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III SEMINÁRIO INTERNACIONALDE PESQUISA EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA Águas de Lindóia - São Paulo 11 a 14 de outubro de 2006
Anais do III Seminário Internacional de Pesquisa em Educação MatemáticaG05 - História da Matemática e Cultura
REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO DAS FORTIFICAÇÕES DA ILHA DE SANTA CATARINA DO SÉCULO XVIII: SABER MILITAR E IMAGEM PERSPECTIVA1
Cláudia Regina Flores-UFSC2
Resumo Na Ilha de Santa Catarina, a partir de 1739, foi construído um sistema de
fortificações que se caracterizou por se constituir num triângulo fortificado a esta
Ilha. A partir deste sistema de fortificações, e da história que o permeia, pretende-
se inquirir sobre uma forma de saber, o saber militar, focalizando, deste modo, um
corte do saber do século XVIII. Particularmente, adentra-se na questão da
representação em perspectiva como forma de saber, de organizar e de
representar um espaço militarizado. O objetivo deste texto é, então, o de analisar
como um modo específico de representação pautado num regime de saber é
aplicado, praticado nas imagens do sistema de fortificações da Ilha de Santa
Catarina. Discute-se, então, que a geometria é o saber militar do século XVIII, e
que a perspectiva militar é a técnica de desenho usada por atender a um regime
de visibilidade total, constituindo-se como a possibilidade técnica de
representação. Este estudo, no âmbito da Educação Matemática, possibilita o
entrelaçamento entre as diversas áreas de conhecimento e a cultura local,
refletindo sobre a constituição de um modo de saber, de olhar e de representar.
Palavras - Chave Representação perspectiva; Perspectiva militar; Saber militar; Geometria.
Representation of the Saint Catherine Island fortifications space from the XVIII century: military knowledge and perspective image
Abstract In the Saint Catherine Island, since 1739, it was built one fortifications system that
it was characterized by stablish itself in the one fortificated triangle for this island.
Leaving from this fortifications system, and of the history that it permeates, intend
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oneself to inquire about one knowledge manner, the military perception, showing,
this way, one knowledge cutting from XVIII century. Particularly, it enters in the
question of the representation in perspective as the knowledge form to organize
and to represent one militarized space. The aim of this text is, then, that one to
analise like one specifical way of representation regulated in the one knowledge
regime is applieted, practised in the images of the fortifications system of the Saint
Catherine Island. It discusses, then, that the Geometry is the military knowledge of
the XVIII century, and that the military perspective is the technique of design used
to attend at one regime of total visibility, constituting as the technical possibility of
representation. This work, in the ambit of Mathematics Education, it possibilites
the interlacing among the several areas of knowledge and the local culture,
reflecting about the constitution of one manner of knowledge, to look and to
represent.
Key-words Perspective representation; Military perspective; Military knowledge; Geometry
Introdução A presença constante de embarcações estrangeiras nas costas do Brasil
meridional gerou uma ameaça para a segurança e conservação dos domínios
nacionais. A Ilha de Santa Catarina se constituiu, no século XVIII, no abrigo por
excelência para toda a navegação abaixo do Trópico de Capricórnio. A posse e o
domínio desse abrigo significavam a tomada das terras circunjacentes e a
segurança de riquezas quase sem limites. Isso impulsionou à emergência do
espaço como um problema do poder e que levou à construção de um complexo
sistema de fortificações a fim de proteger, para além do Brasil, a Vila de Nossa
Senhora do Desterro, atual Florianópolis, Santa Catarina.
Assim, o Brigadeiro José da Silva Paes, engenheiro militar e primeiro
governador da Capitania de Santa Catarina, tomando posse em 1739 e
cumprindo uma decisão real, iniciou a construção da Fortaleza de Santa Cruz, em
uma pequena ilha na entrada da baía norte, chamada Anhatomirim. Após um ano,
devido ao extraordinário valor estratégico que portugueses e espanhóis davam à
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Ilha de Santa Catarina, foram construídas mais duas fortificações, a Fortaleza de
Santo Antônio, em outra pequena ilha na entrada da baía norte, chamada Raton
Grande, e a Fortaleza de São José da Ponta Grossa, entre as praias de Daniela e
Jurerê, na própria Ilha. Estas três fortificações constituíram-se num triângulo
fortificado à barra norte da Ilha de Santa Catarina.
