
multiplicidades14: de um lado, a numrica ou de justaposio de partes (quantitativa); de
outro, a multiplicidade de interpenetraes mtuas dos estados de conscincia (qualitativa). O
ponto de partida de sua teoria das multiplicidades incide sobre a compreenso da idia de
nmero. Apesar da estranheza dessa abordagem e da maneira abrupta como apresentada,
ser por esse vis, pela demonstrao de uma conexo intrnseca entre a formao do nmero
e a noo de espao, que Bergson elucidar sua perspectiva sobre a temporalidade.
As primeiras linhas do segundo captulo do Ensaio expressam a suspeita de que a
circunscrio da idia de nmero sua definio geral, estabelecida como a sntese do uno e
do mltiplo, apresenta-se de maneira incompleta. Isso ocorre porque indispensvel
questionar se tal idia no pressupe a representao de alguma outra coisa.
Conseqentemente, Bergson se v obrigado a compreender as mincias do processo de
formao do nmero. Essa noo, compreendida como a coleo de unidades, solicita que
as mesmas sejam idnticas ou supostamente semelhantes entre si na realizao da contagem.
Esse procedimento de descaracterizao das diferenas individuais do objeto, que se
concentra simplesmente em sua funo comum, a operao inicial que permite estabelecer
o critrio da soma. Isso pode ser facilmente ilustrado se pensarmos na distino entre a
14 A interpretao de Deleuze insiste na importncia e originalidade da teoria das multiplicidades, sobretudo em dois pontos: uma aproximao autntica em relao matemtica riemanniana; e o distanciamento de uma concepo dialtica do real. Em relao a esse ltimo ponto, Deleuze (1999, p. 33) acrescenta que: Em filosofia, conhecemos muitas teorias que combinam o uno e o mltiplo. Elas tm em comum a pretenso de recompor o real com idias gerais. Dizem-nos: o Eu uno (tese), mltiplo (anttese) e , em seguida, a unidade do mltiplo (sntese). Ou, ento, dizem-nos: o Uno j mltiplo, o Ser passa ao no-ser e produz o devir. Sem dvida, neste ltimo caso, a filosofia antiga exemplar no equacionamento destes conceitos, isto , em articular uma oposio de termos abstratos e gerais na compreenso da realidade. Para exemplificar a recusa bergsoniana, podemos recuperar sua crtica a uma suposta familiaridade com a filosofia de Herclito. Ao defender a mobilidade como a prpria substncia do real, ele questionar: [...] Como se pode comparar esta doutrina de Herclito? (BERGSON, 1979, p. 31). Para o filsofo jnico o devir era um fenmeno incontestvel. Contudo, sua tentativa de encontrar o princpio da mobilidade incorre na instituio de pares de oposto responsveis em criar uma unidade harmoniosa, ou seja, a partir de vistas imveis que se ope teramos a mudana. Isso pode ser verificado nos seguintes fragmentos (utilizamos aqui a Coleo Os pensadores): O combate de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres; e outro: Herclito (dizendo que) o contrrio convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discrdia. Para Bergson, o movimento substancial, um devir vivo, sendo assim a realidade movente no pode ser reduzida ao resultado de uma sntese de termos opostos, gerais e abstratos.
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contagem imparcial de cinqenta ovelhas de um rebanho e a maneira como as mesmas so
tratadas pelo seu pastor, que, supostamente, conhece os seus traos particulares. Outro
exemplo seria o da contagem dos soldados de um batalho e, em outro sentido, a simples
chamada dos mesmos: o primeiro procedimento reduz cada soldado a uma imagem invarivel
e aplicada aos demais; j no segundo caso, a indicao da chamada respeitaria as diferenas
entre cada um dos membros. Assim, conclui Bergson (2001, p. 52) [...] diremos ento que a
idia de nmero implica a intuio simples de uma multiplicidade de partes ou de unidades,
absolutamente parecidas umas com as outras.
Contudo, apesar da determinao de uma unidade-padro e de sua assimilao,
necessrio destacar que semelhante artifcio apenas se dispe no formato de uma coleo
porque ocorre a justaposio das partes. como se a contagem do rebanho, em que se repete a
unidade-padro, fosse possvel a partir da posio que cada imagem-ovelha ocupa em um
determinado meio homogneo. Com isso, inevitvel destacar a noo de um espao ideal
como possibilidade de acrescentar uma unidade ao lado de outra, o que permite formatar, de
maneira simultnea, uma coleo de partes sucessivas. Segundo Bergson (2001, p. 53), para
que o nmero v crescendo medida que avano, necessrio que retenha as imagens
sucessivas e as justaponha a cada uma das unidades novas de que evoco a idia: ora, no
espao que igual justaposio se opera e no na pura durao.
