REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO DAS FORTIFICAÇÕES DA ILHA DE...

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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA Á guas de Lind ó ia - S ã o Paulo 11 a 14 de outubro de 2006 Anais do III Seminário Internacional de Pesquisa em Educação Matemática G05 - História da Matemática e Cultura REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO DAS FORTIFICAÇÕES DA ILHA DE SANTA CATARINA DO SÉCULO XVIII: SABER MILITAR E IMAGEM PERSPECTIVA 1 Cláudia Regina Flores-UFSC 2 Resumo Na Ilha de Santa Catarina, a partir de 1739, foi construído um sistema de fortificações que se caracterizou por se constituir num triângulo fortificado a esta Ilha. A partir deste sistema de fortificações, e da história que o permeia, pretende- se inquirir sobre uma forma de saber, o saber militar, focalizando, deste modo, um corte do saber do século XVIII. Particularmente, adentra-se na questão da representação em perspectiva como forma de saber, de organizar e de representar um espaço militarizado. O objetivo deste texto é, então, o de analisar como um modo específico de representação pautado num regime de saber é aplicado, praticado nas imagens do sistema de fortificações da Ilha de Santa Catarina. Discute-se, então, que a geometria é o saber militar do século XVIII, e que a perspectiva militar é a técnica de desenho usada por atender a um regime de visibilidade total, constituindo-se como a possibilidade técnica de representação. Este estudo, no âmbito da Educação Matemática, possibilita o entrelaçamento entre as diversas áreas de conhecimento e a cultura local, refletindo sobre a constituição de um modo de saber, de olhar e de representar. Palavras - Chave Representação perspectiva; Perspectiva militar; Saber militar; Geometria. Representation of the Saint Catherine Island fortifications space from the XVIII century: military knowledge and perspective image Abstract In the Saint Catherine Island, since 1739, it was built one fortifications system that it was characterized by stablish itself in the one fortificated triangle for this island. Leaving from this fortifications system, and of the history that it permeates, intend

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Anais do III Seminário Internacional de Pesquisa em Educação MatemáticaG05 - História da Matemática e Cultura

REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO DAS FORTIFICAÇÕES DA ILHA DE SANTA CATARINA DO SÉCULO XVIII: SABER MILITAR E IMAGEM PERSPECTIVA1

Cláudia Regina Flores-UFSC2

Resumo Na Ilha de Santa Catarina, a partir de 1739, foi construído um sistema de

fortificações que se caracterizou por se constituir num triângulo fortificado a esta

Ilha. A partir deste sistema de fortificações, e da história que o permeia, pretende-

se inquirir sobre uma forma de saber, o saber militar, focalizando, deste modo, um

corte do saber do século XVIII. Particularmente, adentra-se na questão da

representação em perspectiva como forma de saber, de organizar e de

representar um espaço militarizado. O objetivo deste texto é, então, o de analisar

como um modo específico de representação pautado num regime de saber é

aplicado, praticado nas imagens do sistema de fortificações da Ilha de Santa

Catarina. Discute-se, então, que a geometria é o saber militar do século XVIII, e

que a perspectiva militar é a técnica de desenho usada por atender a um regime

de visibilidade total, constituindo-se como a possibilidade técnica de

representação. Este estudo, no âmbito da Educação Matemática, possibilita o

entrelaçamento entre as diversas áreas de conhecimento e a cultura local,

refletindo sobre a constituição de um modo de saber, de olhar e de representar.

Palavras - Chave Representação perspectiva; Perspectiva militar; Saber militar; Geometria.

Representation of the Saint Catherine Island fortifications space from the XVIII century: military knowledge and perspective image

Abstract In the Saint Catherine Island, since 1739, it was built one fortifications system that

it was characterized by stablish itself in the one fortificated triangle for this island.

