Reportagem sobre bullying homofóbico e transfóbico

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1 novembro - dezembro 2012 | QüIR EDUCAÇÃO I sabel tem 20 anos e vive no Porto, onde estuda na Faculdade de Belas Artes. Mas se hoje está bem integra- da, no passado era bem diferente. Começou por sentir-se discriminada ainda na escola primária, porque lhe diziam que se vestia de forma diferente e porque preferia “jogar à bola em vez de brincar às casinhas”. Mas foi aos 13 anos que os ataques mais violentos se ini- ciaram. Primeiro verbais e depois físicos. BULLYING HOMOFóBICO E TRANSFóBICO O pesadelo de ir à escola SE PARA MUITOS O REGRESSO àS AULAS é PACíFICO E ATé UM MOMENTO DE ALEGRIA, PARA OUTROS é VOLTAR A UMA VIDA DE TERROR, EM QUE O MEDO, A BAIXA AUTOESTIMA E A SOLIDãO SãO OS AMIGOS DO DIA A DIA. A QüIR FALOU COM VíTIMAS, PAIS, PROFESSORES, PSICóLOGOS E ASSOCIAçõES PARA PERCEBER ESTA REALIDADE COM CONSEQUêNCIAS DEVASTADORAS. Os atropelos seguiram-se e, mais tarde, começaram as histórias inventadas, as chamadas anónimas e até mesmo pes- soas que não a conheciam a adiciona- ram na rede social Messenger para a ofender. Isabel conta que no 9.º ano, depois de ter confessado a uma colega ser lésbica, esta a expôs à escola e em reação Isabel decidiu assumir-se. “Passei a ser a ‘fufa’”, recorda. A situação mais grave deu-se no dia em que um colega TEXTO: MARISA TEIXEIRA ILUSTRAçõES: PAULO BUCHINHO a esmurrou e um grupo a rodeou para a insultar. Depois disso isolou-se, até come- çar a faltar às aulas. “Foi muito complicado conseguir lidar com o que se passava e, ao mesmo tem- po, com todas as dúvidas sobre a minha orientação sexual e a pressão de não poder falar com ninguém. A última coisa que queremos é ficar sozinhos. é quando estamos mais sós que mais facilmente nos tornamos num alvo.”

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Revista Qüir

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EDUCAÇÃO

Isabel tem 20 anos e vive no Porto, onde estuda na Faculdade de Belas Artes. Mas se hoje está bem integra-da, no passado era bem diferente.Começou por sentir-se discriminada

ainda na escola primária, porque lhe diziam que se vestia de forma diferente e porque preferia “jogar à bola em vez de brincar às casinhas”. Mas foi aos 13 anos que os ataques mais violentos se ini-ciaram. Primeiro verbais e depois físicos.

BullyIng hoMoFóBICo e trAnsFóBICo

O pesadelo de ir à escolase PArA MuItos o regresso às AulAs é PACíFICo e Até uM MoMento de AlegrIA, PArA outros é voltAr A uMA vIdA de terror, eM que o Medo, A BAIxA AutoestIMA e A solIdão são os AMIgos do dIA A dIA. A qüIr FAlou CoM vítIMAs, PAIs, ProFessores, PsICólogos e AssoCIAções PArA PerCeBer estA reAlIdAde CoM ConsequênCIAs devAstAdorAs.

os atropelos seguiram-se e, mais tarde, começaram as histórias inventadas, as chamadas anónimas e até mesmo pes-soas que não a conheciam a adiciona-ram na rede social Messenger para a ofender. Isabel conta que no 9.º ano, depois de ter confessado a uma colega ser lésbica, esta a expôs à escola e em reação Isabel decidiu assumir-se. “Passei a ser a ‘fufa’”, recorda. A situação mais grave deu-se no dia em que um colega

texto: MArIsA teIxeIrA • IlustrAções: PAulo BuChInho

a esmurrou e um grupo a rodeou para a insultar. depois disso isolou-se, até come-çar a faltar às aulas. “Foi muito complicado conseguir lidar com o que se passava e, ao mesmo tem-po, com todas as dúvidas sobre a minha orientação sexual e a pressão de não poder falar com ninguém. A última coisa que queremos é ficar sozinhos. é quando estamos mais sós que mais facilmente nos tornamos num alvo.”