Se a intuio do espao permite a articulao simultnea entre a reteno e o
acrscimo de partes justaponveis umas as outras, imprescindvel reconhecer que essa
operao intelectual condio de contagem dos objetos materiais, como acompanhamos nos
exemplos. Sem dvida, como j podemos observar, o tratamento desses objetos solidrio,
por assim dizer, do processo de matematizao do mundo natural. Apesar disso, Bergson
questiona se tal intuio do espao acompanha toda a idia de nmero, mesmo que seja
concebido como uma abstrao. Ora, a idia de um nmero abstrato pode ser concebida como
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a imagem da unidade-padro sem a remisso necessria aos objetos materiais, sendo que,
transformada em uma esquematizao intelectual, pode ser expressa em algarismos e
palavras. Se, por exemplo, recuperarmos a imagem de uma fila de soldados, ou a idia que
dela temos, possvel represent-la como uma sucesso de pontos em uma reta ou, at
mesmo, convencion-los a uma disposio crescente de dgitos. Ora, ainda assim, essa
sucesso que solicita a adio de unidades, sejam elas imagens extensas ou abstratas, ocorre
apenas no espao e nunca no tempo. Assim, [...] toda a idia clara do nmero implica uma
viso no espao; e o estudo direto das unidades que entram na composio de uma
multiplicidade distinta vai nos conduzir, neste ponto, mesma concluso que a anlise do
prprio nmero. (BERGSON, 2001, p. 54, grifo nosso).
A anlise da idia de nmero ainda solicita o esclarecimento do significado da noo
de unidade, sendo que esta permitir a afirmao do nmero enquanto tal e mesmo a sua
composio. Alm disso, o alcance dessa distino permite compreender o papel dos aspectos
subjetivo e objetivo na teoria do nmero. Em um trecho do segundo captulo do Ensaio, o
autor faz a seguinte afirmao: Notemos, com efeito, que chamamos subjetivo o que parece
inteira e adequadamente conhecido, objetivo o que conhecido de tal maneira que uma
multido sempre crescente de impresses novas poderia substituir a idia que temos
atualmente. (BERGSON, 2001, p. 57). Qual seria o significado dessa afirmao? Vejamos.
Se o espao , portanto, a condio de justaposio de partes idnticas e de distino
das mesmas atravs de sua posio, isso ainda no explica o carter unificador de tal
multiplicidade, ou seja, a capacidade de executar a soma. De acordo com Bergson, a
constituio do carter uno e indivisvel da idia de nmero de responsabilidade do ato
simples e indivisvel do esprito que concebe uma espcie de representao totalizante, isto ,
o esprito unifica a multiplicidade de partes em um ato de conscincia. Entretanto, medida
que nos distanciamos desse ato e pensamos apenas em seu produto, ou seja, em unidades
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formadas e isoladas que se sobrepe umas as outras, verificamos, ento, aquilo que Bergson
considera ser a caracterstica objetiva da experincia consciente15.
As conseqncias da observao sobre a idia de nmero sero fundamentais para a
filosofia bergsoniana. Se a unidade-padro em sua disponibilidade para a soma apresenta-se
como a matria pela qual o esprito fixa a sua ateno e constri o nmero, fato que a
unidade e a indivisibilidade so aspectos da jurisdio do esprito e no propriamente do
nmero, isto , a consistncia da caracterstica numrica assegurada pelo esprito. Sendo
assim, somos obrigados a estabelecer a seguinte distino:
[...] entre a unidade a qual se pensa e a unidade que se erigi em coisa aps termos pensado, assim como entre o nmero em vias de formao e o nmero uma vez formado. A unidade irredutvel enquanto nela se pensa, e o nmero descontnuo enquanto se constri; mas, desde que se considera o nmero em estado de acabamento, objetiva-se: e precisamente porque ele aparece ento como indefinidamente divisvel. (BERGSON, 2001, p. 57, grifo nosso).
Dessa forma, em relao ao processo de formao do nmero necessrio destacar
que o elemento subjetivo vincula-se ao ato uno e indivisvel da conscincia. Em uma direo
contrria, a apreciao de objetos exteriores e inerentes ao processo de contagem constitui-se
como uma apercepo atual, ou melhor, a experincia atual de um elemento que, em certo
sentido, um agregado de unidades provisrias articuladas em um determinado ponto de
vista. Por isso, a dimenso subjetiva da experincia parece ser inteiramente conhecida, uma
vez que no se reduz a uma operao intelectual em seu desdobramento de partes recortadas
pela percepo dos objetos. Enfim, o aspecto subjetivo diferencia-se do procedimento
objetivo porque no assume o carter fixo e disponvel para se juntar s outras partes,
caracterstica essa que se submete a uma decomposio qualquer e indefinida.
