Renato Moscateli - Quem Faz as Leis Na República Rousseauniana

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Veritas Revista de Filosofia da PUCRS ISSN 0042-3955 e-ISSN 1984-6746 Porto Alegre, v. 60, n. 1, jan.-abr. 2015, p. 106-128 A matéria publicada neste periódico é licenciada sob forma de uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/about : http://dx.doi.org/10.15448/1984-6746.2015.1.16329 Quem faz as leis na república rousseauniana? * Who Makes the Laws in Rousseau’s republic? *Renato Moscateli Resumo: O intuito deste artigo é analisar a cidadania proposta por Rousseau à luz de certas delimitações colocadas pelo filósofo ao exercício desse direito, as quais configuram um tipo de participação política que seria apropriado ao regime descrito no Contrato Social. Assim, procurarei mostrar que a soberania popular tem, para o autor genebrino, um papel fundamental na defesa da legislação, cabendo ao Legislador e aos magistrados guiar os cidadãos comuns na aprovação das boas leis necessárias ao Estado. Essa tese é compatível com o republicanismo rousseauniano, na medida em que ela mostra que esses cidadãos, os membros do pacto social, são os responsáveis por proteger e conservar sua própria liberdade ao longo da existência do corpo político. Palavras-chave: Cidadania. Soberania. Legislador. Iniciativa Legislativa. Abstract: The purpose of this article is to analyze the citizenship proposed by Rousseau in light of certain delimitations placed by the philosopher to the exercise of this right, which configure a kind of political participation that would be appropriate to the regime described in the Social Contract. So, I intend to show that popular sovereignty has, for the Genevan writer, a key role in defending the legislation, and that it is up to the Lawgiver and to the magistrates guide citizens in approving the good laws necessary for the State. This thesis is consistent with Rousseau’s republicanism, since it shows that these citizens, members of the social compact, are responsible for protecting and preserving their own freedom throughout the existence of the political body. Keywords: Citizenship. Sovereignty. Lawgiver. Legislative Initiative. ** Uma versão preliminar e reduzida deste artigo foi apresentada no XV Encontro da ANPOF realizado em Curitiba em 2012. A pesquisa que resultou no texto foi financiada por uma bolsa fornecida pelo PNPD Institucional da CAPES. ** Professor da Faculdade de Filosofia da UFG Coordenador do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa Jean-Jacques Rousseau (CNPq). <[email protected]>.

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Artigo que discute a questão da legislação e da sobernia no pensamento político de Jean-Jacques Rousseau.

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  • Veritas Revista de Filosofia da PUCRS

    ISSN 0042-3955 e-ISSN 1984-6746

    Porto Alegre, v. 60, n. 1, jan.-abr. 2015, p. 106-128

    A matria publicada neste peridico licenciada sob forma de uma Licena Creative Commons - Atribuio 4.0 Internacional.http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

    tica e FilosoFia Poltica

    http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/about

    : http://dx.doi.org/10.15448/1984-6746.2015.1.16329

    Quem faz as leis na repblica rousseauniana?*

    Who Makes the Laws in Rousseaus republic?

    *Renato Moscateli

    Resumo: O intuito deste artigo analisar a cidadania proposta por Rousseau luz de certas delimitaes colocadas pelo filsofo ao exerccio desse direito, as quais configuram um tipo de participao poltica que seria apropriado ao regime descrito no Contrato Social. Assim, procurarei mostrar que a soberania popular tem, para o autor genebrino, um papel fundamental na defesa da legislao, cabendo ao Legislador e aos magistrados guiar os cidados comuns na aprovao das boas leis necessrias ao Estado. Essa tese compatvel com o republicanismo rousseauniano, na medida em que ela mostra que esses cidados, os membros do pacto social, so os responsveis por proteger e conservar sua prpria liberdade ao longo da existncia do corpo poltico.Palavras-chave: Cidadania. Soberania. Legislador. Iniciativa Legislativa.

    Abstract: The purpose of this article is to analyze the citizenship proposed by Rousseau in light of certain delimitations placed by the philosopher to the exercise of this right, which configure a kind of political participation that would be appropriate to the regime described in the Social Contract. So, I intend to show that popular sovereignty has, for the Genevan writer, a key role in defending the legislation, and that it is up to the Lawgiver and to the magistrates guide citizens in approving the good laws necessary for the State. This thesis is consistent with Rousseaus republicanism, since it shows that these citizens, members of the social compact, are responsible for protecting and preserving their own freedom throughout the existence of the political body.Keywords: Citizenship. Sovereignty. Lawgiver. Legislative Initiative.

    ** Uma verso preliminar e reduzida deste artigo foi apresentada no XV Encontro da ANPOF realizado em Curitiba em 2012. A pesquisa que resultou no texto foi financiada por uma bolsa fornecida pelo PNPD Institucional da CAPES.

    ** Professor da Faculdade de Filosofia da UFG Coordenador do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa Jean-Jacques Rousseau (CNPq). .

  • Nos debates polticos contemporneos, o tema da cidadania , certamente, um dos mais relevantes. Seja no contexto das reivin- dicaes em prol dos direitos individuais e coletivos a serem garantidos pelos Estados, em meio aos questionamentos e crticas acerca dos siste- mas representativos dos regimes democrticos, ou ainda nas manifesta- es contra a ineficincia da administrao pblica e os atos de corrup- o em seu interior, vem sendo colocada em pauta a necessidade de modos mais efetivos de exerccio da cidadania que possam fazer frente aos desafios postos por esses e outros problemas. Entre aqueles que se dedicam a tais discusses, no incomum recorrer aos pensadores cls- sicos da poltica como auxlio na busca por respostas ou, ao menos, como fonte para algumas perguntas pertinentes. O genebrino Jean-Jacques Rousseau um desses marcos filosficos recorrentemente evocados quando se fala de repblica, democracia e soberania popular.

    Ao analisarmos o conceito de cidadania presente nos escritos de Rousseau, algo que logo salta aos olhos a importncia crucial da participao poltica em sua composio. Quando o filsofo define os termos chave de seu vocabulrio no Contrato Social, o nome de cidado atribudo aos indivduos justamente na medida em que eles so membros do soberano, e este nada mais seno o corpo poltico quando est em atividade. Na avaliao de Carole Pateman, uma importante escritora poltica contempornea, Rousseau poderia ser chamado o terico par excellence da participao, e um entendimento da natureza do sistema poltico que ele descreve no Contrato Social vital para a teoria da democracia participativa.1 Dessa maneira, se por um lado o elo entre a categoria de sujeito civil e a ao poltica no pensamento republicano de Rousseau no difcil de constatar, por outro, certas peculiaridades dessa relao nem sempre so devidamente consideradas. Sem as levarmos em conta, corremos o risco de nutrir um entendimento demasiadamente genrico acerca do cidado rousseauniano, no sentido de que o genebrino teria pensado a cidadania como uma condio que poderia e deveria ser atribuda da mesma forma a todos os componentes do pacto social, o que tornaria suas propostas muito bem adaptveis s democracias atuais, cuja tendncia vem sendo a de estender os direitos civis universalidade dos indivduos que habitam os territrios de seus respectivos Estados nacionais. Entretanto, por mais que essa interpretao parea sedutora, preciso reconhecer que as obras de Rousseau levantam problemas interessantes sobre certos limites da cidadania a serem observados no funcionamento de qualquer corpo poltico que se pretenda bem ordenado. 1 PATEMAN, C. Participation and democratic theory. Cambridge: Cambridge University Press,

    1976, p. 22.

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  • Tais limites no apenas instituem algumas desigualdades entre os indivduos no tocante ao modo de sua participao poltica, como at mesmo colocam restries na concesso do direito cidadania plena.