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As queixas que fez junto dos professores foram ignoradas e, mesmo depois de “sair do armário”, chegaram a dizer-lhe que a culpa era dela por abordar temas inapropriados nas aulas, como a adoção por casais do mesmo sexo. “não interes-sava que se falasse no assunto, até para não levantar celeuma com os outros en-carregados de educação.” diziam-lhe: “se não ligasses, eles paravam.” demo-rou algum tempo até começar a conhe-

cer outras pessoas como ela e mais ainda até pedir ajuda psicológica, fatores que a ajudaram a ultrapassar o problema. o objetivo final era a auto-aceitação.quando foi agredida fisicamente, re-correu ao tribunal. o agressor foi con-denado a um pedido de desculpas perante a audiência e a pagar as des-pesas do dentista. “Cheguei a falar de bullying em geral, mas só pegaram na-quele ato em específico. Falta legislação

em relação ao tema e a agressão física é a única coisa que conta em tribunal. não interessa se a pessoa foi sofrendo uma humilhação continuada, principalmente relativamente a questões de temática lgBt, que na prática continuam a ser tabu na lei. e como se refere a uma situ-ação de escola, é tratada com um peso muito menor, mesmo que possa vir a ter consequências graves.”à qüir, explica o psicólogo Pedro Fra-zão, “o termo bullying abarca um con-junto de comportamentos intencionais e repetidos ao longo do tempo, cuja dinâmica assenta numa relação de po-der assimétrica entre pares. este tipo de situações surge principalmente no contex-to escolar, envolvendo interações entre pares pautadas por insultos, violência física ou exclusão social”. o especialis-ta afirma ainda que “no caso específico do bullying homofóbico e transfóbico, os comportamentos acima definidos são diri-gidos a pessoas que, para os agressores, poderão demonstrar algumas caracte-rísticas estereotipadamente atribuídas a pessoas homossexuais ou trans. Contudo, sabemos hoje que o bullying assente em conteúdos homo ou transfóbicos também tem como alvo jovens heterossexuais, que são muitas vezes insultados ou agredidos através de palavras que servem para desqualificar ou ridicularizar as pessoas gays, lésbicas, bissexuais ou trans”.Mas se Isabel não cedeu ao silêncio, são muitos aqueles que são vencidos pelo medo e não denunciam as situações pe-las quais passam.

quAndo o sIlênCIo não é de ouroMarvin, de 25 anos, nasceu na suíça, mas desde os sete viveu em vale de Cam-bra, no distrito de Aveiro. Atualmente, mora em Coimbra. Para ele, o 7.º ano foi o pior. Começou na escola a praticar dança aeróbica, e por ser o único rapaz e um dos melhores na modalidade da sua classe, destacou-se dos restantes. Foi