Leaving from this fortifications system, and of the history that it permeates, intend

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oneself to inquire about one knowledge manner, the military perception, showing,

this way, one knowledge cutting from XVIII century. Particularly, it enters in the

question of the representation in perspective as the knowledge form to organize

and to represent one militarized space. The aim of this text is, then, that one to

analise like one specifical way of representation regulated in the one knowledge

regime is applieted, practised in the images of the fortifications system of the Saint

Catherine Island. It discusses, then, that the Geometry is the military knowledge of

the XVIII century, and that the military perspective is the technique of design used

to attend at one regime of total visibility, constituting as the technical possibility of

representation. This work, in the ambit of Mathematics Education, it possibilites

the interlacing among the several areas of knowledge and the local culture,

reflecting about the constitution of one manner of knowledge, to look and to

represent.

Key-words Perspective representation; Military perspective; Military knowledge; Geometry

Introdução A presença constante de embarcações estrangeiras nas costas do Brasil

meridional gerou uma ameaça para a segurança e conservação dos domínios

nacionais. A Ilha de Santa Catarina se constituiu, no século XVIII, no abrigo por

excelência para toda a navegação abaixo do Trópico de Capricórnio. A posse e o

domínio desse abrigo significavam a tomada das terras circunjacentes e a

segurança de riquezas quase sem limites. Isso impulsionou à emergência do

espaço como um problema do poder e que levou à construção de um complexo

sistema de fortificações a fim de proteger, para além do Brasil, a Vila de Nossa

Senhora do Desterro, atual Florianópolis, Santa Catarina.

Assim, o Brigadeiro José da Silva Paes, engenheiro militar e primeiro

governador da Capitania de Santa Catarina, tomando posse em 1739 e

cumprindo uma decisão real, iniciou a construção da Fortaleza de Santa Cruz, em

uma pequena ilha na entrada da baía norte, chamada Anhatomirim. Após um ano,

devido ao extraordinário valor estratégico que portugueses e espanhóis davam à

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Ilha de Santa Catarina, foram construídas mais duas fortificações, a Fortaleza de

Santo Antônio, em outra pequena ilha na entrada da baía norte, chamada Raton

Grande, e a Fortaleza de São José da Ponta Grossa, entre as praias de Daniela e

Jurerê, na própria Ilha. Estas três fortificações constituíram-se num triângulo

fortificado à barra norte da Ilha de Santa Catarina.

A título de informação, mais tarde, em 1742 foi construída uma quarta

fortificação, a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, localizada na Ilha de

Araçatuba, com a função de guarnecer o estreito canal de entrada da baía sul

(CALDAS, 1992; UCHÔA, 1992).

De um lado há, portanto, a história da construção de um sistema de

fortificações numa determinada época, e a partir de uma cultura que permeia e é

permeada por um modo específico de pensar, de olhar, de representar, de saber

e de se relacionar com o mundo e com as coisas no mundo, ou seja, de organizar

e desenhar o espaço. E, de outro lado, há a emergência de um tipo de saber, o

saber militar que é a engenharia no século XVIII, empregando conhecimentos

matemáticos, geométricos e técnicos.

Por ora, este texto que se alinha adentra nesta história, porém considera

particularmente a questão da representação em perspectiva como forma de

saber, de organizar e de representar um espaço militarizado, no século XVIII3.

Portanto, o objetivo é o de analisar como um modo específico de representação

pautado num regime de saber é aplicado, praticado nas imagens do sistema de

fortificações da Ilha de Santa Catarina, compreendendo que este modo de

representar é cultural e que interage com os modos de representação do espaço.

A saber, a perspectiva militar ou cavaleira era aquela que era privilegiada nos

tratados dos arquitetos militares na Europa, ganhando força e constituindo-se na

forma usual de representação por corresponder às novas formas de disciplina e

de visibilidade (FLORES, 2003).