A título de informação, mais tarde, em 1742 foi construída uma quarta
fortificação, a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, localizada na Ilha de
Araçatuba, com a função de guarnecer o estreito canal de entrada da baía sul
(CALDAS, 1992; UCHÔA, 1992).
De um lado há, portanto, a história da construção de um sistema de
fortificações numa determinada época, e a partir de uma cultura que permeia e é
permeada por um modo específico de pensar, de olhar, de representar, de saber
e de se relacionar com o mundo e com as coisas no mundo, ou seja, de organizar
e desenhar o espaço. E, de outro lado, há a emergência de um tipo de saber, o
saber militar que é a engenharia no século XVIII, empregando conhecimentos
matemáticos, geométricos e técnicos.
Por ora, este texto que se alinha adentra nesta história, porém considera
particularmente a questão da representação em perspectiva como forma de
saber, de organizar e de representar um espaço militarizado, no século XVIII3.
Portanto, o objetivo é o de analisar como um modo específico de representação
pautado num regime de saber é aplicado, praticado nas imagens do sistema de
fortificações da Ilha de Santa Catarina, compreendendo que este modo de
representar é cultural e que interage com os modos de representação do espaço.
A saber, a perspectiva militar ou cavaleira era aquela que era privilegiada nos
tratados dos arquitetos militares na Europa, ganhando força e constituindo-se na
forma usual de representação por corresponder às novas formas de disciplina e
de visibilidade (FLORES, 2003).
Engendrar-se nesta temática e nesta questão de pesquisa significa situar-
se num campo de pesquisa de natureza reflexiva, histórico-filosófica,
considerando, no entanto, um pequeno segmento da história e da história da
perspectiva. Ao inquirir sobre o uso de um dos modos de aplicar a técnica da
perspectiva central, focalizando um corte do saber do século XVIII, ou seja, o
saber militar que projeta na planta a arquitetura das fortalezas da Ilha de Santa
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Catarina, busca-se analisar uma peça da “Arqueologia do Saber” (FOUCAULT,
2000) do século XVIII.
Este texto está estruturado da seguinte maneira. Primeiramente,
focalizando um corte do saber do século XVIII, discuti-se o saber militar tomando
como objeto de análise a arte militar empregada na organização e construção do
sistema de fortificações da Ilha de Santa Catarina. Neste caso, a ordenação do
espaço se dá por meio de conhecimentos geométricos por proporcionar uma
harmonia, um controle e uma disciplina quando da constituição de uma
“Sociedade Disciplinar” (FOUCAULT, 1989). Em seguida, focando
especificamente o plano das fortalezas, representadas no mapa ou na planta,
reflete-se sobre um modo específico de se representar que é o ponto de vista da
perspectiva militar. Por fim, remete-se tal estudo para o âmbito da Educação
Matemática, na medida em que possibilita o entrelaçamento entre as diversas
áreas de conhecimento, a cultura local, a constituição de um modo de saber, de
olhar e de representar. Tudo isto para se refletir um regime de saber que está na
base do conhecimento matemático.
O saber do espaço militarizado na Ilha de Santa Catarina A noção de fortificação significa tornar um determinado lugar num ponto
fechado sobre si, suficientemente resistente para se defender e sofrer uma
pressão externa, e suficientemente forte para atacar e se impor ao externo. A
partir do século XVII esta função provém de uma noção específica de governo,
que é a de defender e conservar os domínios que pertencem ao soberano. A
fortificação torna-se, portanto, num dispositivo arquitetônico-militar proveniente da
engenharia militar como saber do espaço que permite determinar os pontos
estrategicamente fortificados.
No Brasil, segundo Salomon (2002), as fortificações se restringiram às
chamadas “praças marítimas”, que se estabeleciam num sistema de defesa e
ataque a partir da definição de por onde as embarcações de diferentes tamanhos
poderiam ou não entrar em caso de ataque, como por exemplo, no Rio de Janeiro
em 1735, no Rio Grande em 1736, em Santos em 1738 e na Ilha de Santa
Catarina em 1739.