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então que um grupo de rapazes da mes-ma idade o começou a perseguir.“Mandavam-me ‘bocas’ e insultavam-me repetidamente com a expressão ‘mariqui-nhas’.” quando os via ao longe, “fugia para não ter de os enfrentar”, mas houve situações em que o encontraram sozi-nho. “Começavam a fazer-me rasteiras, a empurrar-me e a escrever palavrões a giz na minha roupa. Chegava a casa a chorar várias vezes. nunca lhes fiz fren-te. tinha sido educado a não responder com violência e a vergonha da nature-za homofóbica dos ataques fazia com que nunca me queixasse.” Já na escola secundária, anos mais tarde, a pressão continuou, embora mais verbal. “diziam--me na cara para largar os maneirismos e chegaram mesmo a perguntar se gostava de raparigas.” Marvin preferiu fingir ser hétero para se proteger. “era mais fácil viver o dia a dia interpretando este papel. não queria ser o alvo de troça constante. não queria sentir-me desconfortável nem sozinho. queria ser ‘normal’ como os meus amigos.” Porém, desabafa: “hoje arrependo-me muito de ter seguido esse caminho mais fácil.”.se ser vítima de bullying é, por si só, com-plexo, às vezes transforma-se em algo mais.João (nome fictício) tem 30 anos e vive em lisboa. Aos 13 começou a ser perse-guido por um aluno repetente, mais velho, que o chamava de “paneleiro” e “borbo-leta”, sobretudo quando havia mais gen-te a assistir. na ingenuidade própria da idade, João nem percebeu bem o que se passava, mesmo quando era ameaçado com a violência de frases como “qual-quer dia tiro-te a virgindade a esse cu!”. quando se cruzava com o agressor e não havia público, recorda, “era apalpado”. Até que um dia foi seguido quando saiu da escola e foi violado. “quando cheguei a casa e os meus pais me perguntaram o que aconteceu, disse que tinha andado à pancada e eles acreditaram. nunca con-tei a ninguém, por receio... cheguei até a pensar que talvez fosse normal aquilo acontecer.” A violação repetiu-se mais

duas vezes. “numa delas fui ao posto mé-dico porque fiquei magoado. disse-lhes que me tinham dado um pontapé no rabo, trataram-me e não fizeram comentários. Agora que olho para trás estranho nem sequer terem pedido o contacto dos meus pais ou de alguém, tendo em conta a mi-nha idade”. Com o tempo, João deixou de ser incomodado pelo agressor. e se, neste caso, o bullying passou para crime, de acordo com os estudos que existem e os testemunhos a que tivemos acesso, esta não configura uma situação comum.

APoIo dos PAIs é FundAMentAltodas as vítimas entrevistadas pela qüir revelam que, apesar das situações pelas quais passaram, hoje em dia sentem-se bem consigo próprias. Mas nem sempre isso acontece. Ana Carina valente, psicó-loga, declara que as vítimas acabam por ficar com muitos traumas e em alguns ca-sos, “estas situações até podem contribuir para o aparecimento de muitas psicopato-logias”, sendo as mais frequentes quadros depressivos e ansiogénicos”.Fátima (nome fictício) soube da orienta-ção sexual do filho quando este andava no terceiro ciclo, por volta dos 14 anos. António (nome fictício) havia-lhe confes-sado ser bissexual mas a mãe queixava--se da falta de comunicação da parte do filho. e só se apercebeu que este era víti-ma de bullying quando no início do 10.º ano ouviu um desabafo do jovem com uma amiga ao telefone. Conta a mãe que quando António foi para o liceu Camões, em lisboa, decidiu assumir-se. “Começou a ter problemas, principalmente na aula de educação Física. quando iam para os balneários, os colegas diziam-lhe que de-via ir para o das raparigas. Começou a ser posto de parte pelos rapazes que, até aí, pensava serem seus amigos.” Fátima desabafa à qüir, dizendo que sabia que o filho andava muito perdido e sempre so-zinho, mas foi sem sucesso que procurou falar com ele. “no 11.º ano quis mudar de área, voltou para o 10.º, mas, depois, nesse segundo 10.º ano quis ir para outra

escola. não sei se foi pelo bullying. Mes-mo que seja, nunca iria dizer-me. tenho a sensação de que o bullying durou o se-cundário todo. Mas este ano quis voltar ao liceu Camões.” Fátima nunca quis que o filho fosse outra coisa senão feliz. Mas também não sabe se António deveria ter assumido tão cedo na escola a sua sexualidade. “Aconselhei-o a não contar. não tem de mentir mas também não tem de fa-lar disso. As pessoas ainda são muito discriminadas”.Margarida Faria, presidente da AMPlos – Associação de Mães e Pais pela liber-dade de orientação sexual e Identida-de de género, recebe vários casos de familiares que inicialmente não sabem lidar com estas situações, explicando que muitos são os que pedem aos filhos para não se revelarem e outros tantos os que os culpabilizam por terem sido alvo de bullying. Conta a responsável que muitos

