REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em...

209
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO LÓGICA E METAFÍSICA FELLIPE PINHEIRO DE OLIVEIRA REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA PERCEPÇÃO DE DESCARTES RIO DE JANEIRO 2019

Transcript of REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em...

Page 1: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO LÓGICA E METAFÍSICA

FELLIPE PINHEIRO DE OLIVEIRA

REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA

DA PERCEPÇÃO DE DESCARTES

RIO DE JANEIRO 2019

Page 2: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

FELLIPE PINHEIRO DE OLIVEIRA

REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA

DA PERCEPÇÃO DE DESCARTES

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica, IFCS, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª. Ethel Menezes Rocha

Rio de Janeiro 2019

Page 3: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidospelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.

O48rOliveira, Fellipe Pinheiro de Representacionalismo ou realismo direto nateoria da percepção de Descartes / Fellipe Pinheirode Oliveira. -- Rio de Janeiro, 2019. 209 f.

Orientadora: Ethel Menezes Rocha. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Riode Janeiro, Instituto de Filosofia e CiênciasSociais, Programa de Pós-Graduação em Lógica eMetafísica, 2019.

1. Filosofia. 2. Descartes. 3. Teoria dapercepção. 4. Representacionalismo. 5. Realismodireto. I. Rocha, Ethel Menezes, orient. II. Título.

Page 4: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA PERCEPÇÃO DE DESCARTES

Fellipe Pinheiro de Oliveira

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica, IFCS,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de Doutor em Filosofia.

Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 2019.

Aprovada por: ______________________________________ Prof.ª Dr.ª Ethel Menezes Rocha (Orientadora) Universidade Federal do Rio de Janeiro ______________________________________ Prof. Dr. Marcos André Gleizer Universidade do Estado do Rio de Janeiro ______________________________________ Prof. Dr. Edgar da Rocha Marques Universidade do Estado do Rio de Janeiro ______________________________________ Prof.ª Dr.ª Lia Levy Universidade Federal do Rio Grande do Sul ______________________________________ Prof.ª Dr.ª Mariana de Almeida Campos Universidade Federal da Bahia

Page 5: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Jorge de Oliveira e Nanci de P. Pinheiro Oliveira, pela formação que me deram e por todo apoio durante a minha vida.

Ao meu irmão, Gustavo Pinheiro de Oliveira, pela amizade e carinho comigo. À Prof.ª Dr.ª Ethel Menezes Rocha, orientadora dessa tese, professora e pesquisadora por quem eu tenho imensa admiração, por ter me ensinado a ler, estudar e interpretar textos de filosofia. Aos mais que queridos Celio Fernandes S. Júnior, Camila Kushnir e Renata Moehlecke por todo suporte, apoio, conforto e incentivo que me deram ao acompanhar os bastidores da redação dessa tese. Aos meus amigos e amigas, Luana Cruz, Guilherme Nogueira, Davi de Oliveira, Karla Muzy, Joice Carvalho, Cecília Barbosa, Mário Souza, Hilda Gomes, Talita de Oliveira e Maria Cristina Giorgi pelo companheirismo de tantos anos. Aos meus amigos e colegas de graduação, Jorge Quintas, Diego Casais e Maria Clara Faria, pela amizade, apoio e auxílio no meu desenvolvimento intelectual. Aos amigos e colegas do Grupo Descartes do PPGLM-UFRJ, Juliana Martins, Maria Cecília Barbosa, Louis Blanchet, Andrea Abreu, Daniele Pacheco, Otávio Kajevski Junior e todos aqueles que participaram e participam do grupo, pelo interesse nos estudos e na pesquisa e pelo incentivo à troca e ao debate. Aos professores que tive ao longo de toda minha formação na educação básica por terem me conduzido até aqui. Em especial à Soraya (educação infantil), Joana Darke (francês), Ana Cristina Viegas (português e literatura brasileira), Eliane Trigo (ciências e biologia), Cátia Rocha (filosofia), Wolney Malafaia (história), Inês Rocha (educação musical), Fátima Ivone (sociologia), Isabel Vega (português e literatura brasileira) e Marília Robinson in memorian (matemática). Ao Colégio Pedro II por ter mudado minha história. Aos professores do Departamento de Filosofia da UFRJ, pela oportunidade de formação. Em especial a Raul Landim Filho, Ulysses Pinheiro, Maria das Graças de Moraes Augusto e Roberto Horácio de Sá Pereira. Au Monsieur Pierre Guenancia, professeur à l’Université de Bourgogne, pour m’avoir accueilli en France pour un stage de doctorat qui a définitivement influencé le développement de cette thèse. À Marc Prochasson, le propriétaire de l’appartement où j’ai vécu à Paris et qui est devenu un ami, pour son engagement en faveur de plusieurs étudiants et chercheurs brésiliens en France. Je considère Marc comme un mécène qui m’a très bien accueilli chez lui et m’a encouragé à poursuivre mes objectifs sans crainte. Ao CEFET-RJ pelo apoio institucional, acadêmico e financeiro. Às políticas públicas para a educação brasileira elaboradas e implementadas nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais eu provavelmente não teria chegado até aqui. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Page 6: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

RESUMO

OLIVEIRA, Fellipe Pinheiro. Representacionalismo ou Realismo Direto na Teoria da Percepção de Descartes. Rio de Janeiro, 2019. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

A presente tese tem como objetivo examinar a teoria cartesiana da percepção

relativamente ao debate entre o representacionalismo e o realismo direto. O referido debate diz

respeito à questão sobre qual é o objeto imediato da percepção, ou seja, o que se percebe

diretamente quando se percebe alguma coisa. Segundo a concepção realista direta, as coisas

mesmas atualmente existentes são percebidas de modo imediato independentemente de

qualquer intermediário. Contudo, a concepção representacionalista entende que o que é

diretamente percebido são as ideias das coisas, que as representam no pensamento, enquanto

que as coisas atuais são apenas indiretamente percebidas por intermédio das ideias, o que ocorre

porque as coisas são aquilo que é visado pelas ideias. Essa é uma questão importante para a

teoria da percepção de Descartes em função da sua definição ambígua de ideia, em que sob

determinado aspecto ideia pode ser tomada como uma certa operação mental, e sob outro ela

pode ser tomada como conteúdo mental representativo que consiste num modo de ser particular

no pensamento. Nesse contexto, é legítimo questionar se para Descartes a ideia consiste numa

operação mental de apreensão, ou percepção, de coisas; ou se ela, enquanto conteúdo

representativo, é o que é percebido pelo pensamento. A fim de melhor elaborar essa questão

recorre-se na tese a apenas uma parte do histórico debate entre Malebranche e Arnauld, que se

desenvolve na busca pela compreensão de diversos aspectos relativos à teoria da percepção, à

natureza das ideias e ao papel que elas ocupam no processo perceptivo. Esse debate é capaz de

fornecer subsídios para a interpretação de Descartes defendida nessa tese, que consiste em

mostrar que as ideias são determinados atos do pensamento cuja função é representar algum

conteúdo como objeto na consciência. Esse conteúdo exibido pela ideia é alguma coisa de real

no pensamento, isto é, possui um tipo de realidade a que Descartes chama de objetiva, à medida

que consiste num conjunto de propriedades necessárias que designam alguma coisa que não é

redutível às operações do pensamento. Nesse sentido, o processo perceptivo acessa

imediatamente a ideia enquanto um modo de ser objetivo que aponta para algo distinto do

pensamento. E, por esse motivo, pode-se interpretar a teoria cartesiana da percepção como uma

forma de representacionalismo.

Palavras-Chave: Ideia; Percepção; Representacionalismo; Realismo Direto.

Page 7: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

RÉSUMÉ

OLIVEIRA, Fellipe Pinheiro. Représentationnalisme ou Réalisme Direct dans la Théorie de la Perception de Descartes. Rio de Janeiro, 2019. Thèse (Doctorat en Philosophie) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Cette thèse porte sur la théorie cartésienne de la perception en ce qui concerne le débat

entre le représentationnalisme et le réalisme direct. Ce débat concerne la question de savoir quel

est l'objet immédiat de la perception, c'est-à-dire de savoir qu’est-ce qu’est perçu directement

quand quelque chose est perçue. Selon la perspective du réalisme direct les choses mêmes

actuellement existantes sont perçues d’une façon immédiate sans un intermédiaire. Cependant,

du point de vue du représentationnalisme ce qui est directement perçu sont les idées qui

représentent les choses dans la pensée tandis que ces choses (actuellement existantes) ne sont

qu’indirectement perçues à travers les idées parce que les choses sont ce qui est visé par les

idées. Cela est une importante question pour la théorie de la perception de Descartes en raison

de sa définition ambiguë de l’idée dans laquelle, sous un aspect, l’idée peut être considérée

comme une certaine opération mental et sous un autre elle peut être prise comme un contenu

mental représentatif qui est un mode particulier d’être dans la pensée. Dans ce contexte, on est

autorisé à se demander si, pour Descartes, l’idée consiste dans une opération mental de

perception des choses ; ou si l’idée, en tant que contenu représentatif, elle est la chose perçue

par la pensée. Pour mieux élaborer cette question on propose dans cette thèse discuter une partie

du débat historique entre Malebranche et Arnauld qui se développe en cherchant à comprendre

plusieurs aspects qui concernent à la théorie de la perception, à la nature des idées et au rôle

que les idées jouent dans le processus perceptif. Ce débat est capable de fournir du matériel

pour l’interprétation qui sera soutenue dans cette thèse qui consiste en affirmer que les idées

sont certains actes de la pensée dont la fonction est de représenter quelque contenu comme un

objet dans la conscience. Ce contenu présenté par l’idée est quelque chose de réel dans la

pensée, c’est-à-dire il a une sorte de réalité que Descartes appelle objective parce que ce contenu

est un ensemble de propriétés nécessaires qui désigne quelque chose qui n’est pas totalement

explicable par les opérations de la pensée. Dans ce sens, le processus perceptif accède

immédiatement l’idée en tant qu’elle est un mode d’être objectivement dans la pensée qui fait

référence à quelque chose de distinct de la pensée. Et, pour cette raison, on peut interpréter la

théorie cartésienne de la perception comme une forme de représentationnalisme.

Mots-Clés : Idée, Perception ; Représentationnalisme ; Réalisme Direct.

Page 8: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

ABSTRACT

OLIVEIRA, Fellipe Pinheiro. Representationalism or Direct Realism in Descartes’ theory of perception. Rio de Janeiro, 2019. Thesis (PhD in Philosophy) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

This thesis aims to examine the Cartesian theory of perception regarding the debate

between a representationalist and a direct realist view about perception. This debate concerns

the question of what is the immediate object of perception, that is, what is perceived directly

when something is perceived. According to the direct realist conception, the existing things

themselves are immediately perceived independently of any intermediary. However, the

representationalist conception understands that what is directly perceived are the ideas of things

that represent them in thought, while the existent things are only indirectly perceived through

the ideas, because these things are what ideas refer to. This is an important issue for Descartes'

theory of perception because of its ambiguous definition of idea, where in one respect idea can

be taken as a certain mental operation, and in another it can be taken as representative mental

content that is a particular mode of being in thought. In this context, it is legitimate to question

whether for Descartes the idea consists in a mental operation of apprehension, or perception, of

things; or if it is, as representative content, what is perceived by thought. In order to better

elaborate this question, we focus in only a part of the historical debate between Malebranche

and Arnauld, which sets in the search for the understanding of several aspects related to the

theory of perception, the nature of ideas and the role they play in the perceptual process. This

debate can provide support for the interpretation about Descartes developed here in this work,

which consists in showing that ideas are certain acts of thought whose function is to represent

some content as an object in consciousness. This content displayed by the idea is something

real in thought, that is, it has a kind of reality that Descartes calls objective, as it consists of a

set of necessary properties that designate something that is not reducible to the operations of

thought. In this sense, the perceptual process immediately accesses the idea as this objective

mode of being that points to something other than thought. And for this reason, the Cartesian

theory of perception can be interpreted as a form of representationalism.

Keywords: Idea; Perception; Representationalism; Direct Realism.

Page 9: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................11

1 PRELIMINARES DA TEORIA CARTESIANA DAS IDEIAS ...............................................24

1.1 A ideia e seu caráter representativo ................................................................................................24

1.2 Uma via tradicional de classificação das ideias ..............................................................................34

1.3 A via cartesiana: estrutura e natureza das ideias .............................................................................40

1.4 Considerações gerais sobre a noção de realidade objetiva da ideia ................................................44

2 MALEBRANCHE LEITOR DE DESCARTES: A NATUREZA DAS IDEIAS E SEU PAPEL

NA PERCEPÇÃO ..........................................................................................................................51

2.1 A concepção malebranchista de ideia em De la Recherche de la Vérité ........................................52

2.1.1 As ideias são os objetos imediatos da percepção .....................................................................52

2.1.2 O status ontológico das ideias: primeiros aspectos ..................................................................57

2.2 A visão das ideias em Deus: o caso da origem das ideias ...............................................................64

2.3 Status ontológico das ideias e o representacionalismo na teoria da percepção de Malebranche ....79

3 ARNAULD LEITOR DE DESCARTES: CRÍTICA À TEORIA DA PERCEPÇÃO DE

MALEBRANCHE .......................................................................................................................102

3.1 A leitura de Arnauld dos pressupostos malebranchistas da percepção .........................................102

3.2 As definições de percepção e ideia segundo Arnauld ...................................................................120

3.3 Argumentos contra os entes representativos de Malebranche ......................................................131

3.4 A crítica ao representacionalismo de Malebranche ......................................................................142

3.5 Arnauld: realismo direto? ..............................................................................................................148

4 DESCARTES: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA

PERCEPÇÃO ..............................................................................................................................169

4.1 Os conceitos de ser objetivo e de realidade objetiva da ideia .......................................................170

4.2 Teoria cartesiana da percepção: um representacionalismo moderado ..........................................187

CONCLUSÃO ....................................................................................................................................198

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................205

Page 10: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

ABREVIAÇÕES

AT [volume, página] DESCARTES, R. Œuvres de Descartes. Charles

Adam & Paul Tannery (org.), 11 vol. Paris: Vrin, 1957-

1996.

CP [página, parágrafo (quando se aplica)] DESCARTES, R. Coleção Os Pensadores: Descartes.

Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São

Paulo: Abril Cultural, 1973.

DE [página] DESCARTES, R. Discurso do método & Ensaios.

Tradução de César Augusto Battisti, Érico Andrade,

Guilherme Rodrigues Neto, Marisa Carneiro de

Oliveira Franco Donatelli, Pablo Rubén Mariconda,

Paulo Tadeu da Silva. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

FA [volume, página] DESCARTES, R. Descartes, Œuvres philosophiques.

Ferdinand Alquié (org.), 3 vol. Paris : Classiques

Garnier, 1996-98.

ABV [página] MALEBRANCHE, N. A busca da verdade. Tradução

Plínio J. Smith. Discurso Editorial, Paulus, 2004.

OCM [volume, página] MALEBRANCHE, N. Œuvres complètes de

Malebranche. Paris: Vrin, 1958-70.

VFI [capítulo, página] ARNAULD, A. Des vraies et des fausses idées. Denis

Moreau (editor). Paris: Vrin, 2011.

Page 11: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

11

INTRODUÇÃO

A filosofia se dá como um saber próprio que se desenvolve numa história de embates,

debates, consensos e dissensos em torno da investigação de temas e problemas concernentes à

experiência humana na sua relação consigo, com os outros e com o mundo, segundo os critérios

da justificação racional. Esse interesse investigativo consiste num esforço e num trabalho

intelectual que se realiza por meio de, e no entorno de, uma tradição que elabora e leva a cabo

o desenrolar da busca pela compreensão tanto dos elementos envolvidos no que se apresenta

como interrogação, como da estrutura de suas relações, seus encadeamentos, seus pressupostos

e suas consequências. Denomina-se isso de a tradição filosófica, que, possuindo uma história,

é sempre capaz de recolocar suas interrogações e atualizá-las como legado permanente de seu

exame (seja ele compreendido como o exame da história da própria tradição, ou como exame

da recondução perene de suas questões).

A tradição filosófica é aquela que disputa conceitualmente o esclarecimento de temas e

problemas por meio da fala pública, da aula, do debate e, sobretudo, do texto escrito – meio

pelo qual a tradição filosófica historicamente espalha-se para domínios mais amplos e distantes.

O texto permite-lhe ser lida, examinada, (re)elaborada e atualizada pela referida disputa

conceitual – que se preocupa fundamentalmente com propor soluções para as questões

levantadas – que não pode, porque esse é seu sentido, deixar de operar segundo a assimilação

do que já foi produzido pela própria tradição.

Nesse sentido, se pode-se conceber que a filosofia é a história dessa tradição, fazer

filosofia é, de certa maneira, fazer história da filosofia: tanto porque o enfrentamento de

interrogações inaugura uma tradição, quanto porque a própria tradição se desenvolve e se

atualiza a partir de sua própria história. Tomado isso, considerando a importância que os textos

filosóficos têm para a tradição filosófica, é a partir deles, de sua leitura atenta, do trabalho de

análise de conceitos, teses e argumentos que ele disponibiliza, da tentativa de explicação e de

compreensão de sua estrutura e sentido que se faz, ou pelo menos se começa a fazer, filosofia.

Os textos da tradição filosófica que chegaram até os dias de hoje permitem, aos diversos

leitores que os consideram, uma variada gama de formas de aproveitamento. Há aqueles que os

encaram com a curiosidade típica dos eruditos interessados no passado; há aqueles que os

tomam como registro de condições culturais, sociais e históricas de um tempo e de um lugar;

há aqueles que se preocupam em descortinar sua estrutura interna; e há aqueles que,

Page 12: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

12

interessados no encadeamento interno das questões, dos conceitos, das teses e dos

procedimentos teóricos constantes dos textos, não deixam de reconhecer que o confronto deles

com outros textos da tradição que os cerca (precedente ou posterior) é elucidativo para o

entendimento desses textos filosóficos em questão. Considera-se aqui que esse diálogo, ou esse

confronto com a tradição no processo de investigação de um texto filosófico é a via fundamental

para se embrenhar na história da filosofia, não como quem faz um relato terceirizado de algo

fechado e acabado. Mas sim como alguém que, ao assumir como tarefa a busca pelo

esclarecimento de alguma questão, recorre à história da tradição filosófica como um caminho

para recolocar para si, para os outros, num outro tempo e num outro lugar, a investigação de

um problema em aberto. E isso, segundo se compreende aqui, é parte fundamental de se fazer

filosofia.

Tendo isso em vista, é preciso tornar explícito que na tese que se segue investigar-se-á

a filosofia de Descartes no que concerne a uma entre as várias questões sobre as quais essa

filosofia pode ser interrogada. Trata-se da questão em torno da teoria cartesiana da percepção

que pretende elucidar se ela consiste numa teoria representacionalista da percepção, ou se ela

constitui uma teoria da percepção de cunho realista direto. Em linhas gerais, por

representacionalismo compreende-se a noção de que o processo perceptivo realizado pelo

sujeito é intermediado por algum elemento (seja ele uma terceira entidade no pensamento ou

fora do pensamento, ou uma representação mental) que se coloca entre a operação mental de

perceber e a coisa percebida. Já por realismo direto, toma-se a perspectiva segundo a qual entre

a mente que percebe e a coisa percebida não há nenhuma mediação, tratando-se, portanto, de

uma percepção imediata realizada pela apreensão que o sujeito faz da coisa percebida. Enquanto

no realismo direto supõe-se que o objeto imediato da percepção é a coisa mesma que é

percebida; no representacionalismo, o que é diretamente percebido são as representações do

sujeito, ou determinados objetos representativos, mas não as coisas mesmas, que, a princípio,

só são percebidas indiretamente. Tendo isso em vista, o procedimento que se pretende adotar

para o enfrentamento dessa questão é aquele que promove uma análise conceitual do texto

cartesiano, tendo em vista uma proposta de exposição explicativa dos elementos em torno da

questão que emerja e esteja em acordo com o que a argumentação escrita por Descartes parece

propor.

O debate acerca da interpretação de que a teoria cartesiana das ideias pode ser ou

representacionalista, ou realista direta diz respeito ao modo mesmo de elaboração da teoria da

percepção de Descartes. Sua raiz, pode-se assim entender, encontra-se na maneira como ele

Page 13: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

13

elabora suas concepções sobre o que é a ideia e como se dá o processo de percepção das coisas

que não são meras modificações do pensamento. Na Terceira Meditação das Meditações

Metafísicas, Descartes apresenta a noção de ideia como sendo um gênero de pensamento, entre

outros, que é “como imagem das coisas” (AT VII, 37; AT IX, 29; CP, 109, §6)1. Nesse sentido,

enquanto gênero do pensamento humano, as ideias são concebidas por Descartes como um

determinado tipo de modificação mental cujo caráter próprio é o de ser representação de coisas

para o sujeito. Essas coisas são apreendidas conscientemente como objetos, isto é, como algo

diante do sujeito que não é uma mera afecção dele, mas é sim um conteúdo determinado e

distinto do próprio sujeito. Dessa forma, segundo Descartes, se tomadas como um certo tipo de

modificação mental, as ideias constituem todas elas uma mesma coisa, isto é, podem ser

consideradas como um tipo específico de modo da mente que tem por função apresentar um

conteúdo como objeto no pensamento. Mas se são tomadas a partir do conteúdo que

disponibilizam na consciência, as ideias diferenciam-se entre si, pois cada uma é representação

de uma coisa diferente. De acordo com o primeiro enfoque, é possível entender que as ideias

possuem todas uma mesma realidade formal à medida que são o mesmo tipo específico de

modificação do seu substrato ontológico, que é a substância pensante. Porém, sob o segundo

enfoque, parece legítimo compreender que as ideias são realidades distintas umas das outras.

Pois, como sugere Descartes, por exibirem objetos distintos no pensamento, que não são (pelo

menos integralmente) meras afecções do sujeito pensante, as ideias necessitam de explicação

de por que são representações determinadas de uma coisa e não de outra; explicação essa que a

mera modificação mental não é capaz de oferecer. E nesse caso, parece que as ideias constituem

um tipo de realidade específica, atribuível às coisas enquanto elas são pensadas, enquanto elas

são objetos determinados na consciência. Tratar-se-ia de um tipo específico de realidade à

medida que ela seria constitutiva do modo de ser particular que os objetos têm na mente

conforme são irredutíveis apenas às modificações mentais do sujeito pensante. Tomados em si

mesmos como objetos no intelecto, isto é, como aquilo que está diante da consciência, e nesse

sentido é alguma coisa de distinta do sujeito, os objetos seriam, por isso, algo de real e, sendo

assim, possuiriam o que Descartes chama de realidade objetiva – conceito esse que pode ser

compreendido como o tipo de realidade que a coisa exibida no intelecto como um objeto possui.

De acordo com isso, é notório que a noção de ideia desenvolvida por Descartes guarda

uma ambiguidade. Ela apresenta como sendo o mesmo fenômeno dois aspectos muito distintos,

a saber, [a] o fato de ser uma modificação da mente que consiste num ato mental com uma

1 “[...] tanquam rerum imagines [...]” (AT VII, 37).

Page 14: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

14

função específica; e [b] o fato de ser a determinação de um objeto no pensamento, resultado do

ato mental anteriormente referido. Dito de outra maneira, Descartes sugere na Exposição

Geométrica presente nas Respostas às Segundas Objeções que a ideia, além de ser a exibição

de um conteúdo como objeto na consciência2, é simultaneamente a isso o ato da mente que

torna o sujeito consciente de alguma coisa: “Pelo nome de ideia, entendo esta forma de cada

um de nossos pensamentos por cuja percepção imediata temos conhecimento desses mesmos

pensamentos” (AT VII, 160; AT IX, 124; CP, 179)3. Dessa forma, a ideia é um gênero de

pensamento que encerra ambiguamente em seu modo de ser dois aspectos, a saber, é ao mesmo

tempo o ato da mente que exibe um objeto na consciência, isto é, o ato pelo qual o sujeito

percebe alguma coisa como objeto no pensamento; e é também um conteúdo determinado

apresentado na consciência que é visado pela operação mental perceptiva como algo de

diferente e irredutível a ela: um objeto no pensamento. Por ser representação de alguma coisa

determinada, o objeto representado consiste, ao que parece, numa realidade particular no

pensamento que é irredutível à (porém não totalmente independente da) simples operação

mental que a apresenta na consciência. Como visto, a essa realidade particular que os objetos

têm no pensamento, Descartes dá o nome de realidade objetiva. É válido considerar, então, que

a ideia é pensada por Descartes tanto como ato mental, quanto como conteúdo mental que

possui uma realidade distinta daquela do ato porque, pelo menos ao que tudo indica, não se

reduz a ele.

Com isso em vista, é legítimo questionar qual seria exatamente o status desse objeto

exibido na consciência, bem como sua relação com o ato mental que o apresenta no intelecto.

A referida irredutibilidade do objeto ao ato que o disponibiliza no pensamento possibilita

diferentes interpretações acerca do que é isso o conteúdo das ideias: trata-se de uma entidade

representativa (independente), ou do término do ato mental como um rótulo designador de

alguma coisa? Levando-se isso em consideração, é legítimo investigar o que Descartes quer

defender quando define a ideia como o ato da mente que apresenta um objeto para a consciência;

objeto esse que é alguma coisa de real. Por real, Descartes sugere que se trata de algo de certa

2 Cf. Exposição Geométrica, definição III: AT VII, 161; AT IX, 124; CP, 179. 3 É preciso notar que no original em latim, a palavra ‘conhecimento’ empregada nesse trecho significa mais diretamente ‘consciência’ em português. A versão francesa e a tradução brasileira (realizada a partir do francês e citada acima) é que a traduzem por conhecimento. Desse modo, acredita-se ser legítimo afirmar que é sugerido por Descartes que a ideia é o ato, ou a forma, do pensamento que torna o sujeito consciente de alguma coisa. Eis a passagem original: “Ideae nomine intelligo cujuflibet cogitationis formam illam, per cujus immediatam perceptionem ipsius ejusdem cogitationis conseium sum [...]” (AT VII, 160 – grifo meu).

Page 15: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

15

maneira autônomo com relação ao ato. Mas se é o ato que disponibiliza o conteúdo para o

pensamento como um objeto, então parece que ele depende do ato para ser exibido. O que

significa ser real, ou conter alguma realidade no pensamento, nesse caso, e ser simultaneamente

o resultado de uma operação do entendimento? As respostas para essas indagações implicam

concepções distintas no que concerne à percepção das coisas. Dependendo de como se

interpreta o que foi colocado, esse conteúdo mental apresentado na ideia e a realidade a ele

atribuída tomam dimensões ontológicas distintas que conduzem aos questionamentos,

anteriormente já postos, sobre se ele constitui um intermediário mental através do qual o sujeito

percebe, ou conhece as coisas exteriores (ou distintas) a ele, ou não. Eis aí por que é possível

reconhecer na base da compreensão cartesiana do que é a ideia a origem da problemática acerca

do representacionalismo ou do realismo direto da percepção das coisas exteriores ou

independentes do pensamento.

Reconhece-se nessa tese que o trabalho de análise conceitual de textos de um autor da

história da filosofia, a fim de elucidar alguma questão, pode ser melhor realizado quando

confrontado, ou pelo menos analisado em conjunto, com um debate que lhe diz respeito. Isso

significa que examinar algum problema constante da filosofia de um autor sob a lógica da

discussão que o engendra ou que ele suscita é uma maneira de melhor destrinchá-lo e explicitá-

lo. E faz-se isso tendo em vista a formulação de hipóteses de solução que possam ser mais

consistentes à medida que, dessa forma, diferentes aspectos da questão são trabalhados segundo

um desenvolvimento mais amplo.

Em consonância com essa perspectiva pretende-se discutir a referida questão acerca do

representacionalismo ou do realismo direto na teoria da percepção de Descartes a partir do

exame de parte da polêmica entre Malebranche e Arnauld (que são dois importantes filósofos

da tradição cartesiana). Polêmica acerca de aspectos concernentes à teoria da percepção, à

natureza das ideias e ao papel que elas ocupam no processo perceptivo. É preciso que se situe

e se justifique a escolha da polêmica Malebranche-Arnauld como elucidativa de um problema

referente à filosofia cartesiana. Considera-se nessa tese que a base da mencionada polêmica

seja a interpretação feita por Malebranche em De la Recherche de la Vérité (livro III, parte II,

capítulos 1-6) acerca de concepções cartesianas relativas às ideias, sua natureza e seu papel na

percepção que o permite elaborar uma teoria aparentemente muito distinta daquela de

Descartes. Diz-se aqui aparentemente muito distinta, pois essa é a leitura que motiva Arnauld

em Des Vraies et des Fausses Idées a inaugurar a polêmica com Malebranche. Arnauld,

colocando-se como representante e detentor da verdadeira leitura de Descartes, reage ao

Page 16: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

16

trabalho de Malebranche como sendo resultado de uma má compreensão acerca do que a teoria

cartesiana diz sobre percepção e ideia.

Segundo a interpretação que se seguirá, ocorre que Malebranche, na referida obra,

estabelece uma compreensão acerca da natureza das ideias que dá a elas o status ontológico de

uma entidade representativa que é realmente distinta da mente à medida que não depende de

nenhuma operação do pensamento para se constituir como tal. Trata-se, nesse sentido, de uma

terceira entidade e não do que poderia ser o término de um ato mental justamente porque ela é

representativa de coisas distintas da própria mente. Segundo Malebranche, como se verá no

capítulo 2, as representações de coisas, ou seja, o que ele entende por ideias, não podem ser

dependentes da mente, não podem constituir-se em operações mentais porque essas operações,

enquanto modificações da mente, apenas são capazes de disponibilizar o que é a própria mente,

mas nada de distinto dela. Nesse sentido, as ideias – como representações de coisas externas,

coisas que não são as próprias operações da mente (coisas que não se reduzem a afecções

mentais), mas ao contrário, são objetos para essa mente – não podem ser reduzidas a atos da

mente e, por esse motivo, vão ser consideradas por Malebranche como entidades abstratas

independentes da mente. As ideias assim concebidas constituem-se em entidades abstratas que,

como se verá, estão em Deus e são por ele disponibilizadas às mentes finitas no processo

perceptivo, consistindo, dessa maneira, naquilo que é imediatamente percebido pelo sujeito. E,

em sendo assim, a teoria malebranchista da percepção conta com uma terceira coisa entre a

mente e a coisa externa percebida que é um objeto que intermedeia a percepção dessas coisas à

medida que ele é uma entidade representativa espiritual que, diferentemente das coisas

materiais, pode afetar a mente dando a ela algo a perceber. Note-se que, por isso, o acesso que

o sujeito tem às coisas externas, segundo Malebranche, nunca é direto, mas é dado por uma

entidade abstrata representativa. Desse modo, é legítimo falar que a teoria da percepção

malebranchista é de cunho representacionalista.

O que está em jogo no interesse de se examinar a teoria malebranchista da percepção

frente a de Descartes é reconhecer que é possível interpretá-la como uma resposta de

Malebranche ao caráter ambíguo da definição que Descartes concebe para a noção de ideia.

Nesse sentido, diante de uma concepção de ideia que parece envolver uma noção de objeto

representativo que é, de alguma maneira, irredutível às operações da mente, Malebranche

ressalta esse caráter independente e autônomo. E, assim, dá a ele o status de uma entidade, com

realidade e existência próprias, distinta da mente (e de suas operações) cuja função é ser o

substituto representativo capaz de tornar o sujeito consciente de alguma coisa de distinta dele

Page 17: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

17

mesmo. Como se pode ver, Malebranche ensaia a superação da ambiguidade verificada no

pensamento de Descartes frisando um dos aspectos relacionados às ideias, a saber, aquele que

se pode chamar de a realidade objetiva das ideias, isto é, aquele que é propriamente seu

conteúdo representativo. E a partir desse realce, ele propõe que as ideias, propriamente falando,

como já dito, tratam-se de seres representativos realmente distintos e independentes da mente.

De modo que as ideias não são, segundo ele, resultantes da operação mental perceptiva, mas

elas são, em realidade, como ficará claro ao longo do capítulo 2, enquanto entidades abstratas,

modelos ou arquétipos em Deus que representam as coisas criadas e que são disponibilizadas

pela vontade divina para a percepção e conhecimento das mentes finitas.

Assim, para reforçar o dito mais acima, a teoria da percepção de Malebranche admite

que a percepção imediata realizada pela mente finita é sempre das ideias, mas não das coisas

representadas por essas ideias. Dessa forma, o acesso às coisas é sempre mediado por ideias e

as coisas mesmas não são diretamente percebidas. Com isso, a teoria de Malebranche formula

uma concepção representacionalista da percepção a partir do entendimento e da elaboração

particular de uma noção de objeto representativo que é herdada da teoria cartesiana das ideias.

E é por esse motivo que ela é fonte importante para a discussão da questão da percepção na

filosofia de Descartes.

Porém, como sabido, Arnauld é um grande crítico da interpretação realizada por

Malebranche e na sua referida obra dedica-se a atacá-la como estando assentada em princípios

falsos que conduzem Malebranche à defesa de absurdos acerca da percepção. Esses absurdos

encontram-se na elaboração malebranchista de uma noção de ideia como entidade

representativa realmente distinta e independente da mente, o que geraria, segundo Arnauld, uma

consequência disparatada para a teoria da percepção. Essa consequência seria a admissão de

um tipo de representacionalismo como o de Malebranche, que é entendido por Arnauld como

radical.

Nesse sentido, é legítimo considerar que Arnauld realiza sua crítica à teoria

malebranchista tendo como foco a destruição dos pressupostos que o levam a conceber as ideias

como entidades representativas distintas das operações da mente. Isso porque, segundo se pode

compreender, eliminado esse entendimento acerca das ideias, seria possível evitar sua

consequência representacionalista radical, que seria, segundo Arnauld, a total cisão entre a

mente finita e o mundo externo criado por Deus. A leitura que Arnauld faz de Malebranche

entende que as formulações malebranchistas admitiriam que Deus cria as mentes finitas, une-

as aos corpos e, no entanto, não habilita esses compostos de corpo e mente a experimentarem

Page 18: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

18

diretamente o ambiente que os circundam, pois eles estariam presos à necessidade de entidades

representativas como intermediárias da percepção que teriam das coisas criadas. Segundo

Arnauld, isso repugna um certo princípio de economia da ação, ou princípio da simplicidade

das vias de Deus, de modo que deve ser combatido como um mau raciocínio .

A questão relativa ao pensamento de Arnauld que interessa diretamente ao seguimento

argumentativo dessa tese diz respeito a duas coisas: [a] uma é saber se a crítica de Arnauld ao

representacionalismo de Malebranche consiste numa crítica a toda e qualquer forma de

representacionalismo da percepção, ou se refere-se apenas àquele de Malebranche; [b] a outra

é pensar sobre os procedimentos argumentativos de Arnauld, contra Malebranche, o quanto eles

implicam uma leitura da teoria cartesiana da percepção que enviesa, ou pende, a concepção de

ideia mais para o que seria um ato representativo do pensamento. E, em sendo assim, isso

promoveria um esvaziamento do conceito cartesiano de realidade objetiva que poderia permitir

a interpretação de Arnauld como um defensor do realismo direto na percepção.

Procura-se mostrar nessa tese que a defesa do realismo direto na filosofia de Arnauld

não é uma consequência óbvia da sua crítica ao representacionalismo de Malebranche, pois, ao

que tudo indica, o foco da crítica arnaldiana é a concepção de ideia como entidade

representativa independente da mente. Desse modo, é possível encontrar em Arnauld uma

defesa de um representacionalismo, isto é, a defesa de que entre a mente que percebe e a coisa

percebida há uma representação, dada numa ideia, que poderia ser um modo da própria mente,

através do qual as coisas externas são indiretamente percebidas. Entretanto, diante da análise

de alguns defensores do realismo direto na filosofia de Arnauld, em função de sua defesa de

que percepção e ideia consistem no mesmo fenômeno mental, considerar que a ideia é um meio

segundo o qual se percebe alguma coisa seria nada mais que afirmar que é pela percepção que

se percebe as coisas. Isso mostraria um grau de trivialidade nas formulações potencialmente

representacionalistas de Arnauld que sugeriria, então, apenas a admissão do vocabulário

representacionalista disponível entre seus interlocutores, mas não implicaria propriamente uma

concepção representacionalista da percepção. Desse modo, ainda que não se apresente uma

posição definitiva acerca dessas questões, fica insinuado o seguinte: Arnauld, interessado em

criticar as elaborações de Malebranche acerca das ideias e da percepção, procura valorizar o

aspecto da operação mental presente na concepção cartesiana de ideia, isto é, a ideia tomada

como um certo tipo de ato da mente. A sugestão que se leva a cabo compreende que Arnauld

valoriza a noção de ideia como ato mental e, de certa maneira, ignora a complexidade do

conceito cartesiano de realidade objetiva ao sinalizar que a noção de conteúdo apresentado na

Page 19: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

19

consciência deve, ou pode, ser reduzida, ou explicada, pela operação mental da percepção. É

legítimo compreender que Arnauld, ao fazer isso, procura dirimir a ambiguidade da noção

cartesiana de ideia a partir da qual Malebranche retira suas consequências. Mas isso abre um

espaço interpretativo que conduz muitos comentadores a uma leitura realista direta da

interpretação de Arnauld acerca da percepção. Tendo isso em vista, diante da dificuldade acerca

da interpretação de Arnauld sobre um dos fundamentos da teoria da percepção de Descartes, a

saber, a noção de realidade objetiva, se anuncia a necessidade de um aprofundamento de sua

investigação no próprio pensamento de Descartes.

Com esse debate em vista, retoma-se como centro dos interesses a teoria cartesiana da

percepção para propor sobre ela uma leitura mais elaborada a partir, fundamentalmente, da

análise da discussão com Caterus nas Respostas às Primeiras Objeções. Procura-se demonstrar,

então, a partir da análise dos conceitos de ser objetivo e de realidade objetiva, que a

ambiguidade da definição cartesiana de ideia não deve ser escamoteada, como se sugere que

foi feito por Malebranche, por um lado, e Arnauld, por outro lado. Isso não deve ocorrer porque

faz parte da estratégia argumentativa de Descartes, ao explicar o que é a percepção, concebê-la

como um fenômeno mental que se processa a partir de uma operação do pensamento de um tipo

particular cuja função é apresentar à consciência alguma coisa como objeto, isto é, como

distinto do próprio pensamento, apesar de esse objeto ocorrer no próprio pensamento. Nesse

sentido, reforçar a ambiguidade da definição de ideia, apesar das dificuldades que isso

engendra, é retomar a busca por uma explicação do que é a percepção que parece evitar posições

possivelmente extremadas. Diz-se isso porque se ideia é um ato mental que exibe alguma coisa

como objeto na consciência, pode-se tanto recusar uma interpretação semelhante a de

Malebranche, isto é, do tipo que reifica a noção de conteúdo mental e o posiciona no intelecto

divino – o que parece muito anti-intuitivo; quanto evitar que se conceba a ideia como um mero

ato mental de apreensão direta das coisas externas – o que parece muito problemático

considerando determinados aspectos da filosofia de Descartes, como a distinção real entre a

mente e o corpo, por exemplo.

Segundo essa perspectiva, procura-se elaborar acerca da filosofia de Descartes que sua

concepção de ideia envolve um conceito de realidade objetiva que se aplica ao tipo de ser ou

de realidade que os objetos possuem no pensamento enquanto eles estão lá como representação

de coisas. Em favor disso, propõe-se uma interpretação de que o ser objetivo exibido pelas

ideias é um conteúdo no pensamento, um conjunto de propriedades determinadas que designam

um objeto, que, por isso, tem grau de realidade e, portanto, não é um “puro nada” (AT VII, 103;

Page 20: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

20

AT IX, 82)4: é algo que está na mente, mas não depende da mente. Isso significa que o conceito

de realidade objetiva é compreendido como a realidade que o objeto, ou o ser objetivo

apresentado pela ideia, tem no pensamento, que é irredutível à mera modificação mental, ou

seja, guarda alguma independência com relação à operação da mente que o exibe, mas que

depende da mesma operação para constituir-se como tal.

Tomado dessa maneira, o conceito de realidade objetiva dota de consistência ontológica

o ser objetivo apresentado pela ideia à consciência. Desse modo, em oposição ao “puro nada”

de um ser objetivo entendido como o fim de um ato de percepção (que pode ser compreendido

como uma designação extrínseca à coisa mesma designada, tal qual uma espécie de ser de razão,

como supõe Caterus), o ser objetivo para Descartes, como se pode compreender, é alguma coisa

de real e possui um modo de ser no intelecto realmente distinto daquele modo de ser das coisas

em sua realidade formal. Nesse ponto, ser objetivo diferencia-se tanto da própria realidade

formal do pensamento (apesar de constitui-se a partir dela), quanto da realidade formal das

coisas que representam. E é nesse sentido que se quer defender, em última análise, que a teoria

cartesiana da percepção envolve um tipo de representacionalismo à medida que compreende

que todo processo perceptivo envolve necessariamente a exibição de um ser objetivo, de um

objeto, no pensamento que possui grau de realidade e que se diferencia em natureza tanto do

puro ato perceptivo, quanto da própria coisa percebida.

Entretanto, não se trata aqui de uma defesa de um tipo de representacionalismo como o

de Malebranche, que pressupõe que esse ser objetivo, por assim dizer, são entidades

independentes e realmente distintas da mente que estão, por isso, fora da mente (mais

precisamente em Deus). Considera-se nessa tese que o modelo representacionalista de

Malebranche encerra uma radicalidade da qual Descartes não comunga. Essa radicalidade

estaria no fato de, pelas ideias estarem em Deus, a percepção que as mentes finitas possuem

delas permitiria apenas a percepção direta do que em Deus representa as coisas criadas. A

percepção do mundo, então, seria apenas inferencial, isto é, uma conclusão de que o que se

passa no mundo é o caso porque é assim que Deus, perfeito e veraz, disponibiliza as ideias para

serem pensadas pelas mentes finitas. Trata-se aí de uma relação íntima entre o intelecto finito

e Deus na qual as coisas criadas parecem ocupar um lugar secundário. Ora, o

representacionalismo cartesiano, à medida que compreende que as ideias são um fenômeno da

substância pensante, situa no sujeito todo o processo perceptivo.

4 « […] pur rien […] » (AT IX, 82).

Page 21: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

21

É razoável apontar que o alcance dessa compreensão acerca de Descartes está

relacionado com o desenvolvimento argumentativo proposto por Arnauld na sua crítica a

Malebranche. O raciocínio arnaldiano evidencia aspectos e consequências teóricas ligadas à

tese de que as ideias são terceiras entidades que são capazes de esclarecer, de certa forma, os

objetivos de Descartes na formulação de uma teoria da percepção. Nesse sentido, acredita-se

plausível pensar que a concepção cartesiana de percepção consiste num representacionalismo

moderado, diferente do de Malebranche. Isso porque, ainda que o acesso às coisas dependa da

maneira pela qual elas são exibidas na consciência (via um ser objetivo com grau de realidade

objetiva, ou seja, via um conjunto de propriedades determinadas que designam um objeto), o

sujeito estabelece uma relação perceptiva não com entidades representativas em Deus, mas com

as coisas criadas no mundo, mesmo que indiretamente.

Sendo assim, expor, elaborar e avaliar quais são os elementos da teoria cartesiana da

percepção; perguntar como e baseado em que supostos problemas Malebranche empreende uma

releitura de concepções de Descartes; e indagar quais são os pontos centrais do ataque realizado

por Arnauld à teoria malebranchista são o foco dos estudos e das análises que se pretende

desenvolver nessa tese. Tudo isso, pelas razões que se seguirão, tem por finalidade apresentar

como hipótese de solução para a questão do representacionalismo ou do realismo direto

referente à teoria cartesiana uma interpretação representacionalista (de tipo moderado) da

percepção.

Por fim, é interessante que se detalhe que a tese é dividida em quatro capítulos. No

primeiro procura-se expor as preliminares de uma teoria cartesiana da percepção em que

apresenta-se, de modo geral, as concepções de Descartes sobre a natureza e a estrutura das

ideias contextualizadas no sistema cartesiano. As principais preocupações desse capítulo estão

em definir adequadamente o que significa ser a ideia representação de coisas e em que medida

isso não constitui nenhum tipo de reprodutibilidade imagética, bem como apresentar a via

cartesiana de análise das ideias como ela aparece exposta na Terceira Meditação.

O segundo capítulo dedica-se ao exame da teoria da percepção de Malebranche, isto é,

dedica-se à exposição e à explicação dos principais conceitos e teses dessa teoria, bem como

sua construção e coerência argumentativa. Estuda-se nele as razões que conduzem Malebranche

à defesa tanto de que as ideias são entidades representativas independentes e realmente distintas

da mente, quanto de que essas ideias estão em Deus. Realiza-se também um esforço de

compreensão do tipo de representacionalismo que decorre das teses malebranchistas e avança

Page 22: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

22

-se a leitura de que é um representacionalismo radical no qual a relação perceptiva das mentes

finitas se dá exclusivamente com Deus.

O terceiro capítulo volta-se para a análise da crítica de Arnauld à teoria da percepção de

Malebranche. Notadamente a crítica dele à concepção de que as ideias são entidades

representativas distintas e independentes das operações mentais. Para isso explicita-se a

interpretação de Arnauld segundo a qual os pressupostos malebranchistas estão baseados em

princípios espúrios herdados dos preconceitos da infância. Além disso, analisa-se as definições

de Arnauld acerca dos elementos concernentes à teoria da percepção que, segundo ele, precisam

ser esclarecidos, uma vez que aqueles de Malebranche são falhos em função da base em que se

assentam. Examina-se também alguns argumentos contrários à razoabilidade da tese de que há

entidades representativas. E, por fim, tematiza-se as consequências das críticas à Malebranche

no que diz respeito ao representacionalismo e ao realismo direto da percepção. Como já dito

anteriormente, apesar de não se determinar nesse capítulo qual seria a posição defendida por

Arnauld, sugere-se que, em nome da oposição à teoria malebranchista, Arnauld acaba por

esvaziar o conceito cartesiano de realidade objetiva, o que mostra que Arnauld não detém uma

interpretação definitiva e sem problemas sobre Descartes, o que pode dar margem para uma

interpretação realista direta tanto de sua filosofia, quanto da filosofia de Descartes.

Por fim, o quarto capítulo, o último dessa tese, é aquele que, de posse da discussão

alargada pela polêmica Malebranche-Arnauld na qual os termos do debate sobre a percepção

são melhor elaborados, vem apresentar, a partir de uma análise da natureza do ser objetivo

exibido pela ideia no ato representativo, uma leitura da teoria cartesiana da percepção. Segundo

ela, a percepção consiste numa ocorrência mental que congrega simultaneamente tanto um ato

mental, quanto um conteúdo mental que, apesar de dependente, de certa forma, desse ato,

consiste em alguma coisa de real à medida que é a exibição de um conjunto de propriedades

determinadas que não é nem dependente, nem redutível à mente. O sentido dessa análise da

teoria cartesiana é mostrar que a ambiguidade na definição de ideia não é propriamente uma

imprecisão, ou impasse, de Descartes, mas é a forma que ele encontra, ao tratar de ideias como

um fenômeno perceptivo concernente, pelo menos, às mentes finitas dos homens, de evitar

posições extremas que pudessem comprometer a compreensão do que é a percepção. Nesse

sentido, por um lado, Malebranche e Arnauld aparecem como possíveis representantes dessas

posições extremadas que Descartes quereria evitar; e, por outro lado, eles aparecem como

aqueles que, tendo esgarçado os limites de compreensões possíveis acerca da percepção a partir

da teoria de Descartes, contribuem para o esclarecimento de um sentido mais próprio dessa

Page 23: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

23

teoria. Por essas, entre outras, razões é que no último capítulo acredita-se ser possível admitir

um representacionalismo na teoria da percepção de Descartes. Não do tipo malebranchista, mas

um tipo mais moderado, que mantém o processo perceptivo como um processo mental, mas

que não esquece, como poderia ocorrer segundo uma certa interpretação de Arnauld, que se

trata de um processo mental que envolve algo de autônomo e que é o meio pelo qual o sujeito

pode acessar as coisas externas a si mesmo.

Page 24: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

24

1 PRELIMINARES DA TEORIA CARTESIANA DAS IDEIAS

1.1 A ideia e seu caráter representativo

A teoria cartesiana das ideias aparece nas Meditações Metafísicas no bojo da sequência da

ordem do processo meditativo que leva Descartes a dividir e classificar seus pensamentos em

algumas categorias com o propósito de desvendar entre essas a quais se aplicam valores de

verdade: “...cumpre aqui que eu divida todos os meus pensamentos em certos gêneros e

considere em quais destes gêneros há propriamente verdade ou erro.” (AT VII 36-37; CP 109,

§5)5.

Entre os pensamentos, Descartes reconhece que “[...] alguns são como imagens das

coisas, e só àqueles convém propriamente o nome de ideia [...]” (AT VII 37; CP 109, §6)6,

alguns outros possuem outros tipos expressos como vontades ou afecções, que acompanham as

ideias como atitudes mentais adicionais, como, por exemplo, quando diante da ideia de um

objeto determinado o sujeito a ela se dirige para querer, não querer, temer, amar etc.; e, por fim,

há aqueles pensamentos que estabelecem relações de aplicação entre as ideias e o mundo

externo7 ao afirmar ou negar que se trata do caso, e esses são os chamados juízos. Dessa forma,

os pensamentos são divididos por Descartes no que parecem compor três gêneros: ideias,

metaforicamente apresentadas no texto como imagem; atitudes mentais (vontades ou afecções)

e juízos, que são ambos atos que o sujeito acrescenta às ideias. É importante ressaltar aqui que

os juízos também são atitudes mentais (de afirmar ou negar), visto que são atos adicionados

pelo sujeito às ideias, embora a divisão apresentada pareça inclui-los numa categoria distinta.

Isso significa que, de fato, existem apenas dois gêneros de pensamento, que são as ideias e as

atitudes mentais; e que os juízos são destacados na apresentação dessas últimas porque

constituem um tipo de ato mental distinto dos outros à medida que ele envolve a possibilidade

de ser enganoso.

Com essa explanação, Descartes cumpre a tarefa de classificação das distintas formas

de pensamento do eu e identifica entre elas a que precisamente admite verdade ou falsidade

5 « […] il faut ici que je divise toutes mes pensées en certains genres, et que je considère dans lesquels de ces genres il y a proprement de la vérité ou de l’erreur » (AT IX, 29). 6 « […] quelques-unes sont comme les images des choses, et c’est à celles-là seuls que convient proprement le nom d’idée […] » (AT IX, 29). 7 O juízo é o ato de pensamento que, ao afirmar ou negar o conteúdo de uma ideia, lança-a para algo de exterior ou independente do pensamento de modo que quando é conforme a isto, o juízo é verdadeiro, e quando não é, o juízo é falso. Daqui por diante esta noção de projeção para algo que é independente do pensamento será sintetizada em fórmulas como “o juízo concorda (ou discorda) com algo de externo, ou independente, ou com o mundo etc”.

Page 25: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

25

formal: o juízo. Entretanto, o bom desenvolvimento da exposição exige o aprofundamento da

analogia com as imagens que está na base da definição de ideia para que, por um lado, não se

incorra em erros grosseiros acerca da definição de ideia e, por outro lado, seja possível

compreender as especificidades e inovações de Descartes no que concerne à teoria das ideias e

sua influência em contextos fundamentais do sistema cartesiano.

Afirmar que as ideias são como imagens remete imediatamente à noção de imagem

pictórica, que são as imagens compostas por características das coisas corporais sensíveis que

guardam semelhança com o mundo externo sensível. Contudo, parece que o objetivo de

Descartes não é o de identificar ideia a imagens pictóricas, mas de meramente trazer à baila o

aspecto relevante do conceito de imagem para a construção da concepção de ideia, a saber, o

fato de o objeto de uma imagem estar ali visando o original ou a outros do mesmo tipo: esses

aspectos podem ser resumidos ao que se entende por representação. Dessa forma, ao dizer que

a ideia é como imagem, Descartes não quereria assumir os componentes sensíveis e particulares

presentes numa pintura como correlatos aos conteúdos das ideias, mas apenas estaria

estabelecendo com a imagem pictórica uma analogia para a função intencional da ideia. Em

favor dessa interpretação, segue a citação de parte das Respostas às Terceiras Objeções (a

Thomas Hobbes) em que Descartes, além de contestar a identificação entre imagem pictórica e

ideia proposta pelo objetor, oferece um argumento que será explorado logo em seguida:

[...] [meu crítico] deseja que o termo ‘ideia’ seja tomado como se referindo

simplesmente às imagens das coisas materiais pintadas na imaginação corpórea; e,

caso isso seja concedido, torna-se fácil para ele provar que não pode haver de um anjo

ou de Deus nenhuma ideia apropriada. Entretanto, eu deixo bem claro em diversos

lugares do livro, e nessa passagem em particular, que eu estou tomando a palavra

‘ideia’ como se referindo ao que quer que seja imediatamente percebido pela mente.