Engendrar-se nesta temática e nesta questão de pesquisa significa situar-

se num campo de pesquisa de natureza reflexiva, histórico-filosófica,

considerando, no entanto, um pequeno segmento da história e da história da

perspectiva. Ao inquirir sobre o uso de um dos modos de aplicar a técnica da

perspectiva central, focalizando um corte do saber do século XVIII, ou seja, o

saber militar que projeta na planta a arquitetura das fortalezas da Ilha de Santa

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Catarina, busca-se analisar uma peça da “Arqueologia do Saber” (FOUCAULT,

2000) do século XVIII.

Este texto está estruturado da seguinte maneira. Primeiramente,

focalizando um corte do saber do século XVIII, discuti-se o saber militar tomando

como objeto de análise a arte militar empregada na organização e construção do

sistema de fortificações da Ilha de Santa Catarina. Neste caso, a ordenação do

espaço se dá por meio de conhecimentos geométricos por proporcionar uma

harmonia, um controle e uma disciplina quando da constituição de uma

“Sociedade Disciplinar” (FOUCAULT, 1989). Em seguida, focando

especificamente o plano das fortalezas, representadas no mapa ou na planta,

reflete-se sobre um modo específico de se representar que é o ponto de vista da

perspectiva militar. Por fim, remete-se tal estudo para o âmbito da Educação

Matemática, na medida em que possibilita o entrelaçamento entre as diversas

áreas de conhecimento, a cultura local, a constituição de um modo de saber, de

olhar e de representar. Tudo isto para se refletir um regime de saber que está na

base do conhecimento matemático.

O saber do espaço militarizado na Ilha de Santa Catarina A noção de fortificação significa tornar um determinado lugar num ponto

fechado sobre si, suficientemente resistente para se defender e sofrer uma

pressão externa, e suficientemente forte para atacar e se impor ao externo. A

partir do século XVII esta função provém de uma noção específica de governo,

que é a de defender e conservar os domínios que pertencem ao soberano. A

fortificação torna-se, portanto, num dispositivo arquitetônico-militar proveniente da

engenharia militar como saber do espaço que permite determinar os pontos

estrategicamente fortificados.

No Brasil, segundo Salomon (2002), as fortificações se restringiram às

chamadas “praças marítimas”, que se estabeleciam num sistema de defesa e

ataque a partir da definição de por onde as embarcações de diferentes tamanhos

poderiam ou não entrar em caso de ataque, como por exemplo, no Rio de Janeiro

em 1735, no Rio Grande em 1736, em Santos em 1738 e na Ilha de Santa

Catarina em 1739.

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É a partir de 1735, com a vinda ao Brasil do engenheiro militar português

José da Silva Paes para fortificar inicialmente a cidade do Rio de Janeiro, que há

um exame do espaço-militar através de um princípio de produção do saber

enquanto forma de governar e de representar. No que diz respeito ao que vinha a

ser governar, ou seja, defender e conservar os domínios, a figura de um

governador de uma praça necessitava, segundo Salomon (2002), dominar a

“ciência da guerra”, sendo ele um engenheiro militar ou não. Por sua vez, a

“ciência da guerra”, ou a “arte militar” é considerada “... geométrica, racional e

visível. Isso significa que o arquiteto militar passa a representar os meios de

ataque e de defesa das fortificações, levando-o a um estudo minucioso da região

geográfica, do funcionamento dos armamentos, da distribuição dos homens no

campo de guerra.” (FLORES, 2003, p.156, 157).

Já em relação ao regime de saber pautado pela Representação, a noção

de regularidade, de visibilidade global, proveniente da fortificação como

dispositivo arquitetônico militar, leva a geometrização do espaço. Neste caso, “A

geometria não fornece apenas uma imagem de como a cidade deve ser

ordenada; ao contrário, é ela a sua própria imagem; é ela quem fornece um saber

sobre o espaço...” (SALOMON, 2002, p.43). Assim, a geometrização,

racionalização, ordem e disciplina na arquitetura e engenharia militar, no espaço

militarizado, é registrado, representado e projetado no papel.

