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Este trabalho visa investigar as edificações classificadas como “renovação” pela Lei 7709 de 1994, responsável pela preservação e proteção do Patrimônio Histórico, Artístico, Ambiental e Cultural do município de Belém. A categoria “renovação” enquadra os imóveis sem interesse à preservação, onde em seu lugar pode ser construída uma nova edificação. Com isso esses lotes presentes no conjunto histórico “abrem a guarda” para a dinâmica de transformação intrínseca à cidade, a paisagem transfigurada escapa à “estética patrimonial” consolidando uma nova “Cidade Velha”. Desvendar as relações simbólicas implícitas no processo de “descaracterização” do tecido urbano tombado é o mote usado para relacionar memória e esquecimento dos usuários da Rua Dr. Assis à transformação da paisagem, segundo caminho aberto em Belém. A via que já se encontrava traçada por volta de 1619, hoje faz parte do bairro da Cidade Velha, o qual juntamente com o bairro da Campina formam o Centro Histórico de Belém, núcleo urbano possuidor de grande parte do acervo de bens patrimoniais da cidade. Através do método etnográfico como instrumento de pesquisa buscou-se entender a produção da cultura material a partir da relação entre memória e esquecimento estabelecida nas falas dos agentes transformadores do lugar e refletidas nas “lacunas patrimoniais edificadas”.

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Figura 01 - Planta geométrica da Cidade de Belém do Grão

Pará, desenhada por Andrade Schwebel em 1753. Fonte:

ALUNORTE, modificado pelo autor, 1995.

Reminiscências edificadas: a relação entre memória e esquecimento na

paisagem da Rua Dr. Assis no Bairro da Cidade Velha em Belém-PA

Dinah R. Tutyia (1), Cybelle Salvador Miranda (2)

(1) Mestranda, PPGAU- UFPA, Brasil. e-mail: [email protected]

(2) Profª. Drª.Cybelle Salvador Miranda, PPGAU/FAU – UFPA, Brasil. e-mail: [email protected]

Resumo: Este trabalho visa investigar as edificações classificadas como “renovação” pela Lei 7709 de

1994, responsável pela preservação e proteção do Patrimônio Histórico, Artístico, Ambiental e Cultural

do município de Belém. A categoria “renovação” enquadra os imóveis sem interesse à preservação, onde

em seu lugar pode ser construída uma nova edificação. Com isso esses lotes presentes no conjunto

histórico “abrem a guarda” para a dinâmica de transformação intrínseca à cidade, a paisagem

transfigurada escapa à “estética patrimonial” consolidando uma nova “Cidade Velha”. Desvendar as

relações simbólicas implícitas no processo de “descaracterização” do tecido urbano tombado é o mote

usado para relacionar memória e esquecimento dos usuários da Rua Dr. Assis à transformação da

paisagem, segundo caminho aberto em Belém. A via que já se encontrava traçada por volta de 1619, hoje

faz parte do bairro da Cidade Velha, o qual juntamente com o bairro da Campina formam o Centro

Histórico de Belém, núcleo urbano possuidor de grande parte do acervo de bens patrimoniais da cidade.

Através do método etnográfico como instrumento de pesquisa buscou-se entender a produção da cultura

material a partir da relação entre memória e esquecimento estabelecida nas falas dos agentes

transformadores do lugar e refletidas nas “lacunas patrimoniais edificadas”.

Palavras-chave: Centro Histórico; Patrimônio Urbano; Memória; Esquecimento.

1. Introdução

1.2. A Rua Dr. Assis e o Bairro da Cidade Velha

Segundo caminho aberto em Belém recebeu a denominação inicial de Rua do Espírito Santo em virtude

de um morador – Sebastião do Espírito Santo Tavares. Esta designação permaneceu por dois séculos e

meio e depois passou a se chamar Rua Dr. Assis (FORUM LANDI, 2006). Atualmente com

aproximadamente 392 anos a via compõe com demais logradouros o bairro da Cidade Velha, que

juntamente com o bairro da Campina formam o Centro Histórico de Belém (CHB).

O perfil desta rua é o reflexo das transformações ocorridas no bairro como um todo. Hoje, pode-se

caracterizar a Cidade Velha como um bairro onde existe o predomínio habitacional embora haja uma

relativa diversidade de usos misto e comércio, abrigados em um conjunto peculiar de imóveis, marcados

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pela heterogeneidade de linguagem e tipologia arquitetônica. Embora com uma quantidade significativa

de edificações descaracterizadas, em ambos os aspectos – linguagem e tipologia – ainda é possível

constatar exemplares que vão do colonial às desfigurações1 sem classificações, da monumentalidade às

mais humildes habitações, espalhadas em uma malha de vias estreitas e sinuosas não tão bem

conservadas.