15 Sem dvida, no momento em que penso em cada uma dessas unidades isoladamente, eu a considero como indivisvel, pois claro que no penso seno nela. Mas, desde que a deixo de lado para passar a seguinte, eu a objetivo, e por isso fao dela uma coisa, isto , uma multiplicidade. (BERGSON, 2001, p. 55).
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Sobre a dimenso subjetiva e objetiva da filosofia bergsoniana, ainda que direcionada
s teses do Ensaio, Deleuze oferece uma importante chave de leitura, pois, como comenta
Hardt (1996), a inteno maior de sua interpretao concentra-se na retomada do movimento
ontolgico que, em Bergson, pensado em termos qualitativos16. Nesse sentido, o aspecto
subjetivo caracterizado pelo ato irredutvel que apresenta uma srie de elementos indistintos
e em transio no fluxo da conscincia; essa caracterizao antecipa a descrio dos estados
puramente afetivos como multiplicidade no numrica. No Ensaio, h uma passagem que
comprova tal leitura. Segundo Bergson (2001, p. 57):
[...] um sentimento complexo conter um grande nmero de elementos mais simples; mas, enquanto esses elementos no se destacarem com nitidez perfeita, no se poder dizer que eles estavam inteiramente realizados e, desde que a conscincia tenha deles uma percepo distinta, o estado psquico que resulta de sua sntese ter, por isso mesmo, mudado.
O aspecto subjetivo , portanto, caracterizado como virtual, isto , um processo no
qual tudo se encontra em vias de formao, um emaranhado de partes que no se atualiza
completamente em um resultado nico e definido. Em uma direo contrria, o aspecto
objetivo seria aquele que se apresenta como atual: a efetivao de uma unidade-padro
que se presta a uma decomposio qualquer. Como destaca Deleuze (1999, p. 30, grifo do
autor): Bergson quer dizer que o objetivo o que no tem virtualidade realizado ou no,
possvel ou real, tudo atual no objetivo. Em outras palavras, o subjetivo ou virtual o
aspecto da experincia consciente que pe em jogo a transio, uma unidade viva de
elementos heterogneos e independentes dos cortes homogneos promovidos pela
espacializao; o objetivo (ou atual) seria o resultado do processo de subdivises do
16 De acordo com Hardt (1996, p. 44-45): A tarefa construtiva central da leitura de Bergson por Deleuze , ento, elaborar o movimento positivo do ser entre o virtual e o atual que d suporte necessidade do ser e que faculta ao ser tanto a mesmidade quanto a diferena, a unidade e a multiplicidade. Essa discusso do movimento ontolgico se baseia na defesa, feita por Bergson, de uma diferena fundamental entre tempo e espao, entre durao e matria. O espao somente capaz de conter diferenas de grau e assim s apresenta uma variao meramente quantitativa; o tempo contm diferenas de natureza e assim o meio verdadeiro da substncia.
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indiviso, sendo que a sua esquematizao comporta-se como um arranjo ou rearranjo de uma
unidade sempre ameaada de desintegrao. necessrio destacar, ainda, que a decomposio
inevitvel do aspecto objetivo no altera o seu carter total, ou melhor, a sua determinao e
natureza; isso equivale a reconhecer que, diferentemente do aspecto subjetivo, no ocorre uma
mudana de natureza em sua configurao, mas apenas uma diferena de grau.
O que est em jogo a compreenso do duplo aspecto da experincia humana ou,
como diz Deleuze (1999), o domnio do misto. Nesse sentido, a descrio da percepo dos
objetos extensos, em que o espao a matria da atividade do esprito e mesmo o meio no
qual se situa a construo do nmero, importante porque permite a distino entre o domnio
do mundo fsico, em sua relao com o processo de matematizao, e o domnio subjetivo ou
psicolgico. Isto , toda a percepo do mundo exterior obedece aos critrios da
espacializao, a saber: a homogeneizao e a quantificao. Mas, como observamos
anteriormente, a concepo do espao por si s no articula uma sucesso. Ora, h um aspecto
da experincia consciente que permite a articulao de momentos diversos, mesmo que esses
se desdobrem em um meio homogneo (o que ser chamado de tempo homogneo). At
aqui, basicamente, podemos observar uma tentativa de avaliao do processo de
conhecimento, de como nossa conscincia comporta-se em sua insero no mundo. Por
isso, necessrio, ainda, destacar o outro tipo de multiplicidade que, segundo Bergson, no se
submete ao processo de quantificao dos dados da experincia.