Fortificar uma vila, uma praça marítima, é estabelecer uma relação

geométrica entre o espaço em que a fortificação se insere e aquele que está em

seu exterior. Logo, os tratados e manuais escritos pelos engenheiros militares

europeus do século XVII e XVIII salientam, segundo Salomon (2002), que fortificar

é “...inscrever uma vila, povoação ou cidade, num polígono regular ou irregular.

Assim, o espaço é concebido a partir de uma figura geométrica...” (p.45). E, neste

caso, “... o espaço a ser fortificado é visto como regular ou irregular porque a

geometria é o saber que constitui o olhar do espaço.” (Idem)

Esta forma de olhar, de conceber e de representar o espaço está,

sobretudo, impactada na formação de uma “Sociedade Disciplinar”, a partir dos

séculos XVII e XVIII, que consiste basicamente num sistema de controle social

através da conjugação de várias técnicas de classificação, de seleção, de

vigilância, de controle social (FOUCAULT, 1989). A disciplina é, portanto, um tipo

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de organização do espaço que cuida das informações visuais possibilitando,

assim, o cálculo, a medição e o planejamento de ações de guerra como, por

exemplo, num projeto arquitetônico militar.

A ordenação do espaço da cidade, da vila, da praça marítima provém de

uma concepção geométrica que surge com a engenharia militar e o problema da

fortificação que, atrelada a uma visão do todo, ao controle e a disciplina do

espaço e dos corpos no espaço, busca procedimentos geométricos, técnicas de

perspectiva, para construir e representar o espaço fortificado. No século XVIII, “...

a fortificação geometriza o espaço; ela é um dispositivo que permite tornar o

espaço da vila a ser defendida uma figura geométrica, fechando-a contra o

inimigo que lhe é exterior. A engenharia militar produz este espaço fechado ao

constituí-lo a partir de figuras geométricas.” (SALOMON, 2002, 164).

A título de exemplo desta forma de saber tomemos a Ilha de Santa

Catarina analisada sob o ponto de vista do engenheiro militar Silva Paes.

Baseado nos progressos da balística da época ele optou em construir não uma

fortificação, como lhe foi ordenado, mas três. Assim, o engenheiro militar “...optou

pelo sistema dos fogos cruzados, buscando pontos para obter a triangulação.”

(CABRAL, 1972, p.23). Ora, a posição geográfica da Ilha facilitava o uso do

método Vauban4: fechar a entrada norte da Ilha. Era esta a função das três

fortalezas: a de São José da Ponta Grossa, a de Santo Antônio e a de Santa Cruz

(Veja a Fig.1). Com a disposição delas, barrava-se a entrada do inimigo através

de fogos cruzados. Era um método viável, um excelente triângulo, conforme

análise de historiadores do século XX.

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Fig. 1 – Sistema de fortalezas da Ilha de Santa Catarina. De uma ponta a outra, a Ilha contava com o sistema das fortalezas, equipadas com canhões, munições e tropas para defender o território português. Fonte: FLORES, M. B. R. Os espanhóis conquistam a Ilha de Santa Catarina:1777. Florianópolis, Ed. Da UFSC, 2004.

Este controle do espaço não se dava, tão somente, porque o espaço se

tornava fechado em si ao ser inserido numa figura geométrica, mas pela

possibilidade de visão do todo. Neste caso, a representação do espaço tornava-

se importante. Porém, era preciso ter uma imagem que permitisse um total

controle das coisas que estavam no espaço, possibilitando o máximo de

visibilidade, bem como a medidas das coisas a partir de sua escala.

A geometria é, portanto, o saber militar do século XVIII. Isso não poderia

ser diferente já que, desde o renascimento europeu, os engenheiros, arquitetos,

artesãos e matemáticos, além de pintores, “...estavam obcecados com o espaço-

como-geometria.” (CROSBY, 1999, p.179). Particularmente, para os engenheiros

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militares, a arte da guerra torna-se geométrica, como diz Comar (1992, p.58).