    Uma das desigualdades mais marcantes que resultam das propostas de Rousseau a que deveria existir entre os sexos no tocante ao exerccio da cidadania. Embora o Contrato Social no mencione a diferena entre homens e mulheres a esse respeito, nem estabelea, portanto, qualquer interdio participao das cidads nas assembleias populares ou nas magistraturas governamentais, a leitura de outras obras de Rousseau fornece algumas pistas importantes para complementar seu entendimento acerca da questo. No Projeto de constituio para a Crsega, por exemplo, o autor recomenda que sejam estabelecidos diferentes nveis de status civil pelos quais os corsos deveriam passar. Assim, no incio da vida poltica estariam os aspirantes; em seguida, viriam os patriotas e, no patamar mais elevado, os cidados propriamente ditos. A observao dos requisitos necessrios para adentrar essas trs classes deixa claro que apenas os homens poderiam comp-las.2 As razes disso esto presentes em textos como A Nova Helosa e o Emlio, nas quais vemos um contraste bastante forte nas descries feitas do comportamento das parisienses e das suas, descries que revelam o quanto Rousseau considerava pernicioso o convvio pblico entre homens e mulheres, algo muito comum nos crculos sociais das principais cidades europeias do Antigo Regime, tais como Paris. A fim de evitar os males que, em sua viso, decorriam dessa mistura leviana e contnua entre os dois sexos,3 Rousseau recomendava o estabelecimento de uma separao mais ntida entre os espaos convenientes aos homens e s mulheres, cabendo a eles ocupar a cena pblica onde se tomavam as 2 Rousseau escreve que o ato fundador da repblica da Crsega seria um juramento solene

    feito por todos os corsos com vinte anos ou mais, e todos aqueles que fizerem esse juramento devem ser indistintamente inscritos entre os cidados. ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2003, p. 919. Os homens que, nesse momento, tivessem menos de vinte anos, permaneceriam na classe dos aspirantes at se casarem de acordo com a lei e possurem uma propriedade pessoal independente do dote de sua esposa. Preenchidos esses critrios, eles ascenderiam condio de patriotas. A fim de chegar classe de cidados, os patriotas casados ou vivos precisariam ter pelo menos dois filhos vivos, uma casa prpria e uma extenso de terra suficiente para obter dela o seu sustento.

    3 Ver A Nova Helosa, 2 Parte, Carta XXI: Nem a alegria natural da nao nem o desejo de imitar os grandes ares so as nicas causas dessa liberdade de palavra e de atitudes que se observa aqui nas mulheres [parisienses]. Ela parece ter uma raiz mais profunda nos costumes, pela mistura leviana e contnua dos dois sexos que faz com que cada um adquira o ar, a linguagem e as maneiras do outro. Nossas suas gostam bastante de se assemelharem entre si; vivem a numa doce familiaridade e, embora aparentemente no odeiem o relacionamento com homens, certo que a presena deles lana uma espcie de constrangimento nessa pequena genicocracia. Em Paris, exatamente o contrrio; as mulheres somente gostam de viver com os homens, somente com eles sentem-se vontade. ROUSSEAU, J.-J. Jlia ou A Nova Helosa. So Paulo: Hucitec; Campinas: Editora da Unicamp, 1994, p. 242.

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  • decises polticas, e a elas permanecer no espao domstico cuidando da famlia.4 Desse modo, fica evidente que se os membros masculinos do pacto social vivem sob uma dupla condio, ou seja, so cidados quando participam da autoridade soberana (poder legislativo) e sditos quando se submetem s leis do Estado,5 as mulheres, por sua vez, vivem somente na condio de sditas perante as normas estabelecidas pelos homens.

    Certamente, a questo feminina no pensamento poltico de Rousseau um tema que merece um tratamento aprofundado, mas no me deterei nele aqui.6 Nas prximas pginas, vou me concentrar em outra limitao da cidadania que pode ser encontrada nos textos do genebrino, uma que est ligada preocupao do filsofo no tocante ao discernimento dos cidados comuns para lidar com os assuntos pblicos. Mesmo enfatizando que todas as leis precisariam ser aprovadas pelas assembleias soberanas, 4 Desde o Discurso sobre as cincias e as artes, encontramos nos textos de Rousseau associaes

    entre a cidadania republicana e uma virtude de tonalidade masculina, por um lado, e entre a degenerao dos costumes e maus hbitos que efeminam os cidados, por outro. Sobre isso, ver o Primeiro Discurso (uvres compltes, v. 3, p. 14 e 22), o Projeto de constituio para a Crsega (uvres compltes, v. 3, p. 1.727), e as Consideraes sobre o governo da Polnia (uvres compltes, v. 3, p. 962-965).

    5 Ver o Contrato Social, livro 1, captulo VI.6 Sobre esse assunto, existem vrias referncias que poderiam ser consultadas. H os textos

    de autoras feministas que esto entre as principais crticas das ideias de Rousseau sobre o papel social das mulheres. De acordo com Iris Marion Young, por exemplo, a filosofia poltica rousseauniana seria o paradigma do ideal de pblico cvico existente no sculo XVIII, o qual expressaria o ponto de vista universal e imparcial da razo, antagnica ao desejo, ao sentimento e s particularidades das necessidades e interesses. Na interpretao de Young, o genebrino considerava que a pureza, a unidade e a generalidade do domnio pblico exigiam transcender e reprimir a parcialidade e a diferenciao das necessidades, dos desejos e da afetividade, embora ele reconhecesse que a vida humana no podia existir sem a satisfao desses ltimos elementos. Nesse sentido, a natureza particular do homem como sensvel e carente seria ordenada no domnio privado da vida domstica, do qual as mulheres eram vistas como as guardis morais adequadas. Por isso, no esquema social expresso por Rousseau [...], as mulheres devem ser excludas do domnio pblico da cidadania porque so as zeladoras da afetividade, do desejo e do corpo. Permitir apelos a desejos e necessidades fsicas para motivar debates pblicos prejudicaria a deliberao pblica pela fragmentao de sua unidade. [...] O desejo dos homens pelas mulheres, por sua vez, ameaa despedaar e dispersar o domnio racional universal do pblico, bem como romper a ntida distino entre pblico e privado. Como guardis do reino privado da necessidade, as mulheres devem garantir que os impulsos dos homens no os afastem da universalidade da razo. YOUNG, I. M. A imparcialidade e o pblico cvico. In: BENHABIB, S.; CORNELL, D. (Org.). Feminismo como crtica da modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987, p. 76. Outras interpretaes feministas podem ser encontradas na coletnea editada por LANGE, L. Feminist interpretations of Jean-Jacques Rousseau. Pensilvnia: The Pennsylvania State University Press, 2002. Recomendo tambm a leitura do texto de Geraint Parry, no qual ele contrasta as diferentes propostas pedaggicas de Rousseau para a formao de homens e mulheres. Em sua concepo, a abordagem da educao feminina exposta no Emlio indica que As mulheres devem ser ensinadas a desenvolver a sua sensibilidade especfica em relao ao comportamento e aos sentimentos de indivduos uma caracterstica que as torna companheiras de seus prprios maridos, mas as torna inaptas para a poltica que, idealmente, requer um compromisso com a vontade geral e no com vontades particulares. PARRY, G. Emile: Learning to be men, women, and citizens. In: RILEY, P. (Ed.). The Cambridge Companion to Rousseau. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 262.

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  • e que todos os membros da repblica deveriam comparecer a elas, Rousseau no parecia disposto a conceder a qualquer cidado o direito de propor novas leis ou modificaes nas antigas. No Contrato Social, ele faz somente uma rpida meno a esse problema, dizendo que preciso diferenciar o simples direito de votar em todo ato de soberania, que de modo algum se poderia subtrair aos cidados, do direito de opinar, de propor, de dividir, de discutir, o qual o governo sempre tem o cuidado de reservar apenas aos seus membros7. O filsofo justifica sua opo por no desenvolver naquele momento uma anlise dessa importante matria argumentando que seria preciso um tratado especfico para lidar com ela. Diante disso, o que poderamos deduzir se nos limitssemos a esse excerto to conciso? Rousseau estaria propondo um princpio normativo de diviso de tarefas dentro do Estado, de modo que seria adequado e necessrio reservar o trabalho de elaborao das leis aos magistrados, restando ao povo em geral unicamente o ato de referendar ou no aquilo que fosse levado assembleia soberana? Ou o que o autor estaria fazendo nesse ponto reconhecer um fato da prtica poltica, isto , o de que os governantes tm por hbito monopolizar a parte criativa do processo legislativo em detrimento da ampla participao popular? Ora, mesmo que a segunda alternativa seja a correta, parece difcil dizer se Rousseau estava ou no aprovando o fato descrito, dada a brevidade de sua observao. Talvez ela contenha uma crtica aos esforos contnuos do governo para concentrar os poderes da repblica em suas mos, mas ela tambm pode ser lida como a indicao de um procedimento de prudncia poltica a ser seguido. A fim de obtermos mais evidncias para tentar responder a essas dvidas, um caminho vivel voltarmos nossa ateno para o que Rousseau escreveu acerca da constituio de Genebra, tanto na dedicatria do Segundo Discurso quanto nas Cartas escritas da montanha.