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dos pais transferem os filhos de escola. “em certas circunstâncias não quer dizer que não seja o melhor a fazer.” Mas o problema que isso origina é outro: a de não-denúncia das situações de agressão. o trabalho da AMPlos é tentar enco-rajar os pais para que atuem, apoiados pelo corpo docente. “no fundo, os pais sentem-se isolados, e o medo que têm transpõe-se na relação com a escola ... é um ciclo vicioso.”uma investigação levada a cabo em 2009 pelo projeto norte-americano Fa-mily Acceptance Project, (em tradução literal, Projecto de Aceitação Familiar) da universidade de são Francisco, reve-lava que os adolescentes lgBt que são rejeitados pelos pais, em comparação com os que são aceites, correm um risco maior de problemas de saúde física e mental quando chegam à idade adulta: a taxa de probabilidades de tentativas de suicídios chega a ser oito vezes maior

do que a média e a de terem altos níveis de depressão é seis vezes mais. outros dados mostram um quadro em que as víti-mas são propensas a um maior consumo de droga e infeção por vIh, um valor três vezes superior à média dos outros jovens. Apesar de serem mais conhecidos os re-latos que se referem ao bullying homofó-bico, os transgéneros também sofrem na pele a discriminação desde cedo. José tem 23 anos e é heterossexual. nasceu mu-lher, mas aos 18 decidiu mudar de sexo. nunca se considerou lésbica, achava-se apenas diferente, desconhecendo a possi-bilidade de fazer uma mudança de sexo. desde a primária que era apelidado de “maria rapaz” e tinha muita dificuldade em arranjar amigos com quem brincar. As meninas não o queriam aceitar e, a partir de certa altura, os rapazes também não.“sempre tive as minhas paixões pla-tónicas por raparigas. e sempre me imaginava grande e homem”, relem-

BullyIng em númeRos

• 44% dos gays masculinos disseram ter sido vítimas de bullying, em comparação com 26% de héteros. 40% das lésbicas sofreram este tipo de agressão, face a 15% de héteros. - estudo da pediatra elise Berlan, que entrevistou 7500 americanos

• 42% dos jovens lgB portugueses sofreram bullying homofóbico, 67% presenciaram-no - estudo da rede ex aequo e IsCte, 2010.

• 70% dos alunos homossexuais são vítimas de bullying escolar. - unesCo, 2011

• 45% dos gays e 20% das lésbicas, nos euA já experienciaram agressões físicas e verbais por parte de outros estudantes devido à orien-tação sexual

• 53% já ouviu comentários homofóbicos de funcionários da escolar. - estudo do sociólogo o’higgins-norman.

• em 103 inquiridos, 2 heterosexuais foram vitimas de homofobia e quatro de transfobia. - estudo rede ex Aequo, 2010.

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perou a confiança e a autoestima que o tempo de agressão lhe havia roubado. usa-as agora como voluntária na asso-ciação Caleidoscópio lgBt, um coletivo do Porto. Isabel considera urgente uma mudança de atitude do Ministério da educação neste campo, por acreditar ser necessária a sua intervenção no apelo à não-discriminação. Além disso, sublinha, a falta de formação de docentes e auxi-liares, de campanhas de sensibilização, de legislação, e, sobretudo, de informa-ção são fatores propiciadores de situa-ções como as que viveu. “há, por parte da maioria das escolas, uma certa per-missão do bullying, que é tratado como algo que já faz parte da vida escolar.” Isabel julga que esta pode ser uma das causas que levam ao insucesso escolar das vítimas, à depressão de algumas, e, sublinha, “mais grave ainda, mata”.essa é a opinião partilhada pelos psi-cólogos contactados pela qüir. Ana Carina valente sublinha que como estas agressões, quando são verbais, existem sob o disfarce de cariz jocoso, acabam por ser ‘descuradas’ pelas instituições. “toda a comunidade escolar tem um papel a desempenhar nestas situações, pois só desta forma se poderá identifi-car, prevenir e intervir de uma forma efi-caz”. Pedro Frazão admite que apesar de se desenvolverem práticas formativas e informativas na comunidade escolar por várias associações lgBt, técnicos sociais e/ou de saúde há alguns anos, bem como através de alguns projetos na área da educação para a saúde, “existe um trabalho de fundo ao nível da disseminação da informação, da discus-são pública e da construção de políticas alternativas sobre estas questões, de modo a agilizar a alteração das ima-gens sociais que a população tem sobre as pessoas lgBt”. Maria João, 45 anos, uma das associa-