Tanto o espaço geográfico como a representação deste espaço devia mostrar a

ordem, as simetrias, as paralelas, as figuras perfeitas da geometria, garantindo

bons planos de ataque e de defesa - planos de geômetras, afinal.

O ponto de vista no saber militar Várias foram as maneiras criadas para se representar as coisas no mundo.

Cada povo, cada cultura visual, em cada época, criou sua maneira particular de

transpor para uma superfície plana aquilo que é visto no mundo. No Ocidente,

percebe-se que não só em épocas diferentes, mas na mesma época, há maneiras

diversas de representação espacial.

No caso particular da engenharia militar observa-se diferentes maneiras de

se desenhar uma fortificação. O cuidado com as informações visuais no que diz

respeito com a realidade e a viabilidade da construção da obra; a possibilidade de

calcular, medir e prever na imagem orçamentos de matéria prima, mão de obra e

tempo; a visibilidade da regularidade, da simetria e, portanto, da ordem do projeto,

tudo isso implica na elaboração de procedimentos de representação gráfica,

modos de colocar em perspectiva, principalmente aqueles que privilegiam a vista

no plano e a vista total do projeto.

O objetivo de um engenheiro militar era o de construir uma imagem não

mais de um simples edifício, mas de uma verdadeira estratégia, de um plano de

defesa e de ataque, um documento tático. Portanto, era

preciso que a imagem deste mundo [fosse] uma imagem mensurável,

uma imagem que [mostrasse], não mais a progressiva diminuição das

coisas quando elas distanciam-se de um observador, mas ao contrário,

sua perfeita regularidade infinitamente estendida, sem que elas jamais

possam desaparecer no horizonte, lá onde tudo se esconde da

curiosidade do olhar humano. (COMAR, 1992, p.55)

Particularmente, a perspectiva paralela5 era a técnica que correspondia às

novas necessidades. Contrariamente a perspectiva central – que tem seu

horizonte na altura do olho e seu ponto de vista único, oferecendo uma visão

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muito pontual do espaço - a perspectiva paralela possibilita revelar um universo

geométrico conhecido e alinhado na imagem de um mapa, de um plano de ataque

ou de um projeto de construção.

Substitui-se, portanto, uma perspectiva local por uma perspectiva global.

Mas esta perspectiva global se dá na medida em que cada uma das maneiras de

representação perspectiva mostra a fortificação, por exemplo, sob um ponto de

vista diferente. Neste caso, é comum encontrarmos o desenho do plano e do perfil

ou da fachada de uma fortificação, de modo que uma representação

complementa a outra.

Para ver a harmonia do todo, calcular, planejar, nota-se o uso da técnica

denominada perspectiva militar que, como técnica de desenho, dá a imagem um

ponto de vista de cima, permitindo a visualização de todo o espaço geográfico, de

um “olhar panóptico”. O interesse pela adoção desta perspectiva, com um ponto

de vista do alto, como se fosse do alto de uma colina, ou sobre um cavalo, ou

ainda como se fosse numa vista de um vôo de um pássaro, é para ver os grandes

objetos como se eles fossem pequenos, para ver a geometria implacável na

organização do espaço e, assim, dominá-lo – é ver sem ser visto.

Como exemplo de uma perspectiva militar tomemos o Plano da Vila de N.

S. do Desterro da Ilha de Santa Catarina, desenhado por José Custódio de Sá e

Faria em 1754 (Fig.2). Notemos que não se trata de uma planta ou um mapa, mas

de uma imagem perspectiva, uma perspectiva militar. Neste caso, podemos

localizar na imagem, por exemplo, as distâncias entre os prédios e a costa; a

largura das construções existentes na vila; podemos perceber as alturas e

profundidades na medida em que distinguimos cada um dos objetos que se

encontram paralelos.

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Fig. 2 – Plano da Vila de N. S. do Desterro da Ilha de Santa Catarina –

1754.

