REPORTAGEM ESPECIAL SÉRIE POLÊMICA ALERTA · rar gatilhos emocionais em pessoasmais fragilizadas,...

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8 | CIDADES SEXTA, 21 DE ABRIL DE 2017 REPORTAGEM ESPECIAL SÉRIE POLÊMICA VIRA ALERTA PARA PAIS Especialistas orientam famílias a conversar sobre o suicídio MAÍRA MENDONÇA LAILA MAGESK Bullying, violência sexual, suicídio. Se estes temas já são difíceis de serem discu- tidos ainda que individual- mente, quando todos se in- terligam para dar origem ao enredo de uma série de televisão voltada para jo- vens o impacto não só é cer- teiro, como também explo- sivo. Lançada em março deste ano pela Netflix, a sé- rie americana “13 Reasons Why” (13 Porquês) é a mais recente prova de como a ficção pode invadir a reali- dade, tocando seu público de diferentes modos. Dentro de um mês a adaptação do livro de Jay Asher tornou-se fenômeno entre adolescentes e adultos pelo mundo. Aplaudida por uns e criticada por outros – que contestam a forma co- moosuicídioéabordado–,a série definitivamente não é motivo de consensos e o de- bate em torno de suas pos- síveis consequências está lançado.Essasemana,inclu- sive, a Rede Salesiana de Es- colas lançou um aviso para mostrar como os pais devem lidar com a série. Tudo começa quando uma caixa é enviada para Clay por Hannah, a amiga por quem ele nutria uma grande paixão e que havia acabado de se suicidar. Nela, há13fitascassetes,nasquais a jovem lista os motivos que a levaram à morte, além de dar instruções para que elas sejam entregues aos que considera culpados. Os abu- sos dos quais Hannah é alvo por parte de seus colegas, bem como a negligência de sua escola, que ignora os fa- tos, são encadeados até cul- minarem na cena final, que mostra em detalhes o suicí- dio da estudante. Para a psicóloga Paula Barcellos Bullerjhann, ce- nas explícitas como esta são um erro da série. “O que preocupa é que ela coloca o suicídio com um certo nível de glamour, quando se trata de um problema mental. A personagem parece tratar o suicídio como uma forma de vingança e essa ênfase pode ser perigosa, pois pes- soas com algum problema psicológico podem enca- rá-lo como uma solução”, avalia ela, que também cri- tica o fato de a série não apontar uma possibilidade de resolver o problema que não seja dar fim à vida. “A série não mostra solu- DIVULGAÇÃO ções, a Hannah não as en- contra. E na verdade há saí- da, há sempre uma ajuda possível e profissionais ca- pazes”, argumenta. O roteiro da série, aliás, seguedireçãoopostaàsnor- masapontadaspelaOrgani- zação Mundial da Saúde (OMS) e pela Sociedade Americana para Prevenção do Suicídio, que se opõem, por exemplo, à veiculação de informações acerca dos detalhes dos atos e do modo como são praticados, além da divulgação de cartas dei- xadas. As recomendações são baseadas em estudos, que apontam que a veicula- ção de tais informações po- de influenciar outras pes- soas a repetirem os atos. TABUS À TONA Apesar de reconhecer que as cenas chocantes da série são capazes de dispa- rar gatilhos emocionais em pessoas mais fragilizadas, a conselheira do Conselho Regional de Psicologia, Tammy Andrade Motta, considera a trama “excelen- te” por evidenciar temas ta- bus, bem como o papel da escola diante de todos eles. Para a psicóloga, a série demonstra como a constru- ção de uma hierarquia de gêneroresulta emviolência. “Desde o começo se vê uma diferença do que é ser mu- lher adolescente num am- biente onde os homens são supervalorizados e refor- çam relações de poder. Isso nosmostraaimportânciade discutir gênero nas escolas, de capacitar os profissio- nais, em especial os de saú- de, para essas demandas, sobretudo para as deman- das de suicídio”, reflete. Num mundo em que adolescentes têm acesso fácil às informações, en- quanto os pais nem sem- pre conseguem acompa- nhar o mesmo ritmo, Tam- my acredita que não se tra- ta de proibir a série, mas sim de encará-la como uma janela aberta para o debate de temas polêmi- cos, mas necessários. É PRECISO FALAR Quando o normal é se falar sobre vida, discutir a morte é sempre um incô- modo. Por isso, a presiden- te da Associação Brasileira de Psiquiatria, Carmita Abdo, considera que um dos acertos da série é jogar luz sobre o tema. Segundo ela, o Brasil é o oitavo país em que o suicídio mais acontece. Dados mundiais dão conta de que, do total da população que possui quadros depressivos, o número de crianças que tentam o suicídio chega a ser três vezes maior do que outras faixas etárias. “O melhor aspecto que a série traz é para que tenha- mos cuidado com o que fa- zemos, pois a dimensão de nossos atos pode chegar ampliada no outro”. Hannah é a personagem principal da série “13 Reasons Why” (13 Porquês)