1.3. O processo de interiorizao e a verdadeira durao
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A multiplicidade numrica est relacionada diretamente com o procedimento do senso
comum, das cincias e mesmo da filosofia. Esse tipo de operao intelectual a condio
bsica de insero humana no universo dos objetos materiais e, tambm, o sustentculo da
sociabilidade. Se, como dizamos antes, toda a operao que envolve o nmero est vinculada
idia de espao, e, portanto, se encontra pautada exclusivamente na identidade e na
repetio, necessrio, ento, como quer Bergson, examinar uma direo oposta
exteriorizao. Isto , a partir de uma exigncia metodolgica, o filsofo se v obrigado a
auscultar a palpitao da prpria conscincia. Ou melhor: Ns vamos, ento, pedir
conscincia para se isolar do mundo exterior e, por um vigoroso esforo de abstrao, voltar a
ser ela mesma. (BERGSON, 2001, p. 61). Por que o filsofo impe essa diferenciao entre
interior e exterior na sua abordagem sobre a experincia consciente? Enfim, qual o sentido de
tal esforo de abstrao?
Em primeiro lugar, necessrio sublinhar que se trata da instaurao de um dualismo
metodolgico, isso porque a experincia humana sempre marcada por um misto de
qualidade e quantidade, de elementos subjetivos e objetivos, ou melhor, uma mistura de
conservao do tempo e de posicionamento dos objetos da realidade exterior. Por isso, apenas
metodicamente possvel dissociar a experincia consciente e revelar as suas peculiaridades.
Em segundo lugar, como j antecipamos, Bergson encontra nos estados afetivos de alma uma
organizao que no possui relao com a separao, a descontinuidade e a disposio em
meio homogneo dos elementos envolvidos na experincia consciente. Diferentemente da
compreenso da realidade exterior em sua relao com a possibilidade de manipular os
objetos, de distingui-los e de definir o seus contornos o interior do homem no possui uma
representao ntida e esquemtica de seus elementos, a no ser que acontea a interferncia
do espao e da linguagem, ocasionando, ento, a sua desqualificao17.
17 Se, para contar os fatos de conscincia, devemos represent-los simbolicamente no espao, no plausvel que esta representao simblica modificar as condies normais de percepo interna? (BERGSON, 2001, p.
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A dissociao metdica da experincia consciente indica dois domnios especficos: a
relao com os objetos materiais, em que predomina o processo de matematizao, de
formatao de partes sucessivas e extrnsecas na concepo do real; e um aspecto da
experincia que, em seu estado de pureza, no se submete ao processo de quantificao, ou
seja, o domnio do vivido, de uma multiplicidade qualitativa, em que a conscincia
aprofunda-se em si mesma e atinge a colorao dos estados de alma. Esse esforo metdico
de separao do misto da experincia humana conduz caracterizao e definio da noo
de espao e, de modo correlato, compreenso purificada da temporalidade.
O ncleo do segundo captulo do Ensaio dedica-se a esse empreendimento crtico de
separao do misto e da descrio de suas partes puras, sem, contudo, desconsiderar a
relao entre ambas. De acordo com Bergson, a definio possvel da noo de espao s
pode ser: [...] o que nos permite distinguir entre si vrias sensaes idnticas e simultneas;
, portanto, um princpio de diferenciao, no a diferenciao qualitativa, e, por conseguinte,
uma realidade sem qualidade. (BERGSON, 2001, p. 64). Em outras palavras, o espao um
meio vazio e homogneo que permite a realizao das operaes de contagem e diviso de
uma determinada unidade-padro, ou seja, uma dimenso em que se pode articular,
simultaneamente, uma srie sucessiva de objetos na compreenso do real. A concepo e
estruturao desta ordem homognea so de inteira responsabilidade da inteligncia, cuja
funo a de preparar e aclarar as aes humanas sobre o mundo. Por isso, ao apresentar as
caractersticas dessa faculdade, Bergson (2001, p. 66) destaca a capacidade de [...] realizar
distines ntidas, contar, abstrair e talvez tambm falar. Se a anlise crtica do Ensaio j
revela essa caracterizao, necessrio destacar que, em A evoluo criadora, encontraremos
61). Sem dvida, como acompanharemos no decorrer do Ensaio, e mesmo em toda a produo filosfica de Bergson, a resposta a esta pergunta indica que a linguagem responsvel, devido a sua estruturao, em deformar a realidade movente. Essa abordagem da linguagem e de suas conseqncias na especulao filosfica ser abordada com mais profundidade na ltima parte deste trabalho. Por ora, enfatizaremos o seu carter negativo ou, como dir Bergson, o seu aspecto incomensurvel com a multiplicidade qualitativa dos nossos estados de alma.