[...] Eu empreguei a palavra ‘ideia’ por se tratar de um termo filosófico padrão

utilizado para se referir às formas da percepção pertencentes à mente divina, ainda

que reconheçamos que Deus não possua nenhuma imaginação corpórea [...] (AT VII

181)8.

8 « Par le no d’idée, il veut seulement qu’on entende ici les images des choses matérielles dépeintes en la fantaisie corporelle ; et cela étant supposé, il lui est aisé de montrer qu’on ne peut avoir aucune propre et véritable idée de Dieu ni d’un ange ; mais j’ai souvent averti, et principalement en ce lieu-là même, que je prends le nom d’idée pour tout ce qui est conçu immédiatement par l’esprit. […] et je me suis servi de ce nom [idée], parce qu’il était déjà communément reçu par les philosophes, pour signifier les formes des conceptions de l’entendement divin, encore que nous ne reconnaissions en Dieu aucune fantaisie ou imagination corporelle […] » (AT IX, 141).

Page 26: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

26

Como se pode notar, Descartes recusa a identificação entre imagem corpórea e ideia ao

aludir à definição dessa última como aquilo que é imediatamente percebido pela mente, o que

superficialmente admite ser lido como menção à variedade de conteúdos pensados que

extrapola a forma da imagem pictórica. Em suma, esse argumento de Descartes poderia ser

reconstruído da seguinte maneira: 1) tudo aquilo que é imediatamente percebido pela mente é

uma ideia; 2) algumas coisas que são imediatamente percebidas pela mente não são figurativas,

como, por exemplo as ideias de coisas imateriais; 3) se há ideias de coisas que não são

figurativas, então a natureza da ideia não pode ser reduzida à exibição de conteúdos pictóricos.

Todavia, essa argumentação ainda não seria suficiente para esclarecer o entendimento de

Hobbes do termo ideia porque não resolve justamente o que aparece como crítica nessa parte

das Terceiras Objeções, a saber, que a possibilidade de as ideias serem estritamente figurativas

constitui um problema grave para o andamento da ordem das razões que leva à prova da

existência de um Deus veraz a partir de uma ideia clara e distinta. O raciocínio de Hobbes parte

da analogia com a imagem para a concepção de ideia como figurativa e toma essa compreensão

como uma dificuldade aniquiladora para a prova da existência de Deus.

Em função disso, Descartes necessita oferecer um argumento mais forte para descontruir

a associação hobbesiana entre ideia e imagem corpórea. Esse argumento é o que recorre à ideia

como termo filosófico padrão para se referir aos conteúdos presentes no intelecto divino. A

partir desse recurso, Descartes é capaz de mostrar que o termo ideia possui uma história a partir

da qual está sendo realizado seu emprego moderno, o que significa que o uso do termo não é

aleatório e, mais importante, conserva alguma relação com o emprego original. Indicar que a

aplicação do termo ideia não é aleatória tem a função de deixar claro para Hobbes que não se

pretende nenhuma reinvenção do significado do termo, mas apenas a atualização (ou

modernização) do seu significado tradicional. De acordo com Alanen (2003, p.118-119), o

interesse de Descartes no uso do termo ideia remonta ao uso desse na tradição agostiniana, que

o restringe ao divino: ideias são as formas puras e inteligíveis presentes no intelecto divino

através das quais Deus conhece todas as coisas. É justamente esse caráter puramente inteligível

das ideias do intelecto divino que interessa Descartes no momento em que decide aplicar esse

termo aos conteúdos do intelecto humano9, já que esses conteúdos não são abstraídos da

experiência sensível, e são apenas representações de objetos (materiais ou imateriais) possíveis

tais quais as formas do intelecto divino são modelos das coisas atualmente existentes. Com isso,

9 Além de Lilli Alanen (2003), Michael Ayers (1998), Nicholas Jolley (1990) e Anthony Kenny (1968) destacam a mudança de sentido no uso do termo ideia realizado por Descartes e que se verifica no emprego do termo para tratar daquilo que é pensado pela mente humana.

Page 27: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

27

Descartes pode descontruir a concepção de Hobbes sobre o caráter necessariamente figurativo

das ideias ao mostrar que o termo carrega uma atualização do seu significado tradicional

responsável por garantir-lhe a marca do que é inteligível e universal. Ainda que para Descartes

aparentemente nem toda ideia seja do inteligível ou do universal, o que se considera aqui é que

ele, ao referir-se ao termo tradicional ideia, admite que nem todas as ideias são figurativas.

Ainda no propósito de esclarecimento do sentido em que a analogia com a imagem não

trata de nenhuma dependência entre ideia e imagem corpórea, é preciso considerar os estudos

de Descartes sobre a visão na Dióptrica. O principal argumento aí presente contra a tese de que

a ideia depende de uma imagem pictórica como meio de exibição de conteúdos, ou seja, a tese

de que a ideia é figurativa, está calcado na distinção real entre a mente e o copo. A imagem

corpórea formada no cérebro através da ação dos sentidos não é responsável por causar a

produção das ideias de sensação percebidas pela mente como que por transmissão de suas

características imagéticas ao espírito. O processo de causalidade mecânica que explica a

formação da imagem no fundo do olho e sua posterior transmissão ao cérebro não pode ser o

mesmo que explica a produção de sensações numa substância de natureza completamente

distinta da natureza corpórea e sobre a qual as leis da mecânica não possuem qualquer efeito. É

nesse sentido que Descartes afirma que não é a imagem presente no nosso cérebro a causa da

ideia de sensação de visão exibida na alma como se esta possuísse olhos com os quais pudesse

ver e apreender a imagem pintada no cérebro:

Ora, ainda que essa pintura, passando assim até o interior de nossa cabeça, retenha

sempre alguma coisa da semelhança dos objetos dos quais ela procede, não se deve,

todavia, como eu já vos fiz muito suficientemente entender, deixar-se persuadir que

seja por meio dessa semelhança que ela faça que nós o sintamos, como se existisse,

novamente, outros olhos em nosso cérebro, com os quais nós pudéssemos perceber

[…] (AT VI, 130; DE, 164)10.

Por meio dessa analogia com a visão, Descartes pode mostrar que o processo de produção das

ideias de sensação difere do processo de formação das imagens, pois tratam-se de processos de

naturezas distintas. E isso fica ainda mais claro logo em seguida quando Descartes atribui a

constituição das ideias de sensação a uma instituição natural, tornando, segundo essa

10 « Or, encore que cette peinture, en passant ainsi jusques au dedans de notre tête, retienne toujours quelque chose de la ressemblance des objets dont elle procède, il ne se faut point toutefois persuader, ainsi que je vous ai déjà tantôt assez fait entendre, que ce soit par le moyen de cette ressemblance qu’elle fasse que nous le sentons, comme s’il y avait derechef d’autres yeux en notre cerveau, avec lesquels nous la pussions apercevoir » (AT VI, 130 ; FA, I, 699)

Page 28: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

28

perspectiva, mais patente sua rejeição à tese hobbesiana: “[...] são os movimentos pelos quais

a pintura é composta que, agindo imediatamente contra nossa alma, uma vez que ela está unida

a nosso corpo, são instituídos pela natureza para fazer a alma ter tais sensações” (AT VI, 130;

DE, 164)11. A perspectiva da instituição natural trazida por Descartes tem por função explicar

a relação existente entre o conteúdo das ideias de sensação e a ação dos objetos externos sobre

os órgãos dos sentidos sem justamente apelar para o modelo de transmissão mecânica, do corpo

para a mente, das características físicas da sensação produzida no corpo. As ideias de sensação

guardam sim alguma relação com o que ocorre no corpo, entretanto seu conteúdo não pode ser

explicado a partir da causalidade mecânica que explica a formação da imagem no cérebro, por

exemplo. Uma ideia de sensação exprime, então, em última instância, o que se passa no corpo

porque se trata de uma instituição natural que determinados movimentos nos órgãos dos

sentidos provoquem tais e tais ideias na mente. Descartes trata claramente dessa irredutibilidade

do conteúdo das ideias às imagens corpóreas numa passagem de suas Notae in programma em

que explica o sentido da natureza inata das ideias:

[...] nada pode vir dos objetos exteriores até nossa alma, por meio dos sentidos, que

não alguns movimentos corporais; mas nem esses movimentos mesmos, nem as

figuras que deles provêm são concebidos por nós tais como eles o são pelos órgãos

dos sentidos, como eu expliquei amplamente na Dióptrica. De onde se segue que

mesmo as ideias do movimento e das figuras estão naturalmente em nós; e por uma

razão mais forte as ideias da dor, das cores, dos sons e de todas as coisas semelhantes

[a elas] devem-nos ser naturais a fim de que nosso espírito, por ocasião de certos

movimentos corporais com os quais elas não possuem nenhuma semelhança, possa

representá-las (AT VIIIB, 358-359; FA, III, 808-809)12.

Ora, como visto, a constituição da imagem pintada no cérebro se dá segundo um

processo que não é o mesmo daquele da formação da ideia percebida pela mente. Se são

processos distintos, é preciso concluir que a tese de que as ideias dependem de imagens

11 « ce sont les mouvements par lesquels elle [la peinture] est composée, qui, agissant immédiatement contre notre âme, d’autant qu’elle est unie à notre corps, sont institués de la Nature pour lui faire avoir de tels sentiments » (AT VI, 130, FA, I, 699) 12 [...] rien ne peut venir des objets extérieures, jusqu’à notre âme, par l’entremise de sens que quelques mouvements corporels; mais ni ces mouvements mêmes, ni les figures qui en proviennent, ne sont point conçues par nous tels qu’ils sont dans les organes des sens, comme j’ai amplement expliqué dans la Dioptrique. D’où il suit que même les idées du mouvement et des figures sont naturellement en nous: et à plus forte raison les idées de la douleur, des couleurs, des sons, et des toutes les choses semblables, nous doivent-elles être naturelles, afin que notre esprit, à l’occasion de certains mouvements corporels avec lesquels elles n’ont aucune ressamblance, se les puisse représenter (AT VIIIB, 358-359; FA, III, 808-809).

Page 29: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

29

pictóricas para exibir algum conteúdo ao intelecto não se sustenta, como acredita Hobbes,

porque o conteúdo de uma ideia, seja ele qual for, não pode ser explicado, a princípio por,

nenhum processo de produção mecânica de imagens corpóreas. Dessa maneira, e isso é muito

significativo, é possível mostrar que para Descartes nenhuma ideia depende de nenhum dado

material para ser formada pelo intelecto e não que apenas algumas delas não dependam. A

analogia com a imagem não implica de maneira alguma a noção de imagem corpórea como

constituinte básico das ideias. E é como consequência dessa análise que se pode sustentar de

modo mais seguro que, para Descartes, as ideias são análogas às imagens apenas no que

concerne ao seu caráter intencional, isto é, a qualidade de ser um ato do pensamento que aponta

ou tem em vista algo que não é ele mesmo. Ideias são conteúdos que representam objetos

possíveis ou existentes sem a exigência de qualquer conteúdo figurativo.

Até aqui tratou-se do significado da analogia estabelecida por Descartes entre a ideia e

a imagem. Três argumentos foram explorados a fim de demonstrar a tese de que essa analogia

visa reter o caráter intencional da imagem como definidor da função da ideia, mas não seu

caráter figurativo. A menção à variedade de conteúdos pensados, a escolha do termo tradicional

ideia para designar a forma do pensamento e a noção de instituição natural dos conteúdos das

ideias de sensação foram as razões analisadas para sustentar a recusa cartesiana à identificação

entre ideia e imagem pictórica. Com o propósito de aprofundar ainda mais o sentido dessa

recusa, é necessário esclarecer que ao não depender de uma imagem pictórica, o ato de

representar exercido pela ideia também escapa à noção de reprodução imagética da semelhança.

Isso significa que é preciso tornar mais claro o que significa, nesse contexto, em linhas gerais,

representar13.

O ato de representar, como já visto, é o ato de exibir no intelecto determinado conteúdo

intencional. É a intencionalidade do conteúdo das ideias, a saber, o fato de ser na mente um ato

que visa, que aponta para uma outra coisa que não ele mesmo, aquilo que mais propriamente

define a noção de representação. Segundo toda a análise feita acerca da analogia com a imagem,

é autorizado, portanto, afirmar que o conteúdo intencional exibido pelas ideias não apenas não

é redutível a (ou explicado por) imagens pictóricas, como também não apresenta ao espírito

uma reprodução imagética de semelhança. Recusa-se nessa interpretação o caráter figurativo

da ideia tanto no contexto de sua formação na mente, quanto, no que diz respeito ao conteúdo

13 O tema da representação será debatido e desenvolvido ao longo dessa tese.

Page 30: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

30

exibido no intelecto: as ideias não são duplicatas mentais de seus objetos, como é o caso das

representações de imagens numa pintura. A seguir, pretende-se fundamentar essa compreensão.

Acompanhando a análise de André Robinet em seu livro La lumière naturelle: intuition,

disposition, complexion (ROBINET, 1999, p.189-190), a compreensão de representação que se

quer avançar nesse momento, a saber, representação sem reprodução de semelhança, encontra

explicações na ciência cartesiana, nesse caso nas explicações óticas da Dióptrica. Nessa obra,

Descartes, baseando seus estudos acerca da luz – sua propagação, refração, os aspectos óticos

de formação das imagens etc. – na geometria perspectiva, recusa a existência, ou pelo menos

insinua a inexistência, de semelhança mesmo entre a imagem e seu objeto original. Toda a

passagem da analogia entre os raios de luz e o bastão do cego (AT VI, 83-86; DE, 128-132),

logo no início da Dióptrica, permite defender essa interpretação:

[...] não é necessário supor que passe alguma coisa de material, desde os objetos até

nossos olhos, para fazer-nos ver as cores e a luz, nem mesmo que haja algo nesses

objetos que seja semelhante às ideias ou às sensações que temos deles, do mesmo

modo que nada sai dos corpos, os quais são sentidos por um cego, que deve passar ao

longo de seu bastão até a sua mão, e que a resistência ou o movimento desses corpos,

que é a única causa das sensações que ele tem, em nada é semelhante às ideias que ele

concebe desses corpos (AT VI, 85; DE, 131)14.

É preciso comentar que, por mais que a citação fale principalmente da ausência de semelhança

entre as coisas e as ideias, a analogia entre os raios de luz e o bastão é suficiente para dar o tom

da sugestão de que nem mesmo a imagem é semelhante à coisa, visto que ela é formada por

intermédio dos mecanismos de projeção da luz, assim como a percepção do cego é dada pelo

movimento dos corpos que tocam e fazem vibrar o seu bastão. Raios de luz e bastão nessa

analogia constituem os mecanismos de impressão sensível que os corpos exteriores podem

provocar no corpo, sendo a semelhança, portanto, uma suposição sem respaldo científico,

Pois, enquanto eles [os filósofos] não consideram nelas [nas imagens] outra coisa a

não ser que elas devem ter semelhança com os objetos que representam, é impossível

que eles nos mostrem como elas podem ser formadas por esses objetos e recebidas

pelos órgãos dos sentidos externos e transmitidas pelos nervos até o cérebro. E a única

14 « [...] il n’est pas besoin de supposer qu’il passe quelque chose de matériel depuis les objets jusques à nos yeux, pour nous faire voir les couleurs et la lumière, ni même qu’il y ait rien en ces objets, qui soit semblable aux idées ou aux sentiments que nous en avons: tout de même qu’il ne sort rien des corps, que sent un aveugle, et que la résistance ou le mouvement de ces corps, qui est la seule cause des sentiments qu’il en a, n’est rien de semblable aux idées qu’il en conçoit » (AT VI, 85; FA, I, 655).

Page 31: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

31

razão que tiveram para supô-las é que, ao ver que nosso pensamento pode ser

facilmente estimulado por um quadro a conceber o objeto que nele está pintado,

pareceu-lhes que ele devia ser, do mesmo modo, estimulado a conceber aqueles

objetos que tocam nossos sentidos por meio de alguns pequenos quadros que se

formariam em nossa cabeça [...] (AT VI, 112; DE, 151)15.

Ora, é a partir desse entendimento que Robinet compreende que a crítica à semelhança

realizada por Descartes na Terceira Meditação possui como suporte razões científicas que

explicam o sentido da representação que não envolve semelhança. A fim de explicitar esse

sentido, o autor em questão (ROBINET, 1999, p. 189-190) recolhe as seguintes passagens da

Dióptrica: 1) “[...] existem muitas outras coisas, além das imagens, que podem estimular nosso

pensamento, como os sinais e as palavras, os quais de modo algum se parecem com as coisas

que significam” (AT VI, 112; DE, 151)16; 2) “[...] não existem quaisquer imagens que devem

assemelhar-se em tudo aos objetos que elas representam, pois de outro modo, não haveria

distinção entre o objeto e sua imagem [...]” (AT VI, 113; DE, 152)17; 3) “[…] quase sempre,

mesmo sua perfeição [das imagens] dependa de que elas não se lhes assemelhem [aos objetos]

tanto quanto poderiam fazer (AT VI, 113; DE, 152)18; e 4) “[...] comumente, para serem mais

perfeitas na qualidade de imagens e representarem melhor um objeto, elas não lhe devem

assemelhar-se (AT VI, 113; DE, 152)19. Na primeira passagem, Descartes fala sobre como os

signos e as palavras, embora não se assemelhem em nada às coisas que eles significam, também

provocam o pensamento, ou, em outras palavras, representam algo no intelecto sem, entretanto,

reproduzir qualquer semelhança no pensamento. A segunda passagem trata de como a imagem

percebida não deve se assemelhar completamente à coisa, pois é essa dessemelhança que

garante que a imagem seja o que é e se diferencie da própria coisa. Deve-se notar que Descartes

admite nessa passagem que pode haver alguma semelhança entre a imagem e a coisa quando

15 « Car, d’autant qu’ils [les philosophes] ne considèrent en elles [les images] autre chose, sinon qu’elles doivent avoir de la ressemblance avec les objets qu’elles représentent, il leur est impossible de nous montrer comment elles peuvent être formées par ces objets, et reçues pas les organes des sens extérieures, et transmises par les nerfs jusques au cerveau. Et ils n’ont eu aucune raison de les supposer, sinon que, voyant que notre pensée peut facilement être excitée, par un tableau, à concevoir l’objet qui y est peint, il leur a semblé qu’elle devait l’être, en même façon, à concevoir ceux qui touchent nos sens, par quelques petits tableau qui s’en formassent en notre tête [...] » (AT VI, 112; FA, I, 684). 16 « […] il y a plusieurs autres choses que des images, qui peuvent exciter notre pensée; comme, par exemple, les signes et les paroles, qui ne ressemblent en aucune façon aux choses qu’elles signifient » (AT VI, 112; FA, I, 684). 17 « […] il n’y a aucunes images qui doivent en tout ressembler aux objets qu’elles représentent: car autrement il n’y aurait point de distinction entre l’objet e son image […] » (AT VI, 113; FA, I, 685). 18 « […] et souvent même, que leur perfection dépend de ce qu’elles ne leur ressemblent pas tant qu’elles pourraient faire » (AT VI, 113; FA, I, 685). 19 « […] souvent, pour être plus parfaites en qualité d’images, et représenter mieux un objet, elles doivent ne lui pas ressembler » (AT VI, 113; FA, I, 685).

Page 32: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

32

afirma que a primeira não deve se assemelhar “em tudo” à última sob o risco de tornar-se

indistinguível. Ainda que à primeira vista isso possa parecer problemático para a defesa de que

a inexistência de semelhança entre a imagem e os objetos existentes no mundo é a base

científica da crítica à semelhança feita por Descartes na Terceira Meditação, na verdade, não o

é. Visto que aquilo que se destaca nessa passagem é, propriamente falando, a dessemelhança

entre imagem e objeto como o aspecto que garante a não confusão entre eles, entende-se aqui

que fundamentalmente estão mantidas por Descartes as bases da defesa supracitada, a saber, a

imagem é sempre o produto de processos mecânicos de projeção e absorção de luz tão

complexos e cheios de condicionantes que nos impossibilita falar em semelhança. A terceira

passagem tem um sentido próximo ao da segunda à medida que afirma que a perfeição das

imagens é maior quanto mais dessemelhante for, assumindo assim que possam haver

similaridades, mas que a dessemelhança é um aspecto de extrema importância na configuração

das imagens. E sob um ponto de vista científico, a explicação vem logo em seguida com a

quarta passagem, que trata da representação em perspectiva, o que exige, para que a

representação seja mais perfeita, que ela seja dessemelhante. Uma representação em

perspectiva, em função de suas regras, representa melhor determinadas figuras à medida que

são menos semelhantes a elas, como é o caso dos círculos que são melhores representados por

ovais que por outros círculos, segundo Descartes:

[…] segundo as regras da perspectiva, elas geralmente representam melhor os círculos

por ovais do que por outros círculos, e os quadrados por losangos do que por outros

quadrados, e assim para todas as outras figuras [...] Ora, devemos pensar o mesmo das

imagens que se formam em nosso cérebro [...] (AT VI, 113; DE, 152)20.

É notadamente a noção de representação em perspectiva que explica o sentido em que

uma representação pode ser dessemelhante. Descartes afirma que é óbvio que a imagem

[...] é julgada pelo conhecimento, ou opinião, que se tem da posição das diversas

partes dos objetos, e não pela semelhança das pinturas que estão no olho, pois essas

pinturas contêm apenas ovais e losangos, enquanto nos fazem ver círculos e quadrados

(AT VI, 140-14; DE, 171)21.

20 « […] suivant les règles de la perspective, souvent elles représentent mieux des cercles par des ovales que par d’autres cercles ; et des carrés par des losanges que par d’autre carrés ; et ainsi de toutes les autres figures […] Or il faut que nous pensions tout de même des images qui se forment en notre cerveau […] » (AT VI, 113 ; FA, I, 685). 21 « [...] se juge par la connaissance, ou opinion, qu’on a de la situation des diverses parties des objets, et non par la ressemblance des peintures qui sont dans l’oeil: car ces peintures ne contiennent ordinairement que des ovales et des losanges, lorsqu’elles nous font voir des cercles et des carrés » (AT VI, 140-141 ; FA, I, 710).

Page 33: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

33

Por fim, o embasamento da crítica à semelhança na ciência da ótica, com suas

explicações da formação da imagem em perspectiva, permite uma compreensão por analogia

da noção de representação sem semelhança realizada pela ideia: assim como não se pode falar

em semelhança nem mesmo entre a imagem pictórica e o objeto original, pois essa imagem

formada já o é em perspectiva, isto é, já é representação dessemelhante (e isso diz respeito à

qualidade da imagem, que representa algo melhor quanto mais lhe é dessemelhante), a ideia é

representação de objetos sem envolver nenhuma dependência de conteúdos imagéticos, ou seja,

o conteúdo representativo das ideias exerce sua função intencional independentemente de

figuração e segundo as leis próprias do funcionamento da mente. Isso significa que o conteúdo

das ideias, mesmo o das ideias da imaginação, é sempre um conteúdo formado pelo

pensamento, segundo as leis e regras próprias de sua natureza. Ainda que a imaginação dependa

dos corpos, pois trata-se de um modo de pensar (não necessário à essência do pensamento) que

“[...] se volta para o corpo [...]”, ela não o faz senão “[...] conforme a ideia que [o espírito]

formou de si mesmo ou que recebeu pelos sentidos” (AT VII, 73; CP, 139, §4)22. É importante

frisar que diante do exposto anteriormente acerca da instituição natural das ideias de sensação,

considera-se aqui que o sentido dessa última citação está de pleno acordo com a interpretação

proposta sobre o caráter independente do conteúdo das ideias no que diz respeito às imagens

corpóreas, já que tanto a ideia que o espírito faz de si mesmo quanto aquelas que ele recebe dos

sentidos são ideias cujo conteúdo depende única e exclusivamente das operações mentais –

ainda que no último caso haja para Descartes uma relação clara com os corpos, mas que se dá

via instituição natural e não via reprodução de semelhança:

E, conquanto, ao me aproximar do fogo, sinta calor e, mesmo, sofra dor, aproximando-

me perto demais, não há, todavia, nenhuma razão que me possa persuadir de que haja

no fogo alguma coisa de semelhante a esse calor, assim como a essa dor; mas tenho

somente razão para acreditar que há alguma coisa nele, qualquer que seja, que provoca

em mim estes sentimentos de calor ou dor (AT VII, 83; CP 145, §28)23.

22 « […] se tourne vers le corps […] » « […] conforme à l’idée qu’il a formée de soi-même ou qu’il a reçue par les sens » (AT IX, 58). 23 « Et quoiqu’en approchant du feu je sente de la chaleur, et même que m’en approchant un peu trop près je ressente de la douleur, il n’y a toutefois aucune raison qui me puisse persuader qu’il y a dans le feu quelque chose de semblable à cette chaleur, non plus qu’à cette douleur ; mais seulement j’ai raison de croire qu’il y a quelque chose en lui, quelle qu’elle puisse être, qui excite en moi ces sentiments de chaleur ou de douleur » (AT IX, 66)

Page 34: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

34

Todas essas passagens da Dióptrica acerca da inexistência de semelhança entre as

imagens e seus objetos têm por função colocar um argumento que visa esclarecer o sentido em

que se pode falar em representação sem semelhança como sendo a característica mais

significativa, pelo menos até esse momento, da noção de ideia que está sendo empregada por

Descartes. Ora, se como visto não se pode falar cientificamente sobre semelhança nem mesmo

entre a imagem pictórica e seu objeto, não é razoável supor que o conteúdo das ideias seja a

exibição no intelecto de qualquer semelhança. Pois, independentemente dos argumentos já

analisados acerca da irredutibilidade do conteúdo das ideias às imagens pictóricas, ainda que

se pudesse realizar uma explicação desse conteúdo via imagem, não se poderia, contudo,

segundo as concepções óticas de Descartes, falar em reprodução de semelhança entre ideia e

objeto: se a imagem pintada no cérebro não se assemelha ao objeto original, a ideia do objeto

não poderia envolver semelhança alguma para com ele, mesmo que houvesse semelhança entre

a ideia e a imagem corpórea. De modo que é preciso compreender e admitir que o emprego da

noção cartesiana de representação está definitivamente ligado apenas ao seu caráter intencional

e nunca à condição de reprodutibilidade imagética, como pensa Hobbes.

1.2 – Uma via tradicional de classificação das ideias

Tendo frisado o caráter intencional das ideias expresso pela analogia com a imagem e

exposto quais, dentre os gêneros de pensamento, são passíveis de erro ou engano – a saber, os

juízos, que são atitudes mentais que projetam no mundo o conteúdo de uma ideia ao afirmá-lo

ou negá-lo – deve-se dar seguimento à exposição da teoria cartesiana das ideias.

Para compreender as passagens que se seguem na Terceira Meditação é preciso ter em

mente que o projeto, nesse momento da meditação, trata de descobrir se há atualmente algum

Deus e se ele é enganador. Em razão disso, Descartes propõe, em seguida à definição das formas

de pensamento vista no início da primeira seção, um método de classificação das ideias, que

mais tarde será rejeitado, cuja base é a preocupação com a origem de seus conteúdos. Segundo

essa classificação, as ideias são inatas quando sua origem remonta ao surgimento (criação) da

própria mente; são adventícias quando vêm de fora da mente; ou são fictícias quando são

inventadas pela mente: “ora, destas ideias umas me parecem ter nascido comigo, outras ser

estranhas e vir de fora, e as outras ser feitas e inventadas por mim mesmo.” (AT VII, 37-38;

Page 35: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

35

CP, 109-110, §10)24. A exploração dessa classificação traz para a discussão a tese tradicional

segundo a qual a origem das ideias nas coisas corpóreas explica a semelhança das ideias com

as coisas; tese essa que estaria na base da teoria do conhecimento de uma tradição e que sustenta

que é possível conhecer verdadeiramente as coisas existentes e Deus porque a origem das ideias

nas coisas externas explica e garante a semelhança entre elas. Nessas passagens, está contida a

já referenciada crítica cartesiana à semelhança entre ideia e objeto. Como ficará claro em

seguida, Descartes rejeita esse método de classificação das ideias porque ele é baseado no

pressuposto de que as ideias, em especial as ideias verdadeiras, exibem no intelecto a

semelhança de seus objetos; e é essa semelhança que é explicada a partir da origem adventícia

de algumas ideias, o que garantiria sua veracidade. Dessa forma, ao recusar o pressuposto da

semelhança, o próprio método de classificação das ideias perde o sentido, o que leva Descartes

a introduzir uma outra via de classificação das ideias.

Eis a exposição da argumentação cartesiana. Descartes impõe-se o exame da tese: “e o

que devo fazer principalmente neste ponto é considerar, no tocante àquelas que me parecem vir

de alguns objetos localizados fora de mim, quais as razões que me obrigam a acreditá-las

semelhantes a esses objetos" (AT VII, 38; CP, 110, §10)25. O exame inicia-se pela apuração das

razões que levam a crer que algumas ideias (as adventícias) têm origem nos objetos externos.

Sob escrutínio aqui, estão as razões de uma tradição para justificar o modelo que parte da

experiência sensível como pressuposto para o conhecimento do mundo e de Deus. Descartes

afirma que:

A primeira dessas razões é que me parece que isso me é ensinado pela natureza; e a

segunda, que experimento em mim próprio que essas ideias não dependem, de modo

algum, de minha vontade; pois amiúde se apresentam a mim mau grado meu, como

agora, quer queira quer não, eu sinto calor, e por esta razão persuado-me de que este

sentimento ou esta ideia de calor é produzido em mim por algo diferente de mim

mesmo, ou seja, pelo calor do fogo ao pé do qual me encontro. E nada vejo que pareça

mais razoável do que julgar que essa coisa estranha envia-me e imprime em mim sua

semelhança, mais do que qualquer outra coisa. (AT VII, 38; CP 110, §11)26.

24 « Or de ces idées les unes me semblent être nées avec moi, les autres être étrangères et venir de dehors, et les autres être faites et inventées par moi-même » (AT IX, 29). 25 « Et ce que j’ai principalement à faire en ce endroit, est de considérer, touchant celles qui me semblent venir de quelques objets qui sont hors de moi, quelles sont les raisons qui m’obligent à les croire semblables à ces objets » (AT IX, 30). 26 « La première de ces raisons est qu’il me semble que cela m’est enseigné pas la nature ; et la seconde, que j’expérimente en moi-même que ces idées ne dépendent point de ma volonté ; car souvent elles se présentent à moi malgré moi, comme maintenant, soit que je le veuille, soit que je ne le veuille pas, je sens de la chaleur, et pour cette cause je me persuade que ce sentiment ou bien cette idée de la chaleur est produite en moi par une chose différente de moi, à savoir par la chaleur du feu auprès duquel je me rencontre. Et je ne vois rien qui me semples

Page 36: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

36

As razões dessa tradição para sustentar que a origem de algumas ideias está em objetos externos

ao pensamento são o ensinamento natural e a invonluntariedade das percepções. Isso significa

que costumeiramente se julga que a origem das ideias está nas coisas externas porque

naturalmente se aprendeu a associar a involuntariedade de certas percepções às coisas externas

ao sujeito: um instinto natural conduz o sujeito à crença de que suas percepções involuntárias,

ou seja, aquelas que não têm sua origem explicada pelo próprio sujeito, são explicadas pelas

coisas externas.

Todavia, Descartes apresenta dois argumentos cujo propósito é refutar as razões da

tradição para crer que a origem das ideias são as coisas e que isso explica a semelhança entre

elas. O primeiro argumento aplica-se à justificativa do ensinamento da natureza, que, diante

daqueles da luz natural, significam apenas uma inclinação para crer e não um ensinamento que

obriga a reconhecer algo como verdadeiro: “[...] entendo somente por essa palavra natureza

uma certa inclinação que me leva a acreditar nessa coisa, e não uma luz natural que me faça

conhecer que ela é verdadeira.” (AT VII, 38; CP, 110, §12)27. A luz natural compele de tal

maneira o assentimento do sujeito que seria impossível que ele duvidasse de seus ensinamentos,

tal como “[...] ela me fez ver, há pouco, que do fato de eu duvidar, podia concluir que existia.”

(AT VII 38; CP 110, §12)28. Isso significa que a inclinação para crer que as ideias vêm das

coisas não contém em si a força do ensinamento inquestionável capaz de tornar alguma coisa

evidente e irrecusável para o sujeito pensante. Por fim, para além de não ser como a luz natural,

Descartes aponta para que também não há nada de especial nas (outras) inclinações naturais

que garanta sua confiabilidade: frequentemente, é através de tais inclinações que se justifica

toda sorte de comportamentos viciosos. Se é assim, então, no que diz respeito a crenças, elas

não seriam particularmente confiáveis:

Mas, no que se refere a inclinações que também me parecem ser para mim naturais,

notei frequentemente, quando se tratava de escolher entre as virtudes e os vícios,

que elas não me levaram menos ao mal do que ao bem; eis porque não tenho motivos

plus raisonnable, que de juger que cette chose étrangère envoie et imprime en moi sa ressemblance plutôt qu’aucune autre chose » (AT IX, 30). 27 « […] j’entends seulement par ce mot de nature une certaine inclination qui me porte à croire cette chose, et non pas une lumière naturelle qui me fasse connaître qu’elle est vraie » (AT IX, 30). 28 « […] elle m’a tantôt fait voir que, de ce que je doutais, je pouvais conclure que j’étais » (AT IX, 30).

Page 37: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

37

de segui-las tampouco no referente ao verdadeiro e ao falso. (AT VII, 39; CP 110,

§12)29.

O segundo argumento de Descartes incide sobre a involuntariedade das ideias e afirma

que assim como há inclinações que estão no sujeito independentemente de sua vontade, pode

ser que exista alguma faculdade própria do sujeito pensante capaz de produzir essas ideias que

parecem vir de fora, embora ela não seja ainda conhecida. Se no sonho é possível ter tais

percepções involuntárias sem a presença das coisas a que a tradição parece atribuir sua origem,

então é razoável conceber que essas percepções tenham origem numa faculdade oculta do

sujeito e não nos objetos do mundo:

[...] assim talvez haja em mim alguma faculdade ou poder próprio para produzir essas

ideias sem auxílio de quaisquer coisas exteriores, embora ela não me seja ainda

conhecida; como, com efeito, sempre me pareceu até aqui que, quando durmo, elas se

formam em mim sem a ajuda dos objetos que representam. (AT VII, 39; CP 110-111,

§13)30.

A argumentação de Descartes mostra até aqui que as razões da tradição para crer na tese

de que a origem das ideias está nas coisas externas são fracas e mal fundadas. Isso porque as

inclinações naturais, por se tratarem mais de um impulso do que da razão (ou razões), não

garantem especialmente nenhuma confiabilidade de sua correção; e a involuntariedade de certas

percepções pode ser explicada por uma faculdade oculta do sujeito que seja produtora dessas

percepções. Entretanto, segundo Descartes, ainda que esses argumentos não fossem suficientes

para minar a crença na origem externa das ideias, de modo que se aceitasse que as ideias têm

origem nas coisas, não haveria, ainda assim, motivo para sustentar a tese da semelhança quando

o que se observa, na verdade, é a diferença entre ideia e a coisa representada:

(...) encontro em meu espírito duas ideias de sol inteiramente diversas: uma toma sua

origem nos sentidos e deve ser colocada no gênero daquelas que disse acima provirem

de fora, e pela qual o sol me parece extremamente pequeno; a outra é tomada nas

razões da Astronomia, isto é, em certas noções nascidas comigo, ou, enfim, é formada

29 « Mais pour ce qui est des inclinations qui me semblent aussi m’être naturelles, j’ai souvent remarqué, lorsqu’il a été question de faire choix entre les vertus et les vices, qu’elles ne m’ont pas moins porté au mal qu’au bien ; c’est pourquoi je n’ai pas sujet de les suivre non plus en ce qui regarde le vrai et le faux » (AT IX, 30). 30 « […] ainsi peut-être qu’il y a en moi quelque faculté ou puissance propre à produire ces idées sans l’aide d’aucune chose extérieure, bien qu’elle ne me soit pas encore connue ; comme en effet il m’a toujours semblé jusques ici que, lorsque je dors, elles se forment ainsi en moi sans l’aide des objets qu’elles représentent » (AT IX, 31)

Page 38: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

38

por mim mesmo, de qualquer modo que seja, e pela qual o sol me parece muitas vezes

maior do que a terra inteira. Por certo, essas duas ideias que concebo do sol não podem

ser ambas semelhantes ao mesmo sol; e a razão me faz crer que aquela que vem

imediatamente de sua aparência é a que lhe é mais dessemelhante. (AT VII, 39; CP,

111, §13)31.

O exemplo da percepção divergente do sol contesta a tese de que a semelhança ou

verdade das ideias é explicada pela origem externa ao salientar que diante de duas ideias do sol,

uma provinda dos sentidos, e outra provinda das razões da astronomia, que, segundo Descartes,

seria inata, aquela que o sujeito crê ser a mais dessemelhante é a que vem dos sentidos. Assim,

a ideia do sol que parece ser a mais verdadeira, a inata, não tem nenhuma relação com as

propriedades sensíveis expressas pela ideia adventícia do sol. Isso significa que, ainda que seja

verdade que a origem das ideias está nas coisas, o sujeito é inclinado a crer que a ideia mais

verdadeira, mais semelhante ao sol é a inata e não a adventícia, de modo que a tese de que a

origem externa explica a semelhança entre as ideias e as coisas perde sustentação.

Dessa forma, o exame realizado por Descartes mostra que a compreensão tradicional

das ideias é inadequada para levar a cabo o projeto de saber se existe um Deus e se ele é

enganador à medida que põe por terra a tese de que a verdade das ideias é explicada por sua

origem no mundo. Além disso, com a crítica à semelhança, explicitada no argumento do sol,

termina-se por destruir o pressuposto de que as ideias sejam a exibição de semelhanças no

intelecto. E segundo a leitura apresentada na seção anterior, não é por acaso que essa crítica

venha a partir do exemplo da ideia que se forma a partir de razões científicas, pois é em função

do conhecimento científico exposto na Dióptrica que Descartes pode explicar mais longamente

a recusa da semelhança como elemento básico da representação, seja ela imagem corpórea ou

ideia.

Robinet (1999, p.186-193) apresenta uma interpretação acerca dessas passagens da

Terceira Meditação que ressalta, na crítica da via tradicional de classificação das ideias, a

reprovação do pressuposto da semelhança entre ideia e objeto. O autor identifica a via

31 « […] je trouve dans mon esprit deux idées du soleil toutes diverses : l’une tire son origine de sens, et doit être placée dans le genre de celles que j’ai di ci-dessus venir de dehors, par laquelle il me paraît extrêmement petit ; l’autre est prise des raisons de l’astronomie, c’est-à-dire de certaines notions nées avec moi, ou enfin est transformé par moi-même de quelque sorte que ce puisse être, par laquelle il me paraît plusieurs fois plus grand que toute la terre. Certes, ce deux idées que je conçoit du soleil, ne peuvent pas être toutes deux semblables au même soleil ; et la raison me fait croire que celle qui vient immédiatement de son apparence, est celle qui lui est le plus dissemblable » (AT IX, 31).

Page 39: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

39

tradicional como a via da similitude, ou seja, aquela que está baseada na concepção de ideia

como imagem-reprodução, como semelhança; e identifica a via cartesiana como aquela que

apresenta uma outra concepção de ideia, a saber, a ideia-quadro, aquela cuja função

representacional não envolve semelhança. Segundo Robinet, é através da luz natural que

Descartes pode recusar a via da similitude e seguir autorizadamente a via cartesiana, pois

enquanto são apresentadas razões para rejeitar a via da similitude, a via cartesiana se estabelece

a partir de “dados mais imediatos da luz natural” (ROBINET, 1999, p.192). Essa passagem de

Robinet pode ser entendida como afirmação de que o processo de introdução da via cartesiana

se dá a partir da atenção do meditador, através de uma análise introspectiva, aos dados mais

simples concernentes às ideias, a saber, como será mais detalhadamente exposto, que elas são

formas de pensar que exibem um determinado conteúdo no pensamento, conteúdos esses que

são representações de coisas e que, entretanto, ao que tudo indica, não envolvem semelhança.

Dessa forma, é possível interpretar, apoiado numa leitura de Robinet, que o foco de Descartes

em toda essa passagem da Terceira Meditação é ainda o de tornar mais claro o sentido da

analogia com a imagem, mostrando por fim que o método de classificação das ideias baseado

na noção de semelhança deve ser rejeitado porque a compreensão da ideia como exibição de

semelhança é um equívoco. E é um equívoco porque a luz natural mostra

[...] que até esse momento não foi por um julgamento certo e premeditado, mas apenas

por um cego e temerário impulso, que acreditei haver coisas fora de mim, e diferentes

do meu ser, as quais, pelos órgãos dos meus sentidos ou por qualquer outro meio que

seja, enviam-me suas ideias ou imagens e imprimem em mim suas semelhanças (AT

VII, 39-40, CP, 111, §14)32.

O principal elemento dessa discussão não é, portanto, qual é a via mais adequada de

classificação das ideias, mas sim a própria concepção de ideia. É preciso que sejam oferecidas

razões para se recusar a noção de ideia baseada no pressuposto da semelhança, ou seja, para se

rejeitar a compreensão de que ideia é reprodução imagética da semelhança de seus objetos para,

enfim, apresentar o adequado entendimento do que é ideia. Isso significa que é a partir das

conclusões provindas da luz natural acerca do que é a ideia que se pode introduzir a via

cartesiana, que por meio da análise introspectiva da natureza dessa forma de pensar

representativa, estabelece uma outra classificação a fim de saber se algum dos objetos pensados

32 « […] jusques à cette heure ce n’a point été par un jugement certain et prémédité, mais seulement par une aveugle et téméraire impulsion, que j’ai cru qu’il y avait des choses hors de moi, et différentes de mon être, qui, par les organes de mes sens, ou par quelque autre moyen que se puisse être, envoyaient en moi leurs idées ou images, et y imprimaient leurs ressemblances » (AT IX, 31).

Page 40: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

40

existe fora do intelecto. Essa nova via apresentada por Descartes, liberada do pressuposto da

semelhança e das concepções tradicionais, é a apresentação da teoria cartesiana das ideias

propriamente dita, sem a qual o projeto cartesiano não teria condições de ser levado a cabo.

1.3 – A via cartesiana: estrutura e natureza das ideias

A fim de avançar no propósito de compreender a teoria cartesiana das ideias, é

necessário que se ensaie responder, mesmo que de maneira ainda insuficiente, qual é essa

concepção de ideia que é introduzida na Terceira Meditação a partir de sua definição por

analogia com a imagem. O que se sabe até aqui é que a ideia é uma forma de pensamento

representativa, ou seja, que possui função intencional, o que significa dizer que se trata de uma

forma de pensamento que visa, que aponta, que reenvia sempre a um outro que não ela mesma:

a ideia é sempre representação de alguma coisa. Entretanto, essa representação não é uma

duplicata intelectual das coisas que representa como uma reprodução imagética de semelhança

em uma pintura o é. Ao contrário, Descartes recusa que a ideia seja como tal espécie de

reprodução e pretende mostrar que não há razões sólidas para considerá-la dessa maneira. A

ideia é, então, uma operação mental representativa que não envolve semelhança porque não

depende das imagens corpóreas para exibir seu conteúdo e ainda que dependesse, a própria

mecânica sensível de formação das imagens corpóreas mostra que não se pode falar em

semelhança nem mesmo entre a imagem e o objeto original, de modo que em última instância

o pressuposto da semelhança é aquele que menos importa para a constituição das ideias. Nesse

sentido, a concepção de ideia posta em marcha por Descartes é a de representação de objetos

que se forma e se efetiva segundo as exigências e propriedades ontológicas do pensamento. Na

Exposição Geométrica que consta nas Respostas às Segundas Objeções, a definição de ideia

sintetiza esses elementos debatidos até agora:

Pelo nome de ideia, entendo esta forma de cada um de nossos pensamentos por cuja

percepção imediata temos conhecimento desses mesmos pensamentos [...] E assim

não dou o nome de ideia às simples imagens que são pintadas na fantasia; ao contrário,

não lhes dou aqui esse nome, na medida em que se encontram na fantasia corporal,

isto é, na medida em que são pintadas em algumas partes do cérebro, mas somente na

medida em que enformam o próprio espírito, que se aplica a esta parte do cérebro (AT

VII, 217-218; CP, 179)33.

33 « Par le nom d’idée, j’entends cette forme de chacune de nos pensées, par la perception immédiate de laquelle nous avons connaissance de ces mêmes pensées [...] Et ainsi je n’appelle pas du nom d’idée les seules images qui sont dépeintes en la fantaisie; au contraire, je ne les appelle point ici de ce nom, en tant qu’elles sont en la fantaisie

Page 41: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

41

Como se pode observar, a ideia é a forma de pensamento que apresenta imediatamente

para o sujeito os conteúdos do seu próprio pensamento, o que significa dizer, por um lado, que

todo ato de pensamento é acompanhado de uma ideia que torna o sujeito consciente do seu

próprio ato, isto é, a ideia é o elemento básico sem o qual não se pode falar nem em consciência,

nem em conhecimento; e, por outro lado, que a ideia informa o espírito de alguma coisa, isto é,

que exibe um conteúdo no intelecto como uma imagem exibe um conteúdo onde quer que esteja

projetada. Entretanto, como já visto, essa informação, essa exibição não depende realmente da

formação de uma imagem na mente, não é isso que traduz a função representativa da ideia, mas

sim o fato de, enquanto representação, a ideia exibir no intelecto um conteúdo intencional.

Assim, enquanto forma de cada um dos pensamentos através da qual o sujeito apercebe-se

imediatamente do conteúdo deles, a ideia é a forma do pensamento que se apresenta como

pensamento de objetos, ou seja, como intencional. É pela percepção imediata dessa forma

intencional de pensar que o sujeito conhece os objetos do seu pensamento. Desse modo, a ideia

é aquilo de que se tem percepção imediata como constituindo um determinado tipo de

pensamento, que é o intencional.

Ora, é perceptível que as colocações de Descartes acerca das ideias remetem-se sempre

a dois aspectos notoriamente fundamentais para seu entendimento, a saber, a ideia é forma de

pensamento e a ideia é exibição de conteúdos no pensamento. Forma e conteúdo são os

elementos mais fundamentais da estrutura das ideias e são assim reconhecidos em função da

análise introspectiva realizada sobre elas que se segue à rejeição do modo tradicional de

classificá-las.

Passa-se, então, nesse instante, à argumentação mais detalhada acerca da introdução da

via cartesiana. Diante da grande problematização da via tradicional de classificação das ideias,

Descartes propõe um outro caminho de investigação para descobrir se entre as ideias do sujeito

há alguma que aponta para algo que existe externamente. Nesse momento, é estabelecida uma

distinção de extrema importância para a teoria cartesiana das ideias, que diz respeito a dois

modos de se levar em consideração a natureza de uma ideia, a saber, como formas de pensar e

como conteúdo pensado. Descartes escreve:

[...] caso essas ideias sejam tomadas somente na medida em que são certas formas de

pensar, não reconheço entre elas nenhuma diferença ou desigualdade, e todas parecem

corporelle, c’est-à-dire en tant qu’elles sont dépeintes en quelques parties du cerveau, mais seulement en tant qu’elles informent l’esprit même, qui s’applique à cette partie du cerveau » (AT IX, 124).

Page 42: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

42

provir de mim de uma mesma maneira; mas, considerando-as como imagens, dentre

as quais algumas representam uma coisa e as outras uma outra, é evidente que elas

são bastante diferentes entre si (AT VII 40; CP 111, §15)34.

Como já dito, é através de uma apreciação acerca da natureza e da estrutura das ideias e não

sobre sua origem que Descartes indica, como via de investigação alternativa, a análise das ideias

enquanto maneiras de pensar, por um lado, e conteúdos de pensar (imagem), por outro. Nesse

sentido, Descartes entende que as ideias tomadas nelas mesmas dão ocasião para que se possa

discriminar dois aspectos com relação ao seu modo de ser. Enquanto concebidas como certos

atos de pensamento, as ideias não comportam entre si nenhuma diferença porque são todas,

neste contexto, a realização de um mesmo tipo de ato mental, que é o ato de exibir determinado

conteúdo à mente: a esse modo de consideração das ideias, Descartes chamou de realidade

formal da ideia:

[...] sendo toda ideia uma obra do espírito, sua natureza é tal que não exige de si

nenhuma outra realidade formal além da que recebe e toma de empréstimo do

pensamento ou do espírito, do qual ela é apenas um modo, isto é, uma maneira ou

forma de pensar (AT VII 41; CP 112, §17)35.

Agora, concebidas na qualidade de conteúdos mentais análogos a imagens que representam

objetos diferentes na mente, as ideias são distintas umas das outras. E no que se refere a esse

modo de consideração das ideias, para tratar do seu conteúdo representativo, Descartes faz uso

da noção de realidade objetiva da ideia:

[...] aquelas [ideias] que me representam substâncias são, sem dúvida, algo mais e

contêm em si (por assim falar) mais realidade objetiva, isto é, participam, por

representação, num maior número de graus de ser ou de perfeição do que aquelas que

representam apenas modos ou acidentes (AT VII 40; CP 111, §15)36.

34 « […] si ces idées sont prises en tant seulement que ce sont de certaines façons de penser, je ne reconnais entre elles aucune différence ou inégalité, et toutes semblent procéder de moi d’une même sorte ; mais, le considérant comme des images, dont les unes représentent une chose et les autres une autre, il est évident qu’elles sont fort différentes les unes des autres » (AT IX, 31). 35 « […] toute idée étant un ouvrage de l’esprit, sa nature est telle qu’elle ne demande de soi aucune autre réalité formelle, que celle qu’elle reçoit et emprunte de le pensée ou de l’esprit, dont elle est seulement un mode, c’est-à-dire une manière ou façon de penser » (AT IX, 32). 36 « […] celles qui me représentent des substances sont sans doute quelque chose de plus et contiennent en soi (pour ainsi parler) plus de réalité objective, c’est-à-dire participent par représentation à plus de degrés d’être ou de perfection, que celles qui me représentent seulement des modes ou accidents » (AT IX, 31-32).

Page 43: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

43

É importante comentar que Descartes, em pelo menos duas passagens, a saber, no

Prefácio das Meditações e nas Respostas às Quartas Objeções (a Antoine Arnauld), trata da

ideia enquanto tomada materialmente. Na primeira, afirma que “[...] [a ideia] pode ser tomada

materialmente como uma operação do intelecto e nesse caso não se pode dizer que ela é mais

perfeita que eu [...]” (AT VII, 8; FA, II, 391)37. Na segunda passagem, declara que “[...] se

estivéssemos considerando [as ideias] não como representando isto ou aquilo, mas

simplesmente como operações do intelecto, então se poderia dizer que estaríamos tomando-as

materialmente [...]” (AT VII, 232)38. Segundo se entende aqui, a compreensão do que significa

tomar uma ideia materialmente é fundamental para distingui-la da realidade formal da ideia. É

legítimo interpretar que a expressão ‘tomar materialmente’ diz respeito às operações do

intelecto, isto é, faz referência às ideias enquanto operações da mente sem especificar qual o

tipo de operação constitui propriamente uma ideia. Nesse sentido, resumidamente, é apropriado

dizer que uma ideia, tomada materialmente, consiste numa atitude mental, numa modificação

do intelecto que, enquanto tal, é sempre verdadeira à medida que sua natureza se dá

inegavelmente como um ato do intelecto. Essa maneira de encarar as ideias distingue-se da

realidade formal porque essa última, como visto, concerne à ideia enquanto certo tipo de atitude

mental, a saber, o ato de exibir um conteúdo no intelecto, isto é, o ato de representar conteúdos

e que tem função intencional: “[...] todas e quantas vezes que elas [as ideias] são consideradas

enquanto representam alguma coisa, elas não são tomadas materialmente, mas formalmente”

(AT VII, 232)39. Apesar da aparente ambiguidade dessa passagem, em que é dito que, tomada

formalmente, a ideia é representação de alguma coisa, é importante frisar que não há qualquer

meio de confusão entre a realidade formal e a realidade objetiva. Quando Descartes afirma que

a realidade formal da ideia diz respeito ao fato de ser representação de algum objeto, ele

intenciona frisar o aspecto do ato representativo e não o do conteúdo representado (esse sendo

propriamente a realidade objetiva da ideia). A diferença, portanto, entre os modos material e

formal de se considerar uma ideia está em que materialmente falando as ideias, assim como

qualquer outra atitude mental, são essencialmente modos do pensamento; enquanto que

tomadas formalmente, elas são um certo tipo específico de modo, que se diferencia dos outros

por sua natureza, que é representar.