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8 | CIDADES SEXTA, 21 DE ABRIL DE 2017

REPORTAGEM ESPECIAL

SÉRIEPOLÊMICA

VIRAALERTA

PARAPAIS

Especialistas orientam famílias a conversar sobre o suicídioMAÍRA MENDONÇALAILA MAGESK

Bullying, violência sexual,suicídio. Se estes temas jásão difíceis de serem discu-tidos ainda que individual-mente, quando todos se in-terligam para dar origemao enredo de uma série detelevisão voltada para jo-vensoimpactonãosóécer-teiro, como também explo-sivo. Lançada em marçodeste ano pela Netflix, a sé-rie americana “13 ReasonsWhy”(13Porquês)éamaisrecente prova de como aficção pode invadir a reali-dade, tocando seu públicode diferentes modos.

Dentro de um mês aadaptação do livro de JayAsher tornou-se fenômenoentreadolescenteseadultospelo mundo. Aplaudida poruns e criticada por outros –que contestam a forma co-moosuicídioéabordado–,asérie definitivamente não émotivo de consensos e o de-bate em torno de suas pos-síveis consequências estálançado.Essasemana,inclu-sive,aRedeSalesianadeEs-colas lançou um aviso paramostrarcomoospaisdevemlidar com a série.

Tudo começa quandouma caixa é enviada para

Clay por Hannah, a amigapor quem ele nutria umagrande paixão e que haviaacabadodesesuicidar.Nela,há13fitascassetes,nasquaisa jovem lista os motivos quea levaram à morte, além dedar instruções para que elassejam entregues aos queconsideraculpados.Osabu-sos dos quais Hannah é alvopor parte de seus colegas,bem como a negligência desua escola, que ignora os fa-tos, são encadeados até cul-minarem na cena final, quemostra em detalhes o suicí-dio da estudante.

Para a psicóloga PaulaBarcellos Bullerjhann, ce-nasexplícitascomoestasãoum erro da série. “O quepreocupa é que ela coloca osuicídio com um certo níveldeglamour,quandosetratade um problema mental. Apersonagem parece tratar osuicídio como uma formade vingança e essa ênfasepode ser perigosa, pois pes-soas com algum problemapsicológico podem enca-rá-lo como uma solução”,avalia ela, que também cri-tica o fato de a série nãoapontar uma possibilidadede resolver o problema quenão seja dar fim à vida.

“A série não mostra solu-

DIVULGAÇÃO

ções, a Hannah não as en-contra. E na verdade há saí-da, há sempre uma ajudapossível e profissionais ca-pazes”, argumenta.

O roteiro da série, aliás,seguedireçãoopostaàsnor-masapontadaspelaOrgani-zação Mundial da Saúde(OMS) e pela SociedadeAmericana para Prevençãodo Suicídio, que se opõem,por exemplo, à veiculaçãode informações acerca dosdetalhesdosatosedomodocomo são praticados, alémdadivulgaçãodecartasdei-xadas. As recomendações

são baseadas em estudos,que apontam queaveicula-ção de tais informações po-de influenciar outras pes-soas a repetirem os atos.

TABUS À TONAApesar de reconhecer

que as cenas chocantes dasérie são capazes de dispa-rar gatilhos emocionais empessoas mais fragilizadas, aconselheira do ConselhoRegional de Psicologia,Tammy Andrade Motta,consideraatrama“excelen-te” por evidenciar temas ta-bus, bem como o papel da

escola diante de todos eles.Para a psicóloga, a série

demonstra como a constru-ção de uma hierarquia degêneroresultaemviolência.“Desde o começo se vê umadiferença do que é ser mu-lher adolescente num am-biente onde os homens sãosupervalorizados e refor-çam relações de poder. Issonosmostraaimportânciadediscutir gênero nas escolas,de capacitar os profissio-nais, em especial os de saú-de, para essas demandas,sobretudo para as deman-das de suicídio”, reflete.