A necessidade da população local em atualizar-se e adaptar-se as diversas solicitações da modernidade,

criou e recriou o cenário hoje presente, casas ecléticas com abertura para garagem em residências ou para

facilitar a entrada de maquinários e clientes em comércios, dentre outras modificações. Transformações

exigidas por novos programas de necessidades, que ao longo dos anos geraram um número de imóveis

classificados como parcialmente descaracterizados, porém tão importantes quantos os originais para a

preservação do patrimônio edificado do lugar. Além destes, uma grande quantidade de imóveis

classificados como totalmente descaracterizados também foram surgindo no tecido histórico, em dados

percentuais das edificações levantadas, aproximadamente 47% do total encontravam-se sem análise

quanto à linguagem arquitetônica2 no ano de 2006 (TUTYIA, 2010). É no numero de edificações as quais

“destoam” e as quais permanecem “históricas” no conjunto, que se busca traçar a relação entre memória e

esquecimento na rua Dr. Assis.

2. Objetivo

Estabelecer a relação entre memória e esquecimento consolidadas nas fachadas das edificações da Rua

Dr. Assis por meio das falas dos agentes transformadores do espaço.

3. Justificativa

Castriota (1999) ao tratar da preservação do meio ambiente urbano, afirma que preservar o patrimônio

ambiental urbano não significa congelar a vida e transformar o conjunto histórico em um museu

intocável, preservar o patrimônio ambiental é preservar o equilíbrio da paisagem, é pensar em como inter-

relacionar infra-estrutura, lote, edificação, linguagem urbana, usos, perfil histórico e a própria paisagem, é

garantir qualidade de vida e de desenvolvimento ao homem. O autor ainda complementa colocando que

para a memória, para a identidade cultural e para o meio ambiente urbano é importante conservar os

elementos que os conjuntos têm de essencial como “[...] volumetria, traços básicos de fachada, e

eventualmente, mesmo tipologias em planta.” (CASTRIOTA, 1999, p.13).

Oliveira (2008) ressalta ainda que intervenções desrespeitosas no entorno imediato ou no patrimônio

edificado

[...] traz conseqüências de várias ordens [...] duas dessas conseqüências: 1) os danos

causados à memória e à imagem da cidade, em decorrência da redução ou mesmo

eliminação dos vestígios históricos; e 2) o enfraquecimento de seu potencial turístico,

com a conseqüente perda de receitas (OLIVEIRA, 2008, p.21).

Ao se considerar a cidade como um artefato, a renovação é algo intrínseco que acompanha o

desenvolvimento humano, é um fato o qual não se pode impedir, porém cabe à “[...] sociedade e ao

governo orientar essa renovação, para que a paisagem evolua de maneira equilibrada [...]” (CASTRIOTA,

1999, p.13).

1 Desfigurações, descaracterização são termos usados no trabalho para tratar os imóveis classificados por

“renovação” na Lei 7.709 - responsável pela preservação e proteção do Patrimônio Histórico, Artístico, Ambiental e

Cultural do município de Belém. A categoria “renovação” enquadra os imóveis sem interesse à preservação, onde

em seu lugar pode ser construída uma nova edificação. 2 As linguagens arquitetônicas foram definidas pela equipe técnica do projeto, para maiores informações ver:

FÓRUM LANDI. Estudo Tipológico e Sócio-Econômico do Bairro da Cidade Velha Belém. Belém, 2006.

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Desta forma, o conjunto de imóveis inseridos no núcleo urbano histórico da Cidade Velha, mais

especificamente da rua Dr. Assis, traz as camadas sobrepostas da história, podendo estas ser visualmente

perceptíveis em suas fachadas. Entender a construção da paisagem é de extrema importância, tanto para

guiar as intervenções na área como também ponto de reflexão da edificação de uma nova arquitetura.