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uma teoria da inteligncia vinculada ao exame de sua gnese, cuja inteno ser a de
desenvolver uma teoria do conhecimento associada a um estudo da vida.
Mas, o que importa, nesse momento, saber se a verdadeira durao relaciona-se de
alguma maneira com as caractersticas do espao. significativo observar que, assim como a
anlise da multiplicidade numrica revelou uma outra que escapa quantificao, ser
justamente por meio deste mesmo procedimento negativo que poderemos descrever a
durao, isto , em oposio direta ordem espacial.
Ora, se o espao se deve definir como homogneo parece que inversamente todo o meio homogneo e indefinido ser espao. J que a homogeneidade consiste aqui na ausncia de toda a qualidade, no se v como duas formas de homogeneidade se distinguiriam uma da outra. (BERGSON, 2001, p. 66).
Se a avaliao de duas ordens homogneas distintas inadequada, pois a
caracterizao da homogeneidade invarivel, o tempo necessariamente no pode ser
confundido com o espao. Em todo caso, se isso ocorrer indispensvel admitir a invaso
dessa dimenso sobre a durao e, por conseguinte, a quantificao de seus elementos. Com
efeito, se as coisas materiais, exteriores entre si e nossa prpria conscincia, so pensadas
em um meio homogneo no qual se estabelece distines ntidas e contornos definidos,
necessrio ento pensar a durao em uma direo contrria, isto , em um processo de
interiorizao da prpria conscincia, cujas caractersticas mais marcantes so a continuidade
indistinta e a heterogeneidade. Em relao a essas consideraes, torna-se clara a primeira
descrio da durao pura na filosofia bergsoniana:
[...] a forma que toma a sucesso dos nossos estados de conscincia quando nosso eu se deixa viver, quando ele se abstm de estabelecer uma separao entre o estado presente e os estados anteriores. No h necessidade, para isso, de se absorver inteiramente na sensao ou idia que passa, pois ento, ao contrrio, ele cessaria de durar. Tambm no h necessidade de esquecer os estados anteriores: basta que, lembrando-se desses estados no os justaponha ao estado atual como um ponto a outro ponto, mas os organize com ele, como
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acontece quando ns nos lembramos, por assim dizer, das notas de uma melodia fundidas em um conjunto. (BERGSON, 2001, p. 67, grifo nosso).
Qual seria o significado dessa afirmao? Ora, de maneira simples e recuperando mais
uma vez o comentrio de Worms (2000, p. 20), a durao consiste na sucesso contnua de
um contedo qualquer. Essa sucesso bastante especfica, experimentada por um eu que
vivencia a si mesmo, supe uma memria na articulao dos seus momentos, entre o antes e
o depois, sem os interstcios prprios da espacializao. Em termos bergsonianos, a
memria a condio interna da passagem do tempo, ou melhor, como ser explicitado mais
tarde com a publicao de sua obra Durao e simultaneidade a propsito da teoria de
Einstein, de 1922: [...] uma memria interior prpria mudana, memria que prolonga o
antes no depois e os impede de serem puros instantneos que aparecem e desaparecem num
presente que renasceria incessantemente. (BERGSON, 2006c, p. 51). Assim, sem a
interveno de um meio vazio e homogneo, a sucesso de nossas experincias sensveis
adquirem uma forma orgnica que, como destaca Worms (2004), corresponde ao progresso
ininterrupto e crescente da vida ou da histria de um indivduo.
Sem dvida, a vida psicolgica em sua auto-estruturao interior e profundidade
o campo propcio de investigao metafsica, pois, encontramos a um conjunto de fatos que
podem ser vividos e sentidos em seu dinamismo qualitativo, em um emaranhado de elementos
sucessivos e sem a menor tendncia justaposio de partes distintas, e que, por isso, so
irredutveis a um processo de formatao homogneo. Ora, afirmar que o nosso eu se deixa
viver significa encontrar-se com o tempo vivido da conscincia, o que, na terminologia
bergsoniana, corresponde coincidncia com o real em sua especificidade: a experincia da
passagem do tempo.