das da AMPlos, é mãe de uma lésbica. enquanto professora do ensino secundá-rio, em oeiras, conta que nunca se aper-cebeu de nenhum caso de bullying homo ou transfóbico na escola onde leciona. Porém, diz que é frequente os alunos agredirem-se verbalmente com insultos homofóbicos nas aulas. Mesmo não sa-bendo argumentar contra os exemplos que Maria João dá nas aulas, não admi-tem que a homossexualidade seja algo natural. “os comentários derivam muito do facto dos estereótipos que têm na ca-beça e são muito mais homofóbicos relati-vamente aos rapazes. todos os anos faço questão de falar nisto, até porque faz parte das regras da cidadania respeitar a individualidade dos outros.” A surpre-sa de Maria João virá do facto de muitas vezes serem os melhores alunos, “os que leem mais, supostamente mais instruídos, que acabam por se mostrar os mais con-servadores.” sara Barbosa é professora há 20 anos, dá aulas numa escola secundária em lisboa, e diz que a utilização de insultos homofóbicos entre alunos é uma realida-de. Conta à qüir que “se há uns anos um aluno ou uma aluna eram vítimas de troça sistemática e até de perseguição simples-mente por ‘ser diferente’, atualmente, a diferença tem um nome. Passaram a ser vistos como gays, sendo-o ou não”. e o mesmo acontecerá com os alunos que são transexuais. “Creio que alunas e alunos trans são percecionados como ho-mossexuais, de forma geral, muitas vezes não o sendo, o que é uma forma particu-lar que a transfobia assume”.Contudo, o preconceito não existe ape-nas na cabeça dos alunos, lembra Maria João. “uma colega, em conversa sobre o tema, respondeu-me que não dava muita importância a isso, que achava ser uma moda.” A professora ficou “chocada”. “há muitos professores homofóbicos, e al-

“A vergonhA dA nAturezA homofóbicA dos AtAques fAziA com que nuncA me queixAsse”mArvin oliveirA

bra. depois de muita pesquisa, decidiu avançar para a cirurgia de mudança de sexo quando já não estava na es-cola, mas a maioria dos que a frequen-tavam ficaram a saber. “houve muito falatório. Algumas pessoas ficavam a falar de mim quando passava por elas. uma vez, ouvi um ex-colega, no local de trabalho, depois de me atender, di-zer ao segurança da loja que eu era uma “gaja”. e eu não falava com ele há anos. houve situações em que ra-pazes insistiam em dar-me dois beijos em vez de um aperto de mão, só para gozarem comigo. outros ficavam a gri-tar o meu nome de nascença na rua, caso me vissem na noite. Isso tudo para mim é bullying.” os pais achavam ser apenas uma fase e levaram-no a um psi-quiatra. José conta que só lá foi duas vezes porque o especialista lhe disse que já tinha nascido assim e que não havia nada a mudar. Margarida Faria, da AMPlos, conta que embora os episódios transfóbicos sejam “os casos mais graves”, as histó-rias que mais chegam à AMPlos são exemplos positivos. “há jovens que têm reconhecimento na escola, a possibi-lidade de usar as casas de banho do género com que se identificam, e até tivemos um caso de um jovem que está ligado à igreja e que foi bem aceite”.A responsável salienta aquilo que faz a diferença: o apoio dos pais. “os jovens que não têm esse apoio são, normalmen-te, muito mais frágeis, e acabam por não ter coragem para assumir as coisas de uma forma natural.”