4. Método empregado

Com o objetivo de conhecer o processo de perda das características arquitetônicas históricas dos imóveis

da via, foi utilizada a técnica da etnografia de rua que consiste

[...] na exploração dos espaços urbanos a serem investigados através de caminhadas sem

destino fixo nos territórios. A intenção não se limita, portanto, apenas a retornar o olhar

do pesquisador para a sua cidade por meios de processos de reinvenção/reencantamento

de seus espaços cotidianos, mas capacitá-lo às exigências de rigor nas observações

etnográficas ao longo de ações que envolvem deslocamentos constantes no cenário da

vida urbana” (ROCHA; ECKERT. p.6, 2001).

O percurso, sob um andar descompromissado, possibilitou registrar – por meio de câmera fotográfica –

em um primeiro momento a vida da rua, o comportamento das pessoas na Dr. Assis, assim como aspectos

referentes a estruturação do logradouro. Em um segundo momento, o estabelecimento de contato por

meio de entrevista com os moradores e donos de estabelecimentos comerciais – dos imóveis

descaracterizados – possibilitou analisar a relação morador/dono de estabelecimento – imóvel.

As interpretações desta coleta de dados sob o viés da relação memória-esquecimento são feitas a partir

das considerações de Nora (1993), Pelegrini (2006), Bogea (2007) e Nietzche (1983).

5. Resultados obtidos

5.1. Apreensão do lugar

O caminhar descompromissado do flâneur, permitiu outro olhar do lugar, ausente do sistema métrico

proporcionado pela trena. A cada passo para o interior da rua Dr. Assis se desvendava um novo objetivo,

uma nova composição de paisagem, as edificações excluídas do interesse à preservação pelo tombamento,

agora eram capazes de revelar os seus interesses e de seus usuários. A partir do método etnográfico,

eventos que em um primeiro momento aparentariam ser simples ou óbvios, permitiram produzir reflexões

significativas, o contato com os atores sociais que se relacionam com estas edificações mostraram a visão

destes com o “mundo do patrimônio”. Desta forma expõe-se a experiência realizada com o objeto de

investigação deste trabalho3:

O “monstro” chamado patrimônio

[...] O segundo momento da visita ao campo, a aproximação com os moradores/donos de

estabelecimentos comerciais para a abordagem quanto as descaracterizações feitas nos imóveis, tive o

cuidado da não utilizar a palavra “descaracterização”, substituindo-a pela palavra “reforma” para soar

mais suave a fim de evitar que o proprietário se sentisse diante de uma entrevista com um órgão público,

levando-o a pensar que iria ser multado sobre as possíveis reformas feitas na edificação. “[...] Nesta

interação, ele [o etnógrafo] depende não só do domínio da língua do Outro para compreender o que é

dito, mas a atenção aos tons e meios tons, das insinuações e dos silêncios, dos não-ditos e refusas”

(Rocha; Eckert. p.9, 2001).

3 As presentes considerações foram resultado do trabalho de pesquisa de campo desenvolvido para a Disciplina

“Método etnográfico aplicado a pesquisa em Arquitetura”, do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e

Urbanismo da UFPA.

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Trechos do diário de campo são capazes de revelar a relação dos entrevistados com os imóveis

reformados:

“Dei preferência aos imóveis comerciais pela possível facilidade de conseguir coletar informações por

estarem abertos no horário da caminhada, em um desses ao perguntar sobre as reformas na edificação, o

inquilino (importante ressaltar que o entrevistado fez questão de se colocar como inquilino e não

proprietário) respondeu que não havia mexido no imóvel externamente e que só havia colocado um piso,

o que estava lá, mas percebi que ele não queria falar muito sobre o assunto, pois estava meio receoso,

pois dentro de sua resposta mencionou que “não pode mexer em prédios antigos por causa do

patrimônio”, mesmo eu não tendo mencionando as palavras “edificação histórica”, “tombamento” ou

“patrimônio”. [...] Em um segundo imóvel um senhor que se dispõe a responder algumas perguntas,

relata que está ali aproximadamente 50 anos, e que a casa antiga era de uso misto. A partir disto, eu

peço que ele fale um pouco sobre como era a Dr. Assis há cinqüenta anos, ou qual era a lembrança que

ele tinha da via, ele responde que “existiam muitas casas velhas que foram caindo, sendo derrubadas” e

aponta para a frente mencionando com a mão as casa [...] pergunto se ele fez alguma reforma no imóvel,

ele responde que não pode falar pois é inquilino, neste momento percebo que ele tenta se abster de

qualquer responsabilidade de descaracterização do imóvel. Mas o senhor segue falando, que naquela

época, há 40 anos não havia muita fiscalização – suponho que sejam dos órgãos públicos

preservacionistas – e que se derrubavam as casas antigas para construírem comércio. Pergunto então se

na elaboração da edificação atual houve alguma inspiração quanto ao projeto, e o mesmo responde que

não.