37 « […] [l’idée] peut être pris matériellement pour une opération de mon entendement , et en ce sens on ne peut pas dire qu’elle soit plus parfaite que moi […] » (AT VII, 8; FA, II, 391). 38 « […] si on considérait [les idées], non pas en tant qu’elles représentent une chose ou une autre, mais seulement comme étant des opérations de l’entendement, on pourrait bien à la vérité dire qu’elles serait prises matériellement […] » (AT IX, 180). 39 « […] toutes et quantes fois qu’elles [les idées] sont considerées en tant qu’elles représentent quelque chose, elles ne sont pas prises matériellement, mais formellement [...] » (AT IX, 180).

Page 44: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

44

É possível considerar, nesse sentido, que ao analisar as ideias sob os aspectos de suas

realidades material, formal e objetiva, Descartes, enfim, consolida a introdução de uma outra

via de análise das ideias cuja preocupação central volta-se para a explicitação de sua natureza

e estrutura. A tríade de aspectos segundo a qual se pode analisar uma ideia diz respeito a essa

elucidação: a natureza de uma ideia é dada pela sua realidade material, que é o pensamento –

ideia é sempre e somente uma operação intelectual; assim como a natureza dessa operação

intelectual, que é a ideia, é restringida e especificada de forma estrutural pelas suas realidades

formal e objetiva, que designam a ideia como uma determinada forma de pensamento, um ato

mental específico, que se realiza na exibição de determinados conteúdos ao intelecto que visam

sempre um objeto que não se reduz ao próprio pensamento.

Por fim, num resumo didático, é razoável dizer que a realidade formal da ideia consiste

no fato de que ela é um certo tipo de ato mental, que é o ato de exibir um certo conteúdo no

pensamento. Já a realidade objetiva da ideia é o conteúdo exibido no intelecto através do ato de

representar. E o que se poderia chamar de realidade material da ideia é sua condição de modo

da mente, o que a assemelha na base a toda e qualquer outra modificação mental: são todas

pensamento.

Com base nisso, vê-se com mais clareza que a nova via de investigação oferecida por

Descartes enfatiza a natureza das ideias por oposição àquela que levava em consideração sua

origem. Dessa forma, torna-se explícito que a investigação sobre uma eventual existência

externa do objeto representado por alguma delas só pode ser efetuada segundo uma análise

introspectiva das ideias, já que a via tradicional, contestada, perdeu seu suporte teórico. Assim,

uma vez que a nova via é capaz de mostrar que enquanto certos atos da mente as ideias são

todas iguais, resta para ser perscrutado o caminho da realidade objetiva, que será melhor

explorado na seção seguinte.

1.4 – Considerações gerais sobre a noção de realidade objetiva da ideia

A fim de melhor explorar o conceito de realidade objetiva pretende-se aqui, de maneira

preliminar, considerar sua definição presente na Exposição Geométrica constante das Respostas

às Segundas Objeções conjuntamente à discussão com Johannes Caterus nas Primeiras

Objeções. O objetivo consiste em elucidar o que significa, para Descartes, afirmar que uma

ideia apresenta um conteúdo mental que possui um tipo de realidade classificada como objetiva.

Desta forma, o intento é esclarecer por que é possível falar que os conteúdos das ideias são reais

Page 45: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

45

e não meramente conceituais, e explicar o que significa esse modo de ser objetivo frente à

concepção tradicional de ser atual.

Descartes define realidade objetiva como “[...] a entidade ou o ser da coisa representada

pela ideia, na medida em que tal entidade está na ideia [...]” (AT VII, 161; CP 179)40. À primeira

vista, o que é dito nessa passagem é que a realidade objetiva de uma ideia é a coisa pensada

existindo por representação na ideia, isto é, a realidade objetiva seria uma espécie de

ser/entidade que possui realidade no pensamento, ou enquanto é pensada. É importante frisar

que objetiva é a maneira pela qual uma coisa existe no pensamento. Isso quer dizer que a

principal característica definidora da realidade objetiva de uma ideia é ser uma realidade no

pensamento, uma entidade que existe por representação no intelecto; diferentemente dos seres

que existem de maneira independente do pensamento e que, por isso, possuem o que Descartes

chama de realidade atual ou formal (e não realidade objetiva).

Essa definição, como já aventado, traz uma série de elementos que precisam ser

clarificados para que possa ser adequadamente compreendida, visto que o entendimento do

conteúdo representado pela ideia como sendo uma realidade no pensamento e sua forma

específica de existência – objetiva – são objeto de críticas, por parte de Caterus, que precisam

ser respondidas com argumentos robustos em nome da consistência da teoria das ideias e

coerência do sistema cartesiano.

Preocupado em questionar a necessidade ou adequação da aplicação do princípio de

causalidade às ideias, que é proposta por Descartes na Terceira Meditação, Caterus apresenta

uma interrogação sobre a concepção de realidade objetiva da ideia elaborada por Descartes, que

o obrigará a oferecer melhores argumentos (dos que os encontrados nas Meditações) para

defender sua posição acerca dessa noção a fim de esclarecer a aplicação às ideias do referido

princípio. Caterus indaga:

(...) de que tipo de causa uma ideia precisa? Aliás, o que é uma ideia? É a coisa que é

pensada à medida que ela tem ser objetivo no entendimento. Mas o que é [o que

significa] ser objetivo no entendimento? De acordo com o que me foi ensinado, é

terminar à maneira de um objeto um ato do entendimento. E isso é meramente uma

denominação extrínseca que nada acrescenta de real à coisa. Tal como ser visto nada

significa além de um ato de visão atribuível a mim mesmo, ser pensado ou ter ser

objetivo no entendimento, significa simplesmente um pensamento da mente que cessa

e se encerra na mente. E isso pode ocorrer sem nenhum movimento ou mudança na

40 « […] l’entité ou l’être de la chose représentée par l’idée, en tant que cette entité est dans l’idée […] » (AT IX, 124).

Page 46: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

46

coisa mesma, e, aliás, sem nem mesmo a coisa em questão existir. Então, por que

deveria eu buscar a causa de uma coisa que não é atual, e que é simplesmente uma

denominação vazia, um puro nada? [...]; a realidade objetiva é tão somente uma

denominação, não é nada atual. Ora, a influência que uma causa transmite é real e

atual; mas o que não existe atualmente não pode recebê-la, e, assim, não pode nem

depender, nem proceder de nenhuma causa verdadeira [...] Dessa forma, embora eu

tenha ideias, não há causas para elas [...]. (AT VII, 92-93)41.

A reflexão de Caterus carrega consigo uma forte crítica à concepção cartesiana de

realidade objetiva. É contra a perspectiva de que o ser objetivo no intelecto é uma realidade que

requer causas explicativas de sua natureza que a passagem citada foi escrita. A argumentação

pode ser reconstruída da seguinte maneira: com o propósito de defender a tese de que as ideias

não carecem de, e não estão submetidas à, causalidade, Caterus necessita evidenciar que elas

são apenas conceitos no intelecto, seres de razão que não comportam nenhum tipo de realidade

(atual) suficiente para estarem submetidas a relações causais, que são especificadas pelo autor,

na citação acima, como aquelas que envolvem transmissão atual ou real de influência.

Causalidade sendo explicada como transmissão atual de influência pode ser compreendida

como a relação em que a produção do efeito pela causa sempre envolve criação da, ou

transformação na, realidade de um objeto que existe atualmente. O objetor, ao questionar-se

sobre o que é o ser objetivo no intelecto, recorre à tradição de sua formação para responder que

se trata da realização “à maneira de um objeto o ato do entendimento”, isto é, trata-se da

delimitação, da finalização de um ato da mente como um objeto. Isso significa que o ser objetivo

concerne exclusivamente a uma ação intelectual, que, como uma “denominação extrínseca”,

nem agrega, nem depende da coisa em si mesma. Caterus, ainda mais explicitamente, afirma

que ser pensado refere-se a uma ação mental que se realiza e se encerra completamente na

mente sem qualquer influência na e da coisa mesma, posto que sequer há a necessidade de uma

coisa atualmente existente como condição para algo ser pensado. Ora, se o ser objetivo das

41 « […] quelle cause requiert une idée ? Ou dites-moi ce que c’est qu’idée ? C’est donc la chose pensée, en tant qu’elle est objectivement dans l’entendement. Mais qu’est-ce qu’être objectivement dans l’entendement ? Si je l’ai bien appris, c’est terminer à la façon d’un objet l’acte de l’entendement, ce qui en effet n’est qu’une dénomination extérieure, et qui n’ajoute rien de réel à la chose. Car, tout ainsi qu’être vu n’est en moi autre chose sinon que l’acte que la vision tend vers moi, de même être pensé, ou être objectivement dans l’entendement, c’est terminer at arrêter en soi la pensée de l’esprit ; ce qui se peut faire sans aucun mouvement et changement en la chose, voire même sans que la chose soit. Pourquoi donc recherché-je la cause d’une chose, qui actuellement n’est point, qui n’est qu’une simple dénomination et un pur néant ? […] ; la réalité objective est une pure dénomination ; actuellement elle n’est rien. Or, l’influence que donne une cause est réelle et actuelle ; ce qui actuellement n’est point, ne la peut pas recevoir, e partant ne peut pas dépendre ni procéder d’aucune véritable cause […] Donc j’ai des idées, mais il n’y a point de causes de ces idées […] » (AT IX, 74).

Page 47: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

47

ideias é apenas uma denominação extrínseca, um ato que acontece e cessa no intelecto, Caterus

tem condições de compreendê-lo como um ser de razão puramente intelectual, de natureza

lógico-conceitual; e não como uma entidade que contenha em si qualquer modo de existência

atual. Assim, se não se trata de algo real ou atual, não há necessidade de que as ideias sejam

causadas, pois, segundo o próprio Caterus, só uma realidade atual pode requerer causa.

Tendo em vista a importância basilar que o conceito de realidade objetiva detém na

definição da natureza e da função das ideias e para a consistência do sistema cartesiano,

Descartes, nas Respostas às Primeiras Objeções, pretende sustentar a noção de realidade

objetiva. Em nome disso, ele pretende mostrar que sua preocupação dirige-se à natureza do

conteúdo das ideias que, ao serem concebidos, são realidades na mente que precisam ser

explicadas causalmente. Descartes diz:

Eu escrevi que uma ideia é a coisa pensada à medida que tem ser objetivo no intelecto.

Porém, para dar-me uma oportunidade de explicar mais claramente essas palavras, o

objetor finge entendê-las de modo bem diferente daquele no qual as utilizei. Ser

objetivamente no intelecto, diz ele, é terminar à maneira de um objeto o ato do

entendimento, e isso é meramente uma denominação extrínseca que nada acrescenta

de real à coisa em si mesma, etc. Note que ele refere-se à coisa em si mesma como se

ela estivesse localizada fora do entendimento, e nesse sentido ser objetivamente no

intelecto certamente é uma denominação exterior; contudo, eu falo da ideia, que nunca

existe fora do intelecto, e nesse sentido ser objetivamente não significa outra coisa

além de ser no entendimento da maneira como os objetos habitualmente são lá. Assim,

por exemplo, se alguém pergunta o que ocorre com o sol do fato de que ele está

objetivamente no meu entendimento, responde-se muito bem que nada ocorre com ele

além de uma denominação exterior, a saber, que ele termina como um objeto a

operação do meu entendimento. (AT VII, 102)42.

Nessa passagem, Descartes considera, talvez ironicamente, que Caterus propositalmente

teria mal interpretado sua posição sobre o que é a realidade objetiva da ideia para dá-lo a chance

42 « Or j’ai écrit en quelque part, que l’idée est la chose même conçue, ou pensée, en tant qu’elle est objectivement dans l’entendement, lesquelles paroles il feint d’entendre tout autrement que je ne les ai dites, afin de me donner occasion de les expliquer plus clairement. Être, dit- il, objectivement dans l’entendement, c’est terminer à la façon d’un objet l’acte de l’entendement, ce qui n’est qu’une dénomination extérieure, et qui n’ajoute rien de réel à la chose, etc. Où il faut remarquer qu’il a égard à la chose même, comme étant hors de l’entendement, au respect de laquelle c’est de vrai une dénomination extérieure, qu’elle soit objectivement dans l’entendement ; mais que je parle de l’idée, qui n’est jamais hors de l’entendement, et au respect de laquelle être objectivement ne signifie autre chose, qu’être dans l’entendement en la manière que les objets on coutume d’y être. Ainsi, par exemple, si quelqu’un demande, qu’est-ce qu’il arrive au soleil de ce qu’il est objectivement dans mon entendement , on répond for bien qu’il ne lui arrive rien qu’une dénomination extérieure, à savoir qu’il termine à la façon d’un objet l’opération de mon entendement […] » (AT IX, 81-82).

Page 48: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

48

de melhor explicá-la. Segundo ele, Caterus, quando afirma que “ser objetivamente no intelecto

é terminar à maneira de um objeto o ato do entendimento” e que isso seria, portanto, apenas

uma denominação extrínseca da coisa mesma, tem como referência a coisa mesma como

existindo fora do pensamento. Nesse sentido, com relação à coisa existindo fora do intelecto,

de fato, conclui Descartes, o ser objetivo no intelecto é uma denominação extrínseca, o que

significa sua independência de qualquer determinação ou influência necessária de objetos

externos ao pensamento.

Ao fim desta passagem, Descartes ressalta que sua fala tratava-se da ideia, que nunca

existe fora do intelecto, e não de qualquer relação entre a ideia e um objeto existente fora do

pensamento, que seria sempre uma relação de designação externa, estranha à natureza do objeto

atual, já que a ideia, como ato do intelecto, não modifica ou influencia a existência dos objetos,

e nem sequer a pressupõe. Neste sentido, o enfoque a ser privilegiado consiste na forma como

o ser objetivo existe na mente. A forma de ser peculiar aos objetos existentes na mente é o

centro da noção de realidade objetiva que Caterus ignorou, segundo Descartes. E é em nome da

precisão dessa visão que ele segue a argumentação:

[...] mas se pergunta-se sobre a ideia do sol o que ela é, e responde-se que se trata da

coisa pensada enquanto ela está objetivamente no entendimento, ninguém

compreenderá que se trata do sol mesmo enquanto essa denominação exterior está

nele. E aqui ser objetivamente no intelecto não significará o término de uma operação

do entendimento à maneira de um objeto, mas sim estar no entendimento da maneira

como seus objetos estão normalmente lá; de tal maneira que a ideia do sol é o sol

mesmo existindo no entendimento; é certo que não existindo formalmente, como ele

está nos céus, mas existindo objetivamente, isto é, da maneira como os objetos

costumam existir no entendimento. Esse modo de ser é claramente muito menos

perfeito que aquele possuído pelas coisas existentes fora do entendimento; mas que,

como eu expliquei, não se trata, no entanto, de um puro nada. (AT VII, 102-103)43.

43 « […] mais si on demande de l’idée du soleil ce que c’est, et qu’on réponde que c’est la chose pensée, en tant qu’elle est objectivement dans l’entendement, personne n’entendra que c’est le soleil même, en tant que cette extérieure dénomination est en lui. Et là être objectivement dans l’entendement ne signifiera pas terminer son opération à la façon d’un objet, mais bien être dans l’entendement en la manière que ses objets ont coutume d’y être ; en telle sorte que l’idée du soleil est le soleil même existant dans l’entendement, non pas à la vérité formellement, comme il est au ciel, mais objectivement, c’est-à-dire en la manière que les objets ont coutume d’exister dans l’entendement : laquelle façon d’être est de vrai bien plus imparfaite que celle par laquelle les choses existent hors de l’entendement ; mais pourtant ce n’est pas un pur rien, comme j’ai déjà dit ci-devant » (AT IX, 82).

Page 49: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

49

Mediante à concepção de que a ideia é a coisa pensada, ninguém poderia supor

razoavelmente, segundo Descartes, que isso significasse (ou que fosse tomado como central

para a questão) a coisa em si mesma com uma denominação extrínseca aplicada a si. O que está

em jogo e é essencial para o conceito de ideia é a existência do objeto no intelecto à maneira

como os objetos lá existem. E a fim de esclarecer esses pontos, Descartes propõe um exemplo

para elucidar as noções de realidade e de ser objetivos. Segundo ele, a ideia do sol é o próprio

sol existindo na mente da forma como as coisas existem lá, a saber, objetivamente, por oposição

à formalmente, que se diz da existência do sol como objeto externo ao pensamento,

independentemente de ser concebido. Isso significa que o sol enquanto pensado possui um tipo

de realidade que é própria das coisas enquanto são pensadas. Por quê? As ideias, porque exibem

na mente conteúdos que são objetos do pensamento e que, à medida que sua delimitação como

objetos os coloca para o pensamento como um outro que não se reduz às operações do próprio

pensamento, possuem realidade objetiva e, portanto, exibem seres reais e não meramente

conceituais. Comparativamente com as coisas que possuem realidade formal – isto é, existem

formalmente e não porque são concebidas – esse modo de ser objetivo é menos perfeito.

Entretanto, porque são realidades no pensamento, não podem ser considerados um puro nada.

Logo, a partir do princípio cartesiano de que “o nada não poderia produzir coisa alguma” (AT

VII, 40; CP 112, §17) e que enseja a interpretação de que tudo aquilo que é (tem ser, tem

realidade) requer uma causa, pode-se concluir que as ideias, porque possuem realidade objetiva,

necessitam de causas que, em última instância, as expliquem.

Dessa forma, pode-se considerar, pelo menos preliminarmente (já que se retornará a isso

em mais detalhes no último capítulo dessa tese) que o argumento cartesiano em favor de que o

conteúdo exibido pelas ideias possuam realidade objetiva é o seguinte: porque as ideias exibem

objetos na mente que são irredutíveis às suas próprias operações, isto é, apresentam conteúdos

determinados que como tal estão diante da mente, mas não são ela, que se pode falar

precisamente nesses objetos como reais. Reais porque não podem ser entendidos como seres de

razão, meramente conceituais, dado que não se reduzem às operações da mente. Esta concepção

vai de encontro àquela sustentada por Caterus ao passo que legitima a tese de que a ideia é uma

entidade real, por oposição à tese de que a ideia é uma entidade meramente lógico-conceitual.

Por se tratar de uma entidade real, de um objeto na mente, Descartes conclui que a realidade

objetiva das ideias necessita de explicação causal que é, em última instância, responsável por

tornar inteligível o porquê o sujeito pensa a variedade de ideias que possui em seu intelecto.

Page 50: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

50

Para finalizar esse exame inicial acerca da teoria cartesiana das ideias, é preciso apontar

que é com apoio na noção de realidade objetiva da ideia que, na Terceira Meditação, Descartes

pode dar sequência ao seu intento de saber se entre as ideias das coisas a que se tem acesso

introspectivo há alguma que seja de algo que existe para fora do pensamento. A via cartesiana

de análise das ideias, ao considerar que os objetos apresentados na consciência pelo ato mental

representativo possuem um tipo de realidade, própria das coisas enquanto elas são pensadas,

permite demonstrar que pelo menos uma ideia é de algo que existe fora do pensamento. Trata-

se, nesse caso, da primeira prova da existência de Deus44, que parte do reconhecimento de que

o conteúdo da ideia de Deus exibe como objeto um ser perfeito, infinito, eterno, imutável etc.

Na sequência, para o fechamento da seção, propõe-se apenas mencionar genericamente o

procedimento da referida prova, sem analisar adequadamente seus passos, para mostrar como,

em função do conceito cartesiano de realidade objetiva da ideia, Descartes argumenta em favor

da existência de um realidade formal distinta do pensamento, que é Deus. Nesse sentido, tome-

se a ideia de Deus como a ideia de alguma coisa perfeita e infinita. Pelo que foi visto, pode-se

dizer que a ideia exibe um conteúdo que é real, porque se trata de um objeto para a consciência

e não de uma afecção do sujeito. Enquanto alguma coisa de real no pensamento, o conteúdo da

ideia de Deus precisa ser explicado causalmente a fim de que se possa compreender porque é

ideia de Deus e não de outra coisa. A ideia de Deus, por ser a ideia de alguma coisa perfeita e

infinita, deve ter como causa alguma coisa ao menos tão perfeita e infinita quanto ela, pois,

segundo o princípio de causalidade em operação nas Meditações, o menos perfeito não pode

ser causa do mais perfeito. Desse modo, se a ideia de Deus possui um grau de realidade objetiva

maior que aquele que a mente possui, já que a mente é finita e imperfeita, a causa da ideia de

Deus não pode ser o sujeito. Tem de ser, então, algo externo a ele. E isso que é externo ao

sujeito e que pode ser causa da ideia que o sujeito tem de Deus, deve ser Deus mesmo existente

fora da mente como uma realidade formal, uma coisa, eterna, perfeita e infinita.

44 Cf. AT VII, 40-45; CP, 113-115, §§16-22.

Page 51: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

51

2 MALEBRANCHE LEITOR DE DESCARTES: A NATUREZA DAS IDEIAS E SEU

PAPEL NA PERCEPÇÃO

A noção de realidade objetiva proposta por Descartes apresenta para a teoria cartesiana

das ideias uma complexidade ligada ao fato de trazer para a ideia uma ambiguidade que se pode

descrever da seguinte maneira: trata-se de um ato da mente que tem por função exibir um

conteúdo como objeto para a consciência. Dessa forma, a ideia é simultaneamente uma

operação mental específica de representação de alguma coisa como objeto e um conteúdo

determinado exibido no intelecto. Enquanto operação mental, as ideias possuem a mesma

realidade formal, pois são o mesmo tipo de ato representativo do pensamento. Mas enquanto

representativas de objetos, as ideias contêm realidade objetiva e não são um “puro nada” (AT

VII, 103; AT IX, 82), um não-ente no intelecto e, por esse motivo, de acordo com Descartes,

ela pode estar submetidas a relações causais, que, então, são capazes de explicar por que as

ideias diferenciam-se umas das outras no que diz respeito ao conteúdo que apresentam na

mente.

O fato de Descartes ter pensado as ideias da maneira como pensa, a saber, como um

evento mental capaz de representar objetos que não se reduzem à mera operação da mente,

como objetos que são, enquanto pensados, alguma coisa de real, possuem realidade no

pensamento, pode ser lido como o estopim de um grande debate acerca do que é uma ideia e

como funciona a percepção. Isso porque ele pode ser tomado como o centro de uma polêmica

que motivará um intenso debate entre Malebranche e Arnauld acerca do que é propriamente

uma ideia, que desemboca numa querela acerca do objeto imediato da percepção. O caráter

ambíguo da teoria cartesiana é interpretado por Malebranche, como se verá, a partir do que se

considera aqui uma radicalização da noção de realidade objetiva empregada por Descartes, isto

é, a partir de uma consideração de que a ideia refere-se, diz respeito, ao conteúdo representativo

percebido pelo sujeito e não propriamente a um ato, ou modificação da mente. Essa

radicalização é frontalmente criticada por Arnauld, que, em nome do resgate da interpretação

correta de Descartes, procura combatê-la.

Tendo isso em vista, nesse capítulo, discutir-se-á a teoria malebranchista da percepção

com o objetivo de elucidar em que medida trata-se de uma teoria diferente da de Descartes, por

que Malebranche propõe o que ele supõe ser uma reinterpretação da teoria cartesiana e quais

são os aspectos próprios da teoria desenvolvida por Malebranche.

Page 52: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

52

2.1 A concepção malebranchista de ideia em De la Recherche de la Vérité

2.1.1 As ideias são os objetos imediatos da percepção

No livro III, parte II, capítulo 1 de seu livro De la Recherche de la Vérité, doravante

Recherche, Malebranche apresenta sua concepção de ideia no contexto da introdução da tese

de que a percepção dos objetos externos a nós não se dá diretamente. Malebranche afirma:

Eu penso que todos concordam com que nós não percebemos os objetos externos a

nós por eles mesmos. Nós vemos o sol, as estrelas e uma infinidade de objetos

externos a nós; e é improvável que a alma deixe o corpo para passear pelos céus, por

assim dizer, a fim de contemplar todos esses objetos. (OCM, I, 413)45.

Segundo a citação acima, a alma percebe diversos objetos, em diversas condições

espaciais distintas. Entretanto, é inverossímil supor que ela se afaste do corpo para perambular

por entre os diversos objetos que percebe em diferentes condições a fim de observá-los. Nessa

afirmação, Malebranche reconhece como um dado o fato de a alma perceber uma infinidade de

objetos externos a si mesma. Mas, trata como problemática a suposição de que essa percepção

ocorra diretamente, pois, segundo ele, não seria razoável pensar que a alma pudesse abandonar

o corpo em direção aos objetos externos que ela percebe.

É preciso aqui compreender o porquê de Malebranche tomar essa última afirmação

como argumento em favor da tese de que os objetos externos não são percebidos diretamente.

Numa primeira análise, pode-se observar que ainda que não esteja explícita nessa citação a sua

justificativa, o que a torna aparentemente arbitrária, Malebranche pode afirmá-la como

consequência do que nela está implícito como um pressuposto muito importante para sua teoria

da percepção. Esse pressuposto admite que é necessário que haja a presença imediata do objeto

percebido para aquele que o percebe. Sem um pressuposto como esse, não se poderia defender

tão categoricamente a noção explícita na citação de que a percepção que a alma tem da

diversidade de objetos que ela percebe não pode ser explicada senão pela presença, pela

proximidade da alma com cada um dos objetos, isto é, de que não há percepção à distância.

Entretanto, no contexto dessa primeira análise, ainda que aparentemente o texto dê a entender

45 «Je croi que tout le monde tombe d’accord, que nous n’appercevons point les objets qui sont hors de nous par eux-mêmes. Nous voyons le Soleil, les Étoiles, & une infinité d’objets hors de nous ; & il n’est pas vraisemblable que l’âme sort du corps, & qu’elle aille, pour ainsi dire, se promener dans les cieux, pour y contempler tous ces objets» (OCM, I, 413).

Page 53: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

53

que a necessidade da presença imediata do objeto no ato perceptivo envolva a noção de

distância e proximidade física, pretende-se frisar a interpretação de que o texto trata

propriamente da “distância” ontológica existente entre as coisas materiais e as espirituais, que

possuem naturezas distintas. Essa leitura apoia-se na compreensão de que o pressuposto da

necessidade da presença real do objeto no momento da percepção é especificado pela passagem

em seguida:

Ela [a alma] não os vê [os objetos] por eles mesmos, e o objeto imediato da nossa

mente quando ela vê o sol, por exemplo, não é o sol, mas algo que está intimamente

ligado à nossa alma [...] Eu me refiro aqui a nada além do objeto imediato, ou do

objeto mais próximo da mente quando ela percebe alguma coisa, isto é, aquele que

afeta e modifica a mente com a percepção que ela tem de um objeto (OCM, I, 413-

414)46.

A passagem do texto vista acima traz um complemento ao pressuposto de que não é

possível haver percepção sem que o objeto esteja imediatamente presente para a alma que

percebe. Esse complemento consiste na ideia de que essa proximidade, essa presença imediata,

significa algo a mais que a mera relação espacial entre o objeto da percepção e a alma. Esse

algo a mais acrescentado concerne à tese de que é necessário haver uma espécie de comunidade

de tipo ontológico entre a alma e o objeto percebido. Assim sendo, o pressuposto da presença

do objeto para a alma que percebe é especificado por esse adendo, dando um acabamento mais

preciso, até o momento, à teoria da percepção de Malebranche. Para que haja percepção é

necessária a presença imediata do objeto, entretanto essa presença não se resume à proximidade

espacial, mas significa a ligação íntima entre a alma e o objeto percebido; ligação essa que se

dá entre coisas da mesma natureza, a saber, entre uma alma espiritual e um objeto espiritual

capaz de afetá-la, modificá-la etc., e que explica a ocorrência da própria percepção. Em razão

disso, a improbabilidade da suposição de que a alma abandone o corpo para contemplar

diferentes objetos externos a ela não se restringe à impossibilidade da percepção à distância,

mas envolve fundamentalmente a impossibilidade de que as coisas externas (materiais, nesse

caso), por possuírem uma natureza distinta a da alma, jamais possam estar realmente presentes

para ela a fim de que sejam percebidas por si mesmas: “mas falo aqui principalmente sobre as

coisas materiais, que certamente não podem estar ligadas a nossa alma da maneira necessária

46 « Elle ne les voit donc point par eux-mêmes, & l’objet immédiat de nôtre esprit, lorsqu’il voit le Soleil par exemple, n’est pas le Soleil, mais quelque chose qui est intimement unie à nôtre ame […], je n’entends ici autre chose, que ce qui est l’objet immédiat, ou le plus proche de l’esprit, quand il apperçoit quelque objet, c’est- à -dire ce qui touche & modifie l’esprit de la perception qu’il a d’un objet » (OCM, I, 413-414).

Page 54: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

54

para que ela as perceba, pois como as coisas materiais são extensas e a alma é inextensa, não

há relação entre elas.” 47 (OCM, I, 417)

Desse modo, nessa primeira leitura, o texto de Malebranche, apesar de aparentemente

arbitrário quando apresenta a tese de que as coisas externas não podem ser percebidas por elas

mesmas, deixa transparecer a seguinte estrutura argumentativa:

- Por que as coisas externas não podem ser percebidas por elas mesmas?

. Porque a alma só percebe diretamente o que está realmente presente para ela. Essa

afirmação consiste num pressuposto que consta na passagem do texto da Recherche no

qual Malebranche afirma, como visto acima, que a alma não pode abandonar o corpo para

ir ao encontro dos objetos externos a ela a fim de contemplá-los. Dessa maneira, é em

função da “distância” existente entre a alma e os objetos externos que ela não os pode

perceber diretamente. E por isso o pressuposto da necessidade da presença real do objeto

no momento da percepção revela-se no texto.

- E o que significa estar realmente presente para a alma? Trata-se meramente de uma

proximidade espacial?

. Estar realmente ou imediatamente presente para a alma vai além de proximidade espacial

e diz respeito fundamentalmente à capacidade de afecção, ou modificação, que o objeto

é capaz de operar na alma. Em sendo assim, é necessário que, entre a alma e o objeto

percebido, haja uma comunidade de tipo ontológico que autorize a relação de afecção, o

que significa, por fim, que apenas objetos espirituais podem ser diretamente percebidos

pela alma. É importante relembrar que, como visto acima, a interpretação do pressuposto

da presença real a partir da necessidade de compartilhamento da mesma natureza entre a

alma e o objeto percebido é corroborada por passagens textuais em que Malebranche frisa

que o objeto imediato da percepção é aquele mais próximo da alma no sentido não de

proximidade física e sim no sentido de ser capaz de afetá-la no momento da percepção.

. Por tudo isso, é preciso concluir que a alma não pode perceber diretamente as coisas

externas, notadamente as coisas materiais (que são o foco do interesse de Malebranche

47 « Mais je parle principalement ici des choses matérielles qui certainement ne peuvent s’unir à nôtre ame, de la façon qui est nécessaire afin qu’elle les apperçoive : parce qu’étant étenduës, & l’ame ne l’étant pas, il n’y a point de rapport entr’elles » (OCM, I, 417).

Page 55: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

55

no capítulo em análise), pois, por sua natureza, elas não podem jamais estar realmente

presentes para a alma no momento da percepção.

A reconstrução dos argumentos acerca da impossibilidade de que a alma perceba

diretamente os objetos externos feita até aqui priorizou o pressuposto implícito no texto da

necessidade da presença real do objeto no momento da percepção. É importante fazer referência

aqui à análise argumentativa de Gueroult (1955, p. 83-88) acerca desse tema, que se desenvolve

em torno das teses da invisibilidade e da ininteligibilidade dos corpos por si mesmos. Essa

análise também está fundada na distância ontológica entre a alma e os objetos externos, ou seja,

na impossibilidade da ocorrência de relações entre substâncias de naturezas distintas, como a

alma espiritual e os corpos extensos. Em resumo, pode-se compreender a argumentação de

Gueroult, em favor da tese de que as coisas externas não são percebidas diretamente, a partir

da seguinte estrutura: 1) partindo da distinção ontológica das substâncias espiritual e extensa,

de onde se depreendem a incapacidade do estabelecimento de ações dos objetos externos sobre

a alma, bem como a impenetrabilidade dos corpos pela alma, isto é, de onde se depreende a

interdição de relações mútuas entre substâncias distintas; é preciso deduzir que os corpos não

atingem diretamente a alma 2) nem através das sensações, 3) nem através do intelecto; pois,

como exposto no início, não há relação direta possível entre coisas de naturezas diferentes. A

seguir, passa-se à exposição dos argumentos.

A tese da invisibilidade dos corpos (GUEROULT, 1955, p.87), que se verifica, na

verdade, como sendo uma tese acerca da insensibilidade dos corpos, resulta do argumento da

subjetividade das sensações que, por um lado, torna-se claro diante do fenômeno da alucinação

e do erro dos sentidos. Essas situações demonstram o caráter puramente interno à alma e

independente da existência de qualquer correspondente externo que as sensações possuem. É

sabidamente possível experimentar como que sensivelmente, por exemplo, a existência de

objetos dispostos numa determinada circunstância, inclusive coerente, e que, no entanto, não

passam de meras ilusões oníricas, isto é, independentes de qualquer relação com as coisas

materiais externas. E isso constitui, para Gueroult, a prova de Malebranche acerca do caráter

subjetivo das sensações. Por outro lado, o comentador também afirma que o aspecto subjetivo

das sensações resulta indiscutivelmente da distinção48 de natureza entre as substâncias

espiritual e extensa. As sensações não podem ser modificações da substância extensa, uma vez

48 Gueroult fala propriamente em separação das substâncias: “Ce caractère subjective [des sensations] résulte d’autre part inéluctablement de la séparation des substances” (GUEROULT, 1955, p.87).

Page 56: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

56

que elas são percebidas diretamente pela alma e, por isso, expressam a experiência de uma

imediaticidade inexprimível na relação da alma com os corpos. Dessa forma, as relações de

distância ontológica entre a alma e os corpos implicam na compreensão das sensações

(imediatamente percebidas pela alma) como modificações da própria alma, irredutíveis e

independentes dos corpos. Sendo assim, os corpos são invisíveis (ou insensíveis) por si

mesmos, isto é, não atingem diretamente a alma por meio da sensibilidade.

Gueroult (1955, p.87-88) também apresenta, na sequência, uma reconstrução dos

argumentos de Malebranche para defender a tese de que os corpos não atingem diretamente a

alma pela inteligibilidade (ou pelo entendimento) à medida que em si mesmos eles são

ininteligíveis. Isso porque só é inteligível aquilo que é capaz de iluminar, esclarecer, elucidar a

alma. Nesse sentido, para Gueroult, apenas ilustra a alma aquilo que é capaz de agir sobre ela.

Ora, em função da já citada distância ontológica, os corpos não podem agir sobre a alma, pois

apenas coisas espirituais, bem como coisas superiores à alma podem fazê-lo. Por esse motivo,

as coisas externas não podem esclarecer a alma, de modo que elas permanecem em si mesmas

ininteligíveis e incapazes, portanto, de atingir diretamente a alma.

Em resumo, pretendeu-se aqui demonstrar argumentativamente por que Malebranche

admite que as coisas externas não podem ser percebidas por elas mesmas. A distância

ontológica entre a alma espiritual e as coisas externas extensas é o que funda a tese

malebranchista e o que permitiu o desenvolvimento das apresentações argumentativas

realizadas até aqui.

A consequência dessa argumentação aparece logo em seguida no texto em questão,

quando Malebranche propõe-se a explicar de que maneira, então, a alma percebe uma variedade

de objetos externos, independentemente de eles estarem realmente presentes para ela.

Retomando a tese central de que os objetos não são percebidos por eles mesmos, ou seja,

diretamente, Malebranche conclui que o que é percebido pela alma mediante à variedade dos

objetos em inúmeras condições diferentes não é nem o sol, nem as estrelas etc., mas sim, como

visto acima, algo que está “intimamente ligado” à alma, próximo a ela e que é capaz de afetá-

la. Isso que afeta a alma no contexto da percepção são as ideias: “[...] o objeto imediato da

nossa mente quando ela vê o sol, por exemplo, não é o sol, mas algo que está intimamente

ligado à nossa alma, e isso é o que eu chamo de ideia.”49 (OCM, I, 413-414).

49 « […] l’objet immédiat de nôtre esprit, lorsqu’il voit le Soleil par exemple, n’est pas le Soleil, mais quelque chose qui est intimement unie à nôtre ame ; & c’est ce que j’appelle idée » (OCM, I, 413-414).

Page 57: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

57

A ideia é o objeto que está estreitamente ligado à alma; é para ela que a alma se dirige

no momento da percepção dos objetos externos, de modo que é ela que constitui o objeto

imediato da percepção que a alma tem desses objetos externos a si mesma. Nesse sentido, a

ideia, segundo Malebranche, não apenas é o objeto mais próximo da alma no momento da

percepção, mas é o que, pela alma, é efetivamente percebido. Numa fórmula pouco precisa,

mas que funciona bem como elucidação, pode-se afirmar que numa tal compreensão a causa da

percepção que se tem dos objetos externos são as ideias e não as coisas: “ assim, com a palavra

ideia, eu quero aqui dizer apenas que se trata do objeto imediato, ou o objeto mais próximo da

mente, quando ela percebe alguma coisa, isto é, aquilo que afeta e modifica a mente com a

percepção que ela tem de um objeto”50 (OCM, I, 414).

Ao considerar-se essas passagens, é possível compreender que Malebranche introduz

uma certa noção de ideia (que será explorada adiante) como objeto da percepção para elucidar

a capacidade perceptiva que a alma tem das coisas materiais externas num quadro em que o

pressuposto de que não há percepção sem a presença real de um objeto capaz de afetar a alma

fornece os contornos da teoria da percepção em voga. É com o intuito de explicar o quê, então,

é percebido pela alma quando ela pensa o sol, as estrelas, entre outras coisas materiais (que não

podem, por constituírem objetos de uma natureza distinta, afetar a alma no momento da

percepção) que as ideias, como os objetos mais próximos da alma e capazes de afetá-la,

aparecem. E aparecem na teoria malebranchista da percepção como aquilo que é

verdadeiramente percebido.

2.1.2 O status ontológico das ideias: primeiros aspectos

Cabe nesse momento observar a seguinte passagem: “Deve-se notar com atenção que

para a mente perceber um objeto, é absolutamente necessário que a ideia desse objeto esteja

atualmente presente para ela...”51 (OCM, I, 414). Nela é afirmado apenas, ao menos

aparentemente, que a percepção de um objeto se dá em virtude de uma ideia que o representa

como tal para a mente. Ora, nesse sentido não se poderia dizer tranquilamente que a concepção

malebranchista de ideia diverge fundamentalmente da concepção cartesiana. Afinal, ideia é para

50 « Ainsi par ce mot idée, je n’entends ici autre chose, que ce qui est l’objet immédiat, ou le plus proche de l’esprit, quand il apperçoit quelque objet, c’est-à-dire ce qui touche & modifie l’esprit de la perception qu’il a d’un objet » (OCM, I, 414). 51 « Il faut bien remarquer qu’afin que l’esprit apperçoive quelque objet, il est absolument nécessaire que l’idée de cet objet lui soit actuellement présent […] » (OCM, I, 414).

Page 58: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

58

Descartes52, de modo geral (visto que isso é melhor desenvolvido em outros momentos dessa

tese), a forma pela qual a mente concebe conteúdos determinados, isto é, a maneira como a

percepção de objetos se dá53. Malebranche segue a passagem com uma defesa também muito

próxima da que leva Descartes a sustentar, contra Caterus54, que a realidade objetiva das ideias,

não é um puro nada55. Ele diz:

Quando, por exemplo, um homem imagina uma montanha dourada, é absolutamente

necessário que a ideia dessa montanha esteja realmente presente para sua mente.

Quando um louco, ou alguém dormindo, ou alguém com febre alta vê um animal

diante de seus olhos, é certo que aquilo que ele vê não é um [puro] nada e que, então,

a ideia desse animal verdadeiramente existe: embora a montanha dourada e o animal

jamais tenham existido.56 (OCM, I, 414).

Nesse momento do texto, aparentemente, Malebranche está sustentando a tese de que

porque se pode perceber objetos que de fato não existem, ou seja, considerando a experiência

da percepção que envolve um erro existencial, as ideias desses objetos não podem ser um puro

nada. Tendo em vista o pressuposto da necessidade da presença real do objeto para que a

percepção ocorra, o caso do erro existencial explica-se apenas, para Malebranche, em função

do fato de que a ideia que representa determinado objeto possua realidade. É porque a ideia não

se resume a um puro nada que se pode entender como ocorre a percepção de objetos que na

verdade não existem: as ideias, independentemente da existência ou não dos objetos que

representam, são reais, e são elas aquilo que é diretamente percebido.

No entanto, se a aparência aqui aponta para a semelhança da compreensão

malebranchista com a cartesiana, apresentada no capítulo 1, mas que será melhor elaborada no

capítulo 4, é prudente levar-se em consideração um aspecto dessa passagem que pode demarcar

a diferença entre elas. Note-se bem que Malebranche é preciso na afirmação de que a ideia

desse animal, independentemente de a percepção consistir num devaneio ou não, “realmente

52 “Par le nom d’idée j’entends cette forme de chacune des nos pensées, par la perception immédiate de laquelle nous avons connaissance de ces mêmes pensées...” (Exposição Geométrica: AT, IX, 124). 53 Cf. capítulos 1 e 4. 54 Cf. Respostas às Primeiras Objeções: AT VII, 101-105; AT IX, 81-84. 55 “…être objectivement ne signifie autre chose, qu’être dans l’entendement en la manière que les objets ont coutume d’y être […] laquelle façon d’être est de vrai bien plus imparfaite que celle par laquelle les choses existent hors de l’entendement; mais pourtant ce n’est pas un pur rien…” (Primeiras Respostas: AT IX, 82) 56 « Lorsqu’un homme, par exemple, imagine une montagne d’or, il est absolument nécessaire que l’idée de cette montagne soit réellement présent à son esprit. Lorsqu’un foû, ou un homme qui a la fièvre chaude ou qui dort, voit comme devant ses yeux quelque animal, il est constant que ce qu’il voit n’est pas rien, & qu’ainsi l’idée de cet animal existe véritablement : mais cette montagne d’or & cet animal ne furent jamais » (OCM, I, 414).

Page 59: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

59

existe”. É segundo essa afirmação, aliada a outra mais à frente que diz que “é indubitável,

portanto, que ideias tenham uma existência muito real.”57 (OCM, I, 415), que se delimita a

distinção entre a concepção de realidade objetiva na teoria cartesiana das ideias58 e a noção de

ideia empregada por Malebranche. Para Descartes, como será adequadamente visto, a realidade

objetiva diz respeito, a princípio, ao conteúdo representativo das ideias, ou seja, trata-se do

aspecto representativo do ato mental de se ter uma ideia, que por sua natureza representa

determinados conteúdos como coisas – coisas essas dispostas como objetos determinados para

o intelecto e que por esse motivo não podem ser reduzidas ao puro nada. Não consistirem em

um puro nada significa apenas que o conteúdo das ideias possui alguma realidade no

pensamento enquanto expresso por um ato perceptivo; realidade essa que é por representação

no entendimento e é muito imperfeita em comparação com a realidade dos objetos existentes:

[...] estar objetivamente no entendimento não significará terminar sua operação à

maneira de um objeto, mas sim estar no entendimento da maneira que seus objetos

têm o costume de nele estar; de tal forma que a ideia do sol é o sol mesmo existindo

no entendimento, na verdade, não formalmente como ele está no céu, mas

objetivamente, isto é, da maneira como os objetos têm o costume de existir no

entendimento: maneira de ser que é muito mais imperfeita que aquela pela qual as

coisas existem fora do entendimento; mas, no entanto, isso não é um puro nada, como

eu já disse [...] (Resposta às Primeiras Objeções: AT, VII, 102-103)59

As afirmações categóricas de Malebranche acerca da existência das ideias apontam para

a interpretação de que elas constituem objetos à maneira dos objetos atualmente existentes

(como esses são compreendidos por Descartes). Nesse sentido, ideia para Malebranche parece

não dizer respeito ao conteúdo representativo expresso num ato mental (o ato perceptivo), ou

seja, parece não ser uma modificação da mente; mas sim uma existência real que consiste em

um objeto representativo que é distinto do próprio ato de perceber.

57 « Il est donc indubitable que les idées ont une existence tres-réelle » (OCM, I, 415). 58 “Par la réalité objective d’une idée, j’entends l’entité ou l’être de la chose représentée par l ídée, en tant que cette entité est dans l’idée; et de la même façon, on peut dire une perfection objective, ou un artifice objective, etc. Car tout ce que nous concevons comme étant dans les objets des idées, tout cela est objectivement, ou par représentation, dans les idées mêmes.” (Exposição Geométrica: AT, IX, 124) 59 “[…] être objectivement dans l’entendement ne signifiera pas terminer son opération à la façon d’un objet, mais bien être dans l’entendement dans la manière que ses objets ont coutume d’y être ; en telle sorte que l’idée du soleil est le soleil même existant dans l’entendement, non pas à la vérité formellement, comme il est au ciel, mais objectivement, c’est-à-dire en la manière que les objets ont coutume d’exister dans l’entendement : laquelle façon d’être est de vrai bien plus imparfaite que celle par laquelle les choses existent hors de l’entendement ; mais pourtant ce n’est pas un pur rien, comme j’ai déjà dit […] (Réponses aux Premières Objections : AT, IX, 82)

Page 60: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

60

Entende-se aqui o reforço da noção de ideia como um objeto existente, uma terceira

entidade, como o primeiro argumento em favor do status ontológico peculiar da ideia no

pensamento de Malebranche. Diz-se peculiar porque a concepção malebranchista de ideia,

como se quer sugerir, difere radicalmente da cartesiana à medida que distingue ontologicamente

o ato perceptivo e o conteúdo representativo. Enquanto o ato perceptivo constitui um dos

diversos atos constantes das modificações da alma (tal como o é para Descartes), o conteúdo

representativo, ou a ideia, é concebido como um objeto, uma entidade ontologicamente distinta

e irredutível a esse ato. Em função de sua natureza representativa, como será visto à frente, a

ideia não se reduz às modificações da alma. Por esse motivo, ela não se constitui, como para

Descartes, segundo a leitura que se pretende sugerir, apenas como o término, ou resultado do

ato perceptivo. Para Malebranche, a ideia é o objeto espiritual representativo, independente das

modificações mentais, que é diretamente percebido pela alma.

Um segundo argumento que pretende corroborar a interpretação em favor do caráter

ontológico especial das ideias (comparativamente à tradição cartesiana) encontra-se no fato de

Malebranche considerar que as ideias independem da existência atual das coisas. Ele diz que

“[...] não é necessário que haja qualquer coisa externa de semelhante a essa ideia.”60 (OCM, I,

414). Como é considerado no capítulo 1, é certo que para Descartes, o conteúdo das ideias não

é necessariamente explicado por nenhuma realidade formal semelhante a ele, isto é, a realidade

objetiva das ideias não envolve uma conexão direta entre o conteúdo que apresenta à mente e

uma realidade formal que lhe corresponda. Entretanto, ao fim da exposição do sistema

cartesiano, após as provas existenciais, verifica-se que a realidade objetiva de algumas ideias

depende de Deus como sua causa formal, por um lado (como no caso das naturezas verdadeiras

e imutáveis, que são essências criadas por Deus), e dos objetos externos como, pelo menos,

causa ocasional das ideias de sensação, por outro lado (ainda que esses objetos apenas

sinalizem, segundo sua variação mecânica, o que se constituirá como conteúdo representacional

das ideias de sensação). Dessa maneira, é ao menos superficial supor que, para Descartes, a não

necessidade de uma causa formal semelhante ao conteúdo das ideias indique o mesmo grau de

independência61 entre ideia e coisa existente que aquele sugerido pelo texto de Malebranche.

Repare que a construção do conceito de ideia como objeto representativo distinto das operações

da mente para Malebranche cumpre também (como visto) a função de explicar a percepção real

de objetos inexistentes, ou fictícios. Só há percepção mediante a presença real dos objetos

60 « […] il n’est pas nécessaire qu’il y ait au-dehors quelque chose de semblable à cette idée (OCM, I, 414). 61 Essa forte independência tornar-se-á mais clara adiante quando a exposição der conta de que as ideias não possuem qualquer relação com o mundo externo.

Page 61: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

61

percebidos. Logo, o conteúdo representativo das ideias para Malebranche, se ele é capaz de

apresentar de forma real para a alma um objeto inexistente como objeto, é porque ele em si

mesmo é o objeto diretamente percebido. E, em sendo assim, é completamente independente

dos objetos realmente existentes. O ponto aqui é frisar a concepção de que o conteúdo

representativo das ideias não se explica, não tem relação causal com as coisas e isso ficará mais

claro na próxima seção em que a tese da visão das ideias em Deus será tematizada.

Um terceiro argumento62 em favor do entendimento de que ideias são objetos, entidades

representativas distintas do ato perceptivo, diz respeito à definição do seu status ontológico

tendo em vista a alma. O pressuposto que embasa esse argumento é o da necessidade de

comunidade de tipo ontológico entre a alma que percebe e o objeto percebido. Assim, esse é o

argumento que desenvolve e torna mais precisa a tese da irredutibilidade do conteúdo

representativo ao ato perceptivo anunciada no primeiro argumento exposto anteriormente. É o

argumento que sustenta que a percepção do objeto não pode ser explicada como a mera

modificação mental do ato de perceber, já que ela envolve um conteúdo representativo que é

distinto da própria mente à medida que introduz um elemento necessariamente externo a ela.

Diferentemente da concepção cartesiana que afirma ideias como atos mentais representativos,

Malebranche não as considera como sendo modificações da mente, e, nesse sentido, as ideias

não estão na/não são a alma. Isso porque, segundo o autor, tudo o que pode ser percebido recai

unicamente nas duas possibilidades seguintes: ou está na alma, ou está fora da alma. Aquilo

que está na alma, a saber, os modos de pensamento – tais como as sensações, imaginações,

intelecções puras etc. – pode ser percebido diretamente porque é a própria alma enquanto se

modifica, ou seja, é de alguma maneira transparente para ela mesma. É bom lembrar que por

modos do pensamento, Malebranche entende aquilo de que a alma é imediatamente consciente

enquanto ela experimenta sua própria interioridade. Em resumo, os modos de pensamento, que

se resumem às operações da alma, são imediatamente percebidos pela alma sem a necessidade

de mediação de qualquer conteúdo representativo intermediário (sem a necessidade de ideias,

portanto) porque são a própria alma:

As coisas que estão na alma são seus próprios pensamentos, isto é, todas as suas várias

modificações [...] nossa alma não necessita de ideias para perceber essas coisas do

62 Esse mesmo argumento aqui reconstruído a partir do texto da Recherche aparece no volume I da clássica obra de Martial Gueroult sobre a filosofia de Malebranche sob o título de “Argumento da incapacidade da alma de fundar por si mesma um conhecimento do objeto” (GUEROULT, 1955, p.93-94).

Page 62: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

62

modo como percebe, pois elas estão na alma, ou melhor, porque elas não são nada

além da alma em si mesma existindo dessa ou daquela maneira [...]63 (OCM, I, 415).

Entretanto, aquilo que está fora da alma não pode ser por ela diretamente percebido.

Isso porque, como já visto acima, à medida que é algo externo (não é a própria alma), não se

encontra intimamente ligado à alma do modo necessário para que haja percepção. E é por isso

que aquilo que é externo só pode ser percebido através de ideias, que são os objetos

intermediários entre o ato perceptivo da alma e a coisa externa existente: “Mas quanto às coisas

externas à alma, nós podemos percebê-las somente por meio de ideias, já que essas coisas não

podem estar intimamente unidas a nossa alma” (OCM, I, 415)64.