    No primeiro desses textos, Jean-Jacques busca retratar o quadro das instituies polticas do pas onde ele diz que gostaria de ter nascido, incluindo a o funcionamento ideal da atividade legislativa. Depois de declarar que o direito de legislao deveria ser comum a todos os cidados, ele passa a detalh-lo melhor para mostrar como, em sua opinio, teria de ser exercido:

    eu desejaria que, para deter os projetos interessados e mal concebidos, e as inovaes perigosas [...], cada um no tivesse o poder de propor novas leis a seu bel prazer; que esse direito pertencesse apenas aos magistrados; que eles o usassem com tanta circunspeo e o povo, por sua vez, fosse to reservado ao dar seu consentimento a essas leis, e

    7 ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2003, p. 438-439. Contrato Social, livro 4, captulo I.

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  • que a promulgao s pudesse ser feita com tanta solenidade, que antes de a constituio ser destruda, tivessem o tempo de se convencer de que sobretudo a grande antiguidade das leis que as torna santas e verdadeiras, que o povo despreze logo aquelas que ele v mudarem todos os dias e que, acostumando-se a negligenciar os antigos usos sob o pretexto de fazer melhores, introduzam-se frequentemente grandes males para corrigir os menores.8

    Poucas linhas mais adiante, ele completa sua descrio acrescentando que escolheria para si um pas no qual os cidados particulares se contentassem em dar sua sano s leis e s participassem como corpo, e sob a direo de seus chefes, na tomada de decises sobre as questes pblicas mais importantes.

    Comparando tais afirmaes com aquilo que era praticado em Genebra na poca de Rousseau, vemos que h semelhanas significativas. Na cidade, o poder de aprovar as leis residia no Conselho Geral, cujos membros vinham da parcela dos habitantes que se incluam entre os cidados e os burgueses.9 Quanto ao poder executivo, ele era controlado pelos Sndicos10 e o Pequeno Conselho.11 De acordo com as regras vigentes 8 ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2003, p. 114. Comparar com o Contrato

    Social, livro 3, captulo XI: Por que, ento, se confere tanto respeito s leis antigas? pelo prprio fato de serem antigas. Devemos crer que justamente a excelncia das vontades antigas que pde conserv-las por tanto tempo. Se o soberano no as tivesse reconhecido como continuamente salutares, ele as teria revogado mil vezes. Eis por que, longe de se enfraquecerem, as leis adquirem sem cessar uma fora nova em todo Estado bem constitudo. O preconceito da antiguidade as torna cada dia mais venerveis. Ao passo que, em todos os lugares onde as leis se enfraquecem ao envelhecer, isso prova que no h mais poder legislativo e que o Estado no mais vive. Idem, p. 424-425.

    9 No sculo XVIII, a populao de Genebra era de cerca de 20.000 pessoas, as quais estavam divididas em diversas classes com status polticos distintos. Os mais privilegiados eram os cidados (nativos da cidade e filhos de pais cidados ou burgueses; alm de poderem exercer todas as profisses, eram os nicos que tinham plenos direitos polticos e civis) e os burgueses (nativos ou no que tinham comprado sua condio; eles possuam liberdade comercial e direito de votar no Conselho Geral, mas no de concorrerem aos principais postos do Pequeno Conselho). Somente aos cidados e burgueses do sexo masculino e com mais de vinte e cinco anos era permitido participar do Conselho Geral. Abaixo deles ficavam os habitantes (estrangeiros que adquiriram uma carta de residncia passvel de revogao), os nativos (filhos de estrangeiros; podiam exercer algumas profisses, mas no participavam nem do legislativo nem do executivo), os estrangeiros (moradores temporrios ou que esperavam adquirir a condio de habitantes) e os sditos (soldados mercenrios ou camponeses de territrios submetidos a Genebra). Assim, da populao total, apenas uma pequena minoria entre 1.200 a 1.500 pessoas desfrutava de direitos polticos.

    10 Em nmero de quatro, eram os magistrados principais de Genebra, tendo a incumbncia de presidir o Pequeno Conselho.

    11 Criado no sculo XIV, ao longo do tempo o Pequeno Conselho passou a acumular poderes cada vez maiores, inclusive legislativos, judicirios e militares. Ele era formado por vinte e cinco membros e mais dois secretrios de Estado, os quais eram escolhidos entre os participantes do Conselho dos Duzentos (um rgo consultivo), cuja composio, por sua vez, era decidida pelo prprio Pequeno Conselho, o que caracterizava um sistema de nomeao mtua para os ocupantes dessas duas entidades.

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  • na cidade, eram os componentes do Pequeno Conselho que dispunham da autoridade para decidir quais leis seriam propostas ao Conselho Geral.12 Os cidados comuns, individualmente ou em grupo, at possuam o direito de encaminhar ao Primeiro Sndico ou ao Procurador Geral as chamadas representaes, nas quais opinavam sobre mudanas nas leis, mas cabia a esses magistrados decidir se elas seriam ou no levadas ao Pequeno Conselho que, por seu turno, consentia ou no que fossem tratadas pelo Conselho Geral.

    Pois bem, na oitava das Cartas escritas da montanha, Rousseau diz que Nos Estados onde o governo e as leis j esto assentados, deve-se, o quanto se puder, evitar tocar neles, e principalmente nas pequenas repblicas, nas quais o menor abalo desune tudo. A averso pelas novidades , pois, geralmente bem fundada.13 Nesse sentido, os cidados comuns deveriam confiar na capacidade dos magistrados para discernir, em nome da utilidade pblica, se uma mudana nas leis mereceria ser considerada pelo soberano, uma vez que nem sempre as vantagens da inovao compensam os riscos de se alterar aquilo que foi h muito estabelecido. O ato crucial estava na fundamentao do Estado sobre uma boa legislao desde o incio, de tal maneira que mais tarde no fosse preciso reform-la de tempos em tempos. Assim, Rousseau pensava que a constituio de Genebra, alm de ser provida de timas leis em geral, tambm merecia elogios por ter estabelecido os conselhos menores como controladores da iniciativa legislativa, dando-lhes o direito negativo de impedir que inovaes temerrias viessem a abalar a solidez do edifcio jurdico erigido pelo Legislador. Vemos ento que Jean-Jacques demonstra uma preocupao notvel com a estabilidade do corpo poltico, em favor da qual ele confia ao governo uma prerrogativa que, em suas palavras, uma parte essencial da constituio democrtica, cuja manuteno seria invivel se o poder legislativo pudesse sempre ser posto em movimento por qualquer um dos que o compem.14 Portanto, em uma sociedade bem ordenada, esse procedimento seria o mais indicado.

    Porm, tal relao entre os poderes legislativo e executivo, embora necessria pelos motivos expostos por Rousseau, no deixa de conter certos perigos, os quais esto ligados tendncia de que os governantes coloquem suas ambies particulares acima do bem comum. Como o filsofo j tinha dito em outro texto, to logo a corrupo atinge o governo,

    12 Um dito de 1738 previa que nada poderia ser levado ao Conselho dos Duzentos sem antes ter sido aprovado no Conselho dos Vinte e Cinco, assim como nada poderia ser levado ao Conselho Geral sem antes ter sido aprovado pelo Conselho dos Duzentos.

    13 ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2003, p. 846.14 Idem, p. 872. Cartas escritas da montanha, nona carta.

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  • as melhores leis tornam-se as mais funestas,15 e o exemplo de sua ptria era bastante ilustrativo dessa mxima. Na stima carta, o autor dissera que nada era mais livre do que o estado legtimo de Genebra, nem mais servil do que seu estado real. Isso porque uma pequena elite conseguira dominar os cargos polticos mais importantes da repblica, o que lhe dava pleno domnio sobre a conduo dos assuntos pblicos em funo de seus interesses pessoais. Muito embora o poder legislativo continuasse sendo reunido ocasionalmente, ele no tinha como conter os abusos do Pequeno Conselho, pois a assembleia soberana s existia momentaneamente e nada podia decidir alm da questo especfica que lhe fora proposta pelos governantes, que a convocavam quando e como lhes aprouvesse. Esses magistrados agiam como rbitros supremos na interpretao das leis, podendo faz-las falar ou calar a seu bel prazer; se as infringissem, ningum poderia puni-los, a no ser eles prprios. Nas eleies, o povo tinha a chance de escolher apenas entre um reduzido nmero de candidatos, todos coniventes com a dominao engendrada pelo Pequeno Conselho. Assim, a liberdade de que os genebrinos poderiam desfrutar fora paulatinamente destruda pelos ataques de governantes pouco afeitos ao bem pblico.