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É a partir de 1735, com a vinda ao Brasil do engenheiro militar português
José da Silva Paes para fortificar inicialmente a cidade do Rio de Janeiro, que há
um exame do espaço-militar através de um princípio de produção do saber
enquanto forma de governar e de representar. No que diz respeito ao que vinha a
ser governar, ou seja, defender e conservar os domínios, a figura de um
governador de uma praça necessitava, segundo Salomon (2002), dominar a
“ciência da guerra”, sendo ele um engenheiro militar ou não. Por sua vez, a
“ciência da guerra”, ou a “arte militar” é considerada “... geométrica, racional e
visível. Isso significa que o arquiteto militar passa a representar os meios de
ataque e de defesa das fortificações, levando-o a um estudo minucioso da região
geográfica, do funcionamento dos armamentos, da distribuição dos homens no
campo de guerra.” (FLORES, 2003, p.156, 157).
Já em relação ao regime de saber pautado pela Representação, a noção
de regularidade, de visibilidade global, proveniente da fortificação como
dispositivo arquitetônico militar, leva a geometrização do espaço. Neste caso, “A
geometria não fornece apenas uma imagem de como a cidade deve ser
ordenada; ao contrário, é ela a sua própria imagem; é ela quem fornece um saber
sobre o espaço...” (SALOMON, 2002, p.43). Assim, a geometrização,
racionalização, ordem e disciplina na arquitetura e engenharia militar, no espaço
militarizado, é registrado, representado e projetado no papel.
Fortificar uma vila, uma praça marítima, é estabelecer uma relação
geométrica entre o espaço em que a fortificação se insere e aquele que está em
seu exterior. Logo, os tratados e manuais escritos pelos engenheiros militares
europeus do século XVII e XVIII salientam, segundo Salomon (2002), que fortificar
é “...inscrever uma vila, povoação ou cidade, num polígono regular ou irregular.
Assim, o espaço é concebido a partir de uma figura geométrica...” (p.45). E, neste
caso, “... o espaço a ser fortificado é visto como regular ou irregular porque a
geometria é o saber que constitui o olhar do espaço.” (Idem)
Esta forma de olhar, de conceber e de representar o espaço está,
sobretudo, impactada na formação de uma “Sociedade Disciplinar”, a partir dos
séculos XVII e XVIII, que consiste basicamente num sistema de controle social
através da conjugação de várias técnicas de classificação, de seleção, de
vigilância, de controle social (FOUCAULT, 1989). A disciplina é, portanto, um tipo
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de organização do espaço que cuida das informações visuais possibilitando,
assim, o cálculo, a medição e o planejamento de ações de guerra como, por
exemplo, num projeto arquitetônico militar.
A ordenação do espaço da cidade, da vila, da praça marítima provém de
uma concepção geométrica que surge com a engenharia militar e o problema da
fortificação que, atrelada a uma visão do todo, ao controle e a disciplina do
espaço e dos corpos no espaço, busca procedimentos geométricos, técnicas de
perspectiva, para construir e representar o espaço fortificado. No século XVIII, “...
a fortificação geometriza o espaço; ela é um dispositivo que permite tornar o
espaço da vila a ser defendida uma figura geométrica, fechando-a contra o
inimigo que lhe é exterior. A engenharia militar produz este espaço fechado ao
constituí-lo a partir de figuras geométricas.” (SALOMON, 2002, 164).
A título de exemplo desta forma de saber tomemos a Ilha de Santa
Catarina analisada sob o ponto de vista do engenheiro militar Silva Paes.
Baseado nos progressos da balística da época ele optou em construir não uma
fortificação, como lhe foi ordenado, mas três. Assim, o engenheiro militar “...optou
pelo sistema dos fogos cruzados, buscando pontos para obter a triangulação.”
(CABRAL, 1972, p.23). Ora, a posição geográfica da Ilha facilitava o uso do
método Vauban4: fechar a entrada norte da Ilha. Era esta a função das três
fortalezas: a de São José da Ponta Grossa, a de Santo Antônio e a de Santa Cruz
(Veja a Fig.1). Com a disposição delas, barrava-se a entrada do inimigo através
de fogos cruzados. Era um método viável, um excelente triângulo, conforme
análise de historiadores do século XX.
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Fig. 1 – Sistema de fortalezas da Ilha de Santa Catarina. De uma ponta a outra, a Ilha contava com o sistema das fortalezas, equipadas com canhões, munições e tropas para defender o território português. Fonte: FLORES, M. B. R. Os espanhóis conquistam a Ilha de Santa Catarina:1777. Florianópolis, Ed. Da UFSC, 2004.