Fonte: SALOMON, M. O Saber do Espaço: Ensaio sobre a geograficação

do espaço em Santa Catarina no século XIX. Tese de Doutorado

(Doutorado em História Cultural) – Centro de Filosofia e Ciências

Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC,

2002, 292p.

Observemos, ainda, que “A perspectiva militar da ilha, de Faria e Sá, não é

uma representação militar do espaço, mas a imagem de um espaço militarizado e

que é possível se tornar, ela mesma uma imagem, apenas através deste princípio

que a perspectiva militar fornece e que é proveniente deste dispositivo que é a

fortificação.” (SALOMON, 2002, p.185). Em outras palavras, como explica Marin

(1994), um plano, ou “...um mapa da cidade é a representação da produção de

um discurso sobre a cidade...” (p.205).

Ainda, a título de exemplo, tomemos mais particularmente o desenho de

uma fortificação. Notemos que ele serve como uma espécie de projeto para a sua

construção, não apresentando nada além de planos, e de fachadas (Veja, Fig.3).

Neste caso, o plano possibilita ver apenas as distâncias e as larguras das obras

que eles representam; já os perfis, ou as fachadas, fazem-nos ver as larguras,

alturas e profundidades.

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Inserir Fig. 3 – Representação do Plano e da Fachada da Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim.Considerada a mais importante das fortalezas, por proteger contra o inimigo a entrada sul do braço de mar que separa a Ilha de Santa Catarina do continente. Fonte: CABRAL, O. R. As defesas da Ilha de Santa Catarina no Brasil-Colônia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972.

Observemos que, neste caso, a vista militar, cavaleira ou a vôo de pássaro

é uma combinação do plano e do perfil de um mapa, de um projeto, num único

desenho, onde o ponto de vista é às vezes absolutamente dominado, como no

plano, e, em outras vezes abertamente fictício, pois o horizonte é neutralizado, e a

perspectiva é alterada.

A vista planificada da fortificação associada à vista da fachada nos permite

movimentar o olhar de modo que se tenha uma visão global do conjunto

arquitetônico. Isso é interessante, por um lado, por permitir ver a organização

regular, previsível e obediente a uma disciplina, e a uma forma de pensar, de

representar, de saber, a qual toda estruturação arquitetônica e espacial é

dependente. E, por outro lado, pela própria atividade de visualização: os olhos

vendo o plano e associando-o ao espaço, numa interação entre vista no plano e

vista na fachada, garante o movimento do olhar e do pensar.

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Notemos, enfim, que o espaço no século XVIII é um plano de defesa; mas além deste plano

de defesa do qual já havíamos falado anteriormente, é preciso levar em

consideração que as próprias condições de possibilidade de se produzir

dele um plano, um perfil ou uma perspectiva é a fortificação como

dispositivo de produção do espaço que é, ela própria, proveniente da

forma como o poder soberano vai problematizá-lo até o início do século

XIX. (SALOMON, 2002, p.185).

Vimos, portanto, que a geometria é o saber militar do século XVIII, e que a

perspectiva militar é a técnica de desenho usada por atender a um regime de

visibilidade total, constituindo-se como a possibilidade técnica de representação

quando da constituição de um regime de saber. Isso não poderia ter sido diferente

já que, a perspectiva era a divisão da geometria pertinente à luz (CROSBY, 1999,

p.165).

Conclusões A instauração de um saber militar na época das construções das

fortificações do século XVIII, no Brasil, tem sua origem na Europa do século XVII

e está, fundamentalmente, baseada num regime de saber que é dado num

sistema de Representação, ou seja, o sujeito do conhecimento, o objeto do

conhecimento, e um suporte que permita a realização da representação. No caso

particular que viemos discutindo o suporte da representação é a técnica da

perspectiva militar. Ao analisar como o espaço entre mares e terra foi rastreado, geometrizado,

matematizado, representado, depara-se com um pensamento militar que, para

além da racionalização e da objetividade, tem como característica a questão da

visibilidade total por se constituir numa ferramenta de poder. Neste caso, a

técnica da perspectiva militar, perspectiva cavaleira, é a técnica que atende a este

regime de visibilidade. Portanto, resgatar a história das fortificações, de um modo

de pensar, de usar os conhecimentos, de se relacionar com o mundo, nos permite

passar, obrigatoriamente, pela Matemática. Isso porque encontramo-nos numa

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época em que se prima pelos aspectos racionais, de quantificação da realidade e

de organização dos espaços.