    Nesse momento, poderamos perguntar se, ao defender uma prtica que de certo modo deixava o soberano merc do governo justamente no tocante ao exerccio de sua maior atribuio, Rousseau no estaria contrariando a concepo de soberania expressa em sua obra sobre os princpios do direito poltico, bem como seus prprios ideais republicanos. Charles Edwin Vaughan, por exemplo, responde questo asseverando que, de fato, Rousseau caiu em uma contradio, pois todo o esprito do Contrato Social seria oposto doutrina que ele exps acerca da constituio de Genebra: Se o corpo soberano no tem o direito de considerar e aprovar nenhuma lei alm daquelas preparadas e apresentadas a ele pelo executivo, escreve Vaughan, ento o soberano no mais o soberano; o executivo o seu senhor. O direito de iniciativa legislativa uma parte to necessria do poder legislativo quanto o direito de controlar sua execuo. Sem um ou o outro, o direito de legislao uma fraude. Rousseau afirma o segundo; ele repudia inteiramente o primeiro.16 Vaughan acredita que no h uma explicao definitiva para a hesitao de Rousseau em conceder ao soberano um controle total sobre o direito de legislao. Entretanto, ele fornece algumas hipteses:

    15 Ibidem, p. 253. Discurso sobre a economia poltica.16 VAUGHAN, C. E. The political writings of Jean-Jacques Rousseau. Cambridge: Cambridge

    University Press, 1915, p. 187.

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  • Ela pode ter sido um desejo de limitar a questo tanto quanto possvel; de reduzi-la ao fundamento de que o executivo responsvel perante o legislativo pela exata obedincia lei. Pode ter sido um temor instintivo da legislao apressada, uma prontido genuna para aceitar qualquer controle, ainda que irritante, que poderia servir para evit-la. Pode ter sido aquele respeito pelas leis existentes, embora questionvel, aquele o horror das mudanas revolucionrias, embora aparentemente desejvel, que desempenhou um papel to grande na concepo total e na abordagem da poltica por Rousseau. Pode ter sido qualquer um desses motivos, ou talvez todos eles juntos.17

    Robert Derath, por seu turno, no concorda inteiramente com Vaughan no tocante existncia de uma contradio entre aquilo que Rousseau apresenta no Contrato Social e nas Cartas escritas da montanha. Para ele, na primeira dessas obras o autor contentou-se em declarar que as leis legtimas eram aquelas aprovadas pelo sufrgio popular, o que no exigia que elas tambm tivessem sido propostas ao soberano pelo prprio povo. Derath recorre j mencionada diferenciao feita por Rousseau no livro 4 do Contrato Social entre o direito de sancionar e o de elaborar as leis para sustentar que o filsofo realmente queria reservar ao governo a iniciativa legislativa. Entretanto, o comentador francs acaba admitindo que, em seu entendimento, a faculdade de propor novas leis uma parte essencial da soberania, e que retirar dela esse direito significa impor-lhe uma limitao sria, talvez at mesmo o risco de paralis-la em alguns momentos. Assim como Vaughan, Derath pergunta-se como Rousseau pde defender algo dessa natureza, e d a seguinte resposta:

    Quando ele fala de legislao, tem os olhos voltados para os legis- ladores antigos que estabeleceram de uma vez por todas as leis destinadas a servir de constituio para a cidade. Ele no suspeita que os Estados modernos esto submetidos a um ritmo de transformaes muito rpidas, e a ideia de que a legislao deve estar em evoluo perptua -lhe completamente estranha. Ele tem horror por novidades e permanece convencido de que um Estado bem constitudo necessita apenas de um pequeno nmero de leis. Aos seus olhos, o povo deve ser, antes de tudo, o conservador das leis e zelar para que nenhuma delas caia em desuso.18

    17 Idem, p. 188.18 DERATH, R. Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps. 2. ed. Paris: Librairie

    Philosophique J. Vrin, 1979, p. 297. Ver a Carta a dAlembert sobre os espetculos: a fora das leis tem a sua medida; a dos vcios que elas reprimem tambm tem a sua. apenas depois de ter comparado essas duas quantidades que se pode assegurar a execuo das leis. O conhecimento dessas relaes faz a verdadeira cincia do Legislador; pois, se somente se tratasse de publicar ditos sobre ditos, regulamentos sobre regulamentos, para remediar os abusos na medida em que eles nascem, dir-se-ia, sem dvida, coisas muito belas, mas que, na sua maior parte, permaneceriam sem efeito e serviriam de indicaes para o que seria preciso fazer ao invs de para os meios de execut-lo. ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 1995, p. 60-61. Comparar com as Consideraes sobre o governo da Polnia, captulo VII: A legislao da Polnia foi feita sucessivamente de peas e de pedaos, como

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  • Ao compararmos as interpretaes de Vaughan e de Derath, encontramos algo em comum, pois ambos salientam a ideia de que Rousseau preferia a manuteno das leis vigentes aos perigos das inovaes, mesmo das bem intencionadas. Mais ainda, Derath indica que o papel do povo no sistema rousseauniano consistiria basicamente em dar seu consentimento s leis e preserv-las ao longo do tempo, mas no em ser ele prprio o criador da legislao. Pode-se ver a uma restrio da cidadania, no sentido de que o membro comum da repblica no teria a funo substantiva de elaborar as leis sob as quais vive, uma vez que essa tarefa caberia apenas aos indivduos mais preparados para desempenh-la, ou seja, o Legislador no momento da instituio do Estado e os magistrados no restante do tempo. Ora, se essa compreenso das ideias rousseaunianas estiver correta, teremos de admitir que sua proposta de liberdade poltica talvez implique um tipo de cidadania bem diferente, em vrios aspectos, daquele que se esperaria existir em uma sociedade na qual a soberania no apenas pertence ao povo, mas por ele diretamente exercida, uma constatao que levanta novas questes: quando o povo expressa a vontade geral, poderamos dizer que ele est, de fato, criando suas leis? H diferena entre ser o autor ou o elaborador da legislao? Qual o significado da deliberao que os cidados tm de desenvolver ao participarem da atividade legislativa?

    Para comear a responder essas perguntas, poderamos partir da afirmao de que uma coisa ter a capacidade de encontrar a soluo para um problema, e outra distinta ter o discernimento necessrio para perceber se uma soluo apresentada est ou no correta, se deve ou no ser adotada. Politicamente falando, isso significaria que somente umas poucas pessoas so competentes para formular as leis mais adequadas a um povo em particular, pois essa tarefa exige uma compreenso bastante ampla e aprofundada dos diversos elementos que compe o contexto no qual esse povo existe. As qualidades excepcionais do Legislador retratado no Contrato Social so necessrias para que se descubra a melhor soluo possvel ao complexo problema de bem ordenar uma sociedade civil incipiente.19 Nessa fase crucial, os cidados da repblica

    todas as da Europa. Na medida em que se via um abuso, fazia-se uma lei para remedi-lo. Desta lei nasciam outros abusos, que era preciso corrigir ainda. Essa maneira de agir no tem fim e leva ao mais terrvel de todos os abusos, que o de enervar as leis fora de multiplic-las. ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2003, p. 975; e tambm com o fragmento intitulado Das leis, n 7: Se me perguntassem qual o povo mais vicioso de todos, eu responderia sem hesitar que aquele que tem mais leis. Idem, p. 493.

    19 Ver o Contrato Social, livro 2, captulos VI e VII. Para Judith Shklar, Rousseau no tinha dvidas de que a vasta maioria das pessoas era semelhante no fato de no possuir talentos excepcionais, e para elas que a sociedade civil existe: O povo, como Rousseau nunca esquecia, no muito inteligente. Ele pode conhecer seus prprios interesses, mas precisa de ajuda para defend-los efetivamente. Sem um Legislador para guiar os homens, eles

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  • em formao no possuem esprito pblico suficiente para entender as propostas do Legislador como uma obra da arte poltica, e por esse motivo ele precisa colocar os frutos de seu gnio sublime sob o disfarce do mandamento divino, obtendo assim a adeso coletiva s normas e instituies que delineou. Seja simplesmente porque acreditam na origem sobrenatural das leis, seja porque veem que elas so benignas para reger suas relaes sociais, os indivduos do livremente seu consentimento a uma legislao cujo contedo no foi produzido por eles. Porm, ao fazerem isso, tornam-se to responsveis por ela quanto se a tivessem concebido em suas prprias mentes; so seus autores, embora no seus elaboradores,20 pois lhe deram seu aval como depositrios conjuntos da autoridade mxima dentro do corpo poltico.