Sendo assim, ideias possuem um status ontológico distinto do de modificação do

pensamento, pois elas consistem em representações de coisas no pensamento, isto é, a ideia é o

objeto do pensamento quando ele pensa coisas que não se reduzem aos atos da mente, ou seja,

coisas externas, distintas das meras operações mentais. Ideias são, nesse sentido, entendidas por

Malebranche como objetos intermediários entre as operações do pensamento e as coisas

externas porque elas se distinguem ontologicamente tanto de um, quanto de outro. Isso é assim

porque enquanto objeto representativo de coisas que não são o próprio pensamento, uma ideia,

segundo Malebranche, não pode ser constituída pelas operações do pensamento. Visto que são

conteúdos representativos diferentes e irredutíveis ao ato de perceber (são distintos,

propriamente falando, das afecções da mente), as ideias distinguem-se ontologicamente das

meras operações mentais, pois essas operações, por serem modificações da alma, apenas podem

exibir os modos de ser da própria alma, enquanto as ideias exibem conteúdos distintos da alma.

Porque são ontologicamente distintas das operações da alma, as ideias são, então, entidades

representativas independentes dela que, por seu caráter espiritual e representativo, constituem

os objetos diretamente percebidos pela alma no lugar das coisas materiais externas.

É importante retomar e frisar aqui que essa externalidade do objeto representativo se dá

em função do entendimento malebranchista de que na alma só há operações, atos; de modo que,

todo conteúdo representativo percebido é externo à alma e irredutível ao ato perceptivo. Como

63 « Celles [les choses] qui sont dans l’ame sont ses propres pensées, c’est-à-dire, toutes ses différentes modifications […] nôtre ame n’a pas besoin d’idées pour appercevoir toutes ces choses de la manière dont elle les apperçoit, parce qu’elle sont au-dedans de l’ame, ou plûtôt parce qu’elle ne sont que l’ame même d’une telle ou telle façon […] » (OCM, I, 415)

64 « Mais pour les choses qui sont hors de l’ame, nous ne pouvons les appercevoir que par le moyen des idées, supposé que ces choses ne puissent pas lui être intimement unies » (OCM, I, 415).

Page 63: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

63

dito anteriormente, as coisas externas são percebidas pela alma através das ideias, mas essas

ideias não são modificações do próprio pensamento, e isso se explica pela sua função de

apresentar para a alma aquilo que não é ela mesma (apresentar conteúdos e não apenas os atos),

de forma que as ideias não podem configurar modos de ser da própria alma justamente porque

elas são representações de coisas distintas dela. Desse modo, ideias têm um status ontológico

distinto tanto das modificações do pensamento, quanto da realidade atual das coisas existentes:

ideias são uma espécie de terceira entidade intermediária cuja função é representar. Em suma,

pode-se afirmar que ideias são entidades representativas no pensamento malebranchista porque

elas, pela função que ocupam de representar coisas externas à alma, não podem ser

compreendidas como meras modificações mentais. Enquanto as modificações do pensamento

são diretamente percebidas pela alma porque consistem apenas na própria alma sendo de um

jeito ou de outro, as ideias apresentam à alma aquilo que é distinto dela, não podendo

configurar, portanto, um modo de ser da própria alma.

Assim, em resumo, se as ideias não são a própria alma, pois na alma só há atos, enquanto

as ideias são conteúdos; então, elas são outra coisa. Isso que elas são também não pode ser

confundido com os objetos atualmente existentes, já que esses não possuem a capacidade de

afetar a alma como é necessário para que ocorra a percepção. Então, se as ideias não são nem a

própria alma, nem as coisas mesmas existentes, elas só podem ser entidades representativas

intermediárias entre a alma e as coisas existentes.

* * *

Com o intuito de expor a concepção malebranchista de ideia na Recherche, esse texto

dedica-se a interpretar passagens significativas correlacionadas ao tema a fim de reconstruir a

argumentação por trás da tese que abre o capítulo 1 do livro III: os objetos externos não são

percebidos diretamente. É para dar conta de uma teoria da percepção que tem como pressuposto

a tese de que apenas um certo tipo de objeto, a saber, um objeto espiritual pode ser diretamente

percebido pela mente que Malebranche cunha sua noção de ideia. Ideia, portanto, na teoria da

percepção malebranchista é o objeto imediato da percepção das coisas externas à mente,

notadamente das coisas materiais. Como objetos, as ideias são entidades representativas

capazes de afetar e modificar a mente no processo perceptivo das coisas externas. São entidades

representativas porque se distinguem do ato de perceber, isto é, não podem ser compreendidas

(por sua função representativa daquilo que é externo à mente) como modificações mentais.

Tampouco podem ser identificadas às coisas materiais que representam, sob pena de infringir

o pressuposto que delimita as condições da percepção. Por tudo isso, as ideias ocupam um lugar

Page 64: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

64

central tanto na teoria da percepção malebranchista, quanto no debate acerca da consistência

das teses que a sustentam. Algumas das consequências dessas teses no pensamento de

Malebranche serão discutidas a seguir, a saber, a visão das ideias em Deus (que é a explicação

malebranchista para a origem das ideias) e, principalmente, o representacionalismo na teoria da

percepção.

2.2 A visão das ideias em Deus: o caso da origem das ideias

Ao final do capítulo 1 da segunda parte do livro III da Recherche65, Malebranche aponta

para uma discussão sobre as diferentes hipóteses segundo as quais os objetos externos podem

ser vistos. Essas hipóteses não dizem respeito ao debate sobre a possibilidade da percepção

direta ou não das coisas externas, que ele pretende ter resolvido na primeira seção do capítulo

ao defender que as coisas externas são percebidas através das ideias. Mas elas tratam

efetivamente de como as ideias estão disponíveis para a percepção da alma, ou seja, elas tratam

do tema da origem das ideias. Já nessa referida passagem final do capítulo66, são elencadas as

cinco hipóteses abordadas nos capítulos seguintes, as quais são disponibilizadas a seguir: 1- as

ideias que se tem dos objetos que não são percebidos por si mesmos diretamente provêm dos

próprios objetos; 2- as ideias que se tem dos objetos que não são percebidos por si mesmos

diretamente provêm da alma, que tem o poder de produzi-las; 3- as ideias que se tem dos objetos

que não são percebidos por si mesmos diretamente provêm de Deus, ou porque ele as produziu

no momento de criação da alma (inatismo), ou porque ele as produz a cada momento em que a

alma pensa em alguma coisa (ocasionalismo); 4- as ideias que se tem dos objetos que não são

percebidos por si mesmos diretamente provêm da própria alma, pois ela possui todas as

perfeições que vê nos corpos; e 5- as ideias que se tem dos objetos que não são percebidos por

si mesmos diretamente são vistas em Deus, porque estão em Deus, que contém em si todas as

ideias das coisas criadas. Malebranche apresenta entre os capítulos 2 e 5 subsequentes

argumentos que desconstroem a razoabilidade da adoção das hipóteses 1 à 4 e encontra na

hipótese 5, defendida no capítulo 6, sua explicação para a origem das ideias: elas estão em Deus

como perfeições inteligíveis que são por ele disponibilizadas, de acordo com sua vontade, para

a percepção da alma finita. Busca-se nesse momento apenas compreender o que significa e

quais são as razões que sustentam essa última hipótese, segundo Malebranche. Por esse motivo,

65 As traduções das citações da Recherche presentes nessa seção são da edição de A busca da verdade: textos escolhidos. Plínio Junqueira Smith, trad. Discurso Editorial, 2004 e serão designadas pelas iniciais ABV seguidas pelo número da página. 66 Cf. OCM, I, 417.

Page 65: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

65

os argumentos eliminativos que descontroem a razoabilidade das outras hipóteses não serão

aqui analisados.

No início do capítulo 6, a hipótese de que os objetos externos são vistos em Deus é

tratada segundo sua maior razoabilidade perante as outras hipóteses, em função de dois aspectos

marcantes, a saber, a concepção de que Deus tem as ideias de todos os seres criados e a

expressão da dependência da alma com relação a Deus no que concerne aos seus pensamentos.

Segundo Malebranche a visão em Deus é a hipótese que melhor demonstra a relação, cara a seu

pensamento, de dependência e união íntima da alma para com Deus:

Examinamos, nos capítulos precedentes, quatro diferentes maneiras pelas quais o

espírito pode ver os objetos de fora, as quais não nos parecem verossímeis. Resta

somente a quinta, que parece a única conforme à razão e a mais própria para exibir a

dependência que os espíritos, em todos os seus pensamentos, têm de Deus (ABV,

190)67.

Malebranche afirma que para que a hipótese em questão possa ser bem compreendida é

preciso ter em mente duas teses, que são a precondição para seu entendimento e aceitação. A

primeira tese alega que Deus possui em si mesmo todas as ideias dos seres criados e a segunda

anuncia que há uma relação íntima e estreita entre as almas criadas e Deus, uma união tal que

possibilita que as almas finitas possam perceber em Deus o que lá representa coisas externas.

Essas teses derivam-se de aspectos significativos da natureza divina à medida que só podem ser

alcançadas a partir da análise da natureza de Deus. Isso quer dizer que é a perfeição de Deus o

que permite concluir pela presença nele das ideias de todas as coisas, bem como admitir que há

uma relação especial de união entre Deus e as almas criadas, visto que ele é, por excelência, “o

lugar dos espíritos”. Assim, é importante ressaltar que a estrutura dos argumentos da Recherche,

III, II, 6, pretende, em primeiro lugar justificar, em função da natureza de Deus, que é legítimo

que as almas vejam nele as ideias das coisas; e, em segundo lugar, sustentar que, para além de

ser possível perceber as coisas em Deus, ele quer que as ideias sejam nele vistas. É em

observação a essa estrutura argumentativa que Gueroult (1955, p. 112-118) expõe em seu livro

o que ele chama de forma sintética da argumentação positiva (referindo-se à defesa

malebranchista da visão em Deus), que é aquela que se funda no conceito de Deus.

67 « Nous avons éxaminé dans les Chapitres précedens quatre différentes manières, dont l’esprit peut voir les objets de dehors, lesquelles ne nous paroissent pas vrai-semblables. Il ne reste plus que la cinquiéme, qui paroît seule conforme à la raison, & la plus propre pour faire connoître la dépendance que les esprits ont de Dieu dans toutes leurs pensées » (OCM, I, 437).

Page 66: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

66

Isso dito, retorna-se à exposição mais detalhada das teses que justificam a legitimidade

de que as almas vejam as ideias em Deus. Segundo a primeira tese, Deus, ao considerar suas

infinitas perfeições, observa em si mesmo toda a criação, pois é de si mesmo, e não de qualquer

outro, à medida que apenas Deus existe antes de sua ação criadora, que ele retira tudo o que

entra na composição dos seres criados:

É indubitável que havia somente Deus antes que o mundo fosse criado, e que ele não

o pôde produzir sem conhecimento e sem ideia; que, consequentemente, essas ideias

que Deus tinha desse mundo não são diferentes de si mesmo; e que, assim, todas as

criaturas, mesmo as mais materiais e as mais terrestres, estão em Deus, ainda que de

uma maneira inteiramente espiritual e que nós não podemos compreender. Deus vê,

portanto, dentro de si mesmo, todos os seres, considerando suas próprias perfeições,

que os representam para ele. Ele conhece perfeitamente, ainda, sua existência, porque,

dependendo todos de sua vontade para existir e não podendo ignorar suas próprias

vontades, segue-se que ele não pode ignorar a existência deles; e, por consequência,

Deus vê em si mesmo não somente a essência das coisas, mas também a existência

delas (ABV, 189)68.

De acordo com a segunda tese, a união entre Deus e as almas finitas implica um modelo

de relação análogo ao existente entre os corpos e seus espaços. Deus é, por assim dizer, o lugar

das almas, tal qual o espaço é o lugar dos corpos. Com essa analogia, Malebranche busca

mostrar que entre as almas e Deus há uma relação especial de união íntima na qual as almas só

existem nessa presença infinita que é Deus, de modo que se pode compreender disso que entre

eles há uma ligação direta expressa pela própria natureza espiritual de ambos (almas e Deus).

Entende-se a partir disso que essa noção de união íntima entre as almas criadas e Deus expressa,

afinal, que as almas participam da ordem e da disposição da racionalidade universal constitutiva

da natureza inteligível de Deus : “[...] Deus está muito intimamente unido a nossas almas por

sua presença, de modo que se pode dizer que ele é o lugar dos espíritos, assim como os espaços

são, em um sentido, o lugar dos corpos.” (ABV, 191)69. A conclusão que se segue da junção

68 « Il est indubitable qu’il n’y avoit que Dieu seul avant que le monde fût créé, & qu’il n’a pû le produire sans connoissance & sans idée : que par conséquent ces idée que Dieu en a euës ne sont point différentes de lui-même & qu’ainsi toutes les créatures, même les plus materielles & les plus terrestres, sont en Dieu, quoi que d’une manière toute spirituelle & que nous ne pouvons comprendre. Dieu voit donc au dedans de lui-même tous les êtres, en considérant ses propres perfections qui les lui représentent. Il connoît encore parfaitement leur éxistence, parce que dépendant tous de sa volonté pour exister, & ne pouvant ignorer ses propres volontez, il s’ensuit qu’il ne peut ignorer leur existence : & par conséquent Dieu voit en lui-même non seulement l’essence des choses, mais aussi leur existence » (OCM, I, 434-435). 69 « […] Dieu est tres-étroitement uni à nos ames par sa présence, de sorte qu’on peut dire qu’il est le lieu des esprits, de même que les espaces sont en un sens le lieu des corps » (OCM, I, 437).

Page 67: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

67

dessas duas teses é que, se Deus contém em si as ideias de todas as coisas e a alma está

intimamente unida a Deus, isto é, ela compartilha dessa mesma razão universal de Deus, então

é razoável concluir que não há nenhum impedimento para que a alma veja em Deus as ideias

que ele tem das coisas criadas:

Supondo essas duas coisas, é certo que o espírito pode ver aquilo que, dentro de Deus,

representa seres criados, visto que isso é muito espiritual, muito inteligível, e muito

presente ao espírito. Assim, o espírito pode ver, em Deus, as obras de Deus, supondo

que Deus queira revelar-lhe o que nele as representa (ABV, 191)70

Essas duas teses derivadas da análise do conceito de Deus, que tornam, segundo

Malebranche, a hipótese da visão das ideias em Deus plausível, explicam em que medida as

ideias que a alma finita percebe estão em Deus, ele mesmo, e não num suposto ato divino de

criação das ideias na alma71. É preciso considerar aqui que a referida relação íntima entre as

almas criadas e Deus, que torna possível que elas possam compreender o inteligível em Deus

não significa que as almas tenham acesso irrestrito e ilimitado a todas as ideias que estão em

Deus. Isso porque, em função de sua finitude, ainda que as almas sejam consonantes com a

racionalidade universal, elas são limitadas no seu poder de conhecer, de modo que supor que

elas conheçam todas as ideias de Deus, ou mesmo que elas conheçam como Deus, seria admitir

um poder incompatível com sua condição finita.

Dito isso, é preciso apresentar as razões que fundamentam o porquê Deus prefere revelar

à alma o que em si mesmo representa as coisas externas a criar as ideias na alma. Como dito

acima, a estrutura argumentativa não se limita a justificar a possibilidade da visão em Deus,

pois procura fundamentar, para além dessa possibilidade, a efetividade da visão em Deus.

Malebranche quer, nesse sentido, não apenas mostrar que pode ser assim, mas que de fato é

assim, isto é, é em Deus, que a alma percebe as ideias. Dessa forma, a preocupação nesse

momento é com expor passo-a-passo essas razões, desenvolvidas por Malebranche na

Recherche, que sustentam, por fim, a maior plausibilidade da hipótese de que as ideias estão

em Deus e são por ele disponibilizadas para a percepção da alma. Essas razões permitirão que

a maior plausibilidade da hipótese frente às outras seja justificada.

70 « Ces deux choses étant supposées, il est certain que l’esprit peut voir ce qu’il y a dans Dieu qui represente les êtres créez, puisque cela est tres-spirituel, tres-intelligible, & tres-presente à l’esprit. Ainsi l’esprit peut voir en Dieu les ouvrages de Dieu, supposé que Dieu veüille bien lui découvrir ce qu’il y a dans lui qui les represente » (OCM, I, 437). 71 Hipótese rejeitada por Malebranche na Recherche, III, II, 4.

Page 68: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

68

A primeira delas corresponde ao que se pode chamar de princípio da economia da ação,

ou simplicidade das vias72. Segundo esse princípio, Deus não faz de maneira complexa aquilo

que poderia ser feito de maneira mais simples, isto é, Deus age segundo um princípio de

economia da ação. A justificativa para isso está na racionalidade implícita nesse princípio. Agir

por meios mais simples e econômicos demonstra um maior poder que o contrário quando se

trata de um mesmo efeito:

Não somente é muito conforme à razão, mas ainda parece, pela economia de toda a

natureza, que Deus jamais faz por vias muito difíceis o que pode ser feito por vias

muito simples e muito fáceis, pois Deus não faz nada inutilmente e sem razão (ABV,

191)73.

Ainda que não se esteja fazendo aqui uma exegese desse princípio da economia da ação,

é indispensável comentar sua aparente filiação a um caro princípio da tradição filosófica

conhecido como “a navalha de Ockham”, que propõe que diante de hipóteses de solução

formuladas acerca de uma mesma questão, a mais simples tende a ser a mais verdadeira, isto é,

a proposta de solução mais simples, que dispensa a utilização de recursos acessórios (que

complexificam a solução) para a solução de um problema, é a mais verdadeira. Malebranche

aparentemente retoma esse princípio tradicional ao considerar que há mais racionalidade (e, por

isso, maior poder) na efetuação de coisas complexas por vias mais simples que o contrário. E

por isso defende que Deus quando age, escolhe as vias mais fáceis de execução de seus

propósitos, pois isso condiz com sua natureza perfeita:

O que caracteriza sua sabedoria e sua potência [de Deus] não é fazer pequenas coisas

por grandes meios; isso é contra a razão e caracteriza uma inteligência limitada. Mas,

ao contrário, é fazer grandes coisas por meios muito simples e muito fáceis. É assim

que, somente com a extensão, ele produz tudo o que vemos de admirável na natureza

e, mesmo, o que dá a vida e o movimento aos animais, pois aqueles que querem

absolutamente formas substanciais, faculdades e almas nos animais, diferentes de seu

sangue e dos órgãos de seu corpo para fazer todas as funções, querem ao mesmo

tempo que falte inteligência a Deus [...] (ABV, 191-192)74.

72 É bom lembrar que Malebranche não classifica nesses termos a primeira razão que desenvolve como argumento em favor da hipótese da visão em Deus. 73 « Non seulement il est tres-conforme à la raison, mais encore il paroît par l’oeconomie de toute la nature, que Dieu ne fait jamais par des voyes tres-difficiles, ce qui se peut faire par des voyes tres-simples & tres-faciles : Car Dieu ne fairt rien inutilement & sans raison » (OCM, I, 438). 74 « Ce qui marque sa sagesse & sa puissance n’est pas de faire de petites choses par de grands moyens ; cela est contre la raison, & marque une intelligence bornée. Mais au contraire, c’est de faire de grades choses par des moyens tres-simples & tres-faciles. C’est ainsi qu’avec l’étenduë toute seule, il produit tout ce que nous voyons

Page 69: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

69

Baseado nessa primeira razão, disposta no princípio da economia da ação, Malebranche

está autorizado a defender a admissibilidade da hipótese da visão das ideias em Deus em

detrimento das outras hipóteses. Em especial, aquela que supõe que Deus cria as ideias na alma.

Considerando que as ideias que representam as coisas externas estão presentes nas próprias

perfeições de Deus (como visto acima), é mais fácil e mais simples que Deus permita que a

alma, que é intimamente unida a ele, perceba nele mesmo as ideias do que ele criar na alma,

isto é, fora de si mesmo, e como duplicatas das ideias que ele já possui, um sem número de

ideias (seja tudo de uma só vez (inatismo), ou a cada nova vez que a alma percebe uma ideia

(ocasionalismo)). Assim, Malebranche conclui:

Visto, portanto, que Deus pode mostrar aos espíritos todas as coisas, ao querer

simplesmente que eles vejam o que está no meio dele mesmo, isto é, o que há dentro

dele mesmo que tem relação com essas coisas e que as representa, não há indício de

que ele faça de outro modo e produza, para isso, tantas infinidades de números

infinitos de ideias quantos espíritos criados há (ABV, 192)75.

Isso não significa, entretanto, que os espíritos vejam a essência de Deus. Malebranche

chama a atenção explicitamente para o fato de que o que é percebido pela alma em Deus é muito

imperfeito e limitado uma vez comparado à natureza una, indivisa e absoluta de Deus. Nesse

sentido, a alma vê em Deus apenas o que concerne às capacidades das criaturas finitas, apenas

aquilo que compete a sua natureza limitada, sendo incapaz de abarcar a natureza plena e simples

de Deus, que encerra em si mesmo (que é integralmente ser) de maneira homogênea, indistinta,

indivisível e não particular a totalidade dos seres que a alma percebe como distintos, separados

e particulares. Assim, é em função da definição da natureza de Deus como ser absoluto, simples

e sem partes que se justifica a incapacidade da alma de percebê-lo na integralidade de sua

essência quando percebe nele as ideias. Essas ideias disponibilizadas para as almas por Deus

restringem-se apenas à forma particularizada de representação das coisas própria da capacidade

perceptiva do ser finito e limitado que é a alma:

d’admirable dans la nature, & même ce qui donne la vie, & le mouvement aux animaux. Car ceux qui veulent absolument des formes substantielles, des facultez, & des ames dans les animaux, différentes de leur sang & des organes de leurs corps, pour faire toutes leurs fonctions, veulent en même-tems que Dieu manque d’intelligence (OCM, I, 438). 75 « Puis donc que Dieu peut faire voir aux esprits toutes choses, en voulant simplement qu’ils voient ce qui est au milieu d’eux-mêmes, c’est- à-dire ce qu’il y a dans lui-même qui a rapport à ces choses & qui les représente, il n’y a pas d’apparence qu’il le fasse autrement ; & qu’il produise pour cela autant d’infinitez de nombres infinis d’idées, qu’il y a d’esprits créez » (OCM, I, 438).

Page 70: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

70

Mas é preciso observar cuidadosamente que não podemos concluir que os espíritos

veem a essência de Deus do fato de que eles veem, dessa maneira, todas coisas em

Deus. A essência de Deus é seu ser absoluto, e os espíritos não veem a substância

divina tomada absolutamente, mas somente enquanto relativa às criaturas ou

participável por elas. O que eles veem, em Deus, é muito imperfeito, e Deus é muito

perfeito. Eles veem a matéria divisível, figurada etc., e, em Deus, não há nada que

seja divisível ou figurado, pois Deus é inteiramente ser, porque ele é infinito e

compreende tudo, mas ele não é nenhum ser em particular. O que nós vemos, contudo,

é somente um ou vários seres em particular; e não compreendemos essa simplicidade

perfeita de Deus que contém todos o seres (ABV, 192)76.

A segunda razão que procura demonstrar por que Deus prefere permitir que as almas

percebam as ideias representativas das coisas externas nele mesmo, e que busca garantir a

legitimidade superior dessa hipótese frente à hipótese da criação na alma de “uma infinidade

de infinitas ideias”, diz respeito à completa dependência da alma para com Deus. Essa razão

manifesta a condição hierarquicamente inferior da alma finita na sua relação com Deus.

Condição essa que exprime uma dependência não apenas no que concerne a sua manutenção

no ser, mas que expressa especialmente o estado passivo da alma no âmbito do conhecimento

das coisas externas:

A segunda razão para pensar que vemos todos os seres porque Deus quer que o que

nele os representa nos seja descoberto [...] é que isso coloca os espíritos criados em

uma inteira dependência dele e a maior que possa ser, pois, isso sendo assim, não

somente não saberíamos ver nada que Deus não quisesse que víssemos, mas não

saberíamos ver nada que Deus mesmo não nos [mostrasse] (ABV, 193, grifo nosso)77.

Esse estado passivo da alma refere-se, de início, à incapacidade que ela tem de produzir

suas próprias ideias. Considerando que as ideias são seres reais à medida que possuem

76 « Mais il faut bien remarquer qu’on ne peut pas conclure que les esprits voyent l’essence de Dieu, de ce qu’ils voyent toutes choses en Dieu de cette maniére. L’essence de Dieu c’est sont être absolu, & les esprits ne voyent point la substance divine prise absolument, mais seulement en-tant que relative aux créatures ou participable par elles. Ce qu’ils voyent en Dieu est tres-imparfait, & Dieu est tres-parfait. Ils voyent de la matiére divisible, figurée, &c. & en Dieu il n’y a rien qui soit divisible ou figuré : car Dieu est tout être, parce qu’il est infini & qu’il comprend tout : mais il n’est aucun être en particulier. Cependant ce que nous voyons n’est qu’un ou plusieurs êtres en particulier ; & nous ne comprenons point cette simplicité parfaite de Dieu qui renferme tous les êtres » (OCM, I, 438-439). 77 « La seconde raison qui peut faire penser, que nous voyons tous les êtres à cause que Dieu veut, que ce qui est en lui qui les représente nous soit découvert […] c’est que cela met les esprits créez dans une entiére dépendance de Dieu, & la plus grande qui puisse être. Car cela étant ainsi, non seulement nous ne sçaurions rien voir, que Dieu ne veüille bien que nous le voyons, mais nous ne sçaurions rien voir, que Dieu même ne nous le fasse voir (OCM, I, 439).

Page 71: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

71

propriedades que as diferenciam umas das outras, de modo que não podem ser tomadas como

um puro nada, é adequado concluir que elas necessitam de uma causa criadora de seu ser. Essa

causa criadora não pode ser a alma, que não possui capacidade para isso à medida que na

filosofia de Malebranche as coisas finitas não se constituem em causas verdadeiras, sendo

apenas causas ocasionais:

Mas, mesmo que fosse verdade que as ideias seriam somente seres bem pequenos e

bem desprezíveis, são ainda seres, e seres espirituais, e, uma vez que os homens não

têm a potência de criar, segue-se que eles não as podem produzir, pois a produção de

ideias, da maneira em que é explicada, é uma verdadeira criação [...] (ABV, 177)78.

À pergunta por que as coisas finitas não podem ser as verdadeiras causas das coisas,

Malebranche responde:

Entendo que uma causa é verdadeira se o espírito percebe uma ligação necessária

entre essa causa e seu efeito. Ora, o espírito percebe uma ligação necessária somente

entre a vontade do ser infinitamente perfeito e os efeitos. Portanto, somente Deus é a

verdadeira causa [...] (ABV, 250)79.

Note-se bem que, para Malebranche, os elementos exigidos por uma verdadeira relação

causal não são satisfeitos pelas coisas finitas, entre elas as almas. E não o são porque a

causalidade, segundo ele, exige uma conexão necessária entre a causa e o efeito que só é

cumprida por Deus, pois somente de sua vontade se pode retirar a conexão necessária

explicativa para todos os efeitos. É impossível conceber que Deus, pela sua infinitude e

perfeição, queira qualquer coisa que não se cumpra do modo como ele quis. Isso significa que

entre a vontade de Deus e sua realização há uma necessidade intrínseca que é explicativa da

ocorrência dos fenômenos. Ora, no que diz respeito aos eventos que têm lugar no mundo físico

entre objetos particulares, bem como aqueles que envolvem supostas relações entre o mundo

espiritual e o material, não se pode depreender deles nenhuma conexão necessária explicativa,

de modo que é preciso concluir que não constituem verdadeiras relações causais, mas apenas

78 « Mais quand même il seroit vrai que les idées ne seroient que des êtres bien petits & bien meprisables, ce sont poutant des êtres & des êtres spirituels ; & les hommes n’ayant pas la puissance de créer, il s’ensuit qu’ils ne peuvent pas les produire. Car la production des idées de la maniere qu’on l’explique, est une véritable création » (OCM, I, 423). 79 « Cause véritable est une cause entre laquelle & son effet l’esprit apperçoit une liaison nécessaire, c’est ainsi que je l’entends. Or il n’y a que l’être infiniment parfait entre la volonté duquel & les effets l’esprit apperçoive une liaison nécessaire. Il n’y a donc que Dieu qui soit véritable cause […] » (OCM, II, 316).

Page 72: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

72

ocasiões que remontam, em última instância, à vontade divina como causa verdadeira. Por esse

motivo, pode-se concluir que Deus, e não as almas, é a causa criadora das ideias.

Entretanto, esse estado passivo da alma não é por si só suficiente para legitimar a

superioridade da hipótese da visão em Deus, visto que na hipótese inatista, a saber, a de que

Deus cria uma infinidade de ideias na alma, também se pode observar a inépcia da alma no que

diz respeito à criação das ideias. Por esse motivo, entende-se que a segunda razão em questão

defende, no que concerne a dependência que a alma tem de Deus, um ponto além da passividade

da alma com relação à percepção de ideias. Ela afirma que para além da dependência da criação

divina das ideias, a alma subordina-se a Deus como guia daquilo que deve ou não deve, pode

ou não pode ser percebido. No sentido próprio da segunda razão, não é apenas porque Deus é

a potência criadora por oposição à condição passiva da alma que se pode observar sua

submissão hierárquica, mas sobretudo porque Deus é condutor da própria capacidade

perceptiva da alma, que não veria nada a não ser que ele assim o permitisse. É por isso que:

É Deus mesmo que ilumina os filósofos nos conhecimentos que os homens ingratos

chamam de naturais [...] Pois, afinal, é bastante difícil compreender distintamente a

dependência que nossos espíritos têm de Deus em todas as suas ações particulares,

supondo que eles tenham tudo o que conhecemos distintamente ser necessário para

agir ou todas as ideias das coisas presentes em seu espírito (ABV, 193-194)80.

Por esse motivo, as ideias que a alma percebe dependem da condição de subordinação

total da alma à vontade de Deus, que, mais que a colocar no ser como uma criatura finita,

determina e guia todas as suas ações particulares, aí incluídas as diversas percepções que possui.

A terceira razão, considerada por Malebranche a mais forte entre todas, diz respeito ao

modo segundo o qual a alma é capaz de acessar determinada ideia particular quando de sua

escolha. Malebranche afirma categoricamente como coisa sabida e experimentada por todos

que, a fim de que se volte a atenção para um conteúdo representativo em particular, é necessário

que se tenha disponível todo o acervo de ideias para, enfim, destacar uma em particular dentre

elas. Conforme ele, não se poderia pretender eleger um conteúdo particular se antes ele já não

estivesse de alguma forma presente, ou disponível para a alma:

80 « C’est Dieu même qui éclaire les Philosophes dans les connoissances que les hommes ingrats appellent naturelles […] Car enfin il est assez difficile de comprendre distinctement la dépendance que nos esprits ont de Dieu dans toutes leurs actions particuliéres, supposé qu’ils ayent toute ce que nous connoissons distinctement leur être nécessaire pour agir, ou toutes les idées des choses présentes à leurs esprit » (OCM, I, 440).

Page 73: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

73

É certo, e todo mundo o sabe por experiência, que, quando queremos pensar em

alguma coisa em particular, deitamos a vista, em primeiro lugar, sobre todos os seres

e nos aplicamos, em seguida, na consideração do objeto no qual desejamos pensar.

Ora, é indubitável que não saberíamos desejar ver um objeto particular, se não o

víssemos já, ainda que confusamente e em geral; de modo que, podendo desejar ver

todos os seres, ora um, ora outro, é certo que todos eles estão presentes em nosso

espírito [...] (ABV, 194, grifo nosso)81.

Entende-se aqui que a justificativa para essa tese consiste em que, do contrário, isto é,

se a alma não tivesse disponível para a percepção um rol infinito de ideias, ela não poderia

escolher uma em particular. Não haveria, portanto, escolha e o ato de voltar a atenção, entendido

como fruto de uma decisão, não seria consistente, pois não haveria entre o que escolher. Desse

modo, a atenção aos objetos percebidos seria sempre fruto do instante da percepção e não faria

sentido falar em ‘voltar a atenção’ no sentido de vontade de ressaltar uma ideia em meio a

outras. E essa ausência da capacidade de voltar a atenção contradiz a experiência intelectual a

qual Malebranche faz referência no seu texto. Como dito no início, é sabido por todos, de acordo

com Malebranche, que quando se quer pensar em algo em particular, é em meio a um repertório

variado de objetos que se encontra e se escolhe esse algo. Ora, esse ato corriqueiro de se voltar

a atenção para um objeto (que são ideias porque, como visto, a alma só pode perceber o que é

de sua natureza imaterial) particular depende, em última instância, da presença para a alma,

ainda que de maneira confusa e em geral, de uma diversidade de objetos disponíveis para o ato

perceptivo. Na ausência dessa disponibilidade de objetos, não se poderia escolher um particular,

pois não haveria nem de onde, nem do que destacar um determinado objeto.

Se a capacidade de voltar a atenção para objetos/ideias particulares é um dado da

experiência intelectual, então é preciso concluir, seguindo Malebranche, que é necessário que

todo um elenco infinito de ideias esteja presente para a alma, como já visto. Mas o que significa

propriamente a tese de que a alma, que é finita, tem disponível para si uma infinidade de ideias?

Significa que essa disponibilidade só pode ser explicada a partir de Deus, que é o único ser que

contém em si as ideias de todas as coisas: “[...] e parece que todos os seres podem estar presentes

em nosso espírito somente porque Deus lhe é presente, isto é, aquele que contém todas as coisas

81 « Il est constant, & tout le monde le sçait par expérience, que lors que nous voulons penser à quelque chose en particulierm nous jettons d’abord la vûë sur tous les êtres, & nous nous applicons ensuite à la consideration de l’objet auquel nous souhaitons de penser. Or il est indubitable que nous ne sçaurions desirer de voir un objet particulier, que nous ne le voyions déjà, quoi que confusément & en géneral : de sorte que pouvant desirer de voir tous les êtres, tantôt l’un & tantôt l’autre, il est certain que tous les êtres sont presens à nôtre esprit […] » (OCM, I, 440).

Page 74: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

74

na simplicidade de seu ser.” (ABV, 194)82. Como a alma por si só, em função de sua finitude,

não poderia se representar por si mesma todos os seres, a presença de Deus para a alma,

decorrente da união íntima entre o criador absoluto e a criatura espiritual, é oferecida como

explicação do acesso que ela tem a uma infinidade de ideias.

Até aqui, constata-se que a argumentação proposta como a mais forte apenas permite

concluir que é em função de Deus que a alma tem acesso às ideias. E, nesse sentido, como se

sabe, Deus poderia ser criador dessa infinidade de ideias na própria alma finita. Entretanto,

apesar de essa última hipótese ser verossimilhante, ela não é verdadeira, segundo Malebranche,

e vem sendo questionada desde o momento de sua apresentação Recherche83, quando

Malebranche afirma que há outra maneira mais simples, fácil e razoável (ou seja, com base no

princípio da simplicidade das vias) de se explicar a origem das ideias percebidas pela alma84,

que se trata da hipótese da visão em Deus.

Para além desse questionamento, Malebranche apresenta então o que se considera ser

um argumento importante, consecutivo à terceira razão em discussão. Numa espécie de adendo

ao raciocínio exposto sobre como apenas a presença de Deus explica o acesso da alma a uma

infinidade de ideias, Malebranche traz para a discussão o caso das ideias de universais e o caso

da ideia de infinito cuja percepção é mais adequadamente explicada pela hipótese da visão em

Deus. Isso se justifica porque no que diz respeito à percepção de universais e do infinito, é

cabível destacar o seguinte raciocínio: como todas as coisas criadas por Deus são particulares,

não se pode conceber que as ideias de universais e a ideia de infinito percebidas pela alma sejam

criaturas de Deus85, visto que, contraditoriamente, elas seriam, ao mesmo tempo, particulares e

universais. É preciso comentar que, ainda que a ideia de infinito não recaia propriamente na

definição de um universal, pois diz respeito apenas a um objeto, que é Deus, ela tampouco pode

ser compreendida como uma ideia particular, já que se aplica justamente aquilo que não é

limitado por nada. A ideia de infinito expressa efetivamente o ser pleno e absoluto e por isso é

em si mesma infinita, pois não é possível que se perceba alguma coisa finita como infinita sob

pena de a percepção captar o que não estava no objeto percebido, o que infringe o princípio

malebranchista de que o nada não pode ser percebido (princípio esse que fundamenta, como já

visto, a intencionalidade da percepção e que é reelaborado na terceira seção desse capítulo no

82 « […] & il semble que tous les êtres ne puissent être presens à nôtre esprit ; que parce que Dieu lui est presens, c’est-à-dire, celui qui renferme toutes choses dans la simplicité de son être » (OCM, I, 440-441). 83 Trata-se da hipótese discutida na Recherche, III, II, 4. 84 Essa afirmação aparece como uma referência preliminar à hipótese da visão em Deus, discutida na Recherche, III, II, 6. 85 Referência à hipótese de que Deus cria na alma uma infinidade de ideias. Cf.: Recherche, III, II, 4.

Page 75: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

75

desenvolvimento da discussão sobre o status ontológico das ideias). Sendo assim, essas ideias

não podem ter sido criadas na alma como objetos particulares, mas são sim perfeições da

própria natureza divina enquanto ela é tomada como representativa, tais quais todas as outras

ideias percebidas pela alma em função da presença íntima, da união da alma com Deus, como

expõe a hipótese em defesa:

Parece mesmo que o espírito não seria capaz de se representar ideias universais de

gênero, espécie etc., se não visse todos os seres contidos em um. Pois, sendo toda

criatura um ser particular, não podemos dizer que vemos alguma coisa de criada

quando vemos, por exemplo, um triângulo em geral. Finalmente, creio que possamos

dar razão da maneira pela qual o espírito conhece várias verdades abstratas e gerais

somente pela presença daquele que pode iluminar o espírito em uma infinidade de

maneiras diferentes (ABV, 194)86.

[...] Pois é certo que o espírito percebe o infinito, ainda que não o compreenda, e que

tem uma ideia muito distinta de Deus, que pode ter somente pela união que tem com

Deus, visto que não podemos conceber que a ideia de um ser infinitamente perfeito,

que é aquela que temos de Deus, seja alguma coisa criada (ABV, 194-195)87.

Procura-se apontar aqui que esse raciocínio, que consiste na explicação de como a alma

percebe as ideias gerais e como ela possui a ideia do infinito, encaixa-se perfeitamente como

um fechamento bastante apropriado para a terceira razão em favor de que Deus revela para a

alma as ideias das coisas que possui, ou seja, em favor de que a visão em Deus é a hipótese

mais razoável de explicação para a percepção das ideias. Isso porque, por si só, a exigência

explicativa de Deus para dar conta da infinidade de ideias disponíveis para a alma não é capaz

de implicar a conclusão de que ela vê todas as ideias em Deus. Era preciso mostrar, para além

disso, que tomar Deus como criador das ideias (tais como objetos) é inconsistente com o

conteúdo representativo percebido pelas almas (como no caso das ideias de coisas gerais, ou a

ideia do infinito), a fim de que a visão em Deus auferisse seu status de interpretação mais

plausível para o caso da origem das ideias.

86 « Il semble même que l’esprit ne seroit pas capable de se representer des idées universelles de genre, d’espéce, &c. s’il ne voyoit tous les êtres renfermez en un. Car toute créature étant un être particulier, on ne peut pas dire qu’on voye quelque chose de créé lors qu’on voit, par exemple, un triangle en général. Enfin je ne croi pas qu’on puisse bien rendre raison de la manière dont l’esprit connoît plusieurs véritez abstraites & générales, que par la présence de celui qui peut éclairer l’esprit en une infinité de façons différentes » (OCM, I, 441). 87 « […] car il est constant que l’esprit apperçoit l’infini, quoi qu’il ne le comprenne pas ; & qu’il a une idée tres-distincte de Dieu , qu’il ne peut avoir que par l’union qu’il a avec lui ; puisqu’on ne peut pas concevoir , que l’idée d’un être infiniment parfait, qui est celle que nous avons de Dieu, soit quelque chose de créé » (OCM, I, 441).

Page 76: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

76

Malebranche, após a apresentação das três razões, ainda dedica-se a expor mais dois

argumentos que corroboram a concepção de que Deus quer que a alma conheça as coisas,

através das ideias, nele mesmo, isto é, argumentos que procuram evidenciar que o que se vê é

de fato em Deus. Esses dois argumentos parecem sintetizar a estrutura da demonstração

malebranchista feita até então ao serem introduzidos da seguinte maneira: “Eis uma prova que

será talvez uma demonstração para aqueles que estão acostumados aos raciocínios abstratos”

(ABV, 195)88, numa referência à reformulação da exposição da demonstração realizada até

então. Como se verá, ele apresenta de uma outra maneira a prova de que as ideias estão em

Deus (argumento 1 a seguir) e a prova de que Deus quer que as almas finitas vejam tudo nele

mesmo (argumento 2 a seguir).

O primeiro argumento não procura se estabelecer a partir da análise da natureza de Deus,

mas sim resulta de uma análise acerca de um aspecto da natureza das ideias, a saber, a sua

eficácia sobre a alma e pretende concluir, a partir disso, que todas as ideias devem estar na

substância infinita de Deus. Trata-se, portanto, de um argumento que parte das ideias para

sustentar que elas estão em Deus, o que é distinto do movimento argumentativo exposto

anteriormente cujo ponto de partida é a análise de Deus. Esse argumento da eficácia das ideias

basicamente afirma que são as ideias que afetam de diferentes maneiras a alma, produzindo

nela diferentes modificações de seus estados, esclarecendo-a e iluminando-a com as percepções

com as quais atingem-na. Entretanto, como nada pode agir imediatamente sobre a alma que não

lhe seja de natureza superior, visto que, segundo Malebranche, as coisas finitas não possuem

eficácia, somente Deus pode ser concebido como o autor dessas modificações nas almas que se

observam quando as ideias afetam-na, pois apenas ele é efetivamente causa de qualquer

modificação. Assim, se as ideias são eficazes, é forçoso concluir que elas estão na substância

de Deus, a única que é verdadeiramente eficaz:

[...] nada pode agir imediatamente no espírito se não lhe é superior, nada o pode senão

somente Deus, pois somente o autor de nosso ser pode mudar suas modificações.

Portanto, é necessário que todas as nossas ideias encontrem-se na substância eficaz da

divindade, a única que é inteligível ou capaz de nos iluminar, porque somente ela pode

afetar as inteligências (ABV, 195)89.

88 « Voici une preuve, qui fera peut-être une demonstration pour ceux qui sont accoutûmez aux raisonnements abstrait » (OCM, I, 442). 89 « […] rien ne peut agir immediatement dans l’esprit, s’il ne lui est supérieur : rien ne le peut que Dieu seul. Car il n’y a que l’Auteur de nôtre être que en puisse changer les modifications. Donc il est necessaire que toutes nos idées se trouvent dans la substance efficace de la Divinité, qui seule n’est intelligible ou capable de nous éclairer, que parce qu’elle seule peut affecter les intelligences » (OCM, I, 442).

Page 77: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

77

Já o segundo argumento diz respeito à concepção apresentada por Malebranche de que

Deus tem a si mesmo como finalidade última de suas ações, pois ele faz tudo para si. Nesse

sentido, segundo Malebranche, assim como o amor natural (amor do bem em geral impresso

por Deus na alma) volta-se em sua direção, é legítimo pensar que também a iluminação e o

conhecimento dado por Deus às criaturas sirva para, enfim, conhecer de alguma maneira Deus,

pois ele faz tudo para si mesmo. Deus não criaria a alma para conhecer as obras divinas se nesse

movimento ela não conhecesse ele mesmo ao conhecer suas obras, pois do contrário ele teria

criado a alma para conhecer uma ou outra obra e não para si mesmo, para contemplá-lo. Nesse

sentido, em última instância, tudo o que a alma conhece está em Deus e é ele que é de alguma

maneira percebido quando a alma percebe as ideias: “Deus não pode, portanto, fazer um espírito

para conhecer suas obras, a não ser que esse espírito veja, de alguma maneira, Deus, ao ver suas

obras. De modo que podemos dizer que, se não víssemos Deus de alguma maneira, não

veríamos nenhuma coisa [...]” (ABV, 196)90.

Esse último argumento é, segundo Malebranche, fortemente inspirado em Santo

Agostinho, que concebia que os homens veem em Deus tanto as regras dos costumes quanto as

verdades eternas. Entretanto, ainda que Santo Agostinho restrinja a visão em Deus apenas às

verdades eternas, Malebranche procura sustentar que o que é de fato visto em Deus são as ideias

eternas e perfeitas das coisas, cujas relações entre si podem constituir verdades eternas: “[...]

segundo nossa opinião, vemos Deus quando vemos as verdades eternas; não que essas verdades

sejam Deus, mas que as ideias das quais essas verdades dependem estão em Deus [...]” (ABV,

198)91. Segundo Malebranche, uma outra inovação importante nesse aspecto é que ele,

diferentemente de Santo Agostinho, aceita que se conhece em Deus também as coisas mutáveis

e corruptíveis, o que não constituiria nenhum problema de incompatibilidade com a natureza

perfeita e imutável de Deus à medida que as ideias que nele a alma tem acesso não exprimem

a sua natureza, mas apenas constituem o que nele tem relação com as coisas, a saber, nesse

caso, a verdade das coisas materiais sensíveis:

Cremos, também, que conhecemos em Deus as coisas mutáveis e corruptíveis, ainda

que santo Agostinho fale apenas das coisas imutáveis e incorruptíveis, porque não é

necessário, para isso, pôr alguma imperfeição em Deus, visto que basta, como já

90 « Dieu ne peut donc faire un esprit pour connoître ses ouvrages, si ce n’est que cet esprit voie en quelque façon Dieu en voyant ses ouvrages. De sorte que l’on peut dire, que si nous ne voyions Dieu en quelque maniére, nous ne verrions aucune chose […] » (OCM, I, 442-443). 91 « Ainsi selon nôtre sentiment nous voyons Dieu, lorsque nous voyons des véritez éternelles, non que ces véritez soient Dieu, mais parce que les idées dont ces véritez dépendent sont en Dieu […] » (OCM, I, 444).

Page 78: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

78

dissemos, que Deus nos mostre o que nele tem relação com essas coisas (ABV, 198-

199)92.

Vê-se, portanto, que a hipótese da visão das ideias em Deus é defendida na Recherche,

III, II, 6 fundamentalmente, mas não exclusivamente, a partir de uma análise malebranchista da

natureza de Deus. Pode-se aqui sintetizar a construção argumentativa dessa seção como tendo

se desenvolvido em dois momentos. O primeiro dedicado à prova de que do ponto de vista

teórico a visão em Deus é uma hipótese coerente e funcional para a explicação da origem das

ideias à medida que da análise da natureza de Deus depreende-se que: 1) nele estão as ideias de

todas as coisas; 2) e que, em sendo assim, em função da união íntima entre a alma e Deus, isto

é, a participação da alma na mesma racionalidade universal que é constitutiva da inteligibilidade

divina, não há impedimento lógico para que ela veja nele as ideias de todas as coisas. E o

segundo dedicado a provar que Deus quer que a alma perceba nele todas as coisas. Com o

intuito de realizar a segunda demonstração, Malebranche apresenta três razões, a saber, 1) o

princípio da economia da ação ou da simplicidade das vias; 2) o reforço da questão da

dependência que a alma tem com relação a Deus em todos os seus aspectos; e 3) a experiência

intelectual da escolha, em um rol de ideias, da percepção de uma em particular. A essas três

razões são adicionados dois outros argumentos, que parecem reproduzir a ordem da

demonstração já feita, que são: 1) o argumento da eficácia das ideias, que procura demonstrar,

a partir do conceito de ideia como inteligível e não criada, que elas se encontram em Deus

(primeiro momento da demonstração); e 2) o argumento de que Deus faz todas as coisas para

si, inclusive dota as almas de capacidade cognitiva para que, ao exercê-la, as almas possam, em

última instância, conhecer Deus, isto é, a demonstração de que as almas veem tudo em Deus

(segundo momento da demonstração). Assim, a formulação desses dois argumentos (que

parecem ter a função de sintetizar as demonstrações anteriores) encerra a defesa de que Deus

quer que a alma veja todas as coisas em seu ser.

Como se pode perceber, com exceção da terceira razão e do argumento da eficácia das

ideias, todos os outros raciocínios buscam derivar da natureza de Deus a justificativa para

sustentar que ele quer que as ideias sejam vistas nele mesmo. Ainda que se possa comentar o

caráter majoritariamente teológico dessas demonstrações e suas implicações para o que se

92 « Nous croyons aussi que l’on connoît en Dieu les choses changeantes & corruptibles, quoique S. Augustin ne parle que des choses immuables & incorruptibles : parce qu’il n’est pas nécessaire pour cela, de mettre quelque imperfection en Dieu ; puisqu’il suffit, comme nous avons déjà dit, que Dieu nous fasse voir ce qu’il y a dans lui qui a rapport à ces choses » (OCM, I, 444-445).

Page 79: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

79

pretende um tratado de filosofia, isso não constitui objeto de investigação nesse trabalho, de

modo que se supõe ter-se aqui explicitado, da maneira mais fiel, a argumentação malebranchista

para a aposta na hipótese da visão das ideias em Deus como a mais razoável para dar conta da

questão da origem das ideias.

2.3 Status ontológico das ideias e o representacionalismo na teoria da percepção de

Malebranche

O tema do representacionalismo na teoria malebranchista da percepção tem sido

amplamente discutido na literatura secundária93 sobre a filosofia de Malebranche, com especial

interesse na famosa disputa sobre o tema com Arnauld. Nessa seção, procurar-se-á, a partir das

discussões feitas anteriormente, elucidar no que consiste esse representacionalismo de

Malebranche. Dessa forma, discussões sobre o status ontológico das ideias, segundo

Malebranche, serão retomadas a fim de que se possa retirar delas sua conclusão

representacionalista com o intuito de tornar claro o que é e quais são as peculiaridades do

representacionalismo malebranchista.

De acordo com Malebranche, como já visto, as coisas externas materiais não são

diretamente percebidas pela alma porque, por sua natureza material, elas não podem estar

intimamente ligadas a ela a ponto de afetá-la, coisa que é exigência fundamental para que haja

percepção. Uma vez que a percepção é intencional, isto é, sempre envolve um objeto percebido

– posto que “[...] ver o nada, ver nada, é não ver [...]”94 (OCM VI, 202; OCM VIII, 910), ou

seja, a visada de um objeto é intrínseca ao fenômeno da percepção – é preciso concluir que

alguma coisa é visada no momento em que a alma percebe coisas externas materiais; e isso que

a alma percebe, que não pode ser as coisas materiais, Malebranche chama de ideias. As ideias,

então, por força da necessidade inerente à própria intencionalidade da percepção, que exige que

um objeto esteja presente para a alma no momento da percepção e, somado a isso, que esse

objeto seja capaz de modificá-la, constituem aquilo que é imediatamente percebido pela alma,

segundo Malebranche.

Entretanto, diferentemente do que pensa Malebranche sobre a tradição cartesiana, essas

ideias não são modificações da alma que visam a um conteúdo representativo capaz de torná-

la consciente da presença de um objeto, mas são elas mesmas a coisa, o objeto, distinto e

93 Cf.: LOVEJOY, 1923; YOLTON, 1984; NADLER, 1989; NADLER, 1992; COOK, 1998; MOREAU, 1999; PYLE, 2003; DERENNE, 2017; entre outros. 94 “[...] voir le néant, voir rien, c’est ne point voir […]” (OCM VI, 202; OCM VIII, 910).

Page 80: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

80

independente das modificações do pensamento, diretamente percebido pelo ato perceptivo da

alma. É importante ressaltar, como visto na primeira seção desse capítulo, que Malebranche

considera que ao admitir que as ideias sejam modificações do pensamento, Descartes incorreria

na dificuldade de admitir que as ideias apenas exibem no intelecto modificações do próprio

pensamento, não sendo capazes de apresentar, dessa forma, conteúdos como objetos distintos

do próprio pensamento. Isso significa que, a princípio, para ele, perceber envolve, no contexto

malebranchista, apenas o ato perceptivo, que é uma operação intencional da alma (quando se

percebe, há sempre algo que é percebido); o objeto diretamente percebido, que são os objetos

espirituais apreendidos pela alma no ato da percepção (as ideias) e que são distintos e não

redutíveis às modificações do pensamento; e os objetos indiretamente percebidos, que são as

coisas externas realmente existentes.