Caminho para próxima edificação, o proprietário que toma conta do próprio negócio e ocupa o local há

52 anos. O senhor afirma que o aspecto da edificação sempre foi o mesmo, e que a configuração atual da

loja, não foi uma adaptação ao comércio, afirma que a antiga casa caiu e construíram essa “nova”.

Pergunto se ele lembra de como era a via antigamente há 50 anos atrás, ele afirma que haviam casas

velhas, antigas e menciona a casa da dona O. – uma casa eclética de porão alto, considerada original -

percebo que a casa serviu como um objeto de lembrança do antigo aspecto que a via possuía. [...]

Termino a caminhada com outro imóvel comercial [...]. O proprietário relata que o prédio tinha a

fachada antiga, e era de uso residencial, comenta também que o atual imóvel já está nesta configuração

há 30 anos, e que naquela época não havia fiscalização como é hoje “do patrimônio” [...] Quando

pergunto se ele teria alguma foto antiga do imóvel ou da área, ele responde “você está louca? Depois o

patrimônio vem atrás de mim!”.

Não era a primeira vez neste dia que as pessoas se referiam ao “patrimônio” como se fossem uma

pessoa que fizesse cobranças. Fato que me fez refletir sobre o medo que as pessoas têm dos órgãos de

preservação patrimonial, e me faz pensar em como deveria ter sido traumática para os moradores da

área o contato com as restrições feitas a partir tombamento do local, e as intensificações das

fiscalizações por partes dos órgãos preservacionistas. Além deste fato, fica claro que, ao contrário de

como se conceitua hoje o patrimônio cultural, e a sua função para determinada sociedade, podemos

destacar que esta sociedade deva usufruir e apreciar o bem cultural, porém este pequeno número de

pessoas não consegue absorver esta idéia de patrimônio, delegando a este, o sentido de uma pessoa “o

patrimônio”, personificando o vocábulo, que atua ali com seus olhos invisíveis fiscalizando o bairro,

sempre pronto a castigar reformas na área.

5.2. O Tombamento como lugar de memória

O conceito de lugar de memória definido por Nora (1993) serve como ponto de partida para compreender

a fixação dos imóveis originais no tecido do bairro da Cidade Velha, sobretudo na via em estudo. O autor

considera que os lugares de memória são consolidados a partir de uma atribuição de valor que cristaliza

estes lugares para serem lembrados de forma estática, e imediata. Nora (1993) expõe que estes, são “[...]

marcos testemunhos de outra era, das ilusões de eternidade [...] (NORA, 1993, p.XX)”, apontando o

aspecto nostálgico delegado a tais lugares. A rua Dr. Assis está resguardada do processo de aceleração do

tempo, fenômeno inerente à sociedade contemporânea, através da Lei 7709 de 1994, responsável pela

preservação e proteção do Patrimônio Histórico, Artístico, Ambiental e Cultural do município de Belém.

Assim depreende-se que a ação de tombar um bem tem como objetivo congelá-lo frente à dinâmica da

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transformação da cidade, freando-o à perda do caráter histórico e artístico que o qualifica e o “eleva” a

patrimônio, que garante sua fruição às gerações futuras.

[...] O sentimento de um desaparecimento rápido e definitivo combina-se à preocupação

com o exato significado do presente e com a incerteza do futuro para dar ao mais

modesto dos vestígios ao mais humilde testemunho a dignidade virtual do memorável”

(NORA, 1993, p.14).

5.3. A dialética memória e esquecimento na transformação das fachadas

Refletindo sobre o „lugar de memória‟ no logradouro, as 51 partes desprovidas da originalidade histórico-

estética e de contornos capazes de rememorar um tempo mítico da história da cidade se confrontam com

os outros 17 imóveis originais detentores de uma estética histórica capaz de travar o tempo em seus

contornos. A apreensão das relações simbólicas estabelecidas entre os usuários desses dois grupos, feita

através do método etnográfico de pesquisa a partir das anotações no diário de campo revela uma nova Dr.

Assis (Fig. 02), (Fig.03), (Fig.04), (Fig.05), (Fig.06) e (Fig.07).

Figura 05 - Imóvel de

uso misto, com a

fachada possuidora de

uma estética histórica.

Foto: Dinah Tutyia,

2010.