FAltA de (In)ForMAção Isabel, a jovem do Porto, é hoje uma ra-pariga diferente. e a sua luta, depois de ter sido a de viver como havia escolhido, é hoje a do ativismo na luta pelos direitos lgBt. A estudante de Belas Artes recu-

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guns, mesmo não o sendo, têm uma atitu-de passiva. Fazia-lhes falta participar em algum tipo de formação, que passasse pelo esclarecimento das temáticas lgBt.” A mesma opinião é partilhada por sara Barbosa. “A grande maioria dos docen-tes não teve qualquer formação para li-dar com ‘diferenças’, sejam elas de que tipo for. não podemos continuar a con-fiar no bom senso, embora seja desejável que todos se guiem por um elevado grau de profissionalismo e sentido ético. Mas muitas vezes as boas intenções não che-gam e os professores são pessoas, são humanos e falíveis, e não estão isentos de preconceitos. Fomos todos educados dentro da sociedade em que vivemos. A homofobia e a transfobia não são exclu-sivos de heterossexuais nem de classes desfavorecidas. são absolutamente trans-versais e democráticos, infelizmente.”Para contribuir para uma postura mais ati-va por parte da sua escola, Maria João contactou a rede ex Aequo, no âmbito do Projeto educação lgBt. este existe des-de 2005 e é uma das várias iniciativas desenvolvidas pela associação que tem como objetivo combater a desinforma-ção e discriminação ainda vigentes no campo da educação relativamente aos temas da orientação sexual e identidade de género. segundo Cátia Figueiredo, co-coordenadora do projeto, as inicia-tivas têm-se revelado “uma ótima forma de abordar as questões de orientação sexual e identidade de género na escola. os alunos adoram as dinâmicas, a parte de debate e a liberdade para colocar to-das as questões e dar as suas opiniões”. Como complemento, foram criadas duas brochuras, uma direcionada para profes-sores e profissionais na área da educa-ção – educar para a diversidade: um guia para Professores sobre orientação sexual e Identidade de género - e outra para alunos, - Perguntas e respostas so-bre orientação sexual e Identidade de género.um dos apoios constantes para a realiza-ção destas ações tem sido o da Comissão para a Igualdade de género (CIg). Fáti-ma duarte, presidente da CIg, considera

que “os professores, e todos os atores so-ciais, devem ter formação para a cidada-nia, adequada a uma vivência plena num estado de direito. Além do mais, um dos deveres gerais, preceituado no estatuto do docente, respeita à promoção do bem-es-tar dos alunos, protegendo-os de situações de violência física ou psicológica. Mas, no meu entender, a formação tem de ser diri-gida a professores, pessoal não-docente, alunos, encarregados de educação, etc.”. Igualmente importante, considera a respon-sável, é o papel do Ministério da educação e Ciência, das autarquias, dos sindicatos dos professores, das universidades e esco-las superiores de educação, das ong, da sociedade civil, e muitas outras entidades, na promoção de projetos, ações de sensi-bilização e formação que visem um maior conhecimento da problemática da violên-cia nas escolas, incluindo o bullying. Apesar de ainda haver muito a fazer no que diz respeito a estas matérias, neste

ano deu-se um passo positivo para que ir à escola deixe de ser o pesadelo de mui-tos. o Conselho de Ministros aprovou no novo estatuto do Aluno e ética escolar uma alínea que, não abordando a iden-tidade de género, inclui o respeito pela orientação sexual por todos os membros da comunidade escolar. Além disso, em 17 de maio deste ano, numa conferência para assinalar o dia Internacional Contra a homofobia e transfobia, teresa Morais, secretária de estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade, avançou que neste ano letivo o governo português quer alargar o projeto-piloto de educação para a Cidadania na área de combate à homo e transfobia, envolvendo mais escolas, alunos, professores e agrega-dos familiares. tentámos contactar a responsável para saber o ponto de si-tuação, mas até ao fecho desta edição não obtivemos resposta.