Num mundo em queadolescentes têm acessofácil às informações, en-quanto os pais nem sem-pre conseguem acompa-nharomesmoritmo,Tam-myacreditaquenãosetra-ta de proibir a série, massim de encará-la comouma janela aberta para odebate de temas polêmi-cos, mas necessários.

É PRECISO FALARQuando o normal é se

falar sobre vida, discutir amorte é sempre um incô-modo.Porisso,apresiden-tedaAssociaçãoBrasileirade Psiquiatria, CarmitaAbdo, considera que umdosacertosdasérieé jogarluz sobreo tema.Segundoela, o Brasil é o oitavo paísem que o suicídio maisacontece.Dadosmundiaisdão conta de que, do totalda população que possuiquadros depressivos, onúmero de crianças quetentam o suicídio chega asertrêsvezesmaiordoqueoutras faixas etárias.

“O melhor aspecto que asérie traz é para que tenha-mos cuidado com o que fa-zemos, pois a dimensão denossos atos pode chegarampliada no outro”.

Hannah é a personagem principal da série “13 Reasons Why” (13 Porquês)

SEXTA, 21 DE ABRIL DE 2017 CIDADES | 9

DIVULGAÇÃO

A personagem principal lista os motivos que a levaram a tirar a própria vida

ENTENDA PARA AJUDAR E BUSCAR APOIO

1,5MILHÃO DE MORTES

É o número de suicídiosque a OMS estima queaconteçam em 2020.

13 REASONS WHYt Dicas

- A série temclassificação indicativade 18 anos. Menores, seforem assisti-la, devemestar acompanhados

dos pais ouresponsáveis. Caso seufilho esteja assistindo, éessencial que você oacompanhe.- É importante conversarcom os jovens eaprofundar as questõesabordadas. Quais são asgeneralizações da série?Qual outra alternativa aprotagonista poderia terescolhido? Como ajudarum colega que sofre

agressões?- A depressão é umadoença passível detratamento e cura.

t CuidadosFamília, escola, poderpúblico e sociedadedevem dar atenção aosgrupos vulneráveis,sobretudo adolescentescom histórico dedepressão, tentativasde suicídio e outrossofrimentos

psicológicos graves.Não se deve minimizarou subestimar o queeles falam. Diante desinais de angústia esofrimento, conversecom um profissional,que saberá indicar otratamento.

Fonte: Psicóloga Daniela Reis,carta da Rede Salesiana eSaferNet Brasil

DEU NO FACEBOOK

Maria Celeste Lima“Minha filha de 14 anosassistiu essa série ecomentou comigo. Agoraestou assistindo. É válido,até para conversarmoscom nossos filhos e elesperceberem que damosimportância ao queassistem e assim fazer atéuma discussão do assunto.Com isso, sabemos a suaopinião. Recomendo.”

Juliana Valença“Para quem está deprê,principalmenteadolescentes, a série podeaflorar sentimentos ruinssobre o assunto, além doencorajamento através deculpar terceiros peladecisão do suicídio e a faltade outra saída. Os filhosvão assistir, o melhor afazer é conversar muitosobre a anormalidadedessa decisão.”

Gabryella Carmo“Esse seriado abriu amente de muitas pessoas.Às vezes seu amigo estáimplorando ajuda, e vocênão percebe. Vamos ficaratentos com as coisas. Sójulgar é fácil.”

Lidia Sylmara“O que se passou nessasérie é verdade!Infelizmente, já passei porisso! Mas graças a Deusnão cometi o suicídio! Masa história me comoveubastante. Fui infeliz poranos, me sentia que nem aprotagonista e não tiveajuda da minha família enem dos amigos. Adepressão mata sim!Galera, olhem mais para asua família! Cuidem,tomem iniciativas, paraque essa longa tristeza,não acabe em tragédia!”