    Nesse sentido, o exerccio da soberania popular presente nessa forma de autoria das leis compatvel com a tese republicana de Rousseau segundo a qual a liberdade civil advm da obedincia s leis que os cidados concordaram em dar a si mesmos, leis que os livram da dominao e colocam o bem comum como meta central do Estado.21 Conforme escreve Maurizio Viroli, tal concepo de liberdade est inserida na tradio republicana e no se confunde exclusivamente com a liberdade negativa nem com a liberdade positiva, para usar os termos consagrados por Isaiah Berlin22:

    nunca adquiriro um carter ou se tornaro conscientes de si mesmos como um povo que, coletivamente, compe-se de cidados sujeitos apenas s leis que fizeram para si mesmos. SHKLAR, J. N. Men and citizens. Cambridge: Cambridge University Press, 1969, p. 170.

    20 No prprio Contrato Social, a autoria das leis no confundida com a sua elaborao. De fato, nele lemos que o povo submisso s leis deve seu autor. ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2003, p. 380; e tambm que Toda lei que o povo em pessoa no ratificou nula. Idem, p. 430. Ao mencionar o caso dos decnviros de Roma, encarregados de registrar o direito da repblica por escrito no sculo V a.C., Rousseau reproduz um discurso bastante esclarecedor: Nada do que vos propomos, diziam eles ao povo, pode passar como lei sem o vosso consentimento. Romanos, sede vs mesmos os autores das leis que devem fazer a vossa felicidade. Ibidem, p. 382-383. Enfim, referindo-se ao Legislador, ele diz: aquele que redige as leis no tem, ou no deve ter, qualquer direito legislativo, e o prprio povo no pode, ainda que desejasse, privar-se desse direito incomunicvel. Ibidem, p. 383.

    21 Ver o Contrato Social, livro 2, captulo IV: Ento, o que , propriamente, um ato de soberania? No uma conveno do superior com o inferior, mas uma conveno do corpo com cada um de seus membros; conveno legtima, pois tem como base o contrato social, equitativa, pois comum a todos, til, pois no tem outro objetivo alm do bem geral, e slida, pois tem por garantia a fora pblica e o poder supremo. Enquanto os sditos esto submetidos apenas a essas convenes, no obedecem a pessoa alguma, mas somente sua prpria vontade. ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2003, p. 374-375.

    22 Em um texto que j se tornou uma referncia clssica do pensamento poltico contemporneo, Berlin distingue a liberdade negativa definida como ausncia de interferncias s aes do indivduo da liberdade positiva identificada ao autogoverno, quando o sujeito senhor de si mesmo. Para mais detalhes, ver BERLIN, I. Dois conceitos de liberdade. In: Quatro ensaios sobre a liberdade. Trad. Wamberto H. Ferreira. Braslia: Editora UnB, 1969. p. 133-170.

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  • De acordo com Rousseau, h apenas uma forma de liberdade: a liberdade republicana. Esta a liberdade de que os indivduos desfrutam sob a lei e em virtude de uma constituio poltica justa que os libera de uma estreita dependncia da vontade individual dos outros. Ela positiva porque envolve a obedincia s leis que foram sancionadas por homens individuais; ela negativa porque a soberania da lei protege cada um e todos das injustias, das ofensas e das interferncias arbitrrias em seus direitos perpetradas por outrem, sejam indivduos privados ou magistrados. A liberdade fundada na soberania da vontade geral e na fora da lei o bem mximo de que podem desfrutar os indivduos em uma sociedade bem ordenada.23

    bastante evidente, ento, o quanto Rousseau estava preocupado em conjugar a soberania popular, o primado da lei e a liberdade civil como elementos fundamentais ao seu republicanismo. Ao se defender das crticas de seus adversrios por meio das Cartas escritas da montanha, ele lhes diz: vereis a [no Contrato Social] em toda a parte a lei colocada acima dos homens; vereis a em toda a parte a liberdade reivindicada, mas sempre sob a autoridade das leis, sem as quais a liberdade no pode existir, e sob as quais somos sempre livres.24

    Por conseguinte, as leis sobre as quais a repblica foi fundada deveriam ser mantidas com grande zelo no decorrer de sua histria. Todavia, sempre possvel que surjam novas situaes no previstas pelo Legislador, e com elas a necessidade de modificar as leis ou estabelecer novas. nesses momentos que os magistrados teriam de exercer com muito cuidado seu controle sobre a iniciativa legislativa, pois a competncia deles ao desempenhar essa funo seria crucial para que o soberano conseguisse expressar sua vontade apenas acerca daquilo que realmente fosse imprescindvel. Ento, o que se pediria aos cidados comuns que avaliassem aquilo que fosse submetido ao seu sufrgio usando os critrios disponveis a qualquer um deles, isto , o bom senso e o respeito pelo bem comum,25 os quais so moldados dentro da opinio pblica.26

    23 VIROLI, M. Jean-Jacques Rousseau and the well-ordered society. Trad. Derek Hanson. Nova York: Cambridge University Press, 2002, p. 11.

    24 ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2003, p. 811.25 Ver o Contrato Social, livro 4, captulo I.26 Essa opinio qual o Legislador dedica um cuidado especial faz parte daquilo que o Contrato

    Social (livro 2, captulo XII) descreve como o tipo mais importante de lei, aquela que gravada diretamente no corao dos cidados. John t. Scott ressalta que os cidados da repblica rousseauniana agem dentro do universo criado para eles pelo Legislador, portanto, dentro de limites de uma opinio pblica que, embora lhes sejam salutares, no foram gerados por eles mesmos: Esta interpretao implica que, de acordo com Rousseau, a maioria dos indivduos no desfruta da liberdade moral completa da autolegislao, mas apenas da liberdade civil na medida em que ela pode ser considerada uma forma de liberdade moral. [...] A completude da liberdade moral, na concepo de Rousseau, pareceria requerer um entendimento da

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  • Ao nos voltarmos para a teoria das formas de governo do Contrato Social, podemos presumir que esse processo seria mais bem realizado pelo poder executivo confiado a uma aristocracia eletiva, a modalidade preferida por Rousseau. Entre as razes da excelncia desse governo aristocrtico, o autor indica o fato de que a escolha de um pequeno nmero de magistrados permite que requisitos como a honestidade, o conhecimento e a experincia sejam levados em conta no processo de seleo dos governantes, e no somente a fortuna pessoal. Ademais, a facilidade para reunir as assembleias e a presteza com que se executam os negcios pblicos tambm so vantagens essenciais. Segundo Rousseau, trata-se do sistema de administrao que usa da maneira mais racional os recursos humanos do Estado, na medida em que ele consegue produzir maior eficincia recorrendo apenas aos indivduos mais capazes. Afinal, a melhor ordem e a mais natural que os mais sbios governem a multido, quando estamos certo de que eles a governaro para o benefcio dela, e no para o deles.27 Esse princpio traz consigo a ideia de que nem todos so igualmente aptos para exercer magistraturas, a no ser, talvez, em comunidades polticas muito pequenas e homogneas onde reine a mediocridade dos talentos, e nas quais os negcios pblicos sejam simples o bastante para poderem ser administrados por qualquer cidado; ou seja, em uma democracia ideal, algo que o prprio Rousseau achava extremamente improvvel de existir.28 Logo, a escolha dos governantes pelo voto seria a mais apropriada para que somente os mais sbios e virtuosos fossem colocados frente da conduo do Estado.29

    natureza humana e da perfectibilidade, ou uma compreenso da extenso completa da autolegislao. Esse entendimento demonstrado pelo filsofo, incluindo principalmente o prprio Rousseau e, de um modo diferente, pelo Legislador. O cidado desfruta de algo mais semelhante opinio de que ele completamente livre; a liberdade moral da maioria dos cidados , na realidade, um simulacro da verdadeira liberdade moral, pois sua virtude e sua liberdade no so suas prprias criaes. SCOTT, J. T. Politics as imitation of the divine in Rousseaus Social Contract. Polity, v. 26, n. 3 (1994), p. 498.