Este controle do espaço não se dava, tão somente, porque o espaço se
tornava fechado em si ao ser inserido numa figura geométrica, mas pela
possibilidade de visão do todo. Neste caso, a representação do espaço tornava-
se importante. Porém, era preciso ter uma imagem que permitisse um total
controle das coisas que estavam no espaço, possibilitando o máximo de
visibilidade, bem como a medidas das coisas a partir de sua escala.
A geometria é, portanto, o saber militar do século XVIII. Isso não poderia
ser diferente já que, desde o renascimento europeu, os engenheiros, arquitetos,
artesãos e matemáticos, além de pintores, “...estavam obcecados com o espaço-
como-geometria.” (CROSBY, 1999, p.179). Particularmente, para os engenheiros
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militares, a arte da guerra torna-se geométrica, como diz Comar (1992, p.58).
Tanto o espaço geográfico como a representação deste espaço devia mostrar a
ordem, as simetrias, as paralelas, as figuras perfeitas da geometria, garantindo
bons planos de ataque e de defesa - planos de geômetras, afinal.
O ponto de vista no saber militar Várias foram as maneiras criadas para se representar as coisas no mundo.
Cada povo, cada cultura visual, em cada época, criou sua maneira particular de
transpor para uma superfície plana aquilo que é visto no mundo. No Ocidente,
percebe-se que não só em épocas diferentes, mas na mesma época, há maneiras
diversas de representação espacial.
No caso particular da engenharia militar observa-se diferentes maneiras de
se desenhar uma fortificação. O cuidado com as informações visuais no que diz
respeito com a realidade e a viabilidade da construção da obra; a possibilidade de
calcular, medir e prever na imagem orçamentos de matéria prima, mão de obra e
tempo; a visibilidade da regularidade, da simetria e, portanto, da ordem do projeto,
tudo isso implica na elaboração de procedimentos de representação gráfica,
modos de colocar em perspectiva, principalmente aqueles que privilegiam a vista
no plano e a vista total do projeto.
O objetivo de um engenheiro militar era o de construir uma imagem não
mais de um simples edifício, mas de uma verdadeira estratégia, de um plano de
defesa e de ataque, um documento tático. Portanto, era
preciso que a imagem deste mundo [fosse] uma imagem mensurável,
uma imagem que [mostrasse], não mais a progressiva diminuição das
coisas quando elas distanciam-se de um observador, mas ao contrário,
sua perfeita regularidade infinitamente estendida, sem que elas jamais
possam desaparecer no horizonte, lá onde tudo se esconde da
curiosidade do olhar humano. (COMAR, 1992, p.55)
Particularmente, a perspectiva paralela5 era a técnica que correspondia às
novas necessidades. Contrariamente a perspectiva central – que tem seu
horizonte na altura do olho e seu ponto de vista único, oferecendo uma visão
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muito pontual do espaço - a perspectiva paralela possibilita revelar um universo
geométrico conhecido e alinhado na imagem de um mapa, de um plano de ataque
ou de um projeto de construção.
Substitui-se, portanto, uma perspectiva local por uma perspectiva global.
Mas esta perspectiva global se dá na medida em que cada uma das maneiras de
representação perspectiva mostra a fortificação, por exemplo, sob um ponto de
vista diferente. Neste caso, é comum encontrarmos o desenho do plano e do perfil
ou da fachada de uma fortificação, de modo que uma representação
complementa a outra.
Para ver a harmonia do todo, calcular, planejar, nota-se o uso da técnica
denominada perspectiva militar que, como técnica de desenho, dá a imagem um
ponto de vista de cima, permitindo a visualização de todo o espaço geográfico, de
um “olhar panóptico”. O interesse pela adoção desta perspectiva, com um ponto
de vista do alto, como se fosse do alto de uma colina, ou sobre um cavalo, ou
ainda como se fosse numa vista de um vôo de um pássaro, é para ver os grandes
objetos como se eles fossem pequenos, para ver a geometria implacável na
organização do espaço e, assim, dominá-lo – é ver sem ser visto.
Como exemplo de uma perspectiva militar tomemos o Plano da Vila de N.