A filosofia bergsoniana concentra-se na apreenso e descrio de tais fatos, em
oposio ao pensamento ordinrio e, mais especificamente, ao proceder cientfico, que, como
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veremos a seguir, apresenta uma viso simplificada da totalidade da vida interior, como se a
sua articulao estivesse disposta em fragmentos exteriores uns aos outros e justaponveis em
uma seqncia linear, passvel de medio. Por isso, como acabamos de ver, a apreciao da
durao verdadeira, que o objeto da verdadeira metafsica, no pode ser submetida a uma
definio simples e geomtrica, pois seria o mesmo que limit-la a um quadro vazio e
inflexvel. Para Bergson, desde o Ensaio, o fluxo dos nossos estados de conscincia, a
durao psicolgica, assemelha-se a uma melodia em que as notas so fundidas em uma
totalidade qualitativa. Apesar da dimenso fsica presente na execuo de uma msica (os
instrumentos, a partitura, etc.), bem como as notas que se sucedem umas s outras, um fato
que o seu conjunto realiza-se com a fora de um bloco nico, ou melhor, com a
indivisibilidade de uma frase musical.
Alm dessa comparao recorrente em sua obra, Bergson acrescenta uma outra
imagem importante: esse conjunto de elementos que se mescla entre si comparado a um ser
vivo cujas partes peculiares se prestam a uma espcie de solidariedade orgnica. Sobre essa
dimenso da vida interior, conclui Bergson (2001, p. 68): pode-se conceber a sucesso sem a
distino, como uma penetrao mtua, uma solidariedade, uma organizao ntima de
elementos, em que cada um, representativo do todo, dele no se distingue nem se isola a no
ser por um pensamento capaz de abstrair.
1.4. O tempo homogneo e a desqualificao da realidade movente
O pensar no espao, preponderante na vida prtica e social dos homens, o
responsvel em conceber o conceito bastardo de tempo homogneo. Esse fantasma do
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espao, que incomoda a palpitao da conscincia, segue a direo habitual da nossa
inteligncia: a de procurar a fixidez. Assim, a prpria observao da interioridade humana
eclipsada por esse processo de invaso do espao sobre a dinmica interna dos estados de
alma, ou seja, os estados de conscincia so justapostos de maneira simultnea, exteriores uns
aos outros; a sua nova configurao lembra um colar de prolas que se alinham linearmente e
tocam-se apenas na superfcie.
Apesar da dificuldade de representar a durao pura, possvel pens-la em sua
dinmica se no ocorrer uma interferncia simblica que impe o recurso espacial de
mensurao. A imagem da oscilao pendular ajuda entender a argumentao bergsoniana. O
que significa dizer, por exemplo, que transcorreu um minuto? Ora, isso pode denotar que o
transcurso de sessenta segundos corresponde ao mesmo nmero de oscilaes pendulares,
sendo que h possibilidades diferentes de represent-las: pens-la, primeiramente, de uma
nica vez, isto , simultaneamente, o que culminaria na excluso de uma sucesso, pois, como
diz Bergson (2001, p. 70), [...] eu penso, no em sessenta toques que se sucedem, mas em
sessenta pontos de uma linha fixa, em que cada um simboliza, por assim dizer, uma oscilao
do pndulo; outra maneira seria pensar na sucesso das sessenta oscilaes sem alterar a sua
produo no espao, isto , elas apareceriam apenas no presente sem a conservao das
precedentes, uma vez que no levada em conta a lembrana dos elementos anteriores (isso
comprometeria as idias de sucesso e de durao); e, por fim, se a imagem da oscilao
presente articular-se com a anterior, pode ocorrer dois casos: de um lado, a possibilidade de
justap-las, o que culminaria na composio de uma linha e na assimilao de seus pontos; de
outro, as oscilaes se penetrariam entre si, em uma organizao dinmica, ou melhor, em
uma multiplicidade qualitativa, o que suscitaria a imagem da durao pura.
Essa imagem pode ser recuperada tambm na relao do movimento pendular com a
iminncia do sono. Bergson (2001, p. 71) apresenta a seguinte questo: Quando as oscilaes
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regulares do pndulo nos convidam ao sono, ser o ltimo som ouvido, o ltimo movimento
percebido que produz tal efeito?. Obviamente a resposta no, pois, se isso fosse correto, o
primeiro oscilar tambm teria promovido o mesmo efeito. Alm disso, a justaposio das
partes anteriores e a sua conseqente culminao no ltimo som ouvido tambm seria
ineficaz. O que Bergson quer dizer que o efeito provocado no espectador foi originado
qualitativamente, com a interpenetrao dos momentos daquele balancim: [...] os sons se
compunham entre si e agiam, no pela quantidade enquanto quantidade, mas pela qualidade
que sua quantidade apresentava, isto , pela organizao rtmica do seu conjunto.