    27 ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2003, p. 407. Contrato Social, livro 3, captulo V.

    28 A ideia de que h uma ordem natural na maneira como os homens devem ser governados tambm enunciada no tocante s dificuldades para a efetivao da democracia, quando Rousseau escreve que contra a ordem natural que o grande nmero governe e que o pequeno seja governado. ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2003, p. 404. Por natural, nesse caso, deve-se entender a natureza das coisas polticas, ou seja, a lgica prpria boa disposio da sociedade civil.

    29 Isso, sem dvida, no contraria a ferrenha crtica de Jean-Jacques s desigualdades sociais. Mesmo no Segundo Discurso (nota XIX), o filsofo reconhece que h desigualdades legtimas entre os componentes do corpo poltico, como aquelas por meio das quais a sociedade define a posio dos cidados e os favorece na medida dos servios reais prestados por eles ao Estado. O que a justia e a utilidade pblica demandam que todos ofeream ao povo os servios que sejam proporcionais aos seus talentos e s suas foras pessoais, uns como governantes e outros como governados.

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  • Ao refletir sobre essas ideias de Rousseau acerca da atuao do Legislador, do governo e do soberano na construo das leis, Daniel E. Cullen chegou a uma interpretao que, pelo menos primeira vista, pode parecer estranha aos leitores do Contrato Social. De acordo com ela, o genebrino no desejava que os cidados em geral praticassem a arte poltica em um sentido substantivo. No Estado concebido por Rousseau, a arte poltica pertenceria, nas palavras de Cullen,

    em primeiro lugar ao Legislador, que estrutura a ordem constitucional e, a seguir, aos magistrados, que governam. A democracia rousseauniana um governo para o povo, mas no verdadeiramente pelo povo ou do povo. [...] O governo inicia, e o povo ratifica como uma pontuao do processo poltico. [...] Nada pode privar legitimamente o povo de seu direito de tomar decises soberanas, mas essa participao cuidadosamente canalizada por um procedimentalismo destinado a filtrar a rebeldia associada genuna deliberao popular.30

    Ora, se retomarmos a opinio de Pateman mencionada logo no incio, vemos que Cullen concorda com ela quanto participao dos cidados ser um elemento importante no esquema poltico rousseauniano, embora tenha ressaltado que tal processo devesse obedecer a certas limitaes para que ocorresse de modo aceitvel. Porm, Cullen no corrobora algumas das consequncias que Pateman retira das ideias de Rousseau sobre a atuao popular. Para ela, em sua teoria a participao muito mais do que um acessrio protetor para um conjunto de arranjos institucionais; ela tambm possui um efeito psicolgico sobre os participantes, garantindo que haja uma inter-relao contnua entre o funcionamento das instituies e as qualidades e atitudes psicolgicas dos indivduos em interao.31 A autora explica que a principal funo da participao educativa, na medida em que por meio dela os indivduos aprenderiam a levar em considerao questes muito mais amplas do que seus interesses privados imediatos, deliberando em consonncia com o senso de justia que deve prevalecer na esfera pblica.

    Cullen, por sua vez, ressalta que Rousseau fala de deliberao no Contrato Social como o caminho pelo qual os cidados enunciam a vontade geral. Contudo, esse processo deliberativo no consistiria, de fato, em um momento no qual se realizaria uma atividade discursiva em que os indivduos poderiam expor livremente seus argumentos a fim de debat-los em busca de um consenso sobre aquilo que seria a 30 CULLEN, D. E. Freedom in Rousseaus political philosophy. DeKalb: Northern Illinois University

    Press, 1993, p. 152-153.31 PATEMAN, C. Participation and democratic theory. Cambridge: Cambridge University Press,

    1976, p. 22.

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  • soluo mais condizente com o bem pblico. O que Rousseau descreve como deliberao resume-se basicamente ao ato de votar, quando cada cidado, sem comunicao com os demais, contribui para os sufrgios dando sua opinio pessoal sobre a questo que foi levada diante do soberano, uma prtica cujo funcionamento correto exigiria a inexistncia de associaes parciais capazes de prejudicar a generalidade da vontade popular.32 Dessa forma, diz Cullen, um equvoco avaliar o papel do povo nas votaes como uma participao poltica substantiva, tal como faz Pateman:

    Rousseau no se preocupa com o autodesenvolvimento por meio da atividade poltica, pelo menos no como essa noo normalmente entendida. Seus princpios fazem justia aos direitos legtimos do povo, mas sua prudncia circunscreve o exerccio deles a partir da crena de que a volont no tutorada no consegue produzir a gnralit. A vontade e o bem comum devem ser mediados pela educao cvica para que a disposio generalidade, ou o bem comum em si, informe o ato de desejar. O raciocnio de Rousseau faz sentido apenas na suposio de que a poltica democrtica um baluarte contra a dominao em vez de um fim em si. Esse propsito defensivo representado por sua observao de que a assembleia popular a gide do corpo poltico.33

    Assim, Rousseau estaria propondo um modelo de formao civil no qual o trabalho mais importante desempenhado fora das assembleias soberanas, ou seja, na educao coletiva dos jovens, nas festas populares, na esfera dos costumes e da opinio pblica. Seriam esses elementos, e no a participao direta nas deliberaes, que confeririam identidade e unidade ao corpo poltico, permitindo que os cidados compartilhassem um mesmo desejo pelo bem comum que se manifestaria nas votaes s quais comparecessem.34

    A interpretao de Cullen pode ser reforada pelos argumentos presentes em um artigo de Cludio Arajo Reis. O autor faz uma diferenciao bastante pertinente a respeito de dois sentidos dados por Rousseau ao conceito de vontade geral:

    32 Ver o Contrato Social, livro 2, captulo III, e o livro 4, captulo 2.33 Idem, p. 151.34 Portanto, Cullen discorda do significado que Pateman atribui participao poltica porque

    a autora a considera de uma maneira muito mais ampla do que a processo decisrio propriamente dito. Para Pateman, Rousseau sugere que a participao tem uma funo integrativa: ela aumenta o sentimento entre os cidados individuais de que eles pertencem sua comunidade. [...] Mais importante a experincia da participao na tomada de decises em si, e a totalidade complexa dos resultados que vemos surgir dela, tanto para o indivduo quanto para todo o sistema poltico; essa experincia liga o indivduo sua sociedade e instrumental para transform-la em uma verdadeira comunidade. Idem, p. 27.

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  • Rousseau ora apresenta a vontade geral como um padro que deve orientar as decises coletivas, ora como sendo, a vontade geral, uma maneira de nos referirmos s decises coletivas elas mesmas. No primeiro sentido, a vontade geral, como padro ou regra, no outra coisa seno o padro do bem ou do interesse comum (em outras palavras, vontade geral, no sentido de padro, sinnimo de bem comum ou interesse comum). No segundo sentido, a vontade geral a deciso (ou o conjunto de decises) tomada pelo soberano e fixada na forma da lei.35

    Isso quer dizer que quando os cidados so chamados a dar seu voto nas assembleias soberanas, eles devem emitir, com seu sufrgio, sua opinio sobre o que o bem comum, o que, segundo Reis, implica a existncia prvia de um padro sobre esse bem que tem de ser conhecido e consultado para guiar a votao. Portanto, no a votao em si que cria ou constri a vontade geral como referncia do melhor interesse pblico, uma vez que ela serviria, fundamentalmente, para refinar e tornar mais precisa a percepo dos cidados acerca desse interesse coletivo que eles j possuam. No processo deliberativo, cada um consulta individualmente sua conscincia para chegar a uma interpretao adequada sobre o que correto para a sociedade, passando longe do tipo de jogo poltico no qual se busca confrontar razes ou barganhar para acomodar interesses distintos.