Chama-se atenção para que o caráter representativo das ideias não se impõe como uma

conclusão necessária do argumento baseado na intencionalidade da percepção (discutido na

primeira seção), que exige a presença imediata de um objeto para a mente. Considerações mais

significativas sobre a natureza representativa das ideias se dão no âmbito da discussão sobre a

origem das ideias e a hipótese da visão em Deus, como já visto. Deve-se lembrar, no entanto,

que segundo uma certa tradição, o termo “ideia” carrega consigo o sentido de intencional. Seja

na tradição agostiniana em que é utilizado para tratar dos arquétipos no intelecto divino,

segundo os quais Deus cria todas as coisas, seja na tradição cartesiana, em que o uso do termo

passa a designar os conteúdos representativos envolvidos no ato mental de representar da

substância pensante finita95. Malebranche certamente conhece esse sentido que o termo ideia

possui e faz uso adequado dele quando afirma que aquilo que é percebido diretamente são as

ideias. Isso significa que desde o princípio de suas considerações sobre o tema, ele compreende

ideias como representativas. Entretanto, o que se quer reforçar aqui é que a compreensão

devidamente realizada do papel representativo das ideias na percepção apenas se completa com

a hipótese de que as ideias estão em Deus, já que, segundo essa leitura, é nele que as ideias

adquirem consistência ontológica, pois apenas com a consideração das ideias em Deus pode-se

completar a compreensão acerca do status ontológico das ideias, como se verá adiante.

Em direção a uma melhor compreensão de aspectos envolvidos na teoria da percepção

de Malebranche (percepção direta e indireta, ideia, Deus e coisas materiais), é preciso retomar

algumas considerações sobre o sentido em que as ideias não constituem modificações da alma,

mas sim são realidades em Deus, a fim de avaliar sinteticamente o seu papel na percepção e,

95 Cf. Respostas às Terceiras Objeções: AT VII, 181-182; AT, IX, 141. Cf. ALANEN (2003, p.118-119).

Page 81: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

81

mais importante de tudo, frisar o seu caráter representativo, que foi já apontado na primeira

seção desse capítulo, porém sem o protagonismo adequado. Nesse contexto, serão recuperados

aqui os elementos constitutivos da teoria da percepção de Malebranche com foco no papel

representativo que as ideias ocupam nela. E com essa finalidade, sabendo que o status

ontológico das ideias como entidades representativas só se consolida na consideração da

hipótese da visão em Deus, pretende-se abordar a questão sobre qual é a natureza das ideias no

que diz respeito ao princípio – que remonta, ao menos, à tradição cartesiana – de que tudo o

que é, ou é substância, ou é modificação de substância. Assim, examinar-se-á qual o status

ontológico das ideias, isto é, se elas são modos na mente de Deus, se são substâncias, ou nem

uma coisa, nem outra à medida que não são seres criados, a fim de melhor explicitar sua

natureza representativa dos objetos externos, de forma que se possa desenhar com mais clareza

o representacionalismo da teoria da percepção de Malebranche.

Um dos elementos fundamentais da teoria da percepção de Malebranche é que ela

envolve uma teoria das ideias significativamente diferente da cartesiana à medida que procura

evitar, como afirma Jolley (1990, p.55), o suposto psicologismo da teoria das ideias de

Descartes a fim de esquivar-se dos problemas que, segundo Malebranche, são engendrados por

ela:

Vemos claramente […] que sustentar que as ideias que são eternas, imutáveis, comuns

a todas as inteligências, sejam somente percepções ou modificações passageiras e

particulares do espírito é estabelecer o pirronismo e dar lugar à crença de que o justo e

o injusto não são necessariamente tais, o que é, de todos nos erros, o mais perigoso

(ABV, 297)96.

Por psicologismo, Jolley entende a concepção de que as ideias, enquanto conteúdos

representativos, são de alguma maneira redutíveis à, ou dependentes da, condição de

modificação da mente, isto é, constituem um certo tipo de ato mental, que é aquele que

apresenta determinado conteúdo como objeto para a mente. Contra essa perspectiva, fruto da

interpretação de Malebranche sobre Descartes, Malebranche procura desenvolver uma teoria

das ideias que escapa à redutibilidade delas às operações mentais, dando às ideias um status

independente e irredutível a essas operações. Isso porque um tal reducionismo engendraria, por

96 On voit clairement […] que soûtenir que les idées qui sont éternelles, immuables, communes à toutes les intelligences, ne sont que des perceptions ou des modifications passageres & particulieres de l’esprit ; c’est établir le pyrrhonisme & donner lieu de croire que le juste & l’injuste ne sont point necessairement tels, ce qui est de toutes les erreurs la plus dangereuse (OCM, III, 140).

Page 82: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

82

um lado, um ceticismo nas questões epistemológicas e, por outro lado, um relativismo moral

(considerado o pior dos erros). Esses riscos proporcionados pela concepção de que as ideias são

modificações da mente resultam, segundo Malebranche, da redução dos aspectos eterno,

imutável e geral das ideias à realidade momentânea e particular das modificações mentais.

Porque se poderia admitir, de acordo com a leitura dele, que o conteúdo visado nas percepções

privadas das mentes finitas não são nada além dessas próprias percepções privadas, como já foi

discutido, então se poderia reconhecer a limitação, a mutabilidade e a particularidade daquilo

que se percebe. Sendo assim, nada poderia garantir qualquer consistência, ou confiabilidade na

validade objetiva das ideias, o que legaria, como dito no princípio, um ceticismo epistemológico

e um relativismo moral incompatíveis com as perspectivas da tradição na qual Malebranche se

insere.

Ainda que esse seja um prisma interpretativo interessante acerca do raciocínio que leva

Malebranche a recusar a identificação entre percepção, como ato mental, e ideia, como objeto

percebido, não se pretende aqui desenvolver a compreensão malebranchista de que as ideias

não se reduzem às modificações da mente nessa direção. Busca-se aqui privilegiar um outro

viés (que é consoante a esse anteriormente mencionado) da argumentação de Malebranche

contra essa compreensão a partir dos argumentos discutidos na primeira seção desse capítulo.

Isso porque eles detêm-se na tentativa de explicar as seguintes dificuldades relacionadas ao

referenciado psicologismo, a saber, como se pode reduzir o objeto percebido a uma modalidade

da mente (que consiste no ato de perceber), isto é, como uma modalidade da mente pode ser

representativa de alguma coisa que não é a própria mente? E colocado de uma maneira mais

complexa: como uma modalidade da mente, de natureza puramente espiritual, pode, por si

mesma, ser representativa de coisas materiais, que são de natureza radicalmente distinta a da

mente? Estados mentais subjetivos podem ser representativos de coisas externas e materiais?97

No que diz respeito à dificuldade, o que está em jogo para Malebranche é o que significa

admitir, como Descartes parece fazê-lo, que há modalidades do pensamento que, por si mesmas,

exibem na mente conteúdos como objetos distintos da própria mente, ou seja, que há

modificações da mente que são representativas de objetos. Segundo Malebranche, não há nada

que a alma possa representar para si mesma além de suas próprias operações. Com efeito, se as

modificações mentais não são nada além da mente sendo ora de uma forma, ora de outra, isto

é, a mente sendo o que ela é nas suas diversas formas possíveis, não parece ser possível assumir

que dentre essas modificações haja alguma que se expresse como uma coisa diferente da própria

97 LOVEJOY (1923, p. 451-453) coloca a questão nesses termos.

Page 83: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

83

mente, isto é, como um outro, que não a mente. O que está na mente, segundo Malebranche,

são suas operações e essas não podem ser essencialmente representativas de objetos distintos

da mente porque essas operações são apenas a mente sendo o que ela é de maneiras diferentes,

isto é, sem envolver nenhum outro que ela mesma. Em função disso, em razão daquilo que é

próprio da mente e de suas modalidades, é que conceber as ideias como modificações mentais

é considerado um equívoco da teoria da percepção cartesiana, segundo Malebranche.

Contudo, há ainda uma progressão na dificuldade acima exposta que chama a atenção

para a gravidade do problema levantado por Malebranche acerca da compreensão da ideia como

um ato, uma modificação mental: o que significa para uma modalidade representativa da mente

se exprimir como um objeto material? Diz-se aqui ‘se exprimir’ a partir da crítica

malebranchista a Descartes, que entende que na mente só há operações mentais, de modo que

suas modificações são sempre, nessa compreensão, expressões da própria mente. Mora aí a

verdadeira motivação da problematização e da crítica da teoria cartesiana da percepção

realizada por Malebranche. Como a principal preocupação dele no contexto da Recherche III,

II, 1 é com explicar como se dá a percepção das coisas externas materiais que não podem ser

diretamente percebidas e que, por isso, são percebidas através das ideias, é fundamental, para

ele, pensar a razoabilidade de se atribuir a uma certa operação exclusivamente mental a

percepção das coisas externas materiais. E, como visto, para Malebranche essa atribuição é

ilegítima, não apenas porque não haveria nada que a alma pudesse representar para si mesma

além de suas próprias operações, mas também porque se a natureza dessas operações é de ordem

espiritual, em nenhum sentido poder-se-ia cogitar, como ocorre na perspectiva cartesiana, que

a alma percebe coisas materiais.

Dessa maneira, se as ideias não são redutíveis à condição de modificações da mente, e

elas também não podem ser confundidas com as coisas atualmente existentes no mundo, elas

devem ser consideradas nelas mesmas, então, como objetos realmente existentes e que são os

objetos imediatos da percepção. Em favor dessa tese, encontram-se os argumentos discutidos

na primeira seção que fazem a defesa das ideias como objetos realmente existentes e

independentes da existência atual das coisas externas que elas representam.

Essa condição singular das ideias como objetos representativos distintos tanto do ato

perceptivo mental, quanto da coisa por ela representada (além de distinta, a ideia é independente

da coisa que representa – mais à frente, esse tema será melhor discutido) tem seu lugar em

Deus, segundo Malebranche. De acordo com o que foi exposto na segunda seção desse capítulo,

a realidade das ideias depende de Deus. Entretanto, essa dependência se dá não porque Deus

Page 84: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

84

seja seu criador na mente, seja de uma vez aos montes infinitos, seja a cada vez que a mente

pensa alguma coisa, mas porque, como é sugerido por Malebranche, as ideias são vistas em

Deus. Como mencionado, a exposição argumentativa da defesa da hipótese da visão em Deus

foi realizada na segunda seção desse capítulo. Todavia, é imprescindível que se discuta aqui de

maneira mais precisa qual é o modo de existência que essas ideias-objeto possuem na ontologia

malebranchista. A questão sobre o status ontológico das ideias pretende elucidar mais

completamente qual é o modo de ser que elas possuem: elas são modos da mente de Deus?;

elas são substâncias na mente de Deus?; são substâncias diferentes de Deus?;ou elas não são

nem modos, nem substâncias, pois sua forma de existência é especial e escapa ao princípio

ontológico de que tudo o que é, ou é substância, ou é modo de substância? Tendo isso em vista,

propõe-se aqui que a resposta para essa questão seja elaborada a partir do artigo de Monte Cook

(1998) intitulado “The ontological status of malebranchean ideas”, cuja tese acerca dessa

temática afirma que, em seu modo de ser, as ideias não são nem modalidades, nem substâncias

diferentes de Deus, e, contudo, também não possuem um status ontológico diferenciado dos já

mencionados. Para Cook, as ideias são idênticas à substância de Deus. A ênfase dada à leitura

de Cook acerca do tema do status ontológico das ideias no pensamento de Malebranche deve-

se à sua consonância com a interpretação que se quer fazer aqui do texto da Recherche III, II,

6 acerca desse tema, como se procurará apresentar ao longo da exposição em seguida.

É importante ressaltar aqui que Cook, em seu artigo, toma como central a questão

ontológica relativa às ideias e tem por objetivo defender, em oposição a outros comentadores,

que há sim em Malebranche uma preocupação com o status ontológico das ideias que merece

ser esclarecida. Se as ideias são objetos percebidos pela mente finita em Deus, que tipo de

objetos elas são, qual é a natureza das ideias? Esse é o tipo de questão a respeito das ideias que

Malebranche está interessado em resolver, segundo Cook. Como já mencionado, o autor

pretende sustentar que as ideias são a substância de Deus e, desse modo não consistem nem em

modificações divinas, nem em substâncias distintas de Deus. Essa leitura de Cook (1998, p.

530) se contrapõe à sugestão interpretativa (referenciada por ele a Steven Nadler) que considera

que Malebranche trata das ideias apenas no seu aspecto epistemológico, sem se preocupar com

seu aspecto ontológico. Nesse sentido, segundo essa sugestão, a defesa de que as ideias estão

em Deus não envolve a preocupação com uma explicação acerca da natureza das ideias, mas

apenas é a alegação de que o conhecimento está em Deus e é nele visto pelas mentes: a ideia de

Page 85: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

85

x é apenas o conhecimento de Deus sobre x, que é por ele disponibilizado para a alma98. No

entanto, Cook (1998, p. 530, nota 10), além de considerar problemático para essa sugestão o

número de passagens em que, segundo ele, Malebranche frisa sua preocupação ontológica com

as ideias, ele não vê em que medida assumir apenas uma tal preocupação epistemológica é

capaz de resolver os problemas em questão. Segundo ele, tomar a preocupação de Malebranche

com as ideias como sendo epistemológica não elimina e nem isenta a preocupação com a

questão ontológica, mas apenas denuncia a dificuldade que se tem em lidar com ela, pois a

pergunta pela natureza das ideias permanece no cenário.

Diante dessa ressalva acerca da preocupação malebranchista com o problema ontológico

acerca da natureza das ideias, expõe-se em seguida a argumentação de Cook que visa a sustentar

que as ideias são idênticas à substância de Deus, como parece explícito no texto da Recherche

III, II, 6.

Segundo Cook (1998, p.526-527), Malebranche assume três princípios aparentemente

inconsistentes entre si: 1) tudo o que é, ou é substância, ou é modo de substância; 2) as ideias

não são substâncias, isto é, a primeira vista, as ideias não são substâncias criadas ou finitas ou

distintas de Deus; e 3) as ideias não são modos de substâncias. Como Malebranche concorda

com os princípios 2 e 3, alguns comentadores consideram que a única saída de Malebranche,

para escapar de inconsistências, é admitir que entre eles não há conflito no que diz respeito às

ideias porque o princípio de que tudo ou é substância, ou é modo de substância aplica-se apenas

às coisas criadas, excluindo, dessa maneira, as ideias do escopo dos objetos que recaem sobre

o princípio. Nesse sentido, como Jolley (1990, p.79-80) sugere como possibilidade

interpretativa, as ideias poderiam ser entidades abstratas, entidades lógicas não pertencentes à

estrutura ontológica da realidade, dividida entre substâncias e modificações de substâncias,

compondo assim o que seria um terceiro domínio de coisas, a saber, a esfera das entidades

lógicas.

Entretanto, o principal problema com relação a essa sugestão interpretativa é que

Malebranche parece defender o primeiro princípio como a base da sua ontologia aplicável de

fato a tudo aquilo que é, inclusive às coisas não criadas (como, por exemplo, entidades lógicas,

ou o próprio Deus etc.), o que impede a concepção de que haveria um terceiro domínio de coisas

que não são nem substância, nem modos. Cook (1998, p.527) aponta algumas passagens

textuais que reforçam a aplicação do primeiro princípio a tudo aquilo que é: “[...] tudo aquilo

98 PESSIN (2004) também considera que não há efetivamente uma questão ontológica acerca das ideias em Malebranche.

Page 86: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

86

que é, caso exista atualmente ou não, e consequentemente todas as coisas inteligíveis, são

redutíveis ao ser e ao modo do ser” (OCM, III, 174)99; “[...] todo ser é necessariamente ou uma

substância, ou um modo de ser. Pois, finalmente, tudo o que é pode ou ser concebido por si só,

ou não; não há meio termo em proposições contraditórias [...]” (OCM, II, 425)100. Além de

apontá-las, o autor considera que é em função da maneira pela qual Malebranche entende o

princípio em questão, que ele não poderia meramente restringi-lo às coisas criadas por Deus,

ou simplesmente rejeitá-lo. Essa maneira segundo a qual o princípio é compreendido envolve

a forma pela qual a mente é capaz de conceber a natureza daquilo que é. Nesse sentido, aquilo

que pode ser concebido por si mesmo constitui uma substância, enquanto que aquilo que só

pode ser concebido como dependente de outra coisa constitui um modo de uma substância. Essa

relação de independência e de dependência / inerência no que concerne ao ser, segundo a qual

é possível pensar a natureza de todas as coisas, é fortemente sugestiva, para Cook, de que

Malebranche admite o princípio em questão como aplicável a tudo o que é porque ela é tratada

por Malebranche como uma condição lógica para a concepção das coisas. Em favor dessa

leitura, ele apresenta a seguinte passagem de Entretiens sur la métaphysique et sur la religion:

O que quer que exista ou pode ser concebido por si só, ou não pode. Não há meio

termo, visto que as duas proposições são contraditórias. Dado isso, o que quer que

seja concebido por si só e sem pensar em um outro ser – digo, o que quer que possa

ser concebido por si só como existindo independentemente de qualquer outra coisa ou

que possa ser concebido sem a ideia que temos dele representando alguma outra coisa

– trata-se certamente de um ser ou substância; e o que quer que seja que não possa ser

concebido por si ou sem pensar em alguma outra coisa, isto é um estado [manière

d’être], ou uma modificação de substância (OCM, XII-XIII, 33-34)101.

Então, se a interpretação de que Malebranche poderia restringir o primeiro princípio

apenas às coisas criadas não parece se sustentar, é preciso oferecer uma outra interpretação que

permita a conjugação dos três princípios aparentemente contraditórios citados anteriormente.

99 « […] tout ce qui est, soit qu’il existe actuellement ou non, & par consequent tout ce qui est intelligible, se reduit à l’être & à la maniere de l’être » (OCM, III, 174). 100 « […] tout être est nécessairement ou une substance, ou bien une maniere d’être. Car enfin tout ce qui est se peut concevoir seul, ou ne le peut pas : il n’y a pas de milieu dans les propositions contradictoires […] » (OCM, II, 425). 101 « Tout ce qui est on le peut concevoir seul, ou on ne le peut pas. Il n’y a point de milieu, car ces deux propositions sont contradictoires. Or tout ce qu’on peut concevoir seul, & sans penser à autre chose, qu’on peut, dis-je, concevoir seul comme existant indépendemment de quelqu’autre chose, ou sans que l’idée qu’on en a represente quelqu’autre chose, c’est assurément un être ou une substance : & tout ce qu’on ne peut concevoir seul, ou sans penser à quelqu’autre chose, c’est une maniere d’être, ou une modification de substance » (OCM, XII-XIII, 33-34).

Page 87: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

87

A questão é, portanto, sobre como se pode entender que as ideias não sejam nem substâncias e

nem modos de substâncias no contexto de uma ontologia onde tudo o que é ou é substância, ou

é modo de substância. Cook vai defender que não há contradição entre essas três perspectivas

porque o que as ideias são é idêntico à substância de Deus, ou seja, elas não são nem

modificações de alguma substância, nem são substâncias independentes, mas são a própria

substância de Deus. Entende-se aqui que essa hipótese delineada por ele pode ser corroborada

pela seguinte passagem da Recherche:

[...] é absolutamente necessário que Deus tenha em si mesmo as ideias de todos os

seres que criou, visto que, de outro modo, não teria podido produzi-los, e que, assim,

ele vê todos esses seres considerando as perfeições que ele contém, com as quais eles

têm relação (ABV, 191)102.

Isso pode ser assim compreendido à medida que a noção de que Deus contém as ideias,

como expresso na citação acima, parece pressupor que de alguma forma elas são o próprio

Deus, uma vez que a natureza absoluta dele não poderia, por definição, envolver no seu ser

alguma externalidade. Nesse sentido, se Deus contém em si mesmo as ideias das criaturas,

parece razoável defender que essas ideias são a natureza divina. E isso parece tornar-se mais

evidente na passagem final da citação em que Malebranche sugere que Deus tem ideias dos

seres criados a partir das perfeições contidas na própria natureza divina, isto é, ao considerar

suas próprias perfeições, sua própria natureza, enquanto essas possuem alguma relação com as

coisas criadas. A relação entre as perfeições de Deus, as ideias e as coisas criadas será

desenvolvida mais a frente nessa seção.

Mas, antes de seguir esse debate, é preciso apresentar argumentos que corroboram a

aceitação malebranchista dos princípios 2 e 3, ou seja, de que as ideias não são nem

modificações de Deus103, nem substâncias diferentes, ou independentes, de Deus. Cook (1998,

p. 527-529), a partir da afirmação de Malebranche de que “o ser infinito é incapaz de

modificações” (ABV, 303 – Esclarecimento X)104, reconhece que uma natureza infinitamente

perfeita e imutável, como é Deus, não está sujeita a nenhum tipo de limitação ou de imperfeição

na sua constituição. Nesse sentido, como toda modificação envolve uma limitação no ser,

102 « [...] il est absolument nécessaire que Dieu ait en lui-même les idées de tous les êtres qu’il a créés, puisqu’autrement il n’auroit pas pû les produire, & qu’ainsi il voit tous ces êtres en considérant les perfections qu’il renferme auxquelles ils ont rapport » (OCM, I, 437) 103 Que as ideias não são modificações da mente finita já foi anteriormente defendido nesse capítulo. 104 « […] l’être infini est incapable de modifications » (OCM, III, 149).

Page 88: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

88

envolve um sentido de imperfeição dado pela ausência da totalidade e da completude, é

contraditório pensar em Deus como limitado por tais ou quais formas de ser. É sob esse prisma

que é preciso considerar que as propriedades de Deus, como sua infinita perfeição e

imutabilidade, não são modos da natureza de Deus, mas são idênticos à substância de Deus,

que é sempre completa, ilimitada e simples, ainda que as mentes finitas sejam incapazes de

compreendê-lo efetivamente. Pode-se recorrer aqui a uma passagem da Recherche, III, II, 6 que

motiva essa interpretação: “[...] e, em Deus, não há nada que seja divisível ou figurado, pois

Deus é inteiramente ser, porque ele é infinito e compreende tudo, mas ele não é nenhum ser em

particular” (ABV, 192)105.

Agora, se as ideias não são modificações nem da mente finita, nem de Deus, tampouco

elas são substâncias diferentes de Deus. Mesmo que as ideias tenham propriedades, como

exposto na Recherche III, II, 3, o que as habilitaria como substâncias diferentes, Malebranche

recusa que elas o sejam:

Caso se diga que uma ideia não é uma substância, eu estou de acordo; mas é sempre

uma coisa espiritual e, como não é possível fazer um quadrado de um espírito, ainda

que um quadrado não seja uma substância, não é possível também formar, de uma

substância material, uma ideia espiritual, ainda que uma ideia não seja uma

substância. (ABV, 178)106.

Malebranche não considera as ideias como substâncias diferentes de Deus pois elas

estão em Deus, ou seja, porque Deus é o “lugar” das ideias, como Malebranche se esforça em

demonstrar no raciocínio em favor da hipótese da visão em Deus. Ora, como visto, tudo o que

está em Deus, é Deus por completo, já que em Deus não há partes. Seguindo esse raciocínio, é

preciso concluir que as ideias não são substâncias diferentes de Deus. Além disso, numa outra

perspectiva, Deus não perceberia as ideias como objetos diferentes e externos a si mesmo, pois

elas são, como já mencionado, absolutamente necessárias para a própria criação. Como nada,

além de Deus, existe antes da criação, é inevitável concluir que as ideias são a substância de

Deus. E é por meio delas que Deus concebe todas as coisas, já que as próprias coisas criadas

foram instanciadas segundo as ideias que Deus tem delas. O sentido próprio em que se pode

105 “[...] & en Dieu il n’y a rien qui soit divisible ou figuré: car Dieu est tout être, parce qu’il est infini & qu’il comprend tout; mais il n’est aucun être en particulier” (OCM, I, 439). 106 “Que si on dit, qu’une idée n’est pas une substance, je le veux: mais c’est toujours une chose spirituelle: & comme il n’est pas possible de faire un quarré d’un esprit, quoi qu’un quarré ne soit pas une substance: il n’est pas possible aussi de former d’une substance metérielle une idée spirituelle , quand même une idée ne feroit pas une substance” (OCM, I, 424).

Page 89: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

89

afirmar que, para Malebranche, Deus possui ideia de todos os seres criados será explicitado

mais à frente.

Assim, em resumo, o que Cook, em seu artigo, empenha-se em mostrar, e com o que se

concorda aqui, é que o que as ideias são é idêntico à substância de Deus, elas são Deus mesmo,

são a própria natureza de Deus e nada de distinto ou diverso de sua essência. Desse modo ele

pretende fornecer uma interpretação que, por um lado, salva Malebranche de uma flagrante

inconsistência e, por outro, tenta munir o debate acerca do status ontológico das ideias em

Malebranche com maior densidade.

Entretanto, Cook vai se perguntar, o que significa afirmar que Deus é ao mesmo tempo

de natureza simples e diversa à medida que ele é uno na perfeição absoluta que rejeita qualquer

modificação ou particularização, e diverso na infinidade de ideias que representa e que

“compõem” sua substância? Em que medida as ideias são Deus, portanto? Adianta-se aqui que

a resposta completa para essa questão esbarra na tese da incompreensibilidade de Deus, não

como o que seria uma artimanha malebranchista para burlar inconsistências teóricas de suas

posições, mas como parte do projeto filosófico de Malebranche, segundo Cook (1998, 530-531;

538-539), que compreende a mente finita como limitada e incapaz de apreender de forma total

o que é Deus. Entretanto, aquilo até onde a mente finita pode alcançar, no que diz respeito ao

status ontológico das ideias, é objeto de investigação de Malebranche e é sobre isso que incide

a argumentação.

Cook (1998, p. 531), apresenta algumas passagens em se pode considerar que

Malebranche afirma a identificação das ideias com a substância ou essência de Deus. Ei-las em

seguida:

As ideias que Deus tem das criaturas são, como diz são Tomás, somente sua essência,

enquanto esta é participável ou imperfeitamente imitável, pois Deus contém, mas

divinamente, infinitamente, tudo o que há de perfeição nas criaturas [...] (ABV, 303 –

Esclarecimento X)107.

[…] as ideias são a substância mesma de Deus, não segundo seu ser absoluto, mas

enquanto representativas das criaturas e participável por elas (OCM,VIII-IX, 1002)108.

107 « Les idées que Dieu a des créatures, ne sont, comme dit saint Thomas, que son essence, entant qu’elle en est participable, ou imparfaitement imitable, car Dieu renferme, mais divinement, mais infiniment tout ce qu’il y a de perfection dans les créatures […] » (OCM, III, 149). 108 « […] les idées sont la substance même de Dieu, non selon son être absolu, mais entant que representative de créatures, & participable par elles […] » (OCM, VIII-IX, 1002).

Page 90: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

90

Mas a extensão inteligível é apenas a substância de Deus enquanto representativa dos

corpos e participável por eles com as limitações ou as imperfeições que lhes dizem

respeito, e que representa essa mesma extensão inteligível, que é sua ideia ou seu

arquétipo (OCM, XII-XIII, 184)109.

Essas passagens, que exprimem a identificação das ideias ora com a essência, ora com

a substância de Deus, ou seja, com a natureza de Deus, contêm uma importante ressalva: as

ideias são identificadas com Deus apenas enquanto ele é entendido de uma certa maneira. Além

dessas passagens citadas por Cook, considera-se que isso também é sugerido na passagem da

Recherche, III, II, 6, reproduzida aqui anteriormente, que afirma que “[Deus] vê todos esses

seres considerando as perfeições que ele contém, com as quais eles [os seres criados] têm

relação” (ABV, 191)110. Isso porque interpreta-se que ao afirmar que Deus vê todos os seres na

consideração que faz das perfeições que ele possui, Malebranche está dizendo que Deus possui

ideias das coisas criadas a partir da sua própria natureza. E como já dito anteriormente, isso

significa que as ideias podem ser entendidas como idênticas à natureza de Deus à medida que

tudo o que nele está é, em sentido largo, constitutivo da substância divina.

É preciso apontar que essas passagens citadas, que exprimem a identificação das ideias

ora com a essência, ora com a substância de Deus, ou seja, com a natureza de Deus, contêm

uma importante ressalva: as ideias são identificadas com Deus apenas enquanto ele é entendido

de uma certa maneira. Tendo isso em vista, pode-se observar nessas passagens citadas que elas

restringem as ideias apenas ao que na natureza de Deus tem relação com as criaturas; e isso

parece indicar que, ao tratar das ideias, Malebranche não pretende que sua natureza seja idêntica

à substância de Deus tomada absolutamente, mas sim apenas enquanto elas dizem respeito às

coisas criadas.

Desse modo, está-se de acordo com Cook (1998, p. 532), para quem essa ressalva é

fonte de algumas questões acerca da interpretação do sentido dessa identificação – notadamente

aquela que afirma, como apontado acima e retomado aqui, que “ideias são a substância de Deus

em si, não no que diz respeito a seu ser absoluto, mas à medida que ele é representativo das

criaturas e participável por elas” (OCM, VIII-IX, 1002). Em primeiro lugar, essa passagem

109 Mais l’étenduë intelligible n’est que la substance de Dieu, entant que représentative des corps, & participable par eux avec les limitations ou les imperfections qui leur conviennent, & que représente cette même étenduë intelligible, qui est leur idée ou leur archetype (OCM, XII-XIII, 184). 110 « [Dieu] voit tous ces êtres en considérant les perfections qu’il renferme auxquelles ils ont rapport » (OCM, I, 437).

Page 91: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

91

parece ao mesmo tempo indicar, por um lado, que as ideias são a substância de Deus; e, por

outro lado, em função da restrição imposta pela afirmação de que as ideias são a substância de

Deus apenas enquanto ele é representativo das, e participável pelas, criaturas, essa passagem

parece indicar o modo como as ideias estão em Deus. E isso sugere que as ideias sejam como

que aspectos de Deus ao invés da simples identificação delas com a substância divina. Assim,

segue Cook (1998, p.532), quando Malebranche afirma que as ideias são a substância de Deus

não tomada absolutamente, mas apenas enquanto ela representa as criaturas, é preciso que se

entenda se ele está dizendo que as ideias não são a substância de Deus, mas alguma parte ou

aspecto de Deus; ou se as ideias são a substância de Deus apenas enquanto considerada, tomada,

percebida de uma certa maneira. A diferença entre a substância de Deus tomada absolutamente

e a substância de Deus tomada de uma certa maneira é uma diferença de objetos? Isto é, a

substância absoluta de Deus é uma coisa e a substância de Deus tomada de certo modo é outra

coisa? Ou trata-se de uma diferença de consideração do mesmo objeto? Isto é, Deus tomado

absolutamente é o mesmo que Deus tomado de uma certa maneira, mudando apenas nesse caso

o modo de consideração? No primeiro caso, parece que as ideias (a substância de Deus tomada

enquanto é representativa das criaturas) seriam em certa medida distintas da substância de Deus

tomada absolutamente, ainda que intimamente relacionadas. Enquanto no segundo caso, as

ideias seriam apenas um modo de consideração da natureza absoluta de Deus, não havendo

entre elas uma distinção de objeto. No primeiro caso, as ideias seriam como que partes ou

aspectos de Deus; e no segundo caso, as ideias seriam idênticas à substância de Deus, só que

tomadas de uma certa maneira. Em resumo, a diferença entre essas duas hipóteses consiste em

que tomar as ideias como sendo aspectos da natureza de Deus em si mesma permite tratar as

ideias como objetos diferentes de Deus, ao passo que tomar as ideias como modos de

consideração da natureza de Deus permite tratá-las como a mesma coisa. Por fim, colocado de

outra maneira, quando Malebranche defende, como o faz na Recherche, III, II, 6, que ao se ver

as ideias, vê-se a substância de Deus, não tomada em si mesma, mas de uma certa maneira –

“Mas é preciso observar cuidadosamente que não podemos concluir que os espíritos vejam a

essência de Deus do fato de que eles veem, dessa maneira, todas as coisas em Deus. A essência

de Deus é seu ser absoluto, e os espíritos não veem a substância divina tomada absolutamente,

mas somente enquanto relativa às criaturas ou participável por elas” (ABV, 192)111 – ele quer

111 « Mais il faut bien remarquer qu’on ne peut pas conclure que les esprits voyent l’essence de Dieu, de ce qu’ils voyent toutes choses en Dieu de cette manière. L’essence de Dieu c’est son être absolu , & les esprits ne voyent point la substance divine prise absolument, mais seulement en tant que relative aux créatures ou participable par elles » (OCM, I, 439)

Page 92: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

92

dizer que não é Deus que é visto ao se ver as ideias, ou que Deus é sim visto, mas de uma certa

maneira? Qual é a diferença entre ver a substância de Deus como ela é em si mesma e ver a

substância de Deus como ela é de uma certa maneira? Trata-se de uma diferença nos objetos

vistos ou nos modos de ver o mesmo objeto?

Para responder a essas questões, Cook (1998, p. 532-538) propõe expor, segundo

Malebranche, algumas características de Deus e sua relação com as criaturas, a fim de

compreender como ele identifica as ideias com a substância de Deus. Essa argumentação

pretende esclarecer o motivo pelo qual, para Malebranche, Deus possui ideias das criaturas à

medida que contém em si eminentemente suas perfeições, isto é, em que medida Deus é

representativo das criaturas porque possui em sua natureza as perfeições delas. Essa é a chave

interpretativa para dar conta do sentido preciso em que as ideias são a natureza de Deus.

Segundo Malebranche, afirma Cook (1998, p.532), Deus possui todas as perfeições

espirituais, materiais, perfeições de todas as criaturas, e também as perfeições de seres

meramente possíveis. E ele as contém sem as limitações presentes nas coisas criadas, pois Deus

é infinitamente perfeito. Deus contém todas as perfeições eminentemente e, para Malebranche,

isso é muito importante para que se entenda por que Deus possui ideias das coisas criadas.

Entende-se aqui que essa interpretação de Cook pode ser reforçada pela passagem da

Recherche, III, II, 5 que afirma que “[...] todas as criaturas, mesmo as mais materiais e as mais

terrestres, estão em Deus, ainda que de uma maneira inteiramente espiritual e que nós não

podemos compreender” (ABV, 189)112. Isso porque interpreta-se aqui que a afirmação de que

todos os seres criados estão em Deus de uma maneira espiritual sobre a qual não se pode ter

clareza significa exatamente a concepção de que é Deus a fonte de todas as perfeições das quais

todas as coisas criadas são constituídas. E a maneira como essas perfeições estão contidas em

Deus é, em função de sua natureza, a mais perfeita e elevada possível. Nesse sentido, a restrição

malebranchista à contenção eminente das perfeições em Deus, de acordo com o que Cook diz

na mesma página, se deve ao fato de que Deus não poderia conter formalmente as perfeições

de nenhuma criatura sob pena de ser limitado pelas perfeições, o que é incompatível com sua

natureza perfeita e infinita. A fim de reforçar o que diz Cook, é importante lembrar que quando

algo contém formalmente determinada perfeição, ele possui em si instanciada e atualizada a

forma real daquela perfeição: possuir formalmente uma perfeição é possuir a forma exata da

realidade expressa pela perfeição. Em sendo assim, ao possuir formalmente uma perfeição em

112 « […] toutes les créatures , même les plus materielles & les plus terrestres, sont en Dieu, quoi que d’une manière toute spirituelle & que nous ne pouvons comprendre » (OCM, I, 435)

Page 93: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

93

particular, Deus tornar-se-ia efetivamente particularizado e limitado na forma daquela

perfeição, de acordo com Malebranche113.

Se, então, Deus possui todas as perfeições das criaturas eminentemente, ou seja, se de

uma forma mais perfeita e elevada as perfeições de todas as coisas criadas estão em Deus,

Malebranche conclui a partir disso que Deus possui em si mesmo as ideias das criaturas. E ele

tem ideias das coisas criadas porque considera em si mesmo as perfeições das coisas criadas,

que estão eminentemente nele, e representam essas criaturas para ele. Nesse sentido, como

Cook (1998, p.532) aponta, Malebranche afirma que “[a substância de Deus] encerra

divinamente tudo o que há de perfeição ou de realidade em todos os seres, criados ou possíveis,

e nesse sentido ela contém todas as ideias deles” (OCM, IX, 933)114. E, consequentemente,

“Deus vê, […] dentro de si mesmo, todos o seres, considerando suas próprias perfeições, que

os representam para ele” (ABV, 189)115. Dessa maneira, vê-se que são as perfeições divinas (a

natureza de Deus), à medida que englobam de maneira infinitamente elevada e superior tudo

aquilo que entra na composição de toda a criação, que são representativas dos seres criados. É

esse o sentido que se pode atribuir à tese malebranchista de que Deus possui as ideias dos seres

criados, ideias essas disponibilizadas para que as mentes finitas possam perceber todas as

coisas, como se vê bastante claramente na seguinte passagem: “É preciso lembrar-nos de que,

quando vemos uma criatura, não a vemos em si mesma, nem por si mesma, pois nós a vemos,

como provei no terceiro livro, somente pela visão de certas perfeições que estão em Deus, as

quais a representam” (ABV, 225)116

É preciso ainda que se esclareça aqui o motivo pelo qual Malebranche defende que Deus

tem ideias das coisas criadas, isto é, representa essas coisas ao possuir nele mesmo todas as

perfeições. Com esse objetivo, Cook (1998, p.234) propõe que se discuta um dos argumentos

de Malebranche em favor da existência das ideias, que é o argumento da intencionalidade da

percepção (visto mais detalhadamente na primeira seção desse capítulo). Segundo Cook,

quando examinado estritamente no que diz respeito à intencionalidade da percepção, esse

argumento não envolve nenhuma necessidade de se pronunciar sobre o caráter representativo

das ideias. Isso porque o que esse argumento permite concluir, à primeira vista, restringe-se

113 Cf. OCM, XIII, 403 e OCM, XV, 4. 114 « [la substance de Dieu] renferme divinement tout ce qu’il y a de perfection ou de réalité dans tous les êtres, & créées & possibles, & par là comme […] elle en contient toutes les idées » (OCM, IX, 933). 115 « Dieu voit […] au-dedans de lui-même tous les êtres, en considérant les propres perfections qui les lui représentent » (OCM, I, 435). 116 « Il faut se souvenir que lorsque on voit une créature, on ne la voit point en elle- même, ni par elle-même : car on ne la voit, comme on l’a prouvé dans le troisième Livre , que par la vûë de certaines perfections qui sont en Dieu, lesquelles la représentent » (OCM, II, 96)

Page 94: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

94

apenas à existência das ideias como os objetos imediatos da percepção, já que não é possível

que exista percepção do nada, e é sempre necessário, portanto, que haja um objeto percebido

no momento da percepção. Entretanto, ainda que o caráter representativo das ideias não pareça

ocupar um lugar central no argumento da intencionalidade da percepção, é certo que

Malebranche reconhece sua função, tanto no raciocínio que culmina na visão em Deus, quanto

numa versão mais desenvolvida, segundo Cook (1998, p.536), do argumento da

intencionalidade da percepção (que será discutida mais à frente). Para elucidar o que é esse

caráter representativo das ideias, o autor faz alusão ao que Descartes chama de realidade

objetiva das ideias e que significa, para ele, o conteúdo do ato de pensamento essencialmente

representativo que é a ideia. Segundo a leitura que Cook faz da interpretação de Malebranche

sobre Descartes (sobre a qual não se pronunciará nesse momento), a ideia é o pensamento

mesmo enquanto representativo de objetos para a consciência, a ideia é exclusivamente uma

operação mental supostamente representativa. Contudo, para Malebranche, como visto

anteriormente, não é o pensamento, enquanto operação da mente, que é representativo, mas sim

seus objetos: são as ideias, que só existem fora da mente finita, portanto, que possuem conteúdo

representativo (realidade objetiva).

Assim, segundo Cook (1998, p.536), e de acordo com o que foi explicitado nas seções

anteriores desse capítulo, as ideias (que são objetos independentes da mente, segundo

Malebranche), tomadas no seu caráter representativo, possuem características incompatíveis

com a de seres que são criados e finitos. Isso significa que a partir da realidade ou das perfeições

das ideias, que são infinitas, imutáveis, eternas, é preciso concluir que elas estão em Deus.

Melhor dizendo, pela consideração das perfeições desses objetos, que são as ideias, é necessário

concluir que eles não são coisas particulares e criadas e que, por esse motivo, só podem estar

em Deus, pois só Deus é eterno, infinito e ilimitado, como visto anteriormente. Com isso em

vista, Cook pensa que esse raciocínio (anteriormente apresentado), que conduz à conclusão de

que as ideias estão em Deus, repercute, de alguma maneira, aquele que leva à prova da

existência de Deus na Terceira Meditação de Descartes conforme ele chega a Deus a partir das

perfeições das ideias. Sendo que a diferença entre eles é dada nas concepções distintas sobre o

que é ideia, o que faz com que eles possuam diferentes conclusões. Por um lado, no argumento

cartesiano prova-se a existência de Deus porque o conteúdo da ideia que o representa, ideia que

além de ter essa realidade objetiva (o conteúdo exibido) tem também a realidade formal de ser

um modo do pensamento, não se explica pela natureza finita do próprio pensamento, exigindo

Deus como seu causador. Por outro lado, o argumento malebranchista, ao considerar as ideias,

Page 95: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

95

conclui delas que só podem estar em Deus, pois elas não podem ser nem modificações da

mente117, já que na mente só há operações, nem tampouco podem ser as coisas materiais, que

são por si mesmas insensíveis e ininteligíveis, além de não poderem constituir substâncias

independentes, já que, por sua infinitude e imutabilidade, dependem de Deus como explicação.

Mas é preciso explicar como Malebranche chega à conclusão de que as ideias (que, já

se sabe, estão em Deus) têm tais perfeições. Nesse momento, Cook (1998, p. 536-537) propõe

uma leitura, segundo ele, mais elaborada do argumento da intencionalidade da percepção. Dessa

forma, tomado o princípio que fundamenta a intencionalidade da percepção, a saber, aquele que

diz que o nada não pode ser pensado, ou percebido, já que toda percepção é percepção de

alguma coisa. É possível concluir dele que aquilo que se percebe deve conter as perfeições que

são lá percebidas, pois do contrário haveria a percepção do nada. E com isso se pode afirmar

que as ideias possuem perfeições. Nesse sentido, parece que se segue o princípio de que tudo

aquilo que é percebido como estando no objeto das ideias, deve estar de fato nele (pelo menos

eminentemente). Dessa forma, as ideias das coisas sobre as quais se pensa devem conter os

mesmos tipos de perfeição que essas coisas possuem. Por isso, como se pensa na extensão como

não possuindo limites, é preciso concluir que a infinitude é uma perfeição da ideia de extensão.

Da mesma forma, se se pensa triângulos em geral e não em particular, a ideia de triângulo tem

de ser geral. Se é possível pensar no infinito, não se pode pensar que ele não seja infinito . E

isso é assim porque de acordo com o princípio da intencionalidade da percepção (toda

percepção é percepção de um objeto) e o que se segue dele (tudo o que se percebe como estando

num objeto deve estar no objeto percebido) não é possível que percebamos alguma coisa finita

como infinita, visto que essa percepção infringiria o princípio de que o que não é não pode ser

percebido. Perceber algo infinito no finito é extrapolar os limites do que é diretamente

percebido, pois o percebido, nesse caso, seria aquilo que não é. Como referência, Cook (1998,

537) cita Malebranche: “como o nada não é visível, só se pode perceber no finito apenas o que

ele contém” (OCM, IV, 74)118. Além dessa referência, pode-se citar passagens da Recherche,

III, II, 6 e IV, 11, §3 em favor dessa leitura do argumento da intencionalidade:

117 É interessante reforçar aqui que Malebranche parece admitir que o problema com a concepção cartesiana está no fato de distinguir dois tipos de realidade da ideia, a saber, a realidade formal da ideia (de ser um ato, modo, do pensamento) e realidade objetiva da ideia (conteúdo exibido na mente e que é objeto da ideia, mesmo para Descartes). Segundo Malebranche, admitir que a ideia tem uma realidade formal de ser uma modificação da mente tornaria o objeto da ideia (o conteúdo da ideia) dependente da mente no sentido de se tornar ele próprio, o conteúdo, uma modificação da mente. 118 « Or comme le neant n’est pas visible, on ne peut appercevoir dans le fini que ce qu’il contient » (OCM, IV, 74)

Page 96: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

96

[...] a prova da existência de Deus mais bela, mais elevada, mais sólida e a primeira,

ou aquela que supõe menos coisas, é a ideia que temos do infinito. Pois é certo que o

espírito percebe o infinito [...] e que tem uma ideia muito distinta de Deus [...] visto

que não podemos conceber que a ideia de um ser infinitamente perfeito, que é aquela

que temos de Deus, seja uma coisa criada [a saber, finita] (ABV, 195)119.

[...] não há nada de finito que possa representar o infinito. Portanto, só podemos ver

Deus se ele existe; não podemos ver a essência de um ser infinitamente perfeito sem

ver sua existência; não podemos vê-lo simplesmente como um ser possível [...] (ABV,

226)120.

Tendo isso em vista, segundo Cook (1998, p.537), Deus possui ideias das coisas criadas

porque:

1) Como o nada é invisível, toda percepção é percepção de um objeto, que Malebranche

chama de ideia;

2) E como tudo o que se percebe como tendo determinadas perfeições deve possuir essas

mesmas perfeições percebidas, sob pena de que se perceba o que não está lá para ser

percebido;

3) A natureza das percepções exige que as ideias possuam as diversas perfeições que elas

exprimem, entre elas a da infinitude, a da generalidade etc.;

4) Entretanto, as ideias só podem ter as perfeições que elas têm se elas estão em Deus, pois

só Deus é infinito, só Deus não é particular etc.

5) Por essa razão, Malebranche acredita, segundo Cook, que Deus, ao possuir em si mesmo

essas perfeições que compõem as ideias, é capaz de representar as coisas criadas.

Até esse momento, pretende-se ter explicitado, juntamente com Cook (1998, 537), como

a realidade das ideias está em Deus à medida que ele possui em si eminentemente as perfeições

das criaturas. Como as ideias são objetos representativos que carregam consigo inúmeras

perfeições e, entre elas, algumas que são incompatíveis com a de seres finitos, é preciso concluir

que elas são (objetos representativos) em Deus, pois só ele pode explicar sua realidade. Por esse

119 « […] la preuve de l’existence de Dieu la plus belle , la plus relevée, la plus solide, & la première, ou celle qui suppose le moins de choses, c’est l’idée que nous avons de l’infini. Car il est constant que l’esprit apperçoit l’infinit […] & qu’il a une idée très distincte de Dieu […] puisqu’on ne peut pas concevoir, que l’idée d’un être infiniment parfait, qui est celle que nous avons de Dieu, soit quelque chose de créé » (OCM, I, 441). 120 « […] il n’y a rien de fini qui puisse représenter l’infini. L’on ne peut donc voir Dieu, qu’il n’existe : on ne peut voir l’essence d’un être infiniment parfait, sans en voir l’existence : on ne le peut vois simplement comme un être possible […] » (OCM, II, 96)

Page 97: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

97

motivo, Deus, porque possui em si as perfeições contidas nas ideias das criaturas é em si mesmo

representativo dessas criaturas. É preciso agora esclarecer mais o que significa que Deus seja

representativo das criaturas: como a natureza de Deus representa as coisas criadas?

Ainda acompanhando Cook (1998, p.537-539), ele afirma que Malebranche caracteriza

de diferentes maneiras a relação entre Deus e as criaturas de modo a esclarecer como é possível

para ele representar as coisas criadas. Para Malebranche, todas as criaturas são imagens de, ou

semelhantes, a Deus121. Ele também afirma que as criaturas são imitações ou “participações”

de Deus, a saber, “[todos os seres] são apenas participações (eu não digo partes), apenas

imitações infinitamente imperfeitas de sua essência [de Deus]” (OCM, XV, 10)122.

Malebranche ainda diz, segundo Cook, que a natureza própria de cada coisa consiste na sua

participação de alguma forma na natureza divina123. Essa interpretação encontra apoio também,

como se pode observar, no trecho da Recherche, III, II, 6 que diz que não se percebe Deus em

seu ser absoluto, mas apenas no âmbito específico da natureza de Deus que diz respeito às

criaturas, que guarda alguma relação com elas, ou que é dado à participação delas: “A essência

de Deus é seu ser absoluto, e os espíritos não veem a substância divina tomada absolutamente,

mas somente enquanto relativa às criaturas ou participável por elas” (ABV, 192)124. Essas

citações e apontamentos visam a mostrar em que sentido Malebranche concebe a relação

existente entre Deus e as coisas criadas que possa dar conta do que significa que Deus seja

representativo das criaturas. Ora, as coisas criadas são imagens, são semelhantes de maneira

infinitamente imperfeita a Deus porque elas participam, de uma forma limitada, da essência de

Deus. E, nesse sentido, as criaturas participam da essência de Deus à medida que contêm de

maneira muito limitada as perfeições que Deus contém perfeita e infinitamente. Em razão disso,

as criaturas são representadas por Deus em função daquilo de que, nele, elas são imagens, ou

cópias imperfeitas. Isso significa que Deus representa as criaturas porque possui em sua

natureza perfeições das quais essas criaturas são imagens. Pode-se citar aqui como apoio a essa

concepção o seguinte trecho da Recherche, III, II, 5:

É indubitável que havia somente Deus antes que o mundo fosse criado, e que ele não

o pôde produzir sem conhecimento e sem ideia; que, consequentemente, essas ideias

que Deus tinha desse mundo não são diferentes de si mesmo; e que, assim, todas as

121 Cf. OCM, IV, 64. 122 « […] [tous les êtres] ne sont que de participations, (je ne dis pas des partie) infiniment limitées, que des imitations infiniment imparfaites de Son essence » (OCM, XV, 10). 123 Cf. OCM, IX, 950. 124 « L’essence de Dieu c’est son être absolu, & les esprits ne voient point la substance divine prise absolument, mais seulement en tant que relative aux créatures ou participable par elles » (OCM, I, 439).

Page 98: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

98

criaturas [...] estão em Deus, ainda que de uma maneira inteiramente espiritual e que

nós não podemos compreender. Deus vê, portanto, dentro de si mesmo, todos os seres,

considerando suas próprias perfeições, que os representam para ele. (ABV, 189)125.

E nesse sentido, é legítimo conceber que as perfeições de Deus representam aquilo que

são suas imitações imperfeitas. Entretanto, como já visto, é forçoso lembrar que isso ocorre

apenas enquanto tais perfeições divinas são tomadas de uma determinada maneira, jamais

podendo ocorrer enquanto elas são tomadas absolutamente, como Deus é em si mesmo.

É lícito, nesse contexto, compreender as criaturas como instanciações de diversos

modos pelos quais Deus pode ser limitado. Assim, pode-se entendê-las num certo sentido como

reflexos imperfeitos das perfeições divinas. E as perfeições de Deus, tomadas dessa forma

limitada, como representativas de diferentes criaturas. Por fim, as ideias expressam as formas

em que as perfeições de Deus podem ser imitadas, ou copiadas, ou limitadas imperfeitamente

como (na forma de) criaturas. A conclusão que se retira disso em seguida não está presente em

Cook e consiste na minha interpretação acerca do que se pode depreender da tese do autor sobre

a identificação das ideias com a substância divina: as ideias são idênticas a Deus à medida que

ele é, em última instância, o modelo para tudo aquilo que é. Dessa maneira, se as ideias são a

substância de Deus enquanto ela representa as coisas criadas, e Deus as representa porque

possui em si eminentemente as perfeições dessas coisas, pode-se afirmar que as ideias são a

natureza de Deus tomada nas suas possibilidades arquetípicas como modelos para a criação do

mundo. Afirma-se isso porque quando as perfeições de Deus são consideradas como

exemplares possíveis de serem instanciados numa realidade externa a Deus segundo um

conjunto de propriedades e condições determinados, então temos a noção de ideia como

modelos ou arquétipos segundo os quais Deus cria todas as coisas. E, reforçando, é nesse

sentido que se pode dizer que as ideias são idênticas à natureza de Deus, pois elas são a própria

substância de Deus, que contém em si todas as perfeições eminentemente, considerada sob o

aspecto arquetípico a partir do qual todas as coisas criadas são como que imagens, ou cópias

imperfeitas das perfeições infinitamente perfeitas de Deus.

125 « Il est indubitable qu’il n’y avoit que Dieu seul avant que le monde fût créé, & qu’il n’a pû le produire sans connaissance & sans idée : que par conséquent ces idées que Dieu en a euës ne sont point différentes de lui-même & qu’ainsi toutes les créatures […] sont en Dieu, quoi que d’une manière toute spirituelle & que nous ne pouvons comprendre. Dieu voit donc au-dedans de lui-même tous les êtres, en considérant les propres perfections qui les lui représentent » (OCM, I, 434-435).

Page 99: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

99

É preciso ressaltar nesse momento que a noção de representação como exibição na

consciência de um conteúdo determinado como objeto da percepção, empregada até então, é,

nesse contexto da representação divina, substituída por uma compreensão da representação

como modelo, ou padrão, segundo o qual todas as coisas criadas são constituídas. Emprega-se

aqui essa concepção modelar por se tratar da representação divina das coisas criadas, que é

distinta da percepção realizada pelas mentes finitas, para a qual mantém-se a compreensão de

representação como exibição de conteúdos na consciência. E elas são distintas porque Deus não

percebe as ideias como objetos representativos que visam a algum outro, mas sim as ideias são

a própria natureza divina enquanto modelo perfeito das criaturas.