(BERSGON, 2001, p. 71, grifo nosso). Se, ao contrrio, as sensaes da oscilao do pndulo
fossem reduzidas justaposio de uma unidade-padro em um vai e vem repetitivo desta
mesma experincia perceptiva possvel concluir que a sua repetio seria fraca e
suportvel; e mais, a sensao em si seria confundida com o estmulo exterior e a qualidade
ofuscada pela espacializao.
Ora, essa argumentao apresenta dois aspectos bsicos: a quantidade permeada pelo
aspecto qualitativo, e isso significa reconhecer que o decorrer temporal pode ser
experimentado pela conscincia, quando ela desejar apenas v-lo e no manipul-lo; ainda
assim, predomina a dificuldade de apreenso da durao. Afinal, qual seria a origem disso?
Bergson (2001, p. 71-72) responde de maneira breve: porque [...] no duramos sozinhos: as
coisas exteriores, parecem, duram como ns, e o tempo, considerado sob este ltimo ponto de
vista, tem toda aparncia de um meio homogneo. Em outras palavras, a experincia comum
do mundo e de ns mesmos marcada por uma espcie de durao impura (homognea), que
se encontra amplamente disseminada na vida social e, sobretudo, se desdobra nas frmulas e
clculos das cincias (mecnica, astronomia e fsica, por exemplo): o tempo revestido por
uma dimenso mensurvel. Contudo, em nossa vida psicolgica a direo outra.
Para explicar essa mistura, o filsofo apresenta as seguintes distines:
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Dentro de mim, prossegue-se um processo de organizao ou de penetrao mtua dos fatos de conscincia, que constitui a verdadeira durao. porque duro dessa maneira que represento o que chamo as oscilaes passadas do pndulo, ao mesmo tempo em que percebo a oscilao atual. (BERGSON, 2001, p. 72).
O que Bergson quer dizer que a atividade consciente pode articular um antes e um
depois na representao das oscilaes pendulares. Se, hipoteticamente, fosse suprimido o
eu que pensa as oscilaes pendulares, a sua suposta durao deixaria de existir. Se, ao
contrrio, fosse suprimido o pndulo e suas caractersticas (som/movimento), o eu se
vincularia durao heterognea sem qualquer possibilidade de interveno numrica. A
primeira hiptese ilustra a eterna repetio do mesmo, do instante: o pndulo ocuparia uma
nica posio; j a outra desenha o reino da qualidade pura. Em suma, a tese de Bergson
consiste em afirmar a existncia de vnculo entre qualidade e quantidade, entre a durao
verdadeira e o posicionamento de objetos no espao: a durao prpria da interioridade da
conscincia a condio para o aparente durar das coisas.
Nesse sentido, conclui Bergson (2001, p. 72-73, grifo nosso):
[...] no nosso eu, h sucesso sem exterioridade recproca; fora do eu, exterioridade recproca sem sucesso: exterioridade recproca porque a oscilao presente radicalmente distinta da oscilao anterior que j no existe; mas ausncia de sucesso, pois a sucesso existe apenas para um espectador consciente que se lembra do passado e justape as duas oscilaes ou os seus smbolos num espao auxiliar.
O intercmbio habitual entre esses dois aspectos, a sucesso sem exterioridade e a
exterioridade sem sucesso, pode ser chamado, utilizando uma nomenclatura prpria da
fsica, de endosmose. justamente esse fenmeno de troca entre o aspecto interior e
exterior da conscincia que d origem ao tempo homogneo. A mistura entre o tempo em sua
pureza e o espao possui um duplo sentido: de um lado, a durao da conscincia projeta-se
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nas coisas e suscita uma aparente durao do mundo exterior, isso ocorre porque a
contemporaneidade entre a continuidade da durao (dentro de mim) com a percepo do
mundo exterior (fora de mim) influencia a configurao dos momentos distintos da
oscilao pendular; de outro lado, o espao introjetado na temporalidade da conscincia, o
que ocasiona a contagem dos momentos sucessivos da durao interior, ou seja, a
simultaneidade entre o estado de conscincia e a percepo de uma oscilao atual nos induz
concepo de uma sucesso de momentos exteriores uns aos outros em nossa vida interior (a
concepo errnea de uma durao homognea). Assim, afirma Bergson (2001, p. 74): A
durao toma assim a forma ilusria de um meio homogneo, e o trao de unio entre estes
dois termos, espao e durao, a simultaneidade, que se poderia definir como interseco do
tempo com o espao. Por isso, a concepo comum e habitual do tempo, para Bergson,
apresenta-se como um conceito bastardo, um resultado hbrido da experincia humana que
reduz a durao pura a uma esquematizao simblica.