S. do Desterro da Ilha de Santa Catarina, desenhado por José Custódio de Sá e
Faria em 1754 (Fig.2). Notemos que não se trata de uma planta ou um mapa, mas
de uma imagem perspectiva, uma perspectiva militar. Neste caso, podemos
localizar na imagem, por exemplo, as distâncias entre os prédios e a costa; a
largura das construções existentes na vila; podemos perceber as alturas e
profundidades na medida em que distinguimos cada um dos objetos que se
encontram paralelos.
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Fig. 2 – Plano da Vila de N. S. do Desterro da Ilha de Santa Catarina –
1754.
Fonte: SALOMON, M. O Saber do Espaço: Ensaio sobre a geograficação
do espaço em Santa Catarina no século XIX. Tese de Doutorado
(Doutorado em História Cultural) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC,
2002, 292p.
Observemos, ainda, que “A perspectiva militar da ilha, de Faria e Sá, não é
uma representação militar do espaço, mas a imagem de um espaço militarizado e
que é possível se tornar, ela mesma uma imagem, apenas através deste princípio
que a perspectiva militar fornece e que é proveniente deste dispositivo que é a
fortificação.” (SALOMON, 2002, p.185). Em outras palavras, como explica Marin
(1994), um plano, ou “...um mapa da cidade é a representação da produção de
um discurso sobre a cidade...” (p.205).
Ainda, a título de exemplo, tomemos mais particularmente o desenho de
uma fortificação. Notemos que ele serve como uma espécie de projeto para a sua
construção, não apresentando nada além de planos, e de fachadas (Veja, Fig.3).
Neste caso, o plano possibilita ver apenas as distâncias e as larguras das obras
que eles representam; já os perfis, ou as fachadas, fazem-nos ver as larguras,
alturas e profundidades.
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Inserir Fig. 3 – Representação do Plano e da Fachada da Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim.Considerada a mais importante das fortalezas, por proteger contra o inimigo a entrada sul do braço de mar que separa a Ilha de Santa Catarina do continente. Fonte: CABRAL, O. R. As defesas da Ilha de Santa Catarina no Brasil-Colônia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972.
Observemos que, neste caso, a vista militar, cavaleira ou a vôo de pássaro
é uma combinação do plano e do perfil de um mapa, de um projeto, num único
desenho, onde o ponto de vista é às vezes absolutamente dominado, como no
plano, e, em outras vezes abertamente fictício, pois o horizonte é neutralizado, e a
perspectiva é alterada.
A vista planificada da fortificação associada à vista da fachada nos permite
movimentar o olhar de modo que se tenha uma visão global do conjunto
arquitetônico. Isso é interessante, por um lado, por permitir ver a organização
regular, previsível e obediente a uma disciplina, e a uma forma de pensar, de
representar, de saber, a qual toda estruturação arquitetônica e espacial é
dependente. E, por outro lado, pela própria atividade de visualização: os olhos
vendo o plano e associando-o ao espaço, numa interação entre vista no plano e
vista na fachada, garante o movimento do olhar e do pensar.
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Notemos, enfim, que o espaço no século XVIII é um plano de defesa; mas além deste plano
de defesa do qual já havíamos falado anteriormente, é preciso levar em
consideração que as próprias condições de possibilidade de se produzir
dele um plano, um perfil ou uma perspectiva é a fortificação como
dispositivo de produção do espaço que é, ela própria, proveniente da
forma como o poder soberano vai problematizá-lo até o início do século
XIX. (SALOMON, 2002, p.185).
Vimos, portanto, que a geometria é o saber militar do século XVIII, e que a
perspectiva militar é a técnica de desenho usada por atender a um regime de
visibilidade total, constituindo-se como a possibilidade técnica de representação
quando da constituição de um regime de saber. Isso não poderia ter sido diferente
já que, a perspectiva era a divisão da geometria pertinente à luz (CROSBY, 1999,
p.165).
Conclusões A instauração de um saber militar na época das construções das
fortificações do século XVIII, no Brasil, tem sua origem na Europa do século XVII
e está, fundamentalmente, baseada num regime de saber que é dado num
sistema de Representação, ou seja, o sujeito do conhecimento, o objeto do
conhecimento, e um suporte que permita a realização da representação. No caso
particular que viemos discutindo o suporte da representação é a técnica da
perspectiva militar. Ao analisar como o espaço entre mares e terra foi rastreado, geometrizado,
matematizado, representado, depara-se com um pensamento militar que, para
além da racionalização e da objetividade, tem como característica a questão da
visibilidade total por se constituir numa ferramenta de poder. Neste caso, a
técnica da perspectiva militar, perspectiva cavaleira, é a técnica que atende a este
regime de visibilidade. Portanto, resgatar a história das fortificações, de um modo
de pensar, de usar os conhecimentos, de se relacionar com o mundo, nos permite
passar, obrigatoriamente, pela Matemática. Isso porque encontramo-nos numa
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época em que se prima pelos aspectos racionais, de quantificação da realidade e
de organização dos espaços.