Tendo exposto a argumentação de Cook (1998) acerca do status ontológico das ideias

na filosofia de Malebranche, faz-se necessário discutir algumas consequências das posições

apresentadas. Considera-se nesse texto que a mais importante delas é o representacionalismo

forte da teoria da percepção de Malebranche, que envolve elementos como a percepção direta

das ideias, enquanto as perfeições de Deus, quando elas são modelos para as coisas criadas; a

independência das ideias com relação aos objetos que elas representam; e o conhecimento

apenas inferencial do mundo criado. Todo esse conjunto de consequências coloca a teoria da

percepção de Malebranche num lugar muito peculiar e um tanto anti-intuitivo que é responsável

por provocar uma longa discussão com Arnauld acerca do que é perceber e qual é o objeto

imediato da percepção, como se discutirá proximamente. Todavia, sobre as características desse

representacionalismo é que se debruçará nesse momento.

A concepção de que a teoria da percepção de Malebranche implica um

representacionalismo forte processa-se fundamentalmente pela tese de que as ideias são objetos

representativos intermediários entre a percepção e as coisas representadas. Isso significa que,

como já visto, as ideias não se reduzem nem a um certo tipo de ato mental, nem às coisas

externas representadas, mas são como que terceiras entidades que intermedeiam o processo

perceptivo. A natureza dessas terceiras entidades, como elucidado anteriormente, é idêntica à

substância de Deus, não tomado absolutamente, mas enquanto ela é, em um sentido peculiar

como explicado acima, representativa das coisas criadas. Nesse sentido, as ideias são a

substância de Deus tomada nas suas possibilidades arquetípicas segundo as quais o mundo é

criado. Isso significa que é a substância de Deus sob determinado aspecto (conforme ela é

modelo ou exemplar das coisas externas) aquilo que é diretamente percebido no ato perceptivo,

de modo que o contato que a mente tem no âmbito da percepção se dá exclusivamente com

Deus, sem, portanto, nenhum acesso direto da mente finita ao mundo criado. Nesse contexto,

Page 100: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

100

entende-se que o representacionalismo malebranchista expõe uma relação perceptiva tão

singular que nela o conhecimento do mundo ocorre apenas por inferência a partir da percepção

direta que a mente tem das ideias em Deus. O que se quer ressaltar aqui é que, como as ideias

são os exemplares inteligíveis segundo os quais Deus cria toda a realidade, a relação causal

tradicional entre ideia e coisa representada parece ter sido invertida pela filosofia de

Malebranche. Enquanto uma certa tradição cartesiana entende que os objetos são causas, pelo

menos ocasionais, dos conteúdos representativos das ideias, Malebranche defende que são os

conteúdos representativos das ideias, modelares em Deus, as causas, ou a explicação das coisas

representadas pelas ideias. Isso significa que os conteúdos das ideias definem um conjunto de

propriedades e de condições que as coisas no mundo instanciam após a criação divina126. Esse

modelo exposto exemplifica uma cisão intransponível entre a mente e o mundo que exige,

segundo Malebranche, as ideias como intermediários necessários para o estabelecimento de

relações perceptivas. De fato o que se tem é uma relação perceptiva totalmente voltada para a

percepção das entidades representativas como os verdadeiros objetos diretamente percebidos,

sendo a relação perceptiva com o mundo criado totalmente derivada da relação entre mente e

ideias em Deus: o mundo reflete as ideias e não o contrário e, nesse sentido, o que se conhece

em realidade são as ideias, a partir das quais se pode inferir o que é o mundo externo. Sendo

assim, novamente, porque são tão somente as ideias os objetos imediatamente vistos, é

imperioso concluir que todo e qualquer acesso ao mundo externo é dado apenas via

representação das coisas externas. É importante comentar, nesse ponto, que em Malebranche,

mas não necessariamente em Descartes, uma tal compreensão das ideias como a natureza de

Deus tomada no seu âmbito representativo das coisas externas criadas leva à caracterização das

ideias, no que concerne a sua realidade, como independentes das (e inclusive anterior às) coisas

que elas representam. Essa independência refere-se ao fato de que a teoria das ideias de

Malebranche assume, em função de suas teses acerca da natureza das ideias, que não somente

elas são objetos ontologicamente distintos daqueles que representa, isto é, objetos cuja realidade

não necessita da realidade dos objetos representados, mas também que seu conteúdo

representativo é independente desses objetos representados. E isso reforça o sentido em que a

relação perceptiva da mente com os objetos que ela percebe ocorre sempre no contexto da

relação da alma com Deus, no momento em que ele decide revelar para ela as ideias para sua

percepção.

126 Cf. NADLER, 1992, p.51.

Page 101: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

101

Em resumo, o que se pretende enfatizar nesse momento é a caracterização da teoria da

percepção de Malebranche como um representacionalismo forte em que a mente finita só

percebe diretamente e de fato Deus (enquanto ele disponibiliza para ela as ideias) e nunca o

mundo. Não há, nessa concepção, percepção, pelo menos imediata, do mundo externo, mas

apenas uma inferência do que nele se passa, em função do valor representativo que as ideias

percebidas possuem, pois elas são a própria substância de Deus enquanto modelos

representativos das coisas externas. Como as ideias estão em Deus, ou seja, são representações

em Deus do mundo externo criado, é por meio da percepção imediata que a mente finita tem

delas que se pode constatar como é o mundo. Sendo assim, o que se percebe são ideias e não as

coisas. Nessa concepção representacionalista forte, o mundo externo nunca é diretamente

percebido; e talvez se possa dizer que num certo sentido ele não é nem mesmo indiretamente

percebido, já que a única relação perceptiva se dá com as ideias em Deus, cuja relação

representativa com as coisas criadas, pode-se dizer, é apenas inferida a partir da perfeição

divina: a mente pode saber como é o mundo porque infere das ideias que estão em Deus que as

coisas externas são como as ideias as representam.

Page 102: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

102

3 ARNAULD LEITOR DE DESCARTES: CRÍTICA À TEORIA DA PERCEPÇÃO

DE MALEBRANCHE

O debate entre Arnauld e Malebranche acerca das ideias possui múltiplos matizes que

vão da questão a respeito do objeto imediato da percepção a preocupações de ordem teológica.

É possível considerar, como o faz Denis Moreau (1999, p. 140-144; 154-156), que a finalidade

principal das críticas de Arnauld a Malebranche é atacar as teses malebranchistas sobre a

teologia expostas no Traité de la nature et de la grâce, que teriam como base toda a teoria da

percepção de Malebranche. Nesse sentido, ao combater a concepção de ideia como entidade

representativa em Deus, Arnauld teria em vista a reprovação da suposta univocidade epistêmica

entre os homens e Deus127 que permitiria aos homens avaliar e julgar, a partir de uma posição

privilegiada, as obras e a conduta de Deus. No entanto, o foco e o escopo desse capítulo

encontram-se somente em expor os argumentos da crítica de Arnauld (2011), realizada na sua

conhecida obra publicada em 1683 e intitulada Des vraies et des fausses idées, ao que concerne

à teoria da percepção de Malebranche, notadamente às teses sobre a necessidade das ideias

como seres ou entidades representativas distintas e separadas tanto do ato perceptivo quanto

das coisas percebidas, bem como sobre o papel das ideias como objetos imediatos da percepção,

e também sobre a natureza dessas ideias e sobre a concepção de representacionalismo de

Malebranche. A fim de levar a cabo essa exposição, propõe-se aqui a análise dos capítulos 4 a

11 da obra de Arnauld em questão onde são discutidos os pressupostos que sustentam as

concepções de Malebranche na Recherche acerca da natureza das ideias; onde é oferecida uma

demonstração geométrica da falsidade das ideias tomadas como entidades representativas

separadas das operações da mente finita; e onde Arnauld pronuncia-se acerca de um tipo de

representacionalismo na percepção, que será debatido oportunamente.

3.1 A leitura de Arnauld dos pressupostos malebranchistas da percepção

127 Segundo a leitura apresentada no capítulo sobre Malebranche, as ideias são modelos arquetípicos em Deus representativos de todas as coisas criadas. Essas ideias são os objetos imediatos da percepção das mentes finitas e isso significa que essas mentes percebem, em última instância, a natureza de Deus, enquanto ela é representativa de seres criados, quando percebem alguma coisa.

Page 103: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

103

No capítulo 4 de Des vraies et des fausses idées, doravante VFI128, Arnauld afirma no

título-resumo que encabeça o texto que as concepções de Malebranche sobre a natureza das

ideias expostas no livro III da Recherche são fantasias provindas dos preconceitos da infância.

Adianta-se que a leitura de todo o capítulo mostra que a atribuição das concepções

malebranchistas sobre a natureza das ideias aos preconceitos da infância diz respeito aos

fundamentos delas, isto é, aos pressupostos que embasam tais concepções ontológicas acerca

das ideias, segundo Arnauld. Ele não está preocupado, pelo menos nessa ocasião, em mostrar

que cada elemento das concepções de Malebranche acerca das ideias é preconceito infantil.

Mas, como se verá, está preocupado apenas com evidenciar, nesse primeiro momento, que a

base da teoria das ideias de Malebranche é resultado de determinados preconceitos da infância,

o que, segundo ele, parece ser suficiente para lançar suspeitas sobre as consequências da teoria

malebranchista. O que isso quer dizer propriamente e as razões que embasam essa leitura

procurar-se-á explicitar em seguida a partir da análise de VFI, 4, 58-66.

O tema dos preconceitos da infância é uma referência direta de Arnauld à compreensão

cartesiana, exposta nos Princípios da Filosofia, I, art. I, de que na infância, a ser entendido por

quando se é ainda muito jovem e não se alcançou o uso adequado da razão, os juízos a partir

das coisas que se apresentam aos sentidos estão comprometidos pelo uso impróprio e

insuficiente da razão. Descartes diz: “Visto que nascemos sem discernimento e fizemos vários

juízos acerca das coisas sensíveis antes de ter o uso pleno de nossa razão, vemo-nos desviados

por muitos prejuízos do conhecimento da verdade [...]” (Princípios, 23129; AT, VIIIA, 5)130.

Arnauld parece compreender do tema dos preconceitos da infância que eles dizem

respeito às experiências de todos os homens num certo estágio da vida (que seria a infância) em

que eles se encontram numa espécie de estado de imersão nos sentidos, de tal maneira que se

mantêm ligados somente às suas disposições corporais e ao que se apresenta a seus sentidos,

ou seja, quando se supõe que todo o conhecimento depende daquilo que se passa no corpo e é

dado pelos sentidos:

Como todos os homens inicialmente foram crianças e que, enquanto tal, estavam

ocupados quase que apenas com seus corpos e com o que atingia seus sentidos; eles

128 Todas as referências ao texto da obra Des vraies et des fausses idées serão acompanhadas da sigla VFI, seguidas pelo número do capítulo e também pelo número da página da edição da referida obra que foi estabelecida por Denis Moreau em 2011. 129As traduções para o português da primeira parte dos Princípios são da edição brasileira Princípios da Filosofia. Tradução de Guido Antonio de Almeida (coordenador), Raul Landim Filho, Ethel M. Rocha, Marcos Gleizer e Ulysses Pinheiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. 130 “Quoniam infantes nati sumus, & varia de rebus sensibilibus judicia prius tulimus, quam integrum nostrae rationis usum haberemus, multis praejudiciis a veri cognitione avertimur [...]” (AT, VIIIA, 5).

Page 104: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

104

permaneceram por longo tempo sem conhecer outra coisa para além da visão corporal,

que eles atribuíam a seus olhos131 (VFI, 4, 58)132.

Na passagem acima citada, ao manifestar que a condição de imersão nos sentidos leva

os homens a pressuporem que o que é dado pelas sensações é a única via para o conhecimento,

Arnauld utiliza o exemplo da visão corporal como ilustração dos preconceitos da infância.

Dessa maneira, tudo o que é dado pelo sentido da visão é considerado, segundo Arnauld, como

uma referência segura no contexto em que os homens estão atrelados unicamente a seus

sentidos, isto é, na conjuntura em que se dão os preconceitos da infância. Entretanto, é

importante ressaltar que a visão não aparece no texto de Arnauld como mero exemplo aleatório

da formação de preconceitos, mas sim, como se verá, como a grande amostra de confusão

provocada pelos prejuízos da infância que estaria na base da teoria das ideias de Malebranche.

Com isso em vista, a partir do que pode ser considerada uma análise (infantil) da visão

corporal, Arnauld afirma que duas coisas eram imprescindivelmente notáveis (por esses

infantis, ou seja, do ponto de vista do vulgo) no sentido da visão, a saber, 1) que, para que ela

ocorresse, algum objeto devia estar diante dos olhos; e, 2) no caso da reflexão das imagens dos

objetos em superfícies refletoras, que o que se acreditava ver eram apenas as imagens desses

objetos e não os objetos eles mesmos. Compreende-se aqui que Arnauld quer ressaltar que da

observação, feita pelos homens comuns, do que se passa na visão corporal extraiu-se duas

coisas: que ela ocorre quando há objetos diante dos olhos, e que ela também ocorre quando o

que está diante dos olhos é apenas uma imagem refletida. Sendo assim, o exame infantil do

sentido da visão, segundo Arnauld, seria o responsável pela compreensão de que a presença de

um objeto diante dos olhos era um requisito para a visão, bem como que, no caso da reflexão

da imagem, aquilo que era visto eram representações de objetos e não os objetos por si mesmos:

[…] eles não puderam impedir-se de observar duas coisas nessa visão [corporal].

Uma, é que era preciso que o objeto estivesse diante de nossos olhos para que

pudéssemos vê-lo, o que eles chamaram de presença; e é isso que os fez considerar a

presença do objeto como uma condição necessária para ver. A outra, é que às vezes

as coisas visíveis também eram vistas nos espelhos, ou na água, ou outras coisas que

131 As traduções para o português de Des vraies e fausses idées são de minha autoria. 132 « Comme tous les hommes ont été d’abord enfants, et qu’alors ils n’étaient presque occupés que de leur corps, et de ce qui frappait leurs sens, ils ont été longtemps sans connaître d’autre vue que la vue corporelle, qu’ils attribuaient à leurs yeux » (VFI, 4, 58).

Page 105: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

105

no-las representavam; e, então, eles acreditaram, embora erradamente, que não eram

os corpos mesmos que se viam, mas suas imagens. (VFI, 4, 58-59)133

Ao considerar essas observações acerca do que se passa na visão corporal, Arnauld

estabelece duas premissas, condições ou princípios que estariam na base da compreensão do

que é ver para aqueles que permanecem imersos no campo das sensações: 1) no caso da visão

direta, a necessidade da presença do objeto visto; e 2) no caso da visão da reflexão da imagem,

a impossibilidade de se ver o objeto por si mesmo a não ser segundo sua imagem refletida.

Essas duas premissas derivadas da percepção sensível, segundo Arnauld, constituíram o modo

como aqueles absolutamente ocupados com as coisas sensíveis compreenderam o que é ver.

Tendo isso em vista, caracteriza-se aí uma forte associação, dada pelo costume, entre essas duas

condições e a própria noção de visão; de tal forma que essa noção do que é ver, dominada por

essas condições resultantes dos preconceitos da infância, foi tomada como a coisa mais certa e

inquestionável. Entretanto, o risco de se tomar por inquestionável aquilo que não passou por

uma análise rigorosa capaz de distinguir com clareza a composição das noções e dos juízos

presentes na alma é o que caracteriza propriamente os erros resultantes dos preconceitos em

questão:

Eis a única ideia que eles tiveram por muito tempo disso que eles chamaram de ver,

de onde ocorreu que eles se acostumaram, por um longo hábito, a juntar à ideia dessa

palavra [ver] uma ou outra dessas duas circunstâncias: a presença do objeto na visão

direta; ou ver somente o objeto por sua imagem na visão refletida por espelhos. Ora,

é suficientemente sabido que se tem de separar as ideias que têm o costume de se

encontrar juntas no nosso espírito e que isso é uma das causas das mais ordinárias dos

nossos erros. (VFI, 4, 59)134.

133 « [...] ils n’ont pu s’empêcher de remarquer deux choses dans cette vue. L’une, qu’il fallait que l’objet fût devant nos yeux, afin que nous les pussions voir, ce qu’ils ont appelé présence ; et c’est ce qui leur a fait regarder cette présence de l’objet comme une condition nécessaire pour voir. L’autre, qu’on voyait aussi quelquefois les choses visibles dans les miroirs, ou dans l’eau, ou d’autres choses qui nous le représentaient ; et alors ils ont cru, quoique par erreur, que ce n’était pas les corps même que l’on voyait mais leurs images. » (VFI, 4, 58-59). 134 « Voilà la seule idée qu’ils ont eue longtemps de ce qu’ils ont appelé voir, d’où il est arrivé qu’ils se sont accoutumés, par une longue habitude, à joindre à l’idée de ce mot l’une ou l’autre de ces deux circonstances : de la présence de l’objet dans la vue directe ; ou de voir seulement l’objet par son image, dans la vue réfléchie par des miroirs. Or on sait assez la peine qu’on a de séparer les idées qui ont accoutumé de se trouver ensemble dans notre esprit, et que c’est une des causes les plus ordinaires de nos erreurs. » (VFI, 4, 59)

Page 106: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

106

Diante de um maior esclarecimento do que Arnauld entende como os preconceitos da

infância aos quais ele associa as concepções de Malebranche acerca das ideias, é necessário

expor as razões de Arnauld para sustentar que a teoria malebranchista das ideias está fundada

em tais preconceitos. Com esse intuito, identifica-se aqui que é a partir de uma extrapolação

inadequada da noção do que é ver, segundo a compreensão infantil do que seria a visão

corpórea, para situações diferentes (e até mesmo díspares) daquela baseada nessa sensação –

uma extrapolação presente na associação entre visão e conhecimento – que Arnauld pretende

mostrar em que medida a teoria de Malebranche estaria fundada em meros prejuízos. A análise

da passagem em seguida permitirá identificar a referida extrapolação:

Mas os homens com o tempo se deram conta de que conheciam diversas coisas que

eles não podiam ver pelos olhos, ou porque eram coisas muito pequenas, ou porque

não eram coisas visíveis [...] E isso os obrigou a crer que havia coisas que nós vemos

pelo espírito e não pelos olhos [...] E ainda assim, tendo imaginado que a vista do

espírito era praticamente semelhante àquela que eles atribuíram aos olhos, eles não

hesitaram, como é o comum, em transferir essa palavra [ver] ao espírito com as

mesmas condições que eles haviam imaginado que a acompanhavam quando eles

aplicavam-na aos olhos. (VFI, 4, 59)135.

Segundo Arnauld, quando os homens mergulhados nos preconceitos da infância se

aperceberam de que havia coisas que eles não conheciam por meio de seus olhos, eles

procuraram explicar o que se passava nesses casos a partir da atribuição do que entendiam como

visão ao que seria uma visão do espírito. Desse modo, compreendendo que nem tudo o que

viam dependia de seus olhos, pois havia coisas invisíveis a eles e que, no entanto, lhes eram

conhecidas, passaram a designar, para dar conta disso, um outro tipo de visão não dependente

dos olhos. E esse era o gênero de visão que eles consideraram como próprio do espírito. Mas,

embora tivessem identificado um tipo de “visão específica” do espírito, importaram da visão

corporal para a visão do espírito todas as condições anteriormente associadas à noção do que é

135 « Mais les hommes avec le temps se sont aperçus qu’ils connaissaient diverses choses, qu’ils ne pouvaient voir par leur yeux, ou parce qu’elles étaient trop petites, ou parce qu’elles n’étaient pas visibles [...] C’est ce qui les a obligés de croire qu’il y avait des choses que nous voyons par l’esprit, et non par les yeux [...] Quoi qu’il en soit, s’étant imaginé que la vue de l’esprit était à peu près semblable à celle qu’ils avaient attribuée aux yeux, ils n’ont pas manqué, comme c’est l’ordinaire, de transférer ce mot à l’esprit avec les mêmes conditions qu’ils s’étaient imaginé qui l’accompagnaient, quand ils l’appliquaient aux yeux. » (VFI, 4, 59).

Page 107: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

107

ver pelos olhos, ao invés de considerarem o que seria próprio dessa visão espiritual a partir de

uma análise do que nela se passa.

A associação entre visão corporal e conhecimento intelectual como constituinte básico

de concepções filosóficas errôneas acerca da percepção está expressa, segundo Arnauld, na

atribuição equivocada (mal elaborada, confusa, incorreta) das condições da visão corporal ao

fenômeno do entendimento, isto é, da percepção intelectual ou mesmo do conhecimento. Note-

se aí a ampliação impertinente do sentido de ver, inicialmente restrito a condições dadas pelo

sentido corporal da visão, e que agora é estendido para eventos como perceber e conhecer. É

bom lembrar que Arnauld, nesse mesmo capítulo, chama atenção para o que é causa comum de

erros, a saber, a não avaliação criteriosa de ideias associadas por hábito136. Isso quer dizer que

a extensão do significado do que é ver, adquirido como costume dos preconceitos da infância,

a ocorrências do entendimento consiste num feito espúrio, privado de qualquer legitimidade

porque ela é realizada por uma associação, mal ponderada e pouco examinada, à percepção

intelectual daquilo que se acostumou a entender como visão. E isso que é mal ajuizado é a

importação para o entendimento das condições, anteriormente enumeradas, que o hábito infantil

acostumou-se a encontrar na visão corporal. É bom apontar aqui que, embora alguns filósofos

expliquem a visão corporal desse modo, essa explicação é considerada por Arnauld, como se

verá mais à frente, inadequada mesmo para a visão corpórea. Entretanto, é preciso agora

explicar de que maneira essas condições serviram a uma certa tradição filosófica, de acordo

com Arnauld, para explicar a visão espiritual.

Segundo Arnauld, esse transporte das condições da visão corporal (baseadas nos

preconceitos da infância) para a percepção intelectual consiste, em primeiro lugar, na

compreensão de que a percepção, ou visão espiritual, também exigiria a presença de um objeto

para que pudesse ocorrer. “Pois, eles não duvidaram e tomaram como um princípio certo, tanto

no que diz respeito ao espírito quanto no que diz respeito aos olhos, que era necessário que um

objeto estivesse presente para que fosse visto” (VFI, 4, 59)137. Sendo assim, tal como se

concebeu a visão corporal, a percepção intelectual demandaria que seu objeto estivesse “diante”

do espírito para que ele pudesse ser percebido. No entanto, segundo Arnauld, a condição da

presença do objeto no caso da percepção intelectual mostrou-se problemática perante o

escrutínio filosófico, visto que alguns filósofos logo se deram conta de que não poderiam

136 Cf. VFI, 4, 59. 137 « Car ils n’ont point douté, et ils ont pris pour un principe certain, aussi bien au regard de l’esprit que des yeux, qu’il fallait qu’un objet fût présent pour être vu » (VFI, 4, 59).

Page 108: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

108

explicar a visão espiritual tão somente pelo pressuposto da necessidade da presença do objeto.

Arnauld diz “mas, quando os Filósofos [...] quiseram fazer uso [do princípio da presença] para

explicar a visão do espírito, eles se viram impedidos” (VFI, 4, 59)138. É importante comentar

que esses filósofos não são identificados por Arnauld, mas aparecem no texto139 como

representantes de uma certa concepção tradicional equivocada do tema da percepção à medida

que tomam os pressupostos da visão corporal como tão certos que se esquecem de avaliá-los

precisamente. Em resumo, o que Arnauld sugere em toda essa passagem é que há uma

associação imprecisa e inadequada do fenômeno da percepção, que envolve elementos

intelectuais, com o fenômeno da visão corpórea, que ocorre apenas no corpo. Esse equívoco

ocorre porque, em meio aos preconceitos da infância, a visão corpórea, a sensação da visão, foi

tomada como base para a explicação do fenômeno da percepção intelectual. Mas, como a visão

corpórea constitui apenas aquilo que ocorre no corpo quando ele experimenta visualmente, ou

vê alguma coisa; tratá-la como a referência para o que ocorre quando, conscientemente, se

percebe alguma coisa é um engano que precisa ser desfeito. Engano esse que, na avaliação de

Arnauld, ao invés de ter sido dirimido, foi insuflado por uma tradição de filósofos que

desenvolveram teorias da percepção tendo ele como base.

É nesse círculo que Arnauld pretende envolver Malebranche quando procura mostrar

que sua teoria da percepção está fundada em preconceitos. Desse modo, presos nas armadilhas

dos preconceitos, como visto mais acima, o que esses filósofos reconhecem em suas tentativas

de explicar a visão espiritual é apenas uma dificuldade de fazê-lo exclusivamente a partir da

condição da presença do objeto (e não um equívoco de base que é a atribuição das condições

da visão corporal à percepção intelectual). Isso porque eles se viram impedidos de determinar

como a presença do objeto efetivamente poderia dar-se para a alma, o que tem a ver com suas

concepções acerca da natureza da alma e sua relação com as coisas materiais. De maneira geral,

essas concepções são as seguintes: alguns entre esses filósofos concebem a alma como

imaterial, e outros, pensam que ela é algo de corpóreo e encerrado dentro do corpo. Nesse

sentido, de acordo com essas concepções, o problema apresenta-se porque, por um lado, um

objeto material jamais poderia estar presente para uma alma imaterial; e por outro lado, a alma

material não poderia abandonar o corpo onde está encerrada a fim de se encontrar na presença

138 « Mais, quand les Philosophes […] ont voulu s’en servir [se servir du principe de la présence] pour expliquer la vue de l’esprit, ils se sont trouvés bien empêchés » (VFI, 4, 59). 139 Cf. VFI, 4, 59.

Page 109: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

109

dos objetos, bem como esses não poderiam juntar-se a ela dentro do corpo. A seguinte passagem

parece deixar isso claro:

Pois alguns [filósofos] reconheceram que a alma era imaterial, e outros, que

acreditaram que ela era corporal, tomavam-na como uma matéria sutil, encerrada no

corpo do qual ela não podia sair para encontrar os objetos de fora, nem esses objetos

de fora ir se juntar a ela (VFI, 4, 59)140.

Isso significa que esses filósofos tomaram consciência de que há percepções de objetos

que ou não estão, ou não podem estar, presentes para o espírito, o que aparentemente contraria

o pressuposto da necessidade da presença do objeto para a percepção. Em função disso, com o

intuito de resolver essa dificuldade, Arnauld afirma que eles aplicaram à percepção intelectual

a segunda condição da visão corporal, a saber, aquela que é própria da visão das imagens

refletidas. Com isso pretenderam explicar em que medida há percepção de objetos que não estão

presentes para a alma sem desrespeitar a condição da presença. Nesse caso, as imagens desses

objetos tomam seu lugar, de modo que eles conceberam que o que era efetivamente percebido

eram essas imagens e não as coisas mesmas. Dessa maneira, segundo Arnauld, esses filósofos

produziram uma concepção do que é a visão espiritual, ou percepção, totalmente imbuídos de

preconceitos da infância. Sem a devida consideração e sem a mínima suspeita de que pudessem

estar errados, entenderam que a percepção (a visão intelectual) dos objetos, porque exigiria a

presença do objeto percebido, é a percepção das imagens, das representações que exibem na

alma esses objetos (tal como uma imagem refletida no espelho está no lugar da coisa refletida),

já que a percepção direta dos objetos está impedida pela própria concepção das naturezas da

alma e das coisas corpóreas:

Como, então, [a alma] poderá ver [os objetos], se um objeto não pode ser visto a não

ser que esteja presente? Para escapar dessa dificuldade, eles recorreram à outra

maneira de ver, a qual eles também se acostumaram a aplicar a essa palavra [ver] no

tocante à visão corporal, que é ver as coisas não por elas mesmas, mas por suas

imagens, como quando os corpos são vistos nos espelhos. Pois, [...] quase todo mundo

crê ainda que não são os corpos que são vistos, mas somente suas imagens (VFI, 4,

59-60)141.

140 « Car quelques-uns [philosophes] avaient reconnu que l’âme était immatérielle, et les autres, qui la croyaient corporelle, la regardaient comme une matière subtile, enfermée dans le corps, dont elle ne pouvait pas sortir pour aller trouver les objets de dehors, ni les objets de dehors s’aller joindre à elle » (VFI, 4, 59). 141 « Comment donc les pourra-t-elle voir, puisqu’un objet ne peut être vu s’il n’est présent ? Pour sortir de cette difficulté, ils ont eu recours à l’autre manière de voir, qu’ils avaient aussi accoutumé d’appliquer à ce mot au regard de la vue corporelle, qui est de voir les choses, non par elles-mêmes, mais par leurs images, comme quand

Page 110: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

110

Nesse sentido, a partir de uma compreensão fechada, tomada como incontestável, de

como a alma pode perceber os corpos, os filósofos teriam se dedicado, no que concerne a essa

matéria, a pesquisar somente em que consistiam e o que são propriamente essas imagens

representativas dos corpos para a alma: “[...] supondo-o como uma verdade certa e

incontestável, eles não se incomodaram mais do que procurar o que poderiam ser essas imagens

ou esses seres representativos de corpos, dos quais o espírito necessitava para ver os corpos”

(VFI, 4, 60)142. Dessa maneira, Arnauld pretende mostrar como a lógica por detrás das

concepções de alguns filósofos acerca da percepção intelectual dos objetos materiais é pautada

pelos preconceitos da infância, que, por não terem sido devidamente combatidos a partir de um

exame pormenorizado das atribuições feitas para explicar o fenômeno da percepção, tornaram-

se o princípio básico de interpretação dela. Interpretação essa que, para ser coerente dentro de

suas referências, inclinou, segundo Arnauld, o debate filosófico para a investigação da natureza

disso que seriam as imagens ou representações necessárias para a percepção intelectual de

coisas materiais.

Em síntese, toda essa passagem até aqui analisada parece sugerir que o foco da crítica

de Arnauld é mostrar que, aparentemente sem razões bem elaboradas, filósofos se autorizaram

a tomar a condição da presença do objeto como pressuposto fundamental para a ocorrência da

própria percepção intelectual. Diz-se aqui que o fizeram sem o devido cuidado porque, no

contexto do debate acerca da relação entre os domínios do corpóreo e do mental, em que um é

considerado irredutível ao outro, tomar a condição da presença física do objeto para a

ocorrência da visão como pressuposto para o evento da percepção (visão espiritual) é, no

mínimo, incorrer numa confusão acerca do que é próprio a cada um desses domínios. Afinal o

que poderia significar a presença para a alma, ou estar diante do espírito para que ocorra a

percepção? A leitura que se faz aqui da compreensão de Arnauld é que se a visão corporal exige

a presença do objeto, isso quer dizer somente, a princípio, que no domínio sensível o objeto

deve estar diante dos olhos para que possa ser visto. A atribuição dessa mesma condição ao

evento da visão espiritual, ou percepção, sem razão que a justifique, é apenas uma importação

infundada dela para o domínio do mental baseada numa analogia entre os eventos estabelecida

on voit les corps dans des miroirs. Car, […] presque tout le monde le croit encore, que ce n’est pas alors les corps que l’on voit, mais seulement leurs images » (VFI, 4, 59-60). 142 « […] le supposant comme une vérité certaine et incontestable, ils ne se sont plus mis en peine que de chercher quelles pouvaient être ces images ou ces être représentatives des corps, dont l’esprit avait besoin pour apercevoir les corps » (VFI, 4, 60).

Page 111: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

111

apenas pelos preconceitos da infância. E é justamente isso que teria produzido toda a sorte de

confusões acerca da percepção que Arnauld pretende combater.

Que isso seja assim é mais uma vez indicado por Arnauld no seu texto quando ele afirma

que há em nós uma determinada propensão natural para explicar as coisas a partir de exemplos

e comparações. Em função disso, ao invés de os homens terem recorrido apenas à análise das

operações que ocorrem na alma quando ela percebe alguma coisa e ter daí retirado

esclarecimentos suficientes, eles recorreram à comparação e à busca por exemplos para

satisfazer tal propensão:

Então, quando os homens começaram a se dar conta de que nós vemos as coisas pelo

espírito, ao invés de se consultarem a si mesmos e de cuidar daquilo que eles viam se

passar em seu espírito quando eles conheciam as coisas, eles imaginaram que o

entenderiam melhor por meio de alguma comparação (VFI, 4, 60)143.

A visão corporal foi, então, tomada como a referência para o que ocorre na percepção

intelectual sem nenhuma razão filosófica efetivamente considerada, mas em virtude da

tendência a buscar exemplos ilustrativos para as explicações. Além desse motivo, o fato de esse

exemplo ter sido buscado naquilo que é corpóreo é justificado por Arnauld a partir da forte

ligação que os homens têm com seus corpos, que teria sido forjada a partir da mácula do pecado

original, e que faz com que eles pensem que as coisas corpóreas são mais fáceis de conhecer

que as coisas espirituais. Arnauld diz:

E porque, desde a ferida do pecado, o amor que nós temos pelo corpo faz com que

nos engajemos mais a ele, o que nos faz crer que nós conhecemos melhor e mais

facilmente as coisas corpóreas que as espirituais, é nos corpos que eles acreditaram

dever procurar alguma comparação própria a permiti-lhes compreender como nós

vemos pelo espírito tudo o que nós concebemos e, pincipalmente, as coisas materiais

(VFI, 4, 60)144.

143 « Lors donc les hommes ont commencés à s’apercevoir que nous voyons les choses par l’esprit, au lieux de se consulter eux-mêmes, et de prendre garde à ce qu’ils voyaient clairement se passer dans leur esprit, quand ils connaissaient les choses, ils se sont imaginé qu’ils l’entendraient mieux par quelque comparaison » (VFI, 4, 60) 144 « Et parce que, depuis la plaie du péché, l’amour que nous avons pour le corps nous y applique davantage, ce qui nous fait croire que nous connaissons beaucoup mieux et plus facilement les choses corporelles que les spirituelles, c’est dans les corps qu’ils ont cru devoir chercher quelque comparaison, propre à leur faire comprendre comment nous voyons par l’esprit tout ce que nous concevons, et principalement les choses matérielles » (VFI, 4, 60).

Page 112: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

112

Essa tendência, então, resultou numa busca de comparação com o corpo para explicar como a

alma pode ver/perceber as coisas materiais. E não custou muito para os homens encontrarem

na visão corporal a fonte comparativa de explicação para a percepção intelectual. Segundo

Arnauld – que anteriormente já havia se dedicado a mostrar como os homens deram ao

fenômeno da percepção intelectual (ao tratá-la como uma visão espiritual) o mesmo nome

derivado do que ocorre na visão corporal – é da opinião comum que as coisas que têm o mesmo

nome guardam entre si uma semelhança. Em sendo assim, esses homens não tiveram

dificuldades em concluir que, por (supostamente) se tratarem de fenômenos semelhantes, a

percepção comparava-se à visão corporal ao exigir como condição de sua ocorrência os

pressupostos identificados para a ocorrência dessa última:

Ora, eles haviam dado, como eu já destaquei, o mesmo nome à visão corporal e à

visão espiritual e é isso que os fez raciocinar da seguinte maneira: é necessário que

ocorra alguma coisa de semelhante entre a visão do espírito e a visão do corpo; ora,

nessa última nós só podemos ver aquilo que está presente, isto é, aquilo que está diante

de nossos olhos; ou se às vezes vemos coisas que não estão diante dos nossos olhos,

isso ocorre apenas em função das imagens que representam essas coisas para nós; é

necessário, então, que isso também ocorra na visão do espírito (VFI, 4, 61).145

Dessa maneira, o que fizeram foi interpretar a percepção intelectual segundo o

paradigma da visão corporal, o que significou uma transposição para o âmbito mental daquilo

que se passa no âmbito corpóreo. Eles não se deram conta, no entanto, segundo Arnauld, de

que isso era muito mais causa de confusão que de esclarecimento à medida que, em se tratando

de naturezas distintas, o que são a alma e os corpos não serve para elucidar um ao outro, uma

vez que respeitam ontologicamente princípios e regras totalmente diferentes: “pois, sendo o

espírito e o corpo duas naturezas completamente distintas, e mesmo opostas, cujas

propriedades, por consequência, não devem possuir nada em comum, apenas se pode gerar

confusão ao querer explicar uma pela outra” (VFI, 4, 60)146.

145 « Or ils avaient donné, comme j’ai déjà remarqué, le même nom à la vue corporelle et à la vue spirituelle, et c’est ce qui les a fait raisonner ainsi : il faut qu’il se passe quelque chose d’à peu près semblable dans la vue de l’esprit que dans la vue du corps ; or dans cette dernière nous ne pouvons voir que ce qui est présent, c’est-à-dire, ce qui est devant nos yeux ; ou si nous voyons quelquefois les choses qui ne sont pas devant nos yeux, ce n’est que par des images qui nous les représentent ; il faut donc que c’en soit de même dans la vue de l’esprit » (VFI, 4, 61). 146 « Car l’esprit et le corps étant deux natures tout à fait distinctes, et comme opposées, et dont par conséquent les propriétés ne doivent rien avoir en commun, on ne peut que se brouiller en voulant expliquer l’une par l’autre […] » (VFI, 4, 60)

Page 113: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

113

Em razão da interpretação da percepção intelectual a partir da visão corporal, eles

tomaram a necessidade da presença do objeto para a mente que o percebe exatamente como

uma presença prévia, que é primeira e anterior à própria percepção. Entende-se que essa

compreensão da necessidade da presença prévia do objeto para que ele pudesse ser percebido é

resultante de uma analogia com a presença física do objeto que está diante dos olhos quando é

visto, já que, nessa concepção, para que ocorra a visão é necessário que um objeto exista

previamente e se coloque diante dos olhos. Nesse sentido, se a presença do objeto percebido

pela mente também é tomada como anterioridade, o objeto assume uma posição de

independência com relação à operação mental da percepção. Isso porque se ele é anterior a ela

e é, de certa maneira, condição para que ela ocorra, sua constituição como objeto não pode

decorrer da percepção, de modo que o ato perceptivo e o objeto percebido assumem status

diferentes. Arnauld é claro quanto à interpretação da presença como anterioridade na passagem

que se segue:

[...] mas eles compreenderam-na [a presença] como uma presença prévia à percepção

do objeto, o que eles julgaram necessário a fim de que ele [o objeto] estivesse em

condições de poder ser percebido, como eles haviam pensado [...] que isso era

necessário para a visão (VFI, 4, 60).147

Encontra-se nesse entendimento de que é imprescindível que um objeto esteja “diante

da mente” para ser percebido por ela, o que tanto Malebranche quanto Arnauld interpretam

como significando que o objeto percebido precede a própria percepção, um importante foco de

crítica de Arnauld acerca do que se compreendeu sobre a percepção intelectual. Em referência

à condição da presença, Arnauld diz que “daí eles passaram rapidamente ao outro princípio:

que todos os corpos que nossa alma conhece, não podendo estar presentes por eles mesmos,

deveriam estar presentes pelas imagens que os representassem” (VFI, 4, 61)148. Esse teria sido

assim admitido como um princípio incontestável independentemente de razões asseguradas,

segundo Arnauld: “[...] que a alma apenas vê os corpos pelas imagens ou espécies que as

representam” (VFI, 4, 62)149. E é dessa interpretação, resultante do que significa a condição da

147 «[…] mais ils l’ont entendu [la présence] d’une présence préalable à la perception de l’objet, et qu’ils ont jugé nécessaire afin qu’il fût en état de pouvoir être aperçu, comme ils avaient trouvé […] que cela était nécessaire dans la vue » VFI, 4, 61). 148 « Et de là ils ont passé bien vite dans l’autre principe : que tous les corps, que notre âme connaît, ne pouvant pas lui être présent par eux-mêmes, il fallait qu’ils lui fussent présents par des images qui les représentassent » (VFI, 4, 61). 149 « […] que l’âme ne voit les corps que par des images ou espèces qui les représentent » (VFI, 4, 62.)

Page 114: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

114

presença para a percepção intelectual, que Malebranche150 retira a consequência que é o

propósito central da crítica de Arnauld a sua teoria da percepção, a saber, a necessidade da

existência de entes representativos independentes para que haja percepção de coisas materiais.

Segundo Malebranche, como já visto no capítulo anterior, sendo a alma de natureza

espiritual, constitui-se algo impossível que qualquer coisa corpórea possa estar diante dela nas

condições necessárias para que possa ser percebida. O que explica essa interdição é o

entendimento, pelo menos por parte de Malebranche151, de que, no caso da percepção

intelectual, a presença do objeto ocorre quando há uma união íntima entre a alma e o objeto de

modo que ele possa afetá-la. Nesse sentido, as coisas materiais, por si mesmas, jamais podem

estar presentes para a alma a ponto de serem percebidas, pois suas naturezas totalmente distintas

impossibilitam a união íntima característica da presença necessária do objeto para a percepção.

Logo, no caso da percepção das coisas materiais, já que elas não podem ser por elas mesmas

percebidas, o que a explica é que determinadas imagens, ou representações espirituais tomam

seu lugar e são, nessa circunstância, o que é diretamente percebido pela mente.

Chega-se aqui à culminância do objetivo crítico do capítulo 4 de VFI, que é a

argumentação em favor da falsidade dos princípios que fundam a teoria da percepção

malebranchista. Para Arnauld, Malebranche se insere na tradição desses filósofos que teriam

entendido o que é a percepção a partir de meros preconceitos da infância e por isso todo o seu

raciocínio, no que diz respeito a essa matéria, estaria baseado na aceitação ilegítima dos dois

princípios que, segundo Arnauld, são derivados da visão corporal como explicação para o que

se passa na percepção intelectual. Com o intuito de explicitar a formulação desses dois

princípios como eles teriam sido assumidos por Malebranche, Arnauld parafraseia parte da

Recherche, III, II, 1152 ao dizer

[...] que a alma somente podia perceber os objetos que estavam presentes para ela; e

que os corpos só podiam estar presentes para ela por meio de certos seres

representativos, chamados de ideias ou espécies, que tomavam o lugar dos corpos,

150 Ainda que em VFI, 4, 61-62, Arnauld trate rapidamente de como outras tradições filosóficas teriam cometido o mesmo equívoco de compreender a percepção como condicionada à presença prévia do objeto ou de sua representação, concentrar-se-á aqui apenas na discussão proposta por Arnauld acerca da admissão do segundo princípio, ou condição, da visão corporal na explicação da percepção intelectual que diria respeito à filosofia de Malebranche. 151 Cf. capítulo 2, sobre Malebranche. 152 Cf. OCM, I, 417.

Page 115: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

115

sendo a eles semelhantes e que no lugar deles estavam unidos intimamente à alma

(VFI, 4, 63)153.

Relembra-se aqui que, até esse momento, Arnauld já havia demonstrado que toda uma

tradição filosófica havia admitido como explicação para o que se passa na percepção dois

princípios, ou condições, produtos dos preconceitos da infância. Além de fazê-lo agora no que

diz respeito às concepções malebranchistas da percepção, Arnauld pretende principalmente

mostrar o quão inconvenientes e incompatíveis esses princípios são em relação à própria

filosofia de Malebranche. O que Arnauld sugere é que o trabalho intelectual de Malebranche

deveria tê-lo prevenido do equívoco de se apropriar desses princípios para sua teoria da

percepção. Malebranche deveria ter sido capaz de compreender que a comparação da percepção

intelectual com a visão corporal é viciada. Nesse sentido, a aceitação incontestável desses

princípios por parte de Malebranche seria não só ilegítima, mas também surpreendente porque,

por um lado, não vislumbra o defeito de uma explicação que mescla inapropriadamente

domínios ontológicos distintos; e, por outro lado, não se dá conta de que o desenvolvimento da

explicação do que é a percepção intelectual a partir da analogia com a visão corporal – pelo

princípio da presença – torna essa explicação incompatível com o que se passa na visão corporal

– o que demonstraria uma total fragilidade dos princípios da teoria da percepção

malebranchista.

Veja-se como Arnauld desenvolve sua crítica mais detidamente. Entende-se que sua

argumentação vai no sentido de mostrar que, dada a tradição filosófica a que Malebranche se

filia (o cartesianismo), certamente é do conhecimento dele que qualquer tentativa de se tomar

aquilo que é mental por aquilo que é corpóreo, seja como explicação, como comparação, ou

como tentativa de reduzir uma coisa à outra, não é senão uma grande confusão resultante da

incompreensão da distinção de natureza entre esses dois domínios: “pois ele [Malebranche]

sabe melhor que ninguém que a comparação da visão corporal com a espiritual, sobre a qual,

aparentemente, tudo isso está fundado154, é falsa de todas as maneiras [...]” (VFI, 4, 63)155. Ora,

segundo Arnauld, os princípios que fundam a compreensão malebranchista do que é percepção,

153 « […] que l’âme ne pouvait apercevoir que les objets qui lui étaient présents ; et que les corps ne lui pouvaient être présents que par de certains êtres représentatifs appelés idées ou espèces, qui tenaient leur place, leur étant semblable, et qui au lieu d’eux étaient unis intimement à l’âme » (VFI, 4, 63). Grifo do autor. 154 Arnauld refere-se aqui aos princípios da percepção importados da visão corporal que teriam sido aceitos sem exame por Malebranche. 155 « Car il sait mieux que personne que la comparaison de la vue corporelle avec la spirituelle, sur laquelle apparemment tout cela est fondé, est fausse en toute manière […] » (VFI, 4, 63).

Page 116: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

116

como visto acima, são frutos dessa confusão entre o que é mental e o que é corpóreo à medida

que têm na sua origem a referência da visão corporal e só por isso já se trataria de algo falso.

Entretanto, eles não seriam falsos apenas em função da confusão imprópria entre a visão

espiritual e a visão corporal, que teria produzido uma compreensão errônea do que se passa na

percepção intelectual. Na tradição em que se insere a filosofia de Malebranche, esses princípios

seriam falsos também no que diz respeito à visão corporal à medida que eles não seriam

adequados nem mesmo para explicá-la: “[...] não se acharia nada nessa visão [realizada pelos

olhos] que pudesse servir a autorizar as duas coisas que os Filósofos da Escola pretendem que

se deve encontrar naquelas [nas visões] do espírito” (VFI, 4, 63)156. Segundo Arnauld, não há

nada na visão corporal que justifique esses dois princípios à maneira como os escolásticos e

também Malebranche157 os compreende, o que corrobora ainda mais sua inexatidão. Para

justificar essa tese, Arnauld encaminha a seguinte argumentação: o primeiro princípio, a

necessidade da presença, é entendido por Malebranche, entre outros, como sendo a necessidade

de uma união íntima entre o objeto e a mente, de modo que a visão do objeto só pode ocorrer

quando o primeiro encontra-se intimamente unido à mente (o que seria a maneira como

Malebranche entende a presença) a ponto de afetá-la. Essa união íntima não se verifica no caso

da visão corporal porque para que ela ocorra é necessário que haja uma distância entre os olhos

e o objeto para que ele possa ser visto, de modo que uma união entre eles impossibilitaria a

visão:

A primeira [das coisas, ou seja, dos princípios] é a presença do objeto, que eles dizem

que deve estar unida intimamente à alma. Ora, é totalmente ao contrário na visão

corporal. Pois, embora falando popularmente se diga que o objeto deve estar presente

para nossos olhos para que o vejamos, essa foi a causa do erro; no entanto, falando

exata e filosoficamente, é completamente ao contrário. Ele deve estar ausente, pois

ele deve estar afastado dos olhos; e aquilo que estaria no olho, ou muito próximo a

ele, não se poderia ver (VFI, 4, 63)158.

156 « […] on ne trouverait rien dans cette vue qui pût servir à autoriser les deux choses que les Philosophes de l’École prétendent se devoir trouver dans celles de l’esprit » (VFI, 4, 63). 157 O texto faz referência direta aos escolásticos, como visto na citação anterior, no contexto de debate sobre os princípios da teoria da percepção de Malebranche, o que sugere fortemente que Arnauld esteja atribuindo à Malebranche a recepção, em sua teoria, de princípios elaborados pelos escolásticos. 158 « La première est la présence de l’objet, qu’ils disent devoir être uni intimement à l’âme. Or c’est tout le contraire dans la vue du corps. Car, quoiqu’en parlant populairement on dise que l’objet doit être présent à nos yeux, afin que nous le voyions, ce qui a été la cause de l’erreur ; néanmoins, en parlant exactement et philosophiquement, c’est tout l’opposé. Il en doit être absent, puisqu’il en doit être éloigné, et que ce qui serait dans l’œil, ou trop près de l’œil, ne se pourrait voir » (VFI, 4, 63).

Page 117: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

117

Assim, se estar presente toma o sentido de estar unido, esse princípio da presença não

pode se aplicar à visão corporal, para a qual, então, o objeto deve estar ausente, no sentido de

estar separado, distante, a fim de que possa ser visto. Entende-se aqui que o raciocínio de

Arnauld vai na direção de mostrar que a analogia admitida por Malebranche entre presença

física e união íntima do objeto percebido com aquilo que o percebe é espúria porque assume

um sentido para o que se passa na percepção intelectual diverso e incompatível com o que se

passa na visão corporal, a qual ela seria análoga.

Nesse mesmo contexto, o segundo princípio também é equivocado para dar conta da

percepção, pois é sabido que o que se percebe não são seres representativos. Arnauld apresenta

em que medida Malebranche saberia que não são seres representativos o objeto da percepção

quando ele afirma que:

ele sabe bem que nossos olhos não veem nada disso, nem nossa alma pelos nossos

olhos. Ele sabe que quando nos vemos num espelho, somos nós mesmos que nós

vemos e não nossa imagem. Ele sabe bem que esses pequenos seres flutuantes pelo

ar, e dos quais ele deveria estar completamente preenchido, que a Escola chama de

espécies intencionais não passam de quimeras. E enfim, ele sabe bem que embora os

objetos que nós vemos formem imagens suficientemente perfeitas no fundo de nossos

olhos, é certo, contudo, que nossos olhos não veem essas pequenas imagens pintadas

na retina e que não é nisso que elas servem à visão, mas de uma outra maneira, que

Sr. Descartes explicou na sua Dióptrica (VFI, 4, 63-64)159.

Entende-se aqui que Arnauld faz referência ao que seriam consensos no pensamento de

Malebranche fundamentalmente provindos de sua filiação a uma tradição crítica à filosofia

escolástica. Quando Arnauld diz que os olhos não veem qualquer coisa de parecido com seres

representativos no momento em que eles veem as coisas, ou que não é propriamente uma

imagem a coisa vista no espelho, ele parece reforçar o caráter fantasioso dos seres

representativos no que concerne à percepção no contexto da filosofia de Malebranche. E isso

se justifica em função da própria crítica às espécies intencionais dos escolásticos e à adesão à

filosofia cartesiana presentes no pensamento de Malebranche. São essas as referências

159 « Il sait bien que nos yeux ne voient rien de tel, ni notre âme par nos yeux. Il sait que quand on se voit dans un miroir c’est soi-même que l’on voit, et non point son image. Il sait bien que ces petits êtres voltigeant par l’air, et dont il devrait être tout rempli, que l’École appelle des espèces intentionnelles, ne sont que des chimères. Et enfin il sait bien que, quoique les objets que nous regardons forment des images assez parfaites dans le fond de nos yeux, il est certain néanmoins que nos yeux ne voient point ces petites images peintes dans la rétine, et que ce n’est point en cela qu’elles servent à la vision, mais d’une autre manière, que M. Descartes a expliquée dans sa Dioptrique » (VFI, 4, 63-64)

Page 118: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

118

oferecidas por Arnauld para justificar que Malebranche não poderia admitir tais princípios para

a percepção (apesar de tê-lo feito), pois ele saberia, de acordo com constituintes do seu

pensamento, que se tratam de princípios não condizentes com a realidade.

Dessa maneira, Arnauld pretende mostrar que a adesão às condições da presença e da

existência de seres representativos seriam incompatíveis com a própria filosofia de

Malebranche, que, por um lado, não poderia consentir o recurso ao que é corpóreo como via de

explicação para um fenômeno mental; e, por outro lado, não poderia admitir nem mesmo para

o domínio da visão corporal o princípio da presença (entendida como união íntima), pois a

análise mais acurada mostra que a união entre o objeto e os olhos impede a ocorrência da visão.

Por fim, Malebranche também não poderia aceitar a existência e a necessidade de seres

representativos intermediários da percepção porque isso seria ignorar tanto suas críticas às

espécies intencionais dos escolásticos como coisas quiméricas, quanto sua adesão a princípios

cartesianos da ciência da ótica que explicariam que não são as imagens formadas na retina que

são as coisas efetivamente vistas.