A confuso que acompanha essa interseco tambm se encontra no
equacionamento de uma questo que acompanha a metafsica desde a sua origem: a
problemtica em torno da compreenso do movimento. Essa confuso inveterada, aqui,
consiste em substituir o movimento por uma srie de posies no espao. Essa idia de
movimento desprovida de uma caracterstica essencial: a mobilidade. Como vimos
anteriormente, a passagem de uma posio a outra (a marcao das batidas pendulares, por
exemplo) supe um espectador consciente que articule e sustente a sucesso. Para Bergson,
essa passagem um progresso ou, mais especificamente, uma sntese metal que no pode
ser confundida com uma multiplicidade quantitativa, uma coisa. Aqui, o exemplo
bergsoniano da estrela cadente ilustra perfeitamente essa diferena. A experincia da
percepo sbita do movimento estrelar no cu permite extrair duas conseqncias: de um
lado, o movimento confunde-se com a viso de um rastro de fogo, isto , a linha percorrida
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pelo astro entre pontos definidos; de outro lado, temos a sensao qualitativa de sua
mobilidade no interior da conscincia. Assim, Bergson (2001, p. 75) nos diz: [...] h dois
elementos para distinguir no movimento, o espao percorrido e o ato pelo qual o percorremos,
as posies sucessivas e a sntese dessas posies. Aqui a confuso consiste em reduzir o
movimento divisibilidade do espao percorrido, em dispor o mvel em uma trajetria linear
na qual ocupar determinadas posies.
Ao realizar o exame de paternidade da metafsica, Bergson encontra em Zeno de
Elia o seu disseminador por excelncia, sobretudo porque o eleata assinalou as contradies
inerentes ao movimento e mudana. Isso no significa que o movimento no era colocado
em questo no mundo grego, mas, seguramente, Zeno foi o primeiro a trat-lo de maneira
mais consistente, exprimindo-se com o rigor do pensamento racional. O que importa, para
Bergson, criticar as iluses da escola eletica ou, mais especificamente, o contedo dos
famosos sofismas formulados por Zeno, e, ento, demonstrar o verdadeiro caminho da
atividade metafsica.
A argumentao de Zeno, orientada pela perspectiva imobilista parmenidiana (cujo
princpio pode ser sintetizado na mxima: o ser , o no-ser no ), constitui-se em oposio
s teses defensoras do mltiplo e do movimento18. Apesar de suas aporias mais famosas
serem em nmero de quatro, a anlise crtica de Bergson, no Ensaio, direciona-se
exclusivamente para o argumento de Aquiles e da tartaruga. A maneira de superar a
18 A indicao aristotlica sugere que Zeno de Elia o fundador da dialtica como tcnica de argumentao, sobretudo em seu procedimento de reduo das teses de seus oponentes ao absurdo. Esse procedimento consiste em demonstrar uma contradio no interior das teses adversrias (os defensores da multiplicidade e do movimento), sem, contudo, afirmar a sua prpria perspectiva. As aporias mais conhecidas de Zeno esto dispostas em quatro argumentos. No Ensaio, Bergson recorre apenas ao argumento de Aquiles. Posteriormente, em Matria e memria, encontramos o motivo de sua escolha: todos os sofismas de Zeno esto fundados sobre a mesma confuso, isto , a de apresentar o tempo e o movimento como uma linha ou trajetria percorrida por um mvel. Vejamos. O primeiro, o argumento da divisibilidade infinita da trajetria do mvel, sustenta que um competidor para atingir o termo de uma corrida deve alcanar primeiramente a metade do percurso e, em seguida, a metade da metade deste caminho, o que o levaria a uma sucesso infinita de divises do espao. O segundo, o argumento de Aquiles, abordaremos na discusso acima. Em terceiro lugar, encontramos o argumento da flecha que ao alar vo se encontra em repouso, isto , a cada instante de seu vo a flecha coincidiria com um determinado lugar que ocupa. E, por fim, o argumento das massas iguais que, em um estdio, se movimentam em sentido contrrio e perpassam outras massas iguais.
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problematizao do movimento, apresentada por Zeno, consiste em desfazer a confuso