OS SINAIS

“É preciso romper a barreira dosilêncio e do preconceito”

Muitas pessoas em cri-se suicida relatam a pri-meira ideação suicida ouaté mesmo a primeiratentativa de suicídio nainfância. A adolescênciaé uma etapa de ebuliçãoemocional, de transiçãono ciclo de vida, de con-quista de independência,de inúmeros desafios.Muito foco tem sido dadoaos fatores de risco parao suicídio, mas é impor-tante conhecermos os fa-tores de proteção, quesão apoio familiar, boaintegração social, boashabilidades sociais, auto-confiança e capacidadede procurar ajuda.O comportamento sui-cida pode se confundircom o comportamentoadolescente, o que tor-na difícil a avaliação.Alguns aspectos quepodem indicar sua pre-sença são: mudançabrusca de comporta-mento; dificuldade pa-ra se relacionar com fa-mília e amigos; irrita-bilidade; pessimismo;depressão ou apatia;ódio a si mesmo; sen-

timentos de culpa, des-valia, vergonha, soli-dão, impotência e de-sesperança; mudançade hábito de alimenta-ção e/ou de sono; men-ção a concluir e doarcoisas ou escrever car-ta de despedida; men-ção de morte ou denão existir.É preciso romper a bar-reira do silêncio e dopreconceito e compreen-der a complexidade dasituação sem buscar porculpados ou motivos. De-senvolver empatia, con-versar abertamente,aprendendo a colocar-seno lugar do outro semjulgá-lo e encaminharpara avaliação e trata-mento em equipe mul-tiprofissional devidamen-te capacitada. É funda-mental também que osserviços públicos e pri-vados de saúde estejampreparados para receberesta demanda galopante.—DANIELA REIS E SILVA,PSICÓLOGA E ESPECIALISTAEM LUTO

PONTOSPOSITIVOSAPONTADOS PORESPECIALISTASt Abordagem de temaspolêmicos

- Para a psicólogaTammy Motta, a sériedeu destaque a temasimportantes, como obullying; o suicídio e amorte; a violênciaestrutural; as relaçõesfamiliares e o papelda escola diante detudo isso.- Tammy tambémdestaca a discussãosobre hierarquia eviolência de gênero,mostrando como asmulheres, no caso deHannah, por exemplo,tornam-se alvos deabuso como estupro eviolação da

privacidade- A psiquiatra CarmitaAbdo ressalta que atrama pode serdidática por mostraràs pessoas como seusatos, mesmo quandose tratam debrincadeiras, podemafetar o outro dediferentes formas,tonando-as maisconscientes emrelação àsconsequências do quefazem-A Netflix tenta darconta da demandaexibindo umdocumentário de 30minutos, após a série,alertando sobre osperigos e impactospsicológicos dostemas retratados. Nocomeço dos episódioscom conteúdo deviolência ou abusosexual, umamensagem é exibidarecomendando adiscrição doespectador.

PONTOSNEGATIVOSAPONTADOS PORESPECIALISTASt Abordagemindiscriminada

Todos os psicólogos epsiquiatras ouvidosnesta reportagemafirmam que a formacomo o suicídio éabordado, incluindo acena explícita e ricaem detalhes dapersonagem principalse suicidando, podedesencadear gatilhosemocionais empessoas que jápossuem problemaspsicológicos epensam sobre oassunto. No entanto, épreciso podenderarque cada espectadorpode ser afetado de

maneiras diferentest Sem soluções

A psicóloga BarcellosBullerjhann tambémaponta o fato de asérie não mostrarpossíveis soluçõespara que o suicídioseja evitado. Segundoela, trata-se de umaquestão saúde mentalque pode ser evitada,como uma rede deapoio formada porfamília, amigos eprofissionaisqualificados.

INDICAÇÕESt Quem deve assistir

Para a psicólogaDaniela Reis, é difícilcontraindicar a sériepara alguém, pois ela érealidade. Mas criançase adolescentes nãodeveriam assistí-la, jáque contém cenasimpactantes. Noentanto, ela ponderaque, nacontemporaneidade,grande parte dos paisnão acompanha seu

filho de perto parasaber o que ele faz natela do celular, dotablet, do computadorou dos jogoseletrônicos. Além disso,tudo o que é proibidose torna alvo de desejo.

t Oportunidade paradiscutir

Daniela Reis enfatizaque é preciso terdisponibilidade paradiscutir os temassuscitados, emdiferentes instâncias.Nas famílias, nasescolas, nosconsultórios, nasredes sociais, deforma instrutiva, decompartilhamento deconhecimento, dandoa oportunidade paraque crianças eadolescentes possamaprender a pedirajuda sempre quenecessário. Adultosprecisam estarpreparados para econversar sem tabusou preconceitos.

Análise da série