Em suma, dito de outra maneira, a tentativa de importação dos princípios que

explicariam a visão corporal para a construção de uma teoria da percepção intelectual resulta

em algo fantasioso, isto é, resulta em uma teoria baseada em princípios falsos não apenas porque

se trata de uma confusão entre domínios ontológicos distintos, mas também porque, na teoria

malebranchista (de acordo com a leitura de Arnauld), os princípios que fundamentam a teoria

da percepção, cuja referência é supostamente a visão corporal, não servem nem mesmo de

explicação para o que se passa na visão corporal. E não servem porque os pressupostos da

presença, entendida como união íntima, e da necessidade da existência de seres representativos

como intermediários da percepção tomam um significado na teoria malebranchista que não

corresponde às descrições de caráter científico sobre o processo corpóreo da visão: para ser

visto um objeto não pode estar intimamente unido ao olho, pois é preciso que haja uma distância

para que o mecanismo da visão seja capaz de formar a imagem do objeto, que segundo a ciência

da ótica não é o que é propriamente visto pelos olhos, o que torna suspeita a necessidade da

existência de seres representativos intermediários para a percepção. Por essas razões, Arnauld

considera que esses princípios da teoria da percepção de Malebranche são invenções infundadas

frutos de uma admissão mal avaliada de certos pressupostos cuja base são os preconceitos da

infância.

Segundo Arnauld, apesar da flagrante falsidade desses princípios, toda a teoria da

percepção de Malebranche que aparece principalmente na Recherche, III, II, 1, seria posta em

Page 119: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

119

marcha com base neles. Malebranche aceitá-los-ia em sua filosofia como inquestionáveis, sem

examiná-los e sem oferecer qualquer prova para eles, apenas porque “todo mundo concorda

que nós não percebemos os objetos que estão fora de nós por eles mesmos” (OCM, I, 413)160,

ou seja, apenas com base em noções preconcebidas e injustificadas – “ele não examina se isso

que ele supõe ser indubitável [...] deve ser admitido sem exame [...] Para ele, é suficiente dizer-

nos que ele acredita que todo mundo está de acordo” (VFI, 4, 64)161. Tendo em vista esse

procedimento intelectual descuidado atribuído a Malebranche, Arnauld destaca de sua leitura

da Recherche, III, II, 1 os seguintes elementos que ele considera embaraçosos para a teoria da

percepção de Malebranche:

Pois, não é mais a percepção dos corpos que ele chama de ideia, mas é um certo ser

representativo dos corpos, que ele pretende que seja necessário para substituir a

ausência dos corpos, que não podem unir-se intimamente à alma, como [pode] esse

ser representativo, que, por essa razão, é o objeto imediato e o mais próximo do

espírito quando ele percebe alguma coisa. Ele não diz que ele está no espírito nem

que ele é uma modificação do espírito como ele devia dizer, caso tivesse

compreendido por isso apenas a percepção do objeto, mas [diz] apenas que ele é o

mais próximo do espírito, pois ele toma esse ser representativo como realmente

distinto tanto do nosso espírito, quanto do objeto (VFI, 4, 64-65)162.

Pode-se analisar o que Arnauld diz na passagem anterior da seguinte maneira: 1) que

Malebranche passa a considerar, por ocasião da admissão desses princípios não avaliados, que

existem seres representativos, os quais ele chama de ideias, que são ontologicamente

independentes tanto das coisas que eles representam, quanto de qualquer modificação ou ato

mental; 2) que Malebranche compreende que a percepção dos corpos depende da existência

prévia desses seres representativos, as ideias, para que ela possa ocorrer; 3) que a ideia de uma

coisa não seria para Malebranche o resultado de um ato mental perceptivo, mas um objeto

realmente distinto da percepção, assim como o é da coisa percebida; 4) e que Malebranche, por

160 « […] tout le monde tombe d’accord que nous n’apercevons point les objets qui sont hors de nous par eux-mêmes » (OCM, I, 413). 161 « Il n’examine pas si ce qu’il suppose comme indubitable […] doit être reçu sans examen […] Il lui suffit de nous dire qu’il croit que tout le monde en tombe d’accord » (VFI, 4, 64). Grifo do autor. 162 « Car ce n’est plus la perception des corps qu’il en appelle l’idée ; mais c’est un certain être représentatif des corps, qu’il prétend être nécessaire pour suppléer à l’absence des corps, qui ne se peuvent unir intimement à l’âme, comme cet être représentatif, qui, pour cette raison, est l’objet immédiat et le plus proche de l’esprit, quand il aperçoit quelque chose. Il ne dit pas qu’il est dans l’esprit, et qu’il en est une modification comme il devait dire, s’il n’avait entendu par là que la perception de l’objet, mais seulement qu’il est le plus proche de l’esprit, parce qu’il regarde cet être représentatif, comme réellement distingué de notre esprit aussi bien que de l’objet » (VFI, 4, 64-65). Grifos do autor.

Page 120: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

120

considerar as ideias como realmente distintas das coisas e do ato de percepção, entende que elas

são substitutivos das coisas materiais que, por sua materialidade, não podem ser diretamente

percebidas pela mente. Eis, enfim, os aspectos da teoria da percepção de Malebranche,

notadamente a noção de que existem seres representativos independentes e intermediários na

percepção, que Arnauld pretende combater. Ainda que ele já tenha argumentado em que medida

eles são o resultado de um equívoco de base, resta demonstrar mais detidamente sua falsidade.

3.2 As definições de percepção e ideia segundo Arnauld

Como se viu na seção anterior, Arnauld oferece uma análise detalhada da origem dos

pressupostos que embasam a teoria da percepção de Malebranche e identifica nela seus

problemas de base, que consistem fundamentalmente em uma interpretação confusa do que é a

percepção a partir do que seria a visão corporal baseada em preconceitos da infância. Embora

já se tenha analisado a construção argumentativa de Arnauld, considera-se necessário sintetizar

o percurso que, segundo ele, é feito por Malebranche até a defesa da existência de entes

representativos distintos do ato de percepção, com o objetivo de tornar bem claro que é contra

essa compreensão que Arnauld dirige seus esforços no recorte de VFI que se propõe aqui

analisar.

A fim de explicar como a alma é capaz de perceber as coisas materiais, já que “[...] todo

o mundo está de acordo em que nós não percebemos os objetos que estão fora de nós por eles

mesmos” (ABV, 165)163, Malebranche, segundo Arnauld, teria compartilhado de perspectivas

tradicionais tanto do senso comum, como escolásticas que cometeriam o erro crasso de explicar

toda e qualquer coisa a partir dos sentidos. Dessa forma, os pressupostos que embasariam a

teoria da percepção de Malebranche viriam dos preconceitos da infância à medida que, nela, se

está mais acostumado e ligado às sensações e às disposições corporais. Isso quer dizer que os

homens, mergulhados nas sensações e na corporeidade, primeiro teriam compreendido que,

quando veem as coisas, isso significa que elas estão diante de seus olhos, o que os teria

convencido de que as coisas, para serem vistas, devem estar presentes para os olhos no

momento em que são vistas. E, além disso, também teriam sido convencidos de que, quando

veem as coisas refletidas em superfícies diversas eles estariam vendo as imagens dessas coisas

no lugar das coisas mesmas, que não estariam propriamente presentes, nesse caso. Eis aqui a

163 « […] tout le monde tombe d’accord, que nous n’appercevons point les objets qui sont hors de nous par eux-mêmes » (OCM, I, 413).

Page 121: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

121

origem dos princípios que, segundo Arnauld, estão na base da teoria da percepção de

Malebranche.

Nessa perspectiva, ao seguir imprudentemente a linha de pensamento que toma como

base de explicação da percepção aquilo que se passaria na visão corporal, Malebranche teria

admitido como certo e indubitável o referido pressuposto da presença do objeto como condição

para a ocorrência da percepção. Isso significa, de acordo com a perspectiva em destaque, que,

de forma geral, para ser percebido, um objeto deve estar presente no momento da percepção.

Contudo, é preciso salientar que, como lembra Arnauld (VFI, 4, 61), em função da inspiração

na visão corporal, essa condição da presença foi interpretada por Malebranche (e a tradição a

que ele pertence, segundo Arnauld) como a necessidade de que o objeto estivesse de antemão

diante da alma, tal como na visão corporal o objeto deve estar perante os olhos para ser visto.

Essa presença entendida como a disposição do objeto ante (diante, perante, em vista de, em face

de) a alma constitui uma presença prévia, anterior, uma disponibilidade do objeto que precede

o próprio ato perceptivo e que, por esse motivo, sugere uma independência da vigência do

objeto percebido com relação ao ato de percepção que o capta, ou o apreende. E, para Arnauld,

a noção de presença foi assim interpretada ao invés de o ser como uma presença na alma daquilo

que é, por ela, percebido, isto é, como a presença objetiva na alma do conteúdo de um ato

perceptivo, como se verá mais à frente tratar-se da compreensão própria de Arnauld. Visto esse

entendimento da presença como anterioridade, é indispensável dizer que, na sequência, Arnauld

(VFI, 4, 61) considera que os filósofos, entre eles Malebranche, sem razões melhor elaboradas,

também admitiram rapidamente o outro princípio acerca da percepção, a saber, que as coisas

materiais percebidas pela alma, e que não podem estar presentes para ela por si mesmas, são

percebidas em função das imagens que as representam.

Entende-se aqui que o recurso de Arnauld a essa genealogia dos fundamentos da teoria

da percepção de Malebranche pretende sustentar que a opção malebranchista pelo seguimento

de uma interpretação mal fundada da percepção implica contornos teóricos problemáticos para

a sua teoria. O que seria problemático, nesse caso, se anuncia a partir de uma interpretação da

presença que termina por atribuir ao objeto percebido uma realidade ontológica independente

do próprio ato mental perceptivo, uma entidade entendida por Arnauld como obscura e

supérflua para explicar a percepção. Ora, por que essa implicação é considerada problemática

por Arnauld no que diz respeito o pensamento de Malebranche? Porque, nesse contexto, como

já visto no capítulo 2, sobre Malebranche, entende-se que a presença prévia do objeto para alma,

a fim de que ele possa ser percebido, pressupõe que ele esteja intimamente unido à alma a ponto

Page 122: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

122

de afetá-la, isto é, pressupõe que a percepção ocorra apenas se a alma puder ser afetada,

modificada pelo objeto “diante dela”, o que limita esses objetos a coisas de natureza espiritual.

Isso significa que a filosofia de Malebranche não admite a afecção entre um corpo e a alma em

função da diferença de tipo ontológico concernente a eles. Assim, esse objeto que, na concepção

de Malebranche, precisa estar previamente diante da alma para que ocorra a percepção (e que,

por essa anterioridade, deve ser algo de independente das operações mentais perceptivas) não

pode tratar-se das coisas materiais por si mesmas, mas apenas de coisas espirituais. Desse modo,

Malebranche depreende que o objeto previamente presente para a alma no momento da

percepção deve ser um conteúdo representativo capaz de apresentar para ela essas coisas

materiais como objeto. Trata-se, portanto, da admissão malebranchista do segundo princípio

acerca da percepção provindo dos preconceitos da infância, isto é, aquele que afirma que

mesmo diante da impossibilidade da presença do objeto, ele pode ser visto/percebido pela

imagem que o representa. Em outras palavras, se a percepção depende da presença antecedente

de um objeto que esteja diante da alma, onde estar presente significa estar intimamente unido,

encontra-se aí um problema acerca da percepção das coisas materiais, a saber, como é possível

que a alma perceba-as, se, por serem materiais, elas não poderiam estar efetivamente presentes

para a alma a fim de que fossem percebidas? É com o intuito de resolver esse problema que

Malebranche desenvolve sua concepção de ente representativo como um objeto espiritual que

representa para a alma as coisas materiais que não poderiam ser percebidas diretamente por ela

dado que sua presença para a alma, isto é, sua união íntima com a alma, é ontologicamente

impossível devido à distinção de suas naturezas. Isso significa, em suma, que, dado o

pressuposto da necessidade da presença entendido como disposição prévia do objeto e a

impossibilidade de que as coisas materiais efetivem-se como presentes para a alma,

Malebranche conclui que as coisas percebidas devem ser objetos representativos independentes

tanto do ato mental da percepção (porque são prévios a ele), quanto das coisas materiais que

eles representam. Elas são conteúdos representativos exibidos no intelecto via percepção, isto

é, são ideias cuja realidade constitui entidades intermediárias distintas e independentes.

Essa noção de ideia como objeto realmente distinto do modo perceptivo do pensamento,

isto é, que toma o conteúdo da percepção como um objeto distinto e independente da própria

percepção constitui o elemento central da teoria que é posta em questão por Arnauld, que a

considera absolutamente falsa e digna de combate. Isso porque o desenvolvimento

anteriormente apresentado do conceito malebranchista de ideia configura os contornos de um

tipo de teoria que fornece às ideias um status peculiar de entidade ontológica para o qual não

Page 123: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

123

haveria justificativa razoável, o que é condenável, já que “quando se pretende saber as coisas

segundo a ciência, deve-se apenas receber como verdadeiro aquilo que se concebe de forma

clara” (VFI, 5, 70)164. Em vista disso, intenciona-se nesse momento expor algumas das críticas

de Arnauld contrárias a essa formulação teórica acerca das ideias. Para isso, inicialmente, é

preciso expor que esses argumentos da crítica dirigem-se essencialmente ao caráter quimérico

e desnecessário das ideias, tomadas como entidades distintas das modificações do pensamento.

Como se verá, o projeto de Arnauld leva em conta a demonstração não apenas da origem

falaciosa do raciocínio que leva à concepção dessas entidades representativas (como visto na

primeira seção desse capítulo), mas também leva em conta a demonstração da falsidade dessas

entidades a partir de uma argumentação em favor de que a percepção deve ser entendida e

explicada apenas segundo aquilo que é realmente notório e incontestável, como comanda os

princípios de uma boa explicação, evitando a utilização de entidades das quais não se tem

nenhuma clareza do que são:

Eu acredito, Senhor, poder demonstrar a nosso amigo a falsidade desses seres

representativos, contanto que ele queira fazer boa fé àquilo que ele mesmo disse um

tanto de vezes que se devia observar para achar a verdade na metafísica, assim como

nas outras ciências naturais, que é de apenas receber como verdadeiro aquilo que é

claro e evidente; e de não se servir de pretensas entidades sobre as quais nós não temos

ideias claras para explicar os efeitos da natureza, seja a corporal, seja a espiritual (VFI,

5, 67)165.

Com isso, evidencia-se aqui que, além da crítica genética à teoria da percepção de

Malebranche, Arnauld propõe uma crítica à consistência, adequação e razoabilidade da noção

de ideia como entidade representativa distinta da, porém necessária para, a percepção. Tendo

isso em vista, a proposta de Arnauld é a de combater os entes representativos seguindo apenas

princípios que sejam claros e evidentes e que dispensem o uso de recursos teóricos obscuros

que por ventura possam ser utilizados para solucionar problemas aparecidos na reflexão. Com

esse intuito, em VFI, 5, 66-72, o filósofo propõe a exposição de definições, axiomas e

postulados como base para demonstrações (à maneira dos geômetras) contra a validade das

164 « On ne doit recevoir pour vrai, quand on prétend savoir les choses par sciences, que ce que l’on conçoit clairement » (VFI, 5, 70). 165 « Je crois, Monsieur, pouvoir démontrer à notre ami la fausseté de ces êtres représentatifs, pourvu qu’il se veuille rendre de bonne foi à ce qu’il a lui-même dit tant de fois que l’on devait observer, pour trouver la vérité dans la métaphysique, aussi bien que dans les autres sciences naturelles, qui est de ne recevoir pour vrai que ce qui est clair et évident, et de ne se point servir de prétendues entités, dont nous n’avons point d’idées claires, pour expliquer les effets de la nature, soit corporelle, soit spirituelle » (VFI, 5, 67).

Page 124: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

124

ideias tomadas como seres representativos distintos das percepções. E é nesse contexto que ele

apresenta, como uma definição, o modo como compreende o que é uma ideia e,

consequentemente, sua relação com a percepção enquanto ato mental. Trata-se, principalmente,

da definição de número 3:

Eu tomo também pela mesma coisa a ideia de um objeto e a percepção de um objeto.

Eu desconsidero se há outras coisas a que se possa dar o nome de ideia. Mas, é certo

que há ideias tomadas nesse sentido e que essas ideias são ou atributos, ou

modificações de nossa alma (VFI, 5, 67)166.

A passagem citada é muito clara na definição de ideia como sendo a mesma coisa que

percepção, ou seja, ela parte, desde o início, de uma compreensão completamente divergente

daquela de Malebranche. Entretanto, é preciso avançar para a matéria de algumas outras

definições a fim de que se possa formular de modo mais claro o quadro que está sendo

desenhado por Arnauld. Quadro esse que tem o objetivo de esclarecer o que é a percepção a

partir do que ele considera serem princípios mais claros e evidentes que os seguidos por

Malebranche.

A elucidação de que a ideia e a percepção constituem a mesma coisa, o mesmo

fenômeno de natureza intelectual, depende das definições de Arnauld que tratam, em particular,

do que é propriamente a percepção intelectual de um objeto, isto é, do que é para a mente ter a

ideia de um objeto. Tais definições apresentam um posicionamento diferente do de

Malebranche acerca do que é a presença do objeto para o espírito. Além disso, essas definições

pretendem dar conta do que é ser por representação, visam a esclarecer em que medida

percepção e ideia não configuram seres distintos, mas, ao contrário, são aspectos de uma e

mesma coisa e, por fim, defendem que essa coisa diz respeito a certo tipo de modificação mental

cuja natureza encerra uma ambiguidade na relação com a mente que percebe e a coisa que é

percebida. Assim, é possível notar que a identificação da ideia com a representação exige de

Arnauld uma reinterpretação dos pressupostos até agora vistos na teoria malebranchista a que

se passará agora a analisar.

166 « Je prends aussi pour la même chose l’idée d’un objet et la perception d’un objet. Je laisse à part s’il y a d’autres choses, à qui on puisse donner le nom d’idée. Mais il est certain qu’il y a des idées, prises en ce sens, et que ces idées sont ou des attributs, ou des modifications de notre âme » (VFI, 5, 67).

Page 125: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

125

No que diz respeito ao tema da presença do objeto para o espírito, Arnauld afirma na

definição 4 que estar presente significa apenas ser pensado, ser concebido, isto é, que a presença

do objeto para a mente que o percebe dá-se no momento da exibição desse objeto no intelecto.

Nesse sentido, a presença do objeto para a mente também é pensada por Arnauld como se dando

por meio de uma ideia. Considerando isso, ele deixa à parte a investigação sobre a possibilidade

de um outro tipo de presença do objeto que seja anterior ao próprio ato de percepção. Ao propor

isso, ele sinaliza que é possível pesquisar se o objeto percebido tem alguma anterioridade ou

primazia com relação ao ato perceptivo, o que indica uma possibilidade de investigação acerca

da existência dos objetos percebidos. No entanto, segundo Arnauld, tal possibilidade de

precedência não seria incompatível com a definição de presença que se dá quando o pensamento

exibe determinada coisa como objeto, isto é, quando o pensamento produz uma ideia com um

conteúdo determinado. As considerações de Arnauld acerca do tema da presença sugerem o

reconhecimento de que há uma confusão no pensamento de Malebranche entre aquilo que

concerne ao fenômeno da percepção e aquilo que diz respeito à existência do que é percebido.

Nesse sentido, Arnauld, ao notar o equívoco, procura desfazê-lo ao precisar que a percepção,

inicialmente, trata apenas dos objetos enquanto eles são concebidos pelo espírito (enquanto

ideias) sem dar conta se eles existem ou não, visto que sobre isso incide um outro tipo de

investigação. Arnauld diz:

Eu digo que um objeto está presente para nosso espírito quando nosso espírito

percebe-o e conhece-o. Eu deixo ainda por examinar se há uma outra [um outro tipo

de] presença do objeto, prévia ao conhecimento, que seja necessária para que o objeto

esteja em condições de ser conhecido. Mas é certo que a maneira como eu digo que

um objeto está presente para o espírito quando ele é por ele conhecido é incontestável,

e é isso que permite dizer que uma pessoa que amamos está frequentemente presente

para nosso espírito, pois nós pensamos nela frequentemente (VFI, 5, 67)167.

Uma vez tendo considerado o que significa propriamente a presença do objeto para a

mente no contexto da percepção, Arnauld conceitua, em seguida, a forma própria dessa

presença do objeto no intelecto. Veja-se a definição de número 5: “eu digo que uma coisa está

167 « Je dis qu’un objet est présent à notre esprit, quand notre esprit l’aperçoit et le connaît. Je laisse encore à examiner s’il y a une autre présence de l’objet, préalable à la connaissance, et qui soit nécessaire afin qu’il soit en état d’être connu. Mais il est certain que la manière dont je dis qu’un objet est présent à l’esprit, quand il en est connu, est incontestable, et que c’est ce qui fait dire qu’une personne que nous aimons nous est souvent présente à l’esprit, parce que nous y pensons souvent » (VFI, 5, 67).

Page 126: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

126

objetivamente no meu espírito quando eu a concebo. Quando eu concebo o sol, um quadrado,

um som; o sol, o quadrado, esse som estão objetivamente no meu espírito, quer eles estejam ou

não fora do meu espírito” (VFI, 5, 67)168. Segundo a passagem citada, Arnauld afirma que as

coisas quando são percebidas, isto é, quando estão presentes no intelecto como um objeto, elas

são/estão lá objetivamente. Isso significa que os objetos percebidos possuem uma forma de ser

no intelecto que ocorre quando eles são pensados – essa é a forma da ideia. Em desacordo com

Malebranche, essa forma de ser objetivamente no intelecto vem esclarecer em que medida o

tema da presença do objeto no ato da percepção independe de considerações acerca da

existência independente desse objeto percebido com relação ao ato mental que o exibe na

consciência. Assim, como se pode compreender o objeto da percepção como possuindo um

modo de ser na mente, que independe da existência de objetos distintos do próprio pensamento,

resta patente que a percepção envolve o objeto enquanto ele é um conteúdo expresso por uma

modificação mental, que é a ideia. Tome-se em suma os princípios de Arnauld até aqui: a

presença de um objeto para o espírito se dá quando ele é pensado, percebido ou conhecido. Ser

pensado concerne a um modo de ser no espírito do objeto pensado. Esse modo de ser no espírito

do objeto pensado é um modo de ser objetivo, isto é, por representação. Isso significa ser no

espírito uma ideia de alguma coisa. Se o objeto percebido é um modo de ser por representação

no espírito, então ele é uma modificação mental. E, dessa maneira, ao considerar que a

percepção envolve uma ideia que é ela mesma uma modificação do espírito, Arnauld confronta

a concepção malebranchista de que o objeto da percepção tem primazia e, por isso, é

independente das modificações mentais, pois para Malebranche essas modificações não podem

ser representativas de coisas distintas delas mesmas. Arnauld, portanto, assenta em outras bases

sua teoria da percepção.

Dado que o objeto da percepção é ele mesmo uma modificação mental à medida que

está objetivamente no intelecto, pode-se melhor entender agora em que medida Arnauld

expressa na definição de número 3 (reproduzida mais acima) que as ideias de um objeto são

modificações da alma. Entretanto, ainda é preciso esclarecer o sentido em que a percepção de

um objeto e a ideia de um objeto são identificadas por Arnauld, nessa mesma definição, como

a mesma coisa. Considera-se aqui que a razão para essa identificação encontra-se no fato de

que essa coisa, esse evento mental (que é a percepção e a ideia), envolve uma dupla relação que

168 « Je dis qu’une chose est objectivement dans mon esprit, quand je la conçois. Quand je conçois le soleil , un carré, un son, le soleil, le carré, ce son, sont objectivement dans mon esprit, soit qu’ils soient ou qu’ils ne soient pas hors de mon esprit » (VFI, 5, 67).

Page 127: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

127

determina essencialmente o que ela é, a saber, uma que diz respeito ao modo de operar da

própria mente quando ela percebe alguma coisa; e outra que se refere ao objeto percebido

enquanto ele está objetivamente na mente. Dessa maneira, para Arnauld, a palavra percepção

refere-se mais adequadamente às modificações da mente quando ela assimila, ou percebe

alguma coisa; enquanto que a palavra ideia é mais adequada para tratar do objeto percebido

enquanto ele está objetivamente na mente, isto é, quando está na mente como um conteúdo que

exibe alguma coisa determinada para a mente. Percepção e ideia são, nesse sentido, duas faces

de uma mesma moeda, que se configura num certo tipo de ato mental de caráter representativo,

ou seja, aquele ato que envolve a exibição de um conteúdo como um objeto para a mente. Essa

dupla relação é caracterizada por Arnauld na definição de número 6 da seguinte maneira:

[...] a percepção de um quadrado marca mais diretamente minha alma como

percebendo um quadrado; e a ideia de um quadrado marca mais diretamente o

quadrado enquanto ele está objetivamente no meu espírito [...] essas não são duas

entidades diferentes, mas uma mesma modificação de nossa alma que encerra

essencialmente essas duas relações [...] (VFI, 5, 68)169.

Esse tipo de ato mental que envolve necessariamente um conteúdo é ambíguo porque

se trata de uma modificação mental essencialmente representativa cuja função é apresentar

alguma coisa como um objeto determinado para a mente, isto é, constitui ao mesmo tempo um

ato e um conteúdo mental. Eis aí mais claramente uma discordância, talvez a mais fundamental,

entre Arnauld e Malebranche, que se anuncia desde a definição de número 3: pois enquanto o

primeiro admite que as modificações mentais são essencialmente representativas (à medida que

o conteúdo representado por uma ideia está objetivamente na mente) e, por esse motivo,

percepção e ideia não precisam ser entendidas como duas entidades distintas; o segundo

compreende, como já visto, que as modificações mentais não podem exibir nada além das

próprias operações da mente, o que significa que um conteúdo representativo que apresenta um

objeto para a mente jamais pode ser reduzido a, ou explicado por, uma modificação mental, o

que leva Malebranche a pensar neles como sendo entidades independentes da mente que os

percebe. Arnauld pronuncia-se sobre esse tema na definição de número 7:

169 « […] la perception d’un carré marque plus directement mon âme comme apercevant un carré ; et l’idée d’un carré marque plus directement le carré en tant qu’il est objectivement dans mon esprit […] ce ne sont point deux entités différentes, mais une même modification de notre âme, qui enferme essentiellement ces deux rapports […] » (VFI, 5, 68).

Page 128: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

128

Aquilo que eu compreendo por seres representativos enquanto eu os combato como

entidades supérfluas, diz respeito apenas àqueles que se imaginam ser realmente

distintos das ideias tomadas como percepções. Pois, eu não posso combater todo tipo

de seres ou de modalidades representativas; dado que eu sustento que é claro, para

quem quer que reflita sobre o que se passa em seu espírito, que todas as percepções

são modalidades essencialmente representativas (VFI, 5, 68)170.

Diante desse debate, é preciso apresentar a razão de Arnauld em favor da sua admissão

de que modificações mentais são sim representativas de objetos. A justificativa para isso

provém de uma concepção de base de Arnauld que entende todo e qualquer ato mental como

intencional, isto é, como envolvendo sempre um objeto, porque o pensamento é essencialmente

intencional – é sempre pensamento sobre alguma coisa:

Assim como é claro que eu penso, também é claro que eu penso em alguma coisa, isto

é, que eu conheço e que eu percebo alguma coisa. Pois, o pensamento é

essencialmente isso. E dessa maneira, não podendo haver pensamento ou

conhecimento sem objeto conhecido, eu não posso perguntar-me a mim mesmo mais

pela razão por que eu penso em alguma coisa, que por que eu penso, sendo impossível

pensar que não se pensa em alguma coisa (VFI, 2, 52)171.

Como a intencionalidade é a marca do pensamento, então faz parte da natureza desse

pensamento ser representativo porque, como visto, não é possível haver pensamento, seja ele

do tipo que for, que não seja sobre alguma coisa, inexistindo, portanto, para Arnauld, operações

mentais vazias de conteúdo.

É legítimo perguntar, como poderia fazer Malebranche, se atribuir a intencionalidade à

natureza do pensamento não seria escapar sorrateiramente da questão sobre em que medida

modificações de uma mente finita e particular podem dar a conhecer coisas distintas do próprio

pensamento, bem como coisas universais e Deus, que é infinito. Trata-se de um questionamento

170 « Ce que j’entends par les êtres représentatifs en tant que je les combats comme des entités superflues, ne sont que ceux que l’on s’imagine être réellement distingués des idées prises pour des perceptions. Car je n’ai garde de combattre toutes sortes d’êtres ou de modalités représentatives ; puisque je soutiens qu’il est clair, à quiconque fait réflexion sur ce qui se passe dans son esprit, que toutes nos perceptions sont de modalités essentiellement représentatives » (VFI, 5, 68 171 « Comme donc il est clair que je pense, il est clair aussi que je pense à quelque chose, c’est-à-dire, que je connais, et que j’aperçois, quelque chose. Car la pensée est essentiellement cela. Et ainsi, ne pouvant y avoir de pensée ou de connaissance sans objet connu, je ne puis non plus me demander à moi-même la raison pourquoi je pense à quelque chose, que pourquoi je pense, étant impossible de penser qu’on ne pense à quelque chose » (VFI, 2, 52).

Page 129: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

129

legítimo porque seria possível admitir que o pensamento é essencialmente intencional ainda

que as ideias não fossem suas modificações, ou seja, ainda que as ideias para as quais as

operações do pensamento se voltam fossem objetos realmente distintos do pensamento, seria

lícito conceber o pensamento como sendo essencialmente intencional. Levanta-se aqui apenas

uma hipótese de que aparentemente o caráter essencialmente intencional do pensamento não

seja suficiente para determinar que as ideias, os conteúdos representativos pensados sejam

modos da mente. Entretanto, parece que Arnauld recorre, como justificativa para sua

compreensão, à estratégia de apontar que a suposição de que as ideias sejam entidades

realmente distintas das modificações do pensamento, como formula Malebranche, está baseada

em comparações espúrias com o fenômeno corporal da visão. Segundo a definição de número

8, a representação realizada pelas ideias ou percepções (que para Arnauld são a mesma coisa)

possuem um outro sentido se comparada à representação que as pinturas fazem do seu original,

pois, no tocante às ideias, representação diz apenas que as coisas pensadas estão objetivamente

no intelecto e isso consiste num fenômeno particular e exclusivo do intelecto, não podendo de

maneira nenhuma ser explicado por qualquer comparação com coisas distintas do próprio

pensamento:

[...] Pois, no que concerne às ideias, [representação] quer dizer que as coisas que nós

concebemos estão objetivamente no nosso espírito e no nosso pensamento. Ora, essa

maneira de ser objetivamente no espírito é tão particular ao espírito e ao pensamento,

como sendo aquilo que compõe sua natureza, que em vão procurar-se-á algo de

semelhante em tudo o que não é espírito e pensamento. E, como já notei, foi isso que

embaralhou todo esse tema das ideias: disso que se quis explicar, por comparações

feitas com as coisas corporais, a maneira pela qual os objetos são representados por

nossas ideias, ainda que não pudesse haver acerca disso nenhuma relação verdadeira

entre os corpos e os espíritos (VFI, 5, 68)172.

Ora, há aí a sugestão de que a interpretação da necessidade da presença de um objeto no

contexto da percepção – que, como já visto, teria sido retirada da experiência do que ocorreria

na visão corporal – é o que teria provocado o equívoco malebranchista de se tomar

172 « […] Car, au regard des idées, cela veut dire que les choses que nous concevons sont objectivement dans notre esprit et dans notre pensée. Or cette manière d’être objectivement dans l’esprit est si particulière à l’esprit et à la pensée, comme étant ce qui en fait la nature, qu’en vain on chercherait rien de semblable en tout ce qui n’est pas esprit et pensée. Et c’est, comme j’ai déjà remarqué, ce qui a brouillé toute cette matière des idées, de ce qu’on a voulu expliquer, par des comparaisons prises des choses corporelles, la manière dont les objets sont représentés par nos idées, quoiqu’il ne puisse y avoir sur cela aucun vrai rapport entre les corps et les esprits » (VFI, 5, 68).

Page 130: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

130

necessariamente o conteúdo das percepções como realmente distintos delas. A comparação do

fenômeno da percepção com o da visão corporal teria resultado na compreensão malebranchista

de que o objeto percebido tem uma primazia com relação à percepção e, por isso, não depende

da mente. Mas como visto na citação de Arnauld, esse movimento argumentativo é apenas

matéria de confusão.

Considerando o dito até agora, pretende-se evidenciar resumidamente quais são os

princípios que embasam a interpretação de Arnauld sobre o que é a percepção. De acordo com

as definições trabalhadas, pôde-se perceber que Arnauld parte da noção de que percepção e

ideia são a mesma coisa, que consiste num certo tipo de modificação mental. Essa compreensão

é enriquecida e detalhada à medida que outras definições dão conta de esclarecer a posição de

Arnauld acerca dos elementos que estão em jogo no debate com Malebranche sobre o que são

percepção e ideia. Nesse seguimento, Arnauld procura elucidar a maneira como ele pensa que

deve ser compreendida a presença do objeto para a mente que percebe (lembra-se aqui que a

interpretação acerca do tema da presença é determinante, segundo Arnauld, para a elaboração

da teoria da percepção de Malebranche). E ele o faz ao dizer que essa presença não significa

mais que ser pensado ou ser concebido. Isso quer dizer, segundo Arnauld, que um objeto

pensado é um objeto que se faz presente para a mente enquanto pensado, ou seja, não se trata

da coisa mesma, mas da sua representação no pensamento, da sua ideia. Essa ideia constitui um

determinado modo de ser desse objeto na mente, que é ser objetivamente, isto é, ser por

representação, que é como as coisas pensadas costumam estar presentes no intelecto. Diante

disso, vê-se com mais nitidez em que medida a ideia constitui uma modificação do pensamento

para Arnauld, pois ela é alguma coisa enquanto pensada, é a representação mental de um objeto,

isto é, ela depende da atividade do pensamento para ser o que é, que é a exibição de um conteúdo

para a mente. E, por fim, se a ideia é conteúdo representativo que apresenta alguma coisa como

objeto para a mente que a percebe, se a ideia é um objeto enquanto pensado, é um modo objetivo

do pensamento, ideia e percepção constituem o mesmo ato de pensamento que é composto por

uma dupla referência, como duas faces indissociáveis de uma mesma moeda, a saber, uma que

diz respeito à modificação da mente quando ela percebe alguma coisa, e outra que diz respeito

ao objeto percebido por esse ato,

[...] já que eu não posso ter uma percepção que não seja conjuntamente a percepção

do meu espírito como percebendo e a percepção de alguma coisa como percebida; e

Page 131: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

131

que também nada pode estar objetivamente no meu espírito (e é isso que eu chamo de

Ideia) que ele não o perceba (VFI, 5, 68)173.

3.3 Argumentos contra os entes representativos de Malebranche

Arnauld já havia mostrado anteriormente que os princípios que embasam a teoria da

percepção de Malebranche são falsos porque são baseados em princípios equivocados. Nesse

sentido, entende-se que o que ele está propondo a partir das definições que foram discutidas é

que elas servem como fundamentos supostamente mais racionais e evidentes para a

compreensão do que é ideia. Como os princípios malebranchistas estão em xeque, Arnauld

autoriza-se a proceder seu raciocínio a partir de outras definições que concebem as noções de

presença, representação, percepção e ideia de uma maneira diferente da de Malebranche e cuja

principal vantagem é formular uma noção de ideia que prescinde da concepção de entes

representativos realmente distintos da percepção. Contudo, Arnauld não se limita simplesmente

a expor em novas bases uma outra maneira de se conceber o que é uma ideia. Embora ele já

esteja convencido desde o início de que suas definições implicam uma concepção de ideia mais

verdadeira que a de Malebranche, a partir dessas definições é que ele pretende realizar

demonstrações da falsidade das ideias como concebidas por Malebranche. Trata-se, por isso,

de um esforço argumentativo de fundamentação de uma teoria da percepção que passa pela

rejeição, como falsa, da teoria malebranchista da necessidade da existência de entes

representativos realmente distintos da mente para a ocorrência da percepção. Passa-se agora a

discutir alguns dos argumentos contidos nessas demonstrações.

Sinteticamente, entende-se que os argumentos de Arnauld, dos quais se tratará nessa

seção, perfazem a seguinte estrutura. Em primeiro lugar, reconhecem a ocorrência de uma

petição de princípio na consideração da existência dos entes representativos em questão. Essa

petição de princípio indica a cunhagem arbitrária de um tipo de entidade que visa a explicar um

determinado fenômeno. No contexto da cunhagem arbitrária de entidades explicativas, é

razoável, então, pensar sobre sua prescindibilidade. E isso pode ser feito a partir de algumas

referências previamente aceitas que orientam, por fim, o reconhecimento da falsidade de uma

concepção fundada nesse tipo de entidade – que é forjada propositalmente para responder a um

173 « […] puisque je ne puis avoir de perception, qui ne soit tout ensemble la perception de mon esprit comme apercevant, et la perception de quelque chose comme aperçue, et que rien aussi ne peut être objectivement dans mon esprit (qui est ce que j’appelle Idée) que mon esprit ne l’aperçoive » (VFI, 5, 68).

Page 132: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

132

problema específico. Essas referências são trazidas ao debate por Arnauld na elaboração, como

se verá mais à frente, do argumento das intenções de Deus ao criar uma alma capaz de perceber;

e do argumento da simplicidade das vias de Deus na criação – argumentos que procuram

mostrar de maneira positiva a falsidade dos entes representativos de Malebranche, isto é,

oferecendo razões que minam sua consistência diretamente.

Nesse seguimento, a primeira demonstração da proposição

nosso espírito não necessita, para conhecer as coisas materiais, de certos seres

representativos, distintos das percepções, que se pretende serem necessários como

substitutivos mediante a ausência de tudo aquilo que não pode por si mesmo estar

unido intimamente à alma (VFI, 7, 80)174

fornece o argumento da petição de princípio citado acima, que consiste no estabelecimento da

noção de ente representativo como pressuposto para a conclusão do raciocínio que leva

Malebranche a defender a existência de tais entes na percepção das coisas externas. Diante do

exposto por Malebranche “[...] que nós não percebemos os objetos que estão fora de nós por

eles mesmos” (OCM, I, 413)”175, Arnauld (VFI, 7, 80) identifica dois possíveis sentidos para a

referida colocação de Malebranche que seriam dados por uma equivocidade na expressão “por

eles mesmos”. No primeiro sentido, a expressão daria conta de que não são os objetos, por eles

mesmos, isto é, segundo seu poder, que produzem as percepções que se tem deles. Assim, a

expressão apenas afirmaria que os objetos não são a causa do conhecimento que a alma tem

deles, isto é, que aquilo que é externo à alma não é o que engendra na alma suas percepções

sobre ele: “o primeiro [sentido exprime] que eles [os objetos] não se fazem conhecer a nosso

espírito por eles mesmos, isto é, que eles não são a causa da percepção que temos deles; e que

eles não produzem no nosso espírito as percepções que nós temos deles” (VFI, 7, 80)176.

Segundo Arnauld, esse sentido, que para ele é verdadeiro, não é o empregado por Malebranche

na segunda parte do livro III da Recherche porque ele refere-se ao tema da origem das ideias,

que seria, para Arnauld, diferente do tema da natureza das ideias, essa sim a preocupação de

Melebranche. Isso fica mais claro na sequência do argumento arnaldiano: ao defender que Deus

174 « Notre esprit n’a point besoin pour connaître les choses matérielles de certains êtres représentatifs, distingués des perceptions, qu’on prétend être nécessaires pour suppléer à l’absence de tout ce qui ne peut être par soi-même uni intimement à notre âme » (VFI, 7, 80). 175 « […] que nous n’apercevons point les objets qui sont hors de nous par eux-mêmes » (OCM, I, 413). 176 « Le premier [sens exprime] qu’ils ne se font point connaître à notre esprit par eux-mêmes, c’est-à-dire, qu’ils ne se sont point la cause que nous les apercevons ; et qu’ils ne produisent point dans notre esprit les perceptions que nous avons d’eux […] » (VFI, 7, 80).

Page 133: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

133

é a causa de todas as percepções, Malebranche deveria admitir que, em certa medida, há uma

externalidade em tudo o que é percebido, que envolveria inclusive a própria percepção que a

alma tem de si mesma. E sendo assim, tomar o sentido de “por eles mesmos” como expressando

que os objetos não são a causa da percepção que se tem deles porque sua percepção envolve

uma causa externa, Deus, implicaria que também a alma não poderia conhecer-se por si mesma,

o que é incompatível com o propósito de Malebranche, para quem a percepção da alma se dá

pela própria alma que se percebe imediatamente quando realiza suas operações:

Esse primeiro sentido é verdadeiro, mas ele não diz nada à questão que é sobre a

Natureza das ideias, e não sobre sua origem. É claro também que esse não é o sentido

pelo qual ele tomou essas palavras. Pois, sustentando, como ele faz, que Deus é o

autor de todas as nossas percepções, ele deveria ter colocado a alma, assim como todas

as coisas materiais, entre as coisas que nós não percebemos por elas mesmas, já que,

segundo ele, é Deus, e não nossa alma, quem causa em nosso espírito a percepção

pela qual nós a percebemos (VFI, 7, 80-81)177.

Portanto, segundo Arnauld, o que está em jogo para Malebranche no que diz respeito ao

sentido da expressão “por eles mesmos” não pode propriamente ter a ver com questões acerca

da causa das percepções, que expressem que os objetos não são responsáveis pelas percepções

que se tem deles, pois isso levaria Malebranche a uma incompatibilidade entre a concepção de

que a alma conhece-se por si mesma e a autoria divina de todas as percepções. Em síntese, o

argumento de Arnauld diz que a expressão em questão não pode ser interpretada como dizendo

algo a respeito da origem da percepção. Isso porque quando Malebranche diz que os objetos

não são percebidos por eles mesmos, ele não poderia, de maneira própria, querer dizer que os

objetos não são a causa das percepções sob pena de ter de aceitar que a própria percepção que

a alma tem de si não seria conhecida por si mesma, já que todas as percepções dependem de

Deus, o que incute uma externalidade a todas elas.

O que compõe mais adequadamente o sentido da expressão “por eles mesmos” na

passagem em discussão tem a ver, segundo Arnauld, com o segundo sentido nela implícito, que

é o da percepção direta, ou imediata, ou seja, não ser percebido por si mesmo significa não ser

percebido diretamente. Entretanto, Malebranche teria admitido que essa percepção imediata dá-

177 « Ce premier sens est vrai, mais il ne fait rien à la question qui est de la Nature des idées, et non pas leur origine. Il est clair aussi que ce n’est pas en ce sens qu’il a pris ces mots. Car, soutenant comme il fait que Dieu est l’auteur de toutes nos perceptions, il aurait dû mettre l’âme aussi bien que toutes les choses matérielles entre les choses que nous n’apercevons point par elles-mêmes, puisque selon lui c’est Dieu, et non pas notre âme, qui cause en notre esprit la perception par laquelle nous l’apercevons » (VFI, 7, 80-81).

Page 134: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

134

se por oposição a ser percebido por meio de alguma entidade realmente distinta da percepção:

a oposição entre “[...] ser conhecido por si mesmo (como [Malebranche] acredita que o é nossa

alma quando ela se conhece) a ser conhecido por esses seres representativos dos objetos

distintos das percepções [...]” (VFI, 7, 81)178. Nessa perspectiva, Arnauld identifica que

Malebranche assume claramente como dado aquilo que, na verdade, está em questão, a saber,

a existência de tais entidades. Para Arnauld, ao dizer que os objetos não são conhecidos por

eles mesmos, não são conhecidos diretamente, Malebranche assume como um dado, sem a

apresentação de razões adequadas, que eles são conhecidos por meio de certos entes

representativos realmente distintos da percepção que tomam o lugar das coisas mesmas – e ele

assume isso, ao invés de cuidadosamente avaliar o significado mais próximo que ‘não ser

percebido por si mesmo’ pode ter, que é o da percepção indireta, mediada pelo próprio conteúdo

determinado presente objetivamente na mente. Tendo isso em vista, segundo Arnauld,

Malebranche estaria arbitrariamente postulando, tomando como ponto de partida para entender

a oposição entre percepção direta e indireta, a existência de certas entidades que ele deveria

provar ao final do seu raciocínio, já que não há uma implicação necessária entre não poder ser

conhecido imediatamente e ser conhecido através de entes representativos.

Segundo Arnauld, seria suficiente o exame atento e criterioso do que se passa na própria

mente quando ela percebe alguma coisa para compreender que é na mente, e não em alguma

outra coisa além da mente, que se encontram determinados conteúdos representativos, ali

presentes objetivamente, que apresentam para a mente, como objetos, as coisas externas à

própria mente. Essa avaliação do que se passa na própria mente durante a percepção é

claramente derivada das definições de Arnauld discutidas em seção anterior, que concebem na

mente a percepção como a presença objetiva, por representação, dos objetos percebidos, isto é,

definições que apresentam novas bases para a compreensão do processo perceptivo. Como se

pode perceber, Arnauld recorre nesse ponto à proposição de uma análise introspectiva, a partir

de seus fundamentos, aparentemente mais simples e racionais, como argumento para mostrar o

caráter quimérico dos entes representativos de Malebranche. Pois, para ele, essa análise feita

rigorosamente, e de acordo com princípios não comprometidos com determinados preconceitos,

é capaz de evidenciar que não há indícios da existência de entidades representativas distintas

da própria percepção que ocupariam, como objetos independentes, o lugar das coisas externas

percebidas:

178 « […] être connu par soi-même (comme il croit que l’est notre âme quand elle se connaît) à être connu par ces être représentatifs des objets distingués des perceptions […] » (VFI, 7, 81).

Page 135: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

135

Pois, se [...] ele tivesse consultado a si mesmo e tivesse considerado atentamente o

que se passa em seu espírito [...] teria sido impossível para ele ver em seu espírito

outra coisa que não fosse a percepção do cubo, ou o cubo objetivamente presente para

o espírito, que não fosse a percepção do sol, ou o sol objetivamente presente para o

espírito; e ele jamais teria encontrado no seu espírito o menor traço desse ser

representativo do cubo ou do sol, distinto da percepção, que seria o substituto de um

ou de outro quando de suas ausências. Mas, que, para o encontrar no espírito, teria

sido necessário que ele mesmo o tivesse colocado no espírito [...] (VFI, 7, 81)179.

Com essa argumentação, Arnauld pretende assinalar o que ele considera não apenas um

equívoco, mas sim uma arbitrariedade no raciocínio de Malebranche, que consiste na tomada,

como premissa, de certos seres representativos, quando eles são justamente o que está em

questão. Uma conclusão patente acerca disso, de certa maneira já anunciada na proposta de

análise introspectiva anteriormente mencionada, é que esses seres representativos não

consistem apenas numa falha na condução do raciocínio, mas sim na invenção de um tipo de

entidade explicativa que é, na verdade, prescindível para a explicação, visto que se trata de uma

entidade supérflua, tais quais as formas substanciais dos escolásticos, como diz Arnauld a

seguir:

[...] ele apenas teria encontrado [esses seres representativos em seu espírito] como os

defensores das formas substanciais encontram-nas em todos os corpos do Universo,

pois eles imaginaram que elas são próprias para explicar aquilo que se observa nesses

corpos, e que não se poderia fazê-lo sem isso (VFI, 7, 81)180.

Dessa maneira, defende-se aqui que Arnauld quer mostrar com sua argumentação que para

resolver o problema da percepção dos objetos externos à mente, caro a sua teoria, Malebranche

cunha arbitrariamente essa noção de seres representativos, que passam a ser os objetos

percebidos pela mente no lugar daqueles que, por sua exterioridade, não poderiam estar

presentes para a mente no momento da percepção (segundo Malebranche). Ora, como já visto,

179 « Car si […] il s’était consulté soi-même, et avait considéré attentivement ce qui se passe dans son esprit […] il lui aurait été impossible d’y voir autre chose que la perception du cube, ou le cube objectivement présent à l’esprit, que la perception du soleil, ou le soleil objectivement présent à l’esprit, et qu’il n’y aurait jamais trouvé la moindre trace de cet être représentatif du cube ou du soleil, distingué de la perception, et qui aurait dû suppléer à l’absence de l’un et de l’autre. Mais que pour s’y trouver il aurait fallu qu’il l’y eût mis lui-même […] » (VFI, 7, 81). 180 « […] il n’aurait trouvé [ces êtres représentatifs dans son esprit] que comme les défenseurs des formes substantielles les trouvent dans tous les corps de l’Univers, parce qu’ils se sont imaginés qu’elles sont propres à expliquer ce que l’on remarque dans ce corps, et qu’on ne le pourrait pas faire sans cela » (VFI, 7, 81).

Page 136: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

136

Arnauld recusa as bases que sustentam a compreensão malebranchista do que é a presença e,

assim, abre caminho para a crítica que se adensa, agora, na indicação da arbitrariedade na

formulação de um tal tipo de entidade como a dos seres representativos.

Diante, então, da conclusão de que esses seres representativos são uma construção

injustificada com vistas a resolver a questão da percepção das coisas externas, entende-se que

Arnauld passa a discutir a prescindibilidade dos seres representativos para a percepção a fim de

demonstrar sua falsidade. Com esse intuito, ele apresenta dois argumentos que sugerem que seu

projeto é demonstrar a incompatibilidade de tais entidades com aspectos importantes que ou

são constantes da filosofia de Malebranche, ou podem ser pensados a partir dela, a saber, a

inadequação entre as intenções de Deus ao criar uma alma capaz de percepção e a existência de

seres representativos; e a questão da simplicidade e racionalidade de Deus na criação e sua

relação com os seres representativos181. Compreende-se que a estratégia argumentativa de

Arnauld, nesse caso, é recorrer a referências sobre as quais se pode entrar em acordo a fim de

realizar a demonstração da falsidade dos seres representativos a partir de um chão comum, o

que lhe garante maior legitimidade. Isso significa que Arnauld busca, nessa etapa, demonstrar

a falsidade das referidas entidades apoiado numa discussão acerca de determinadas implicações

que a admissão delas possui – implicações essas que dizem respeito a consequências teóricas

que indicam, para Arnauld, no mínimo, alguma inconsistência, o que o leva a interpretar os

seres representativos como um elemento falso no que concerne à teoria da percepção.

O argumento que discute as intenções de Deus ao criar a alma capaz de percepção

considera o contexto em que isso é realizado. Deus faz a alma unida a um corpo que é

circundado por inúmeros outros corpos que afetam de diversas maneiras essa alma encarnada.

Essas afecções ocorrem numa dinâmica que atinge diretamente a existência do homem, o que

significa que a percepção do que se passa em torno da alma unida ao corpo é importante para a

preservação de sua vida, pois é segundo essa percepção que o homem, esse que tem a alma

unida a um corpo, consegue fugir daquilo que o prejudica. Nesse sentido, pode-se dizer, com

alguma segurança, que a percepção dos corpos tem a função de garantir para o homem os meios

181 NADLER (1989, p.97-98) e DERENNE (2017, p.87-89) discutem o argumento arnaldiano das intenções de Deus associado ao da simplicidade das vias, como se eles fossem aspectos de um mesmo argumento. No entanto, aqui se propõe interpretá-los como argumentos distintos que cumprem a função de demonstrar a falsidade dos seres representativos de Malebranche, no primeiro caso, porque eles são incompatíveis com a noção de um Deus perfeito capaz de realizar sua vontade sem hesitação (Deus faz o que ele quer); e, no segundo caso, porque eles são incompatíveis com a simplicidade e a racionalidade divinas, que não faz pela via complexa o que pode ser feito por via mais simples (Deus faz o que é mais racional). Tratam-se de dois argumentos distintos, pois recorrem a aspectos de Deus que concernem a dimensões distintas segundo as quais os seres representativos podem ser tomados como falsos.

Page 137: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

137

de sua própria sobrevivência num mundo que é material ao dar-lhe condições para o resguardo

do próprio corpo de riscos a sua integridade:

[...] considera-se que Deus, por um lado, criou o homem para ser o espectador e o

admirador de suas obras; e que, por outro lado, tendo unido a alma a um corpo, é bem

necessário que ele tenha dado à alma a faculdade, isto é, o poder de ver, de perceber,

conhecer, não apenas o corpo a que ela é unida, mas também todos os outros que a

rodeiam, que podiam nutri-la ou ajudá-la em sua própria conservação. Ora, ele não

podia fazer com que todos os outros corpos não estivessem distantes da alma. Então,

foi preciso necessariamente que ele tenha dado à alma o poder de conhecer os corpos

distantes do lugar onde ela estaria, isto é, do corpo ao qual ela estaria unida (VFI, 8,

84)182.