    Se perguntarmos, ento, como se forma a ideia de bem comum que deve servir de padro para os sufrgios populares, vemos reaparecer a figura do Legislador, cuja tarefa heurstica, nas palavras de Reis, justamente a de dar uma formulao clara para este padro de nossos juzos, ou seja, das condies que tornam possvel a preservao do corpo social.36 Cabe a esse personagem extraordinrio enxergar e fazer ver o bem comum de um determinado povo, e como tal ele pode ser descrito como um formador de interesses, na medida em que direciona a construo do interesse comum atuando sobre os interesses particulares, de modo que a interseo destes ltimos seja a maior possvel. Para continuar e complementar o que foi iniciado pelo Legislador, colocam-se aquelas instituies j mencionadas como essenciais para a manuteno da repblica, a saber, a educao cvica e as festas populares, bem como a censura e a religio civil, cujo papel inspirar o patriotismo nos cidados.37 unicamente graas a isso que os indivduos conseguem expressar a vontade geral com seus sufrgios.

    35 REIS, C. A. Vontade geral e deciso coletiva em Rousseau. Trans/Form/Ao, Marlia, v. 33, n. 2 (2010), p. 15-16.

    36 Idem, p. 28.37 Sobre essas instituies, ver especialmente o verbete Economia poltica, a Carta a DAlembert

    sobre os espetculos, o livro 4 do Contrato Social e as Consideraes sobre o governo da Polnia.

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  • Entretanto, se Reis est correto na afirmao de que a vontade geral como padro do bem pblico precede sua enunciao pelas assembleias soberanas, poderamos perguntar por que o processo deliberativo (a votao) necessrio. Afinal, se o Legislador e suas instituies so bem sucedidos em unir os membros do Estado em uma vontade coletiva, o que ainda seria preciso fazer por meio dos sufrgios? Quanto a isso, Reis responde que mesmo uma comunidade poltica bem constituda no est isenta de desacordos que requerem soluo, os quais seriam devidos a diferentes interpretaes acerca do interesse comum resultantes da prpria natureza das coisas polticas: a complexidade da ideia de bem comum, sua relativa indeterminao e o conhecimento sempre incompleto que temos das circunstncias justificam que um grau de desacordo exista e que, portanto, precisemos de um procedimento confivel para discernir, finalmente, qual posio a melhor, segundo o padro independente. No entanto, completa Reis, em uma situao que se distancia do contexto propcio boa ordem civil, as coisas adquirem outros contornos, pois

    se esse desacordo tiver razes mais profundas, se for uma disputa no sobre qual a melhor interpretao do bem comum que todos compartilhamos, mas uma competio entre diferentes concepes do que seja o bem comum, ento o procedimento perde totalmente sua confiabilidade. Se a disputa diz respeito apenas sobre a melhor deciso, o procedimento tem boas chances de funcionar. Se se trata de uma disputa em torno do padro, logo, Rousseau tende a pensar, tudo est perdido.38

    A anlise de Reis leva concluso de que os sufrgios populares e a participao civil que eles acarretam no teriam uma relevncia to significativa na teoria rousseauniana quanto se costuma acreditar, pelo menos sob certo ngulo, deixemos bem claro. Muito mais constitutiva para a composio do bem comum na repblica seria a atividade do Legislador e de suas instituies. Isso no significa, obviamente, que as assembleias soberanas sejam suprfluas. Muito pelo contrrio, ainda que na maioria das vezes elas no se renam com o objetivo de aprovar novas leis, Rousseau insiste em diversas passagens do Contrato Social que elas no podem deixar de se realizar, e isso por pelo menos trs motivos cruciais. Primeiramente, como foi salientado, porque apenas o consentimento do soberano, seja explcito ou tcito, que torna as leis legtimas e as mantm vlidas durante a vida do Estado. Em segundo lugar, a manifestao peridica do soberano possui a funo estratgica de colocar freios nas pretenses indevidas dos governantes, lembrando que existe uma autoridade superior qual eles devem se curvar.39 Por 38 Ibidem, p. 30.39 Ver o Contrato Social, livro 3, captulo XIV.

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  • ltimo, mas no menos importante, Rousseau deseja que as questes pblicas sempre tenham uma proeminncia na vida dos cidados, algo que pode ser estimulado pelo comparecimento frequente s assembleias populares.40

    Tendo tudo isso em vista, se retomarmos a pergunta ttulo deste artigo, a resposta que, conforme Rousseau, as leis republicanas so fruto de um trabalho conjunto. Por um lado, a elaborao delas deve competir aos sujeitos providos no apenas com um desejo genuno de promover o bem comum, mas igualmente com a compreenso adequada sobre as questes mais amplas que afetam a sociedade, isto , aqueles que possuem as luzes pblicas necessrias para visualizar os homens como so e as leis como podem ser, bem como as circunstncias particulares nas quais o povo est inserido. Por outro lado, a legitimao das leis cabe nica e exclusivamente ao soberano, cuja autoridade dentro do Estado se exerce pela explicitao da vontade geral, e cuja sano indispensvel para que a obedincia legislao seja o caminho rumo liberdade civil, e no servido. Somente havendo essa conjuno de entendimento e de vontade que as leis podem ser, ao mesmo tempo, sbias e justas.

    Antes de concluir, outra questo relevante se coloca: o que poderamos retirar, enfim, de toda essa discusso sobre os limites da cidadania na perspectiva de Rousseau, em especial se levamos em conta as caractersticas da poltica praticada nas democracias contemporneas? Em que medida as teses sobre a participao poltica delineadas pelo filsofo genebrino poderiam auxiliar, como referencial terico, para pensarmos o que acontece nos Estados atuais? Ora, um primeiro ponto relevante que a concepo de papis sociais que temos hoje em dia no que tange aos diferentes sexos ou gneros, para usar um termo mais adequado em nosso vocabulrio certamente no se enquadra naquela desejada por Jean-Jacques. A luta bem sucedida travada pelas mulheres, ao longo dos ltimos sculos, para conquistar espao e voz nas 40 Ver o Contrato Social, livro 3, captulo XV. A esse respeito, Judith Shklar chega a dizer que

    O propsito dessas assembleias do povo no tem nada a ver com as noes modernas de legislao. Elas no so convocadas para fazer ou refazer as leis, mas para reafirmar a disposio do povo de se unir pelo contrato e de viver em justia. por isso que o pequeno nmero e a antiguidade das leis a melhor prova de sua validade e de seu mrito. No h nada de errado com o consentimento tcito enquanto a oportunidade de verbaliz-lo esteja sempre presente. A afirmao frequente e aberta da f nas regras uma expresso do senso de justia que as regras estimularam e um meio para preserv-las. O soberano realmente faz muito pouco. A soberania a determinao do povo de viver sem senhores e sob as regras aceitas por ele, mesmo que moldadas para ele pelo Legislador. [...] Os atos de rememorao peridica no so uma adeso cega tradio como tal; ao contrrio, voltando s suas fundaes, o povo revigora um compromisso presente e imediato com a justia. Idem, p. 180-181.

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  • tomadas de deciso pertinentes s vrias esferas da sociedade civil e do Estado algo que no pode nem deve ser subestimado. As contribui- es femininas nessas reas so um fato inegvel. Nesse sentido, se ainda quisermos buscar no Contrato Social princpios que sejam coerentes com nosso modelo democrtico, temos de reconhecer explicitamente que estamos dando palavra cidado um significado mais amplo do que aquele pretendido por Rousseau, ou seja, que sob o substantivo masculino por ele usado ns colocamos, igualmente, homens e mulheres como sujeitos com iguais direitos e deveres perante a lei. Ao fazermos isso, sem dvida nos afastamos, em alguns aspectos expressivos, daquilo que o filsofo tinha em mente,41 mas, por outro lado, estaremos sendo muito fiis a uma de suas teses mais importantes, isto , aquela que diz: Para que uma vontade seja geral, [...] necessrio que todos os votos sejam contados; toda excluso formal rompe a generalidade.42 Portanto, a incluso das mulheres na condio de cidadania plena vai ao encontro do estabelecimento da igualdade no Estado, a qual, segundo o prprio Rousseau, um dos maiores bens entre todos os que a legislao tem de preservar, juntamente com a liberdade, que no pode subsistir sem a igualdade.43

    Quanto s demais questes aqui analisadas, visvel que os Estados atuais tambm esto distantes de algumas ideias rousseaunianas. verdade que, dada a extenso de nossos corpos polticos, o sistema parlamentar que adotamos confere a um pequeno grupo de cidados, nossos representantes eleitos, o exerccio efetivo da soberania. So eles, e no a assembleia popular, que aprovam as leis da repblica. Essa prtica cria um problema bvio do ponto de vista da teoria do Contrato Social, pois no cumpre um requisito bsico para a existncia da liberdade poltica. Alm disso, a complexidade das sociedades contemporneas torna necessria, como Derath salientou, uma legislao muito mais dinmica do que seria vivel em um Estado que seguisse os princpios de Rousseau. Estamos bem longe daquelas comunidades culturalmente homog- neas nas quais a percepo do bem comum seria quase espontnea

    41 interessante notar que a opinio de Rousseau sobre a excluso feminina da cidadania era algo compartilhado por muitos de seus conterrneos at recentemente, tendo inclusive efeitos constitucionais. A Sua, pas que incorporou a extinta repblica de Genebra, foi um dos ltimos Estados ocidentais a conceder o direito de voto s mulheres. Em 1971, houve uma deciso em nvel federal nesse sentido, mas diversos cantes (unidades administrativas nas quais a Sua est dividida) levaram alguns anos para adot-la. Foi apenas em 1990 que a regio de Appenzell Rhodes-Intrieures viu-se obrigada, por ordem do Tribunal Federal, a permitir o sufrgio feminino.