Então, transpor a partir dessa peça que é o saber militar do século XVIII
para uma visão do todo empregada pelo militar, pelo engenheiro da arte de militar
significa ver que realidade e representação passaram a ter uma percepção
matemática.
Discutir tudo isso, seja na formação de professores, seja por meio de
trabalhos voltados para o ensino fundamental e médio, dá à Educação
Matemática ferramentas para sua interação com as outras áreas de
conhecimento, tais como a arte, a história, a arquitetura, a geografia, como
também a possibilidade de se refletir os fundamentos da Matemática.
Assim, de um lado podemos pensar em metodologias que proporcionem
este elo com a história, com a cultura e com a interdisciplinaridade, mas também
com a educação de um olhar. Como vimos, o trabalho com o desenho em
perspectiva dá, entre outras, condições para a atividade de visualização no ensino
de matemática.
Por outro lado, relacionar a atividade matemática empregada nos projetos
de construção e defesa das fortalezas com a cultura da época, proporcionando
um entendimento da matemática associada às diversas atividades sociais, nos
leva a compreensão de bases em que o conhecimento matemático se cria, se
desmembra e se aplica.
Por fim conhecer esta história e sua ligação com a matemática nos leva,
ainda, a outros caminhos: a engenharia dos presídios, das praças, dos hospitais,
das escolas do século XVIII que, por meio do “olhar panóptico”, da “sociedade
disciplinar”, se instaura um saber para organizar o espaço social. Analisar esta
cultura projetada nas plantas, nos projetos, nos mapas, significa ver toda uma
cultura do olhar e da organização espacial.
1 O presente trabalho teve o auxílio do CNPq. 2 Professora do Departamento de Metodologia/CED/UFSC e do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica/PPGECT/CED/CFM/UFSC. E-mail: [email protected] 3 Trata-se de parte das investigações que venho realizando no Projeto de Pesquisa intitulado “ Linguagem e conhecimento: o funcionamento dos registros de representação semiótica para a aprendizagem matemática” e que considera, entre outros elementos, o papel das representações semióticas como modo de conhecer,
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que abrange aspectos codificados, convencionais e estruturais de uma forma específica de linguagem criada cultural e historicamente. Tal projeto tem o apoio do CNPq. 4 Trata-se de Sébastien Le Preste (1633-1703) arquiteto militar da França - Marechal de Vauban. 5 Perspectivas paralelas ou axonometrias. Dentre este tipo de projeção encontramos mais correntemente a perspectiva isométrica, a trimétrica, a militar e a cavaleira. Referências bibliográficas CABRAL, O. R. As defesas da Ilha de Santa Catarina no Brasil-Colônia. Rio
de Janeiro: Conselho Federal de Cultura e Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, 1972.
CALDAS, M. C. História Militar da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis:
Lunardelli, 1992.
COMAR, P. La perspective em jeu: Les dessous de l´image. Découvertes
Gallimard-Sciences. Paris: Gallimard, 1992.
CROSBY, A. W. A mensuração da realidade: A quantificação e a sociedade
ocidental 1250-1600. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Editora
Unesp/Cambridge, 1999.
FLORES, C. R. Olhar, Saber, Representar: Ensaios sobre a representação em
perspectiva. Tese de Doutorado (Doutorado em Educação) - Centro de Ciências
da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2003.
188p.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Ligia M.
Ponde Vassalo. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 1989.
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_____________. A arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Neves. 6ª ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
MARIN, L. De la Représentation. Paris: Seuil/Gallimard, 1994.
SALOMON, M. O Saber do Espaço: Ensaio sobre a geograficação do espaço em
Santa Catarina no século XIX. Tese de Doutorado (Doutorado em História
Cultural) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2002, 292p.
UCHÔA, C. E. Fortalezas Catarinenses: a estória contada pelo povo. Florianópolis: Impressa Universitária da UFSC, 1992.