Então, transpor a partir dessa peça que é o saber militar do século XVIII

para uma visão do todo empregada pelo militar, pelo engenheiro da arte de militar

significa ver que realidade e representação passaram a ter uma percepção

matemática.

Discutir tudo isso, seja na formação de professores, seja por meio de

trabalhos voltados para o ensino fundamental e médio, dá à Educação

Matemática ferramentas para sua interação com as outras áreas de

conhecimento, tais como a arte, a história, a arquitetura, a geografia, como

também a possibilidade de se refletir os fundamentos da Matemática.

Assim, de um lado podemos pensar em metodologias que proporcionem

este elo com a história, com a cultura e com a interdisciplinaridade, mas também

com a educação de um olhar. Como vimos, o trabalho com o desenho em

perspectiva dá, entre outras, condições para a atividade de visualização no ensino

de matemática.

Por outro lado, relacionar a atividade matemática empregada nos projetos

de construção e defesa das fortalezas com a cultura da época, proporcionando

um entendimento da matemática associada às diversas atividades sociais, nos

leva a compreensão de bases em que o conhecimento matemático se cria, se

desmembra e se aplica.

Por fim conhecer esta história e sua ligação com a matemática nos leva,

ainda, a outros caminhos: a engenharia dos presídios, das praças, dos hospitais,

das escolas do século XVIII que, por meio do “olhar panóptico”, da “sociedade

disciplinar”, se instaura um saber para organizar o espaço social. Analisar esta

cultura projetada nas plantas, nos projetos, nos mapas, significa ver toda uma

cultura do olhar e da organização espacial.

1 O presente trabalho teve o auxílio do CNPq. 2 Professora do Departamento de Metodologia/CED/UFSC e do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica/PPGECT/CED/CFM/UFSC. E-mail: [email protected] 3 Trata-se de parte das investigações que venho realizando no Projeto de Pesquisa intitulado “ Linguagem e conhecimento: o funcionamento dos registros de representação semiótica para a aprendizagem matemática” e que considera, entre outros elementos, o papel das representações semióticas como modo de conhecer,

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que abrange aspectos codificados, convencionais e estruturais de uma forma específica de linguagem criada cultural e historicamente. Tal projeto tem o apoio do CNPq. 4 Trata-se de Sébastien Le Preste (1633-1703) arquiteto militar da França - Marechal de Vauban. 5 Perspectivas paralelas ou axonometrias. Dentre este tipo de projeção encontramos mais correntemente a perspectiva isométrica, a trimétrica, a militar e a cavaleira. Referências bibliográficas CABRAL, O. R. As defesas da Ilha de Santa Catarina no Brasil-Colônia. Rio

de Janeiro: Conselho Federal de Cultura e Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, 1972.

CALDAS, M. C. História Militar da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis:

Lunardelli, 1992.

COMAR, P. La perspective em jeu: Les dessous de l´image. Découvertes

Gallimard-Sciences. Paris: Gallimard, 1992.

CROSBY, A. W. A mensuração da realidade: A quantificação e a sociedade

ocidental 1250-1600. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Editora

Unesp/Cambridge, 1999.

FLORES, C. R. Olhar, Saber, Representar: Ensaios sobre a representação em

perspectiva. Tese de Doutorado (Doutorado em Educação) - Centro de Ciências

da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2003.

188p.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Ligia M.

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III SEMINÁRIO INTERNACIONALDE PESQUISA EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA Águas de Lindóia - São Paulo 11 a 14 de outubro de 2006

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