    42 ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2003, p. 369. Contrato Social, livro 2, captulo II.

    43 Ver o Contrato Social, livro 2, captulo XI.

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  • entre os cidados.44 Entre ns, multiplicam-se as associaes parciais e as faces, proliferam as oposies de interesses, as contradies, os debates, e a melhor opinio no aprovada sem disputas.45 Rousseau olhava com desconfiana para essas dissonncias sociais que, em sua concepo, colocavam obstculos harmonia interna da repblica. No entanto, esse tipo de ambiente comum em nossa poca, no qual o conflito reconhecido como um fato imprescindvel e at mesmo positivo quando bem canalizado, um modelo presente tanto em autores modernos como Maquiavel e Montesquieu, quanto na teoria poltica mais recente.46

    Na opinio de Daniel Cullen, a confrontao pblica dos interesses privados seria a verdadeira essncia da democracia forte, pois somente no espao poltico criado pelos procedimentos democrticos que poderia existir um encontro entre o eu e o outro como cidados.47 Por isso, ele interpretou a noo de cidadania rousseauniana como uma estratgia para superar o encontro com a alteridade, uma vez que o sistema do Contrato Social no fornece nenhum princpio ou procedimento harmonizador 44 O ideal republicano de Rousseau aparece nitidamente no primeiro captulo do livro 4 do

    Contrato Social: Enquanto muitos homens reunidos se consideram como um s corpo, eles tm uma nica vontade que se refere conservao comum e ao bem-estar geral. Ento, todos os mbeis do Estado so vigorosos e simples, suas mximas so claras e luminosas, no h interesses confusos e contraditrios, o bem comum mostra-se por toda parte com evidncia e exige apenas bom senso para ser percebido. ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2003, p. 437. No captulo seguinte, o autor reafirma esse ideal contrastando-o com seu oposto: a maneira pela qual os assuntos gerais so tratados pode fornecer um indcio bastante seguro sobre o estado atual dos costumes e da sade do corpo poltico. Quanto mais a concrdia reina nas assembleias, quer dizer, quanto mais as opinies se aproximam da unanimidade, mais tambm a vontade geral dominante. Porm, os longos debates, as dissenses e o tumulto anunciam a ascendncia dos interesses particulares e o declnio do Estado. Idem, p. 439.

    45 Ibidem, p. 438.46 Somente para dar alguns exemplos, podemos lembrar a democracia agonstica defendida

    por Chantal Mouffe, a democracia forte de Benjamin R. Barber e a democracia deliberativa de Jrgen Habermas.

    47 Para basear seu entendimento da questo, Cullen recorre s teses de Barber, segundo o qual A poltica participativa lida com disputas pblicas e conflitos de interesse submetendo-os a um processo interminvel de deliberao, deciso e ao. Cada passo no processo uma parte flexvel de procedimentos contnuos que esto incrustados em condies histricas concretas e em realidades sociais e econmicas. Em vez de na busca por uma base pr-poltica independente ou por um plano racional imutvel, a democracia forte baseia-se na participao em uma comunidade de resoluo de problemas capaz de evoluo, a fim de criar finalidades pblicas onde antes no havia nenhuma, por meio de sua prpria atividade e de sua prpria existncia como um ponto focal da busca de solues mtuas. Em tais comunidades, as finalidades pblicas no so nem extrapoladas a partir de absolutos nem descobertas em um consenso oculto pr-existente. Elas so literalmente forjadas por meio do ato da participao pblica, criadas por meio da deliberao e da ao comuns e do efeito que a deliberao e a ao tm sobre os interesses, os quais mudam de forma e direo quando sujeitos a esses processos participativos. BARBER, B. R. Strong democracy. Los Angeles: University of California Press, 2003, p. 151-152.

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  • para resolver conflitos alm do apelo a um consenso. A poltica genuna realmente desaparece do regime de Rousseau.48 Tais acusaes so bastante duras dirigindo-se a um pensador que se dedicou com afinco a esclarecer os fundamentos do direito poltico. Teria Jean-Jacques trado inadvertidamente sua prpria causa? Em seu esforo para imaginar uma sociedade bem ordenada, estvel e patritica, ele teria configurado uma na qual a participao dos cidados seria direcionada de modo a abolir a necessidade da poltica assim como a conhecemos?

    Um caminho para responder essas questes passa pelas pginas do Contrato Social em que o autor compara as prticas das repblicas da Antiguidade e as dos povos modernos para constatar o quo diferente elas eram. Aps descrever as circunstncias favorveis desfrutadas pelos gregos, ele lamenta: No tendo mais as mesmas vantagens, como conservar os mesmos direitos? [...] Tudo bem examinado, eu no vejo que seja doravante possvel ao soberano conservar entre ns o exerccio de seus direitos se a cidade no for muito pequena.49 Se lembrarmos que essa pequenez trazia consigo uma srie de outras caractersticas convenientes ao regime republicano,50 vemos que Rousseau, embora fosse um filsofo moderno, mantinha uma viso da poltica profundamente influenciada por sua compreenso do mundo greco-romano. Por conseguinte, a interpretao de Cullen faz sentido somente se tentarmos julgar os princpios de Rousseau a partir de um padro de poltica democrtica estranho ao que o genebrino tomava como base. O modelo do Contrato Social no antipoltico em si, mas pode parec-lo caso se exija dele a aplicabilidade a um contexto em que ele seria inapropriado, algo com o que seu idealizador certamente no concordava.51 Para sermos coerentes como leitores de suas obras, precisamos entender os limites postos por ele cidadania como parte de um quadro maior no qual se pode contemplar uma determinada imagem de sociedade que abrange no apenas um

    48 Ibidem, p. 148.49 Ibidem, p. 431.50 Facilidade para comparecer s assembleias populares, proximidade entre governantes e

    governados, possibilidade de que os membros do Estado se conheam praticamente todos uns aos outros, pouca desigualdade econmica, cidados com costumes simples e hbitos semelhantes esto entre as mais importantes dessas caractersticas.

    51 Basta ler o que ele escreveu, referindo-se a si mesmo, no Terceiro Dilogo de Rousseau, juiz de Jean-Jacques: Assim, seu objetivo no podia ser o de conduzir os povos numerosos nem os grandes Estados sua primeira simplicidade, mas somente deter, se fosse possvel, o progresso daqueles cuja pequenez e situao os preservaram de uma marcha to rpida rumo perfeio da sociedade e rumo deteriorao da espcie. [...] Ele havia trabalhado para a sua ptria e os pequenos Estados constitudos como ela. [...] Malgrado essas distines to frequente e fortemente reputadas, a m-f dos homens de letras e a tolice do amor prprio [...] fizeram com que as grandes naes tomassem para si o que s tinha as pequenas repblicas por objetivo. ROUSSEAU, J.-J. uvres compltes. Paris: Gallimard, 2001, p. 935.

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  • ordenamento jurdico-poltico, como tambm ideias acerca da educao, da economia, da moralidade e das relaes humanas em geral. Qualquer tentativa de usar ou criticar o pensamento rousseauniano como parmetro para reflexes sobre nossa poca requer olhar com cuidado para os vrios elementos desse quadro.

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    Endereo postal:Faculdade de FilosofiaUniversidade Federal de GoisCampus IICaixa Postal 131Goinia, GO, Brasil

    Data de recebimento: 07/01/2015Data de aceite: 10/01/2015

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