Figura 07 - Imóvel

sem uso, recém

restaurado, referência

de arquitetura da Belle

Époque.

Foto: Dinah Tutyia,

2010.

Figura 06 - Imóvel de

uso residencial, com a

fachada original, ponto

de referência na rua.

Foto: Dinah Tutyia,

2010.

Figura 02 - Imóvel de

uso comercial,

desprovido da estética

patrimonial.

Foto: Dinah Tutyia,

2010.

Figura 03 - Imóvel de

uso misto, classificado

segundo a legislação

como imóvel de

renovação.

Foto: Dinah Tutyia,

2010.

Figura 04 - Imóveis de

uso comercial, com

solução arquitetônica

recorrente ao longo da

via.

Foto: Dinah Tutyia,

2010.

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Do estabelecimento de contato com os usuários por meio de entrevista, pode-se observar que o ato de

recordar e descrever a antiga paisagem são frutos de um exercício mnemônico, facilmente feito por

aqueles que têm uma relação afetiva com espaço, aqueles que de certa forma fazem questão de manter a

ambiência histórica do bairro por meio da conservação dos imóveis. Segundo Pelegrini (2006), é no

intimo da memória de uma dada população que se encontra os elementos próprios da história, da

tipologia, do espaço, das paisagens. A autora também afirma que a memória estabelece um vínculo entre

as gerações ao longo do tempo e que

[...] tal vínculo, além de constituir um “elo afetivo” que possibilita aos cidadãos

perceberem-se como “sujeitos da história”, plenos de direitos e deveres, os torna

cônscios dos embates sociais que envolvem a própria paisagem, os lugares onde vivem

os espaços de produção e cultura (PELEGRINI, 2006, p.116).

Bogéa (2007) considera que os ambientes construídos pelos homens “guardam através da materialidade, a

memória das idéias, das praticas sociais e dos sistemas de representação dos indivíduos que ali

convivem”, todavia a autora relata que é impossível manter a memória integralmente materializada na

produção cultural.

Desta forma, os usuários dos imóveis totalmente remodelados, não se identificavam com a paisagem

antiga, evidenciando a “vontade” do esquecimento desta, materializada nas “lacunas estéticas” das

fachadas das edificações ocupadas pelos mesmos. Para Nietzsche (1983), a necessidade do esquecimento

está em abrir espaço na consciência para o novo, a ação de esquecer funciona como zelador da ordem

psíquica, da paz e que sem ele não haveria felicidade, esperança, jovialidade, orgulho e o presente.

As exigências da vida moderna conduzem as alterações, e adaptações das edificações aos novos

programas de necessidades, com isso uma nova paisagem vai sendo delineada ao longo do logradouro.

5.4. Reminiscências Edificadas, os indícios de um passado

A capacidade evocatória de alguns imóveis originais foi um ponto identificado e recorrente nas

entrevistas realizadas. Esta ação era feita especialmente pelos usuários das edificações descaracterizadas

durante a tentativa de narração da paisagem anterior à atual. Neste contexto, os imóveis das figuras 05 e

06 – usos misto e residencial respectivamente – eram constantemente tomados como exemplos de modelo

arquitetônico na reconstituição visual da rua Dr. Assis.

Esta evocação está ligada a memória indireta, considerada por Nora (1993), como uma memória

arquivística que se apóia inteiramente sobre o que há de mais preciso no traço, mais material no vestígio,

mais concreto no registro, mais visível na imagem. Quanto “[...] menos a memória é vivida no interior,

mais ela tem a necessidade de suportes exteriores e de referências tangíveis [...]” (NORA, 1993, p.12).

6. Considerações Finais

Múltiplas são as formas de investigação na tentativa de trazer à tona as relações simbólicas inerentes a

construção e aos construtores da paisagem de uma área protegida por instrumentos preservacionistas. O

método etnográfico empregado para o desenvolvimento deste trabalho foi capaz de articular as discussões

entre paisagem, memória, esquecimento e lugares de memória, revelando novos dados da dicotomia

original x descaracterizado, recorrente à temática patrimonial.

7. Referências Bibliográficas

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BOGÉA, Marta. Esquecer para preservar. São Paulo Arquitextos, ano 08, dez 2007. Disponivel em <

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.091/181> . Acesso em 28 de Jun de 2011.

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OLIVEIRA, Raquel Diniz. Um olhar sobre a Itália e o Brasil: o tratamento de vazios urbanos em conjuntos

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