Levando esse contexto em consideração, parece razoável que se possa pensar acerca dos

propósitos de Deus no seguinte sentido: ao criar a alma com a habilidade de perceber, Deus dá

ao homem os meios para sua sobrevivência, pois é segundo essa capacidade perceptiva da alma

que ele pode perseguir o bem estar e fugir da dor, do sofrimento e do perigo em meio à realidade

material em que vive; assim, se se pode dizer que Deus dá à alma um poder de perceber que é

o elemento diferencial que garante a preservação da existência dela enquanto está unida a um

corpo, isto é, enquanto homem; é coerente concluir que faz parte das intenções de Deus que o

homem seja capaz de perceber de fato os corpos que o circundam, pois, afinal, por que Deus

daria a qualquer coisa uma capacidade, ou um poder ineficaz, isto é, que não realiza sua

potência? Por que razão, Deus criaria almas com o poder de perceber como objetos as afetam e

impedi-las-ia de efetivamente percebê-los num contexto em que tal percepção é fundamental

para sua preservação?

Essas questões estão implícitas na última passagem de Arnauld citada, em que ele

conclui que, diante do exposto sobre a criação da alma unida a um corpo e circundada por

inúmeros outros, Deus dá à alma o poder de conhecer esses corpos. Pois, independentemente

da distância dos corpos com relação à alma – o que não poderia deixar de ocorrer, seja no que

182 « […] on considère que Dieu d’une part a créé l’homme pour être le spectateur et l’admirateur de ses ouvrages ; et que de l’autre, ayant joint l’âme à un corps, il faut bien qu’il lui ait donné la faculté, c’est-à-dire le pouvoir de voir, d’apercevoir, de connaître, non seulement le corps auquel elle est jointe, mais aussi tous les autres qui l’environnent, qui pouvaient lui nuire ou l’aider à la conservation du sien. Or, il ne se pouvait pas faire que tous les autres corps n’en fussent éloignés. Il a donc fallu nécessairement qu’il lui ait donné le pouvoir de connaître les corps éloignés du lieu où elle serait, c’est-à-dire, du corps auquel elle serait jointe » (VFI, 8, 84).

Page 138: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

138

se refere à presença local ou à diferença de tipo ontológico183, já que os corpos estão sempre,

por assim dizer, apartados da alma – a percepção que a alma tem deles é fundamental para

conservar sua existência enquanto unida ao corpo. Isso significa que a percepção dos corpos

não se trata de um detalhe acessório, mas algo de fundamental no que concerne ao quadro em

questão. Assim sendo, admitir que Deus tenha, por fim, criado a alma capaz apenas de perceber

determinados seres representativos que tomam o lugar das coisas materiais, que não poderiam

ser percebidas pela alma, indica que há, pelo menos, algo de estranho nessa compreensão. Isso

porque essa perspectiva parece guardar uma incongruência entre as intenções de Deus e a

instanciação na existência das almas criadas junto a seus corpos próprios que é aparentemente

incompatível com a natureza perfeita de Deus – pois demonstra alguma hesitação ou mesmo

alguma imperfeição em Deus, que intenciona uma coisa e realiza outra:

Deus não quis criar nossa alma e colocá-la num corpo que devia estar rodeado de uma

infinidade de outros corpos [de forma que] ele não tenha quisto também que ela fosse

capaz de conhecer os corpos; e que, consequentemente, ele não tenha quisto também

que os corpos fossem concebidos por nossa alma. Ora, todas as vontades de Deus são

eficazes: é algo certo, então, que Deus deu a nossos espíritos a faculdade de ver os

corpos, e aos corpos a faculdade passiva, por assim dizer, de serem vistos por nosso

espírito (VFI, 10, 91)184.

Ora, é justamente esse o raciocínio de Arnauld quando ele confronta as citadas intenções

de Deus com a existência de seres representativos realmente distintos do ato de percepção e

necessários para o processo perceptivo de coisas externas à alma. A existência desses seres

representativos impõe para a natureza de Deus uma espécie de imprecisão, de titubeio quanto à

realização de suas intenções que lhe é incompatível. Afinal de contas, esses seres

representativos, como concebidos por Malebranche, são os objetos imediatos da percepção,

cuja realidade, distinta das modificações mentais, é configurada em entidades representativas

que substituem as coisas mesmas no processo perceptivo. Uma teoria da percepção como a de

183 As formulações acerca da distância ou acerca da diferença de tipo ontológico dizem respeito à maneira como Malebranche elabora a problemática da percepção das coisas materiais, como visto mais detalhadamente no capítulo sobre Malebranche. 184 « Dieu n’a point voulu créer notre âme, et la mettre dans un corps qui devait être environné d’une infinité d’autres corps, qu’ils n’ait voulu aussi qu’elle fût capable de connaître les corps ; et que par conséquent il n’ait voulu aussi que les corps fussent conçus par notre âme. Or, toutes les volontés de Dieu sont efficaces : il est donc certain que Dieu a donné à nos esprits la faculté de voir les corps, et aux corps la faculté passive, pour parler ainsi, d’être vus par notre esprit » (VFI, 10, 91).

Page 139: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

139

Malebranche, aqui sob crítica de Arnauld, baseada na existência desses seres representativos

cuja função é substituir aquilo que não pode ser percebido por si mesmo, admite, em última

instância, que a realidade efetivamente percebida é aquela dos seres representativos e não

aquela criada por Deus e que seria representada por essas entidades representativas. Mas,

novamente, por que Deus faria as coisas dessa maneira? Como compreender a perfeição e a

racionalidade divinas num movimento de criação que instancia na realidade almas unidas a

corpos, circundadas por outros corpos de cuja percepção depende sua preservação, com

capacidade de perceber objetos, mas que, no entanto, são incapazes de perceber diretamente

esses corpos, só podendo perceber entes que representam esses corpos, esse mundo, para elas?

Esse argumento das intenções de Deus no que diz respeito à capacidade perceptiva da

alma demonstra, segundo Arnauld, a evidência da falsidade dos seres representativos de

Malebranche a partir de razões teológicas que fornecem um pano de fundo com o qual

Malebranche poderia concordar. O que se quer dizer aqui é que, com esse argumento, Arnauld

fornece razões que não dependem apenas de uma reinterpretação dos elementos que estão em

jogo na teoria da percepção de Malebranche, mas sim oferece indícios de que o raciocínio

malebranchista acerca da existência de seres representativos distintos do ato perceptivo – ainda

que não estivesse baseado, como defende Arnauld, em princípios falsos, e não postulasse

indevidamente entidades a fim de explicar algum problema – incorre em erro porque

descaracteriza a compreensão básica sobre a natureza perfeita de Deus. Desse modo, é legítimo

dizer que Arnauld não apenas evidencia a condição quimérica dos seres representativos de

Malebranche (como já visto até aqui) mas que ele tem condições de defender a falsidade dessas

entidades em razão da incoerência entre elas e as intenções de um Deus perfeito. A não ser que

Malebranche, entre outros, pudessem aceitar algum grau de imperfeição na vontade de Deus, é

forçoso concluir, a partir do proposto por Arnauld, que os seres representativos realmente

distintos da percepção são entidades falsas, inventadas oportunamente com o objetivo de

resolver o problema da percepção de objetos que não poderiam ser percebidos pela alma, de

acordo com o pensamento de Malebranche.

Entretanto, poder-se-ia questionar que a vontade precisa e eficaz de Deus realiza-se com

a percepção dos corpos por meio dos seres representativos e que, por isso, não há nenhuma

incompatibilidade entre as intenções de Deus e a existência de entidades representativas185. Para

dar conta dessa possível objeção, Arnauld introduz o argumento da simplicidade das vias, ou o

princípio de economia da ação, que norteia toda a criação divina em função da racionalidade

185 Cf.: VFI, 11, 99-101.

Page 140: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

140

expressa por esse princípio. Arnauld retoma esse princípio da própria filosofia de Malebranche,

quem não apenas concorda, mas baseia nele posições significativas, como a da visão das ideias

em Deus, como já visto no capítulo 2, sobre Malebranche. Esse princípio afirma basicamente

que Deus não faz nada de modo complexo, imbricado, confuso, tortuoso se ele pode fazê-lo de

modo mais simples, claro e sem rodeios, isto é, Deus age, tendo em vista seus fins, de maneira

direta, buscando sempre uma economia que dispensa aquilo que é supérfluo e que se atém

àquilo que é mais simples: “Deus não faz por vias compostas o que se pode fazer por vias mais

simples” (VFI, 10. 91)186. Esse princípio da simplicidade das vias de Deus justifica-se, tanto

para Malebranche, como já visto, quanto para Arnauld pelo seu caráter de maior racionalidade

no que diz respeito ao alcance de finalidades e de realização de projetos ou intenções.

Demonstra mais poder e sabedoria o percurso da via mais direta e mais eficaz que permite

atingir o objetivo. Isso porque a realização de uma finalidade por meios mais econômicos, isto

é, com menos desvios, aufere resultados efetivos de modo mais rápido e mais eficiente: se o

objetivo é alcançar C partindo do ponto A, num contexto em que isso pode ser realizado sem a

necessidade de um ponto intermediário, a razão diz que é melhor partir de A em direção a C

sem desvios para uma passagem por B. Para Arnauld, esse princípio denota fortemente o caráter

supérfluo e tortuoso de uma teoria da percepção que concebe como necessária a existência de

seres representativos distintos da percepção como intermediários do processo perceptivo, visto

que isso atinge em cheio a simplicidade e a racionalidade de Deus, reconhecida também por

Malebranche – pois, se Deus cria almas, dotadas de capacidade de perceber objetos, unidas a

um corpo em meio a um mundo material, por que motivo ele não permitiria que as almas

pudessem perceber esse mundo material, mas apenas seres representativos que estariam no

lugar desse mundo? Arnauld diz:

Ora, Deus, tendo quisto que nosso espírito conhecesse os corpos e que os corpos

fossem conhecidos por nosso espírito, sem dúvida foi mais simples para ele tornar

nosso espírito capaz de conhecer imediatamente os corpos, isto é, sem seres

representativos distintos das percepções (pois, é nesse sentido que eu sempre tomarei

aqui a palavra imediatamente) e os corpos capazes de serem imediatamente

conhecidos por nosso espírito, que deixar a alma na impotência de vê-los de outra

forma que não por meio de certos seres representativos, e de uma maneira tão

embaraçada que não há homem sincero que possa dizer de boa fé que ele a

compreende (VFI, 10, 91)187.

186 « Dieu ne fait point par les voies composées ce qui se peut faire par des voies plus simples » (VFI, 10, 91). 187 « Or Dieu, ayant voulu que notre esprit connût les corps, et que les corps fussent connus par notre esprit, il a été sans doute plus simples de rendre notre esprit capable de connaître immédiatement les corps, c’est-à-dire, sans

Page 141: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

141

Dessa maneira, buscou-se nessa seção apresentar uma leitura de alguns dos argumentos

que aparecem nas demonstrações de Arnauld contra os seres representativos de Malebranche.

Essa leitura entende que o que é central nas demonstrações é o enfoque no caráter supérfluo da

noção malebranchista de seres representativos, que teria sido cunhada arbitrariamente com a

função, segundo Arnauld, de resolver o problema da percepção das coisas externas,

notadamente das coisas materiais, que estariam impedidas de serem percebidas pela mente por

causa da distância ontológica entre o mental e o corporal – distância essa que, como já visto,

impediria que as coisas externas estivessem de fato presentes no momento da percepção, como

seria necessário, para Malebranche. Assim, com o intuito de resolver um determinado

problema, os seres representativos teriam sido postulados como elemento central para a teoria

malebranchista da percepção, o que, para Arnauld, fere os princípios de uma boa argumentação

filosófica e coloca em xeque toda a teoria.

Entretanto, como vimos, para além de apontar o caráter quimérico e inventado de tais

entidades, Arnauld procura apresentar dois argumentos contrários à noção de seres

representativos que buscam atingir a consistência dessa noção em si mesma. São os argumentos

das intenções de Deus e o da simplicidade, ou economia das vias. Enquanto o primeiro mostra

que não é razoável que Deus não tenha dado à alma, unida ao corpo, a capacidade de perceber

as coisas materiais em meio às quais ela existe e que a afetam, pois isso tornaria sua vontade de

que a alma percebesse os corpos imperfeita (Deus quer A mas não faz A como quer); o segundo

mostra que a via mais simples, a melhor maneira de fazer com que a alma perceba os corpos é

dando-lhe a capacidade de percebê-los efetivamente sem a necessidade de nenhum desvio no

processo perceptivo, pois isso é o mais racional a fazer, já que se trata da via mais simples.

Esses dois argumentos, como dialogam com princípios aceitos pelo próprio Malebranche,

pretendem minar internamente a consistência dos seres representativos e demonstrar finalmente

sua falsidade, segundo Arnauld.

des êtres représentatifs, distingués des perceptions (car c’est dans ce sens que je prendrai toujours ici le mot d’immédiatement) et les corps capables d’être immédiatement connus par notre esprit, que de laisser l’âme dans l’impuissance de les voir autrement que par le moyen de certains êtres représentatifs, et d’une manière si embarrassée, qu’il n’y a point d’homme sincère qui puisse dire de bonne foi qu’il l’ait comprise » (VFI, 10, 91).

Page 142: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

142

3.4 A crítica ao representacionalismo de Malebranche

As ideias, como visto em Malebranche, são entidades realmente distintas das operações

da mente que representam para ela as coisas externas criadas por Deus, das quais elas também

são realmente distintas. Nesse sentido, as ideias consistem em entidades cujo status ontológico

é o de uma terceira coisa entre a mente que percebe e a coisa que é percebida, ou seja,

constituem objetos que intermedeiam a percepção das coisas externas à medida que são capazes

de representar essas coisas, que, enfim, são percebidas pela mente por meio dessas entidades.

Como já debatido, no pensamento de Malebranche há a concepção de que as ideias estão em

Deus e são por ele disponibilizadas para os homens. Dessa forma, pode-se afirmar, como já

feito no capítulo sobre Malebranche, que as ideias são a própria natureza de Deus enquanto

representativas dos objetos criados, isto é, elas constituem a natureza de Deus enquanto

modelos perfeitos e inteligíveis da criação. E, assim, perceber as coisas externas, envolve

perceber o que em Deus é representativo das coisas criadas e não diretamente as coisas criadas.

Até essa altura do capítulo, discutiu-se a interpretação de Arnauld acerca da legitimidade

de uma tal concepção do processo perceptivo intermediada por determinadas entidades

independentes tanto do próprio ato de percepção, quanto da coisa percebida e, no entanto,

necessária para a ocorrência da percepção. O foco da discussão esteve em mostrar que, por um

lado, os pressupostos que embasam a teoria de Malebranche são falhos; e que, por outro lado,

a concepção de ideia como uma terceira coisa na relação entre a mente e a coisa percebida é

uma postulação supérflua e prescindível de uma entidade para explicar a percepção das coisas

externas – e que se dá justamente em função do embasamento da teoria em pressuposições

deformadas, como é o caso do pressuposto da necessidade da presença entendido como

presença local. Não só é possível explicar a percepção sem essas entidades representativas,

como é o mais simples e mais verdadeiro a fazer, segundo Arnauld.

Entretanto, nesse momento, é preciso comentar talvez a consequência mais marcante

implicada pela admissão de seres representativos na percepção, segundo Arnauld, que é o

representacionalismo radical de Malebranche. Conforme Arnauld, uma teoria que envolve a

necessidade de uma terceira entidade, como a dos seres representativos, para a percepção das

coisas externas impossibilita a efetiva percepção das coisas externas, pois o que se percebe

imediatamente, ao fim e ao cabo, são essas entidades representativas e não as coisas que se

pensaria perceber à primeira vista.

Essa consequência, que é um tipo de representacionalismo radical, provinda da

admissão de que as ideias são entidades representativas realmente distintas da percepção é

Page 143: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

143

demonstrada por Arnauld em VFI, 11, 95-99. Nessa passagem, ele considera que apesar de

inicialmente Malebranche admitir que uma infinidade de coisas materiais são vistas, a

introdução da noção de ideia como seres representativos para explicar o funcionamento dessa

percepção leva-o a concluir que de fato aquilo que é visto, percebido, são determinados entes

representativos que substituem as coisas externas no processo perceptivo. Arnauld anuncia a

estranheza dessa consequência na seguinte passagem:

[...] [ele] supôs como uma coisa incontestável que nós vemos uma infinidade de

corpos e que nosso espírito percebe-os; mas a dificuldade está em explicar como ele

percebe-os. É isso que o faz dizer no título do capítulo 1 da segunda Parte do Livro

III que as ideias nos são necessárias para perceber todos os objetos materiais. Ele

supõe, então, que a gente percebe [os corpos]. E isso é como se eu dissesse que as

Lunetas nos são necessárias para perceber os Satélites de Júpiter e de Saturno; pois,

certamente seria ridículo falar assim se mesmo com tais Lunetas nós não

percebêssemos os Satélites desses dois Planetas (VFI, 11, 96)188.

Isso significa que, assim como é insensato supor que as lunetas são necessárias para a percepção

de determinados objetos que, ao final, não podem ser percebidos justamente por causa das

lunetas, a admissão das ideias como entidades representativas necessárias para a percepção leva

à conclusão problemática, segundo Arnauld, de que na teoria malebranchista não há de fato

uma verdadeira percepção das coisas externas justamente em função dessas ideias. Isso porque

o que se percebe realmente, nesse caso, são essas ideias, que são os objetos imediatos da

percepção. Para Arnauld, no contexto em que as ideias são objetos realmente distintos das

operações da mente, em que elas substituem e tomam o lugar das coisas materiais, que não

podem ser percebidas por si mesmas, apenas as ideias das coisas são percebidas, jamais as

coisas criadas por Deus o são. Em resumo, Arnauld identifica no pensamento de Malebranche

uma consequência representacionalista radical que encerra a percepção das coisas externas, do

mundo material criado por Deus, numa mera relação entre a mente e as ideias que, em Deus,

188 « […] [il a] supposé comme une chose incontestable que nous voyons une infinité de corps, et que notre esprit les aperçoit ; mais que la difficulté est d’expliquer comment il les aperçoit. C’est ce qui lui fait dire, dans le titre du chapitre 1 de la deuxième Partie du Livre III, que les idées nous sont nécessaires, pour apercevoir tous les objets matériels. Il suppose donc qu’on les aperçoit. Et c’est comme si je disais que les Lunettes d’approche nous sont nécessaires pour apercevoir les Satellites de Jupiter et de Saturne ; car certainement il serait ridicule de parler ainsi, si même avec ces Lunettes nous n’apercevions point les Satellites de ces deux Planètes » (VFI, 11, 96).

Page 144: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

144

representam esse mundo. De forma que, no fim das contas, a mente só se relaciona no contexto

perceptivo com essas ideias e jamais com o mundo, havendo um abismo insuperável entre eles:

[...] forçando ainda mais as consequências naturais dessa Filosofia das ideias,

[Malebranche] transporta-nos de repente a países desconhecidos onde os homens não

mais possuem o conhecimento real uns dos outros, nem mesmo de seus próprios

corpos, nem do sol e dos astros que Deus criou; mas onde cada um vê, ao invés dos

homens para os quais ele volta seus olhos, apenas homens inteligíveis; ao invés de seu

próprio corpo, para o qual ele olha, apenas um corpo inteligível; ao invés do sol e dos

outros astros que Deus criou, apenas um sol e astros inteligíveis; e, ao invés dos

espaços materiais, que estão entre nós e o sol, apenas espaços inteligíveis (VFI, 11,

96)189.

Para Arnauld, trata-se de uma consequência absurda, índice da falsidade das ideias

tomadas como seres representativos, pelas razões a seguir. Em primeiro lugar, retomando mais

detalhadamente o raciocínio de Arnauld, ele considera absurda a consequência

representacionalista radical da teoria da percepção malebranchista porque ela é resultado de

uma estrutura argumentativa impertinente operada por Malebranche que parte da tentativa de

explicar como a percepção dos corpos se dá e conclui no fim das contas que os corpos não são

efetivamente percebidos. Segundo Arnauld (VFI, 11, 95), um indício de que um princípio é

falso dá-se quando ele leva o raciocínio a conclusões disparatadas, contrárias a coisas sabidas

indubitáveis das quais esse princípio procurava explicar determinados aspectos. É justamente

isso que Arnauld reconhece e atribui ao princípio malebranchista da necessidade da presença

do objeto para a alma a fim de que ele pudesse ser percebido – onde presença é compreendida

por Malebranche como uma união íntima entre o objeto percebido e a alma. Como já visto

anteriormente nesse capítulo, parte significativa do equívoco da teoria da percepção de

Malebranche encontra-se no seu embasamento em princípios espúrios resultantes de meros

preconceitos da infância. Eis que, para Arnauld, é justamente o princípio da necessidade da

presença, como já explicitado, que conduz o raciocínio malebranchista à postulação da

189 « […] poussant encore plus loin les conséquences naturelles de cette Philosophie des idées, [Malebranche] nous transporte tout d’un coup en des pays inconnus, où les hommes n’ont plus de véritable connaissance les uns des autres, ni même de leurs propres corps, ni du soleil et des astres que Dieu a créés ; mais où chacun ne voit, au lieu des hommes vers lesquels il tourne les yeux, que des hommes intelligibles, au lieu de son propre corps qu’il regarde, qu’un corps intelligible, au lieu du soleil et des autres astres que Dieu a créés, qu’un soleil et des astres intelligibles, et au lieu des espaces matériels, qui sont entre nous et le soleil, que des espaces intelligibles » (VFI, 11, 96).

Page 145: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

145

concepção de ideia como uma terceira entidade representativa distinta das operações mentais e

também dos objetos externos criados por Deus.

Contudo, nesse momento, o objetivo é ressaltar a interpretação de Arnauld sobre como

a condução dos argumentos feita por Malebranche a partir desse princípio evidencia, no fim

das contas, uma armadilha, que é a negativa de um ponto de partida aceito pelo próprio

Malebranche como indubitável, a saber, o dado de que as almas unidas aos corpos (os homens)

são capazes de perceber os corpos existentes no mundo material em que coabitam.

A tarefa de esclarecer o modo como a percepção das coisas materiais ocorre é moldada,

na leitura de Arnauld, pelo princípio malebranchista em questão. Esse princípio define, em

última análise, que corpos só podem ser percebidos por intermédio de certas ideias que os

representam para a mente, pois, em função de sua condição material, eles estão impedidos de

estabelecer uma união íntima com a alma, o que é necessário para a percepção. A maneira como

Malebranche constrói a definição de ideia na Recherche, III, II, 1 já conduz de maneira robusta

à formulação da noção de ser representativo, como explicitado no capítulo sobre Malebranche,

ou seja, entende-se que está presente desde lá toda a base para a elaboração da teoria da

percepção considerada problemática por Arnauld. Contudo, Arnauld mostra que é em

passagens dos Éclaircissements, VI e X que a adesão malebranchista à referida consequência

da noção de ideia como ente representativo é definitivamente explicitada e elaborada em função

da distinção operada por Malebranche entre o que significa olhar e o que significa ver, no

contexto da percepção dos objetos materiais. Para ele os corpos que são olhados não são os

mesmos que são vistos, uma vez que corpos não são visíveis por si mesmos. Trata-se aqui da

distinção entre o olhar, que diz respeito à captação de objetos pelo sentido da visão quando os

olhos se voltam para os corpos; e o ver, que se refere à percepção intelectual que se pode ter

dos corpos. Ao dizer que as coisas materiais podem ser olhadas, mas jamais vistas, ou

percebidas, Malebranche está explicitando sua adesão irrestrita à consequência

representacionalista radical de acordo com a qual o mundo material não é efetivamente

percebido pela alma, pois, por sua natureza material, os corpos não cumprem o requisito daquilo

que pode ser percebido por si mesmo, necessitando, portanto, do intermédio das ideias, essas

sim os objetos efetivamente percebidos pela alma. Nesse sentido, a alma só percebe de fato

corpos inteligíveis e não aqueles corpos materiais criados por Deus:

Ele distingue olhar e ver. Ele define olhar ao dizer que se trata apenas de voltar nossos

olhos para um objeto; e ele dá a entender que ver é perceber um objeto por nosso

espírito. [...] Ele nos declara, então, que quando nós olhamos nosso corpo, isto é,

Page 146: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

146

quando nós voltamos nossos olhos para ele, o que nós vemos por nosso espírito na

ocasião do ato de olhar não é o corpo que nós animamos, mas sim um corpo

inteligível, que, não tendo nada de material, pôde estar intimamente unido à nossa

alma. E que da mesma maneira, quando nós olhamos o sol ao tornar nossos olhos

para ele, aquilo que nós vemos pelo nosso espírito não é o sol material que Deus criou,

mas um sol inteligível (VFI, 11, 97-98)190.

Essa argumentação, porque termina por destruir o dado malebranchista, que é ponto de

partida para a investigação proposta na Recherche, III, II, 1, de que os corpos são percebidos,

denota, segundo Arnauld, a estrutura argumentativa imprópria que leva o autor a negar aquilo

que ele tinha como certo (e, para Arnauld, o era efetivamente). Na interpretação de Arnauld,

Malebranche é conduzido equivocadamente pela aceitação de um princípio ilegítimo à

formulação das bases teóricas de uma teoria da percepção de cunho representacionalista radical

porque, como visto, a teoria nega, em última análise, a possibilidade de que as almas tenham

qualquer contato perceptivo com o mundo material criado por Deus. Além disso, para Arnauld,

o representacionalismo de Malebranche consiste numa conclusão absurda do raciocínio porque

é incompatível, como se verá em seguida, com a noção de um Deus perfeito da qual

Malebranche, assim como Arnauld, compartilha.

Eis, portanto, as outras razões pelas quais Arnauld considera a consequência

representacionalista um contrassenso: uma retomada dos argumentos já discutidos das

intenções de Deus e da simplicidade das vias na criação, argumentos esses que são contra a

noção mesma de ideia como ente representativo, para demonstrar a incoerência total do

representacionalismo malebranchista diante da aceitação da existência de um ser perfeito como

Deus. Do ponto de vista da criação divina, não faz sentido que um ser perfeito tenha criado

almas com capacidade de perceber, as tenha unido a corpos, que existem em meio a outros

corpos que o atingem, provocando tanto o bem estar necessário para sua conservação, quanto

o sofrimento que pode resultar na sua corrupção; sem que ele tenha dado para as almas a

capacidade de perceber realmente o seu próprio corpo e todos os outros que o circundam, ou

190 « Il distingue regarder et voir. Il définit regarder, en disant que c’est seulement tourner nos yeux vers un objet : et il fait entendre que voir est apercevoir un objet par notre esprit. […] Il nous déclare donc que lorsque nous regardons notre corps, c’est-à-dire, lorsque nous tournons nos yeux vers lui, ce que nous voyons par notre esprit à l’occasion de ce regard n’est pas le corps que nous animons, mais que c’est un corps intelligible, qui, n’ayant rien de matériel, a pu être intimement uni à notre âme. Et que de même, quand nous regardons le soleil, en tournant les yeux vers lui, ce que nous voyons par notre esprit n’est pas le soleil matériel que Dieu a créé, mais un soleil intelligible » (VFI, 11, 97-98).

Page 147: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

147

seja, não é razoável pensar que Deus tenha disponibilizado para a alma, nessas condições,

apenas a percepção de determinados entes representativos que substituem os verdadeiros

corpos, o verdadeiro mundo material criado, se é nesse mundo que as almas existem unidas a

seus corpos e lá precisam conservar sua integridade:

Deus, ao criar minha alma e colocá-la num corpo, quis que ela cuidasse da

conservação desse corpo [...] Ora, era necessário para isso que eu conhecesse o corpo

que eu animo e não um corpo inteligível, pois eu devo conhecer o corpo que eu devo

conservar; ora, não se trata de um corpo inteligível que eu devo conservar, mas o corpo

que eu animo (VFI, 11, 100)191.

Não é também coerente com um ser perfeito que ele tenha preferido só dar à alma a

capacidade de perceber certos seres representativos a dotá-la da capacidade de perceber

efetivamente o mundo material quando essa última opção denota uma maior simplicidade, sinal

de maior racionalidade e sabedoria, que são atributos de um ser perfeito. Dar a saber sobre o

mundo que cerca a alma incarnada por meio de determinados seres representativos que

apresentam para ela o que é esse mundo é desviar, voltear, complexificar a relação de percepção

de maneira incompatível com a natureza de Deus, que em sua perfeição e sapiência segue o

princípio de que a via mais simples e mais direta é a melhor via, pois é a mais racional e a mais

perfeita à medida que realiza algum efeito com menos “recursos”. Assim, se Deus poderia

garantir que a alma percebesse os corpos por eles mesmos, isto é, sem o intermédio de seres

representativos, como defende Arnauld, por que ele não o faria e relegaria a alma a um

conhecimento do mundo inteiramente mediado por ideias (entidades representativas) que fazem

o papel de objeto imediato da percepção com a função de apresentar para ela o que as coisas

são? Conforme Arnauld:

Ora, uma vez verdadeiro que isso que se faz tão facilmente e tão naturalmente na

suposição de que Deus tornou nossa alma capaz de conhecer os corpos materiais,

também poderia se fazer na outra suposição – de que ela não é capaz de conhecê-los,

mas somente de conhecer os corpos inteligíveis –, seria sempre necessário confessar

que isso não se faria, nessa última suposição, que por uma via não apenas muito menos

191 « Dieu, en créant mon âme, et la mettant dans un corps, a voulu qu’elle veillât à la conservation de ce corps […] Or il a été nécessaire pour cela que je connusse le corps que j’anime, et non un corps intelligible ; car je dois connaître le corps que je dois conserver ; or ce n’est point un corps intelligible que je dois conserver, mais le corps que j’anime » (VFI, 11, 100).

Page 148: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

148

simples que a da primeira, mas que seria [uma via] seguramente muito confusa e muito

embaraçada (VFI, 11, 101)192.

Diante disso, compreende-se que a crítica de Arnauld à teoria da percepção de

Malebranche culmina, após exame e parecer contrários à necessidade da existência de ideias

que são entes representativos distintos do ato mental da percepção, na explicitação da

consequência representacionalista radical exposta anteriormente. Arrisca-se aqui a dizer que o

reconhecimento da forma do representacionalismo de Malebranche sintetiza grande parte das

preocupações teóricas de Arnauld com relação à teoria defendida na Recherche, III, II, 1-6

porque é essa forma de representacionalismo – que veta a possibilidade de que a alma perceba

efetivamente o mundo criado por Deus – que ele considera a consequência absurda a que se

refere no início do capítulo 11 de VFI: “nada pode convencer melhor um homem que raciocina

bem da falsidade de um princípio que quando esse princípio o conduz a erros totalmente

absurdos [...]” (VFI, 11, 95)193. Assim, considera-se aqui possível interpretar que o

representacionalismo de Malebranche é, para Arnauld, o principal alvo das críticas

empreendidas nos capítulos de VFI discutidos até aqui, pois é contra ele que todas as críticas

se voltam ao mesmo tempo que é ele (entendido como consequência absurda) que, em última

instância, denuncia a falsidade do princípio que embasa toda a teoria da percepção de

Malebranche.

3.5 Arnauld: realismo direto?

A crítica de Arnauld à concepção do representacionalismo na teoria da percepção de

Malebranche implica uma adesão a uma concepção realista direta da percepção por parte da

teoria defendida por Arnauld em sua obra intitulada Des vraies et des fausses idées? A presente

seção pretende expor, por meio de uma leitura atenta de passagens da referida obra de Arnauld,

alguns argumentos que sugerem que o objetivo do referido pensador ao elaborar sua crítica a

Malebranche não seria realizar um ataque integral a toda e qualquer concepção

representacionalista da percepção. Isso significa que a aspiração de Arnauld não vislumbraria,

192 « Or, quand il serait vrai que ce qui se fait si facilement et si naturellement dans la supposition que Dieu a rendu notre âme capable de connaître les corps matériels, se pourrait faire aussi dans l’autre supposition – qu’elles n’est point capable de les connaître, mais seulement de connaître des corps intelligibles –, il faudrait toujours avouer que cela ne se ferait dans cette dernière supposition que par une voie, non seulement biens moins simple que dans l’autre, mais qui serait assurément très brouillée et très embarrassée » (VFI, 11, 101). 193 « Rien ne peut convaincre davantage un homme qui raisonne bien de la fausseté d’un principe, que quand il le conduit dans des erreurs tout à fait absurdes […] » (VFI, 11, 95).

Page 149: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

149

a princípio, desmantelar a compreensão de que o processo perceptivo envolve (de alguma

maneira) a noção de representação. A finalidade da crítica de Arnauld seria propriamente

apenas demonstrar que aquilo sobre o que se assenta o representacionalismo do tipo

malebranchista, a saber, a concepção de que as ideias são entidades representativas realmente

distintas e independentes das operações mentais, que estão em Deus, é falso e não merece

crédito de qualquer um que raciocine bem e a partir de princípios bem assegurados. Nesse

sentido, a posição contrária à concepção de ideia defendida por Malebranche não levaria

Arnauld necessariamente à defesa de um realismo direto na percepção, havendo espaço para a

interpretação da teoria da percepção de Arnauld como constituindo um representacionalismo,

mas de um tipo moderado tendo em vista aquele de Malebranche. Entretanto, como se verá ao

longo dessa seção, procedimentos argumentativos de Arnauld sugerem uma possível

negligência com relação ao conceito cartesiano de realidade objetiva que dá oportunidade à

interpretação realista direta da posição de Arnauld. Observe a passagem a seguir:

A princípio, parece que não se pode admitir como verdadeiras as seguintes formas de

falar: nós não vemos imediatamente as coisas, são suas ideias que são o objeto

imediato de nosso pensamento; e é na ideia de cada coisa que nós vemos suas

propriedades; sem que se seja obrigado a receber [aceitar] a Filosofia das falsas Ideias

[...] Eu não rejeito essas formas de falar. Eu creio que elas são verdadeiras quando são

bem entendidas. E eu posso mesmo concordar com essa última consequência. Mas eu

nego que se siga disso a obrigação de admitir outras ideias além daquelas que eu defini

no capítulo precedente, definições três, seis e sete, que não possuem nada em comum

com os seres representativos distintos de percepções, que são os únicos que combato,

como deixei claro particularmente na definição sete (VFI, 6, 72-73)194.

Segundo a exposição de Arnauld, aparentemente sua crítica ao representacionalismo

radical malebranchista não implica a defesa de um realismo direto porque, se é possível admitir

que as coisas não são imediatamente vistas, mas apenas suas ideias, isso significa que de alguma

maneira a visão, ou a percepção, que se tem das coisas é mediada por essas ideias. Note-se que

194 « Il semble d’abord qu’on ne peut admettre pour vraies ces façons de parler : Nous ne voyons point immédiatement les choses : ce sont leurs idées qui sont l’objet immédiat de notre pensée ; et c’est dans l’idée de chaque chose que nous en voyons les propriétés, qu’on ne soit obligé de recevoir la Philosophie des fausses Idées […] Je ne rejette point ces façons de parler. Je les crois vraies étant bien entendues. Et je puis même demeurer d’accord de cette dernière conséquence. Mais je nie qu’il s’ensuive de là qu’on soit obligé d’admettre d’autres idées que celles que j’ai définies dans le chapitre précédent, définitions trois, six et sept, qui n’ont rien de commun avec les être représentatifs distingués des perceptions, qui sont les seuls que je combats, comme je l’ai marqué particulièrement dans la définition sept » (VFI, 6, 72-73).

Page 150: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

150

a concordância de Arnauld com a consequência de que é na ideia das coisas que as propriedades

delas são vistas parece reforçar ainda mais a perspectiva da mediação, via ideia, da percepção

das coisas externas ao pensamento. Pois, à medida que as ideias das coisas contêm de algum

modo as propriedades das coisas, torna-se um pouco mais claro como a percepção das coisas

criadas se dá mediada pelas ideias. O que se quer apontar aqui é que a noção de mediação na

percepção é de certa forma aclarada (ainda que não completa e satisfatoriamente) pelo

entendimento expresso na consequência admitida por Arnauld de que a ideia contém, de

determinado modo, as propriedades das coisas que representam; e é por esse motivo que a

percepção imediata das ideias seria, em última instância, a percepção mediada das coisas

criadas. Levando em consideração esses elementos, é possível interpretar a posição de Arnauld,

no que concerne à percepção, como admitindo um certo representacionalismo – e é esse o ponto

que se quer ressaltar nesse momento, mesmo sem a devida apresentação do que exatamente

consiste esse representacionalismo. O friso na possibilidade da admissão, por parte de Arnauld,

de que a percepção das coisas externas seja mediada por ideias diz respeito ao ponto mais

sensível a ser discutido nesse momento, que é mostrar como isso não conduz necessariamente

a uma teoria das ideias semelhante àquela de Malebranche. É dessa forma que se compreende

aqui que Arnauld encaminha a argumentação presente no início do capítulo seis de VFI: ao se

perguntar sobre se determinados modos de falar acerca da relação entre percepção e coisa

percebida implicam uma adesão tácita às teses malebranchistas da percepção, Arnauld diz não.

Compreende-se aqui que esse posicionamento visa a defender que uma noção de representação

como necessária para a percepção das coisas externas não conduz necessariamente a uma

concepção de ideia como entidade representativa realmente distinta da mente. Assim, Arnauld

sugere que é possível admitir um representacionalismo e negar que as ideias sejam do tipo

defendido por Malebranche, a saber, que elas sejam entes representativos distintos da

percepção.

Nesse contexto, Arnauld remete às definições três, seis e sete do capítulo 5 de VFI como

lugares da precisa compreensão do significado de ideia. Como visto, tratam-se das definições

que dão conta da noção de ideia como sendo a mesma coisa que a percepção, ou seja, como

sendo uma mesma modificação mental, que possui caráter essencialmente representativo, que

é, por isso, completamente diferente da noção de ente representativo como objetos realmente

distintos da mente, e que encerra dois aspectos: um que se refere à mente à medida que ela é

uma operação mental, e o outro que diz respeito à coisa percebida à medida que ela está por

representação na mente. Isso sugere que Arnauld não recusa simplesmente o

Page 151: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

151

representacionalismo na percepção das coisas (como já apontado). Mas apenas que ele renega

uma determinada forma de representacionalismo resultante da concepção dos entes

representativos de Malebranche, como visto na seção anterior.

E aqui abre-se parêntesis para se considerar que é preciso que se examine e se pondere

bem o que significa esse tipo de representacionalismo que seria defendido por Arnauld, pois

ele precisa ser compatível com o contexto em que Arnauld define a noção de ideia pela noção

de ato de percepção (definição essa que ele faz com a finalidade de defender, contra

Malebranche, que as ideias não são distintas da percepção, ou seja, não são distintas do ato

perceptivo). Ora, conceber que haja, da forma como for, algum conteúdo representativo que

seja objeto imediato do ato de percepção, como ocorre num modelo representacionalista, parece

justamente a reprodução de uma teoria da percepção que Arnauld quer rejeitar. E isso pode ser

assim considerado porque a redução arnaldiana de ideia à noção de percepção sugere o

encerramento da dicotomia ato-conteúdo mental no processo perceptivo. Mais à frente esse

ponto será melhor elaborado.

Mas enfim, retomando a hipótese de que é apenas contra o representacionalismo de

Malebranche que Arnauld fala, é preciso apontar que, como está expresso no texto da definição

sete (VFI, 5, 68) e na parte final da passagem aqui anteriormente citada (VFI, 6, 72-73), são os

entes representativos malebranchistas – e suas consequências inadequadas, conclui-se aqui –

que são frontalmente combatidos por Arnauld; e, aparentemente, não a concepção de qualquer

teoria representacionalista da percepção. A passagem a seguir subsidia com mais detalhes essa

interpretação:

[...] toda percepção, sendo essencialmente representativa de alguma coisa e, segundo

isso chamando-se ideia, não pode ser essencialmente reflexiva sobre si mesma sem

que seu objeto imediato seja essa ideia, isto é, a realidade objetiva da coisa que meu

espírito é dito perceber; de forma que, se eu penso no sol, a realidade objetiva do sol,

que está presente para o meu espírito, é o objeto imediato dessa percepção; e o sol

possível ou existente, que está fora do meu espírito é seu objeto mediado, por assim

dizer. E dessa maneira vê-se que sem recorrer aos seres representativos distintos das

percepções, é muito verdadeiro nesse sentido que não apenas no que diz respeito às

coisas materiais, mas geralmente no que concerne a todas as coisas, são as nossas

ideias que nós vemos imediatamente e que são o objeto imediato de nosso

pensamento; o que não impede que nós vejamos também por essas ideias o objeto que

contém formalmente o que está apenas objetivamente na ideia, isto é, por exemplo,

Page 152: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

152

que eu conceba o ser formal de um quadrado que está objetivamente na ideia, ou na

percepção, que eu tenho de um quadro (VFI, 6, 73-74)195.

Essa passagem retoma aquelas “formas de falar”, citadas no início dessa seção e que

indicariam a possibilidade da admissão de um tipo de representacionalismo, diferente do

malebranchista, por parte de Arnauld, como um corolário que se seguiria da própria concepção

de ideia defendida no capítulo 5 de VFI – uma vez que não supõe a distinção entre ideia e

percepção196 – associada ao caráter reflexivo inerente à percepções197. Dessa maneira,

considerando que “toda percepção é essencialmente representativa de alguma coisa”, isto é, é

uma ideia de alguma coisa; e que elas são “essencialmente reflexivas sobre si mesmas”, isto é,

são acompanhadas inerentemente por uma consciência de que e do que se percebe, isto é, uma

consciência de que se tem uma ideia e do que é essa ideia, é necessário concluir que o objeto

imediato de toda percepção é a própria ideia que se tem de alguma coisa, é aquilo que é

representado pela ideia na consciência, é a representação de alguma coisa.

Segundo Arnauld, “[...] nosso pensamento ou percepção é essencialmente reflexivo

sobre si mesmo [...]” (VFI, 6, 73)198, isso significa que o ato mental de perceber alguma coisa

nunca vem desacompanhado de uma reflexão sobre si mesmo, ou seja, de uma consciência

sobre esse ato. Ora, a consciência da percepção exige que seu objeto imediato seja a própria

percepção, pois a percepção não poderia ser essencialmente reflexiva se não tivesse a si mesma

como seu objeto imediato. Isso permite que se possa compreender a partir do que aqui se chama

de a forma linguística da percepção intencional, que aqui se expressará como ‘eu percebo x’,

que ela deve vir sempre com a seguinte forma: ‘eu sei que percebo x’, onde ‘eu sei que...’

representa a consciência necessária que acompanha os atos mentais de percepção, segundo

Arnauld. O objeto imediato dessa percepção necessariamente acompanhada por uma reflexão

195 « […] toute perception étant essentiellement représentative de quelque chose, et selon cela s’appelant idée, elle ne peut être essentiellement réfléchissante sur elle-même, que son objet immédiat ne soit cette idée, c’est-à-dire la réalité objective de la chose que mon esprit est dit apercevoir : de sorte que, si je pense au soleil, la réalité objective du soleil, qui est présente à mon esprit, est l’objet immédiat de cette perception ; et le soleil possible ou existant, qui est hors de mon esprit, en est l’objet médiat, pour parler ainsi. Et ainsi l’on voit que sans avoir recours à des êtres représentatifs, distingués des perceptions, il est très vrai en ce sens que non seulement au regard des choses matérielles, mais généralement au regard de toutes choses, ce sont nos idées que nous voyons immédiatement, et qui sont l’objet immédiat de notre pensée : ce qui n’empêche pas que nous ne voyions aussi par ces idées l’objet, qui contient formellement ce qui n’est qu’objectivement dans l’idée : c’est-à-dire, par exemple, que je ne conçoive l’être formel d’un carré, qui est objectivement dans l’idée ou la perception que j’ai d’un carré » (VFI, 6, 73, 74). 196 Como apontado no parágrafo precedente, a compatibilidade da noção de ideia defendida por Arnauld com alguma forma de representacionalismo não é óbvia e precisa ser examinada. Propor-se-á mais à frente uma consideração sobre esse ponto. 197 Cf. VFI, 6, 73: sobre a reflexão virtual e a reflexão expressa. 198 « […] notre pensée ou perception est essentiellement réfléchissante sur elle-même […] » (VFI, 6, 73).

Page 153: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

153

(‘eu sei que percebo x’) é a própria percepção de x à medida que se trata de um aperceber-se,

que é direto, da operação mental que representa alguma coisa na mente – coisa essa que seria,

em última instância, percebida, conhecida, atingida indiretamente pela percepção. Nesse

sentido, porque a percepção ou ideia é sempre a consciência de que alguma coisa é representada

no intelecto, o seu objeto imediato parece ser sempre o que é exibido ou representado no

intelecto por essa operação mental, isto é, aquilo que Arnauld chama de “realidade objetiva da

coisa que o espírito é dito perceber”. Assim, o que é sugerido por Arnauld nessa passagem é

que toda vez que se pensa em alguma coisa, isto é, que se é consciente de que se pensa em

alguma coisa, o objeto imediato desse pensamento é a própria operação mental de exibir alguma

coisa no intelecto, que remete ou aponta para alguma coisa, meramente possível ou mesmo

existente, que não se reduz apenas a essa operação do pensamento, mas que é mediada por ela.

É possível considerar nessa passagem que um ponto importante para Arnauld é mostrar

que o objeto imediato da percepção, que é sempre reflexiva, é a própria operação mental da

percepção à medida que ela exibe, ou representa, no intelecto a realidade objetiva do objeto

percebido. Sendo assim, entende-se que o objeto imediato da percepção consiste em uma

representação (que dá ao intelecto alguma coisa determinada a ser pensada, ou conhecida) dada

por uma operação mental de caráter representativo199 que não necessita, dessa maneira, de

nenhuma recorrência a nenhum tipo de entidade representativa separada, ou independente da

mente, isto é, que prescinde de qualquer tipo de ser representativo que seja realmente distinto

da própria percepção enquanto uma modificação mental. Dessa maneira, parece ser reforçada

por essa passagem a leitura de que o objetivo de Arnauld é mostrar a prescindibilidade dos seres

representativos de Malebranche na consideração do fenômeno da percepção; e, como

consequência disso, mostrar também a completa inadequação do tipo radical de

representacionalismo suscitado pela noção de ser representativo em questão. Em resumo,

Arnauld visaria apenas a atacar o modelo representacionalista de Malebranche e não

exatamente operar, como já dito anteriormente, uma destruição de toda e qualquer concepção

representacionalista, o que sugere, finalmente, que Arnauld poderia admitir um tipo mais

moderado de representacionalismo em sua teoria da percepção, e, por consequência, não dar

adesão a um realismo direto. Discutir-se-á ao fim dessa seção em que medida esse tipo de

199 O caráter representativo da percepção constitui uma marca essencial dela e é defendido por Arnauld na definição de número sete em VFI, 5, 68. Esse caráter essencialmente representativo da percepção, que é uma operação da mente, trata-se talvez da principal divergência de Arnauld com Malebranche no que diz respeito à teoria da percepção, pois enseja, como visto, importantes diferenças de interpretação acerca do que é e como se processa a percepção.

Page 154: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

154

representacionalismo moderado sugerido por Arnauld é adequado tendo em vista sua

concepção de que a ideia e a percepção constituem a mesma modificação mental.

Num conhecido artigo intitulado “‘Representative ideas’ in Malebranche and

Arnauld”, Arthur Lovejoy (1923) apresenta leitura semelhante acerca dos objetivos de Arnauld

em sua crítica a Malebranche. Para ele, a disputa entre Arnauld e Malebranche diz respeito

propriamente a se atos mentais podem ser representativos de objetos materiais ou não; não

tendo o seu foco, portanto, a ver com a admissibilidade ou não da ocorrência de representação

no contexto da percepção de objetos externos à mente. Segundo ele, que a representação está

implicada no processo de percepção das coisas externas é um fato admitido tanto por Arnauld,

quanto por Malebranche, sendo o ponto de discordância entre eles localizado no fato de que

enquanto para Malebranche essa representação só pode ocorrer em uma entidade representativa

independente da mente, Arnauld considera que ela é dependente da mente, pois é resultado de

um ato, ou modificação da mente. Dessa forma, pode-se compreender que Lovejoy concorda e

sustenta a interpretação anunciada acima de que Arnauld não propõe em sua crítica à teoria da

percepção malebranchista uma condenação irrestrita da perspectiva representacionalista, mas

apenas combate sua versão radical, visto que ela se assenta em bases questionáveis:

Assim, ambos na disputa concordavam que o tema em discussão não era se “êtres

représentatifs” de algum tipo estavam envolvidos na nossa apreensão de objetos

físicos, mas se os “êtres représentatifs” em que ambos acreditavam ser indispensáveis

eram, como Malebranche compreende, “être représentatifs distingués des

perceptions” (isto é, eram entidades lógicas objetivas, ou essências), ou eram, como

Arnauld sustentava, idênticas com nossas percepções enquanto estados subjetivos. A

questão crucial era, como Arnauld afirmava e Malebranche negava, se estados

subjetivos podem ser “representativos” de reais físicos [realidades físicas]

(LOVEJOY, 1923, p. 452-453)200.

Lovejoy (1923, p.454-455) avança e sofistica sua interpretação a fim de explicar em que

sentido Arnauld entende o que é percepção e em que medida ela é, enquanto modificação

mental, representativa. A questão para ele é entender se a percepção, ou a ideia (que consistem

200 “Thus it was agreed by both disputants that the issue under discussion was not whether ‘êtres représentatifs’ of some kind are involved in our apprehension of physical objects, but whether the ‘êtres représentatifs’ which both believed to be indispensable were, as Malebranche held, ‘êtres représentatifs distingués des perceptions’ (i.e, were objective logical entities, or essences), or were, as Arnauld maintained, identical with our perceptions as subjective states. The crucial question was whether, as Arnauld affirmed and Malebranche denied, subjective states can be ‘representative’ of physical reals” (LOVEJOY, 1923, p. 452-453).

Page 155: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

155

no mesmo fenômeno, segundo Arnauld), é um ato mental ou um conteúdo mental. Segundo

ele, a definição seis do capítulo cinco de VFI parece indicar um reconhecimento por parte de

Arnauld da distinção entre ato mental e conteúdo mental que serve de argumento para uma

leitura realista direta à medida que se poderia concluir dessa distinção que Arnauld toma a

percepção, ou a ideia, como um ato da mente, de maneira que seu conteúdo só poderiam ser as

coisas mesmas – já que não há para Arnauld a dicotomia percepção-ideia no processo

perceptivo. Como já visto, a definição a que se refere indica um reconhecimento por parte de

Arnauld de que a percepção é um tipo de modificação mental que encerra duas relações

distintas, a saber, quando a percepção refere-se à mente que ela modifica trata-se de um ato

mental; e quando a percepção refere-se à coisa percebida trata-se de um conteúdo. Como toda

percepção diz respeito ao mesmo tempo a um ato mental e a um conteúdo percebido, e, segundo

Lovejoy, essas duas coisas podem ser interpretadas como fenômenos totalmente distintos a

partir da definição de Arnauld, a interpretação realista direta compreendeu que se o conteúdo é

distinto do ato mental e esse conteúdo refere-se às coisas, a percepção-ideia é o ato ou função

mental de apreender as coisas elas mesmas. Nesse caso a percepção-ideia seria um ato mental

que se refere sempre à mente que modifica e à coisa que percebe; mas como ato parece ser lido

nesse realismo direto como separado do conteúdo (e não apenas como distinto, como Lovejoy

proporá), percepção-ideia envolve aquilo que é percebido não na forma de um conteúdo mental,

mas diretamente como a coisa externa. Ressalta-se aí nessa interpretação realista direta uma

compreensão de base de que o modo mental ao qual Arnauld refere-se ao tratar da percepção-

ideia deve ser ou uma operação da mente ou um conteúdo, de forma que se a percepção-ideia é

referida à mente como um ato (isto é, como modo da mente ela é um ato), então esse conteúdo

a que ela se refere, ele mesmo, não pode ser o que marca a modificação mental, sendo tomado,

então, como o objeto externo diretamente percebido201.

Entretanto, Lovejoy recusa que essa seja a interpretação mais adequada do texto porque,

além de Arnauld não dizer categoricamente nos textos analisados que os objetos externos à

mente são percebidos diretamente sem nenhuma mediação (na verdade, ele diz o contrário no

201 Lovejoy não desenvolve em seu artigo essa explicação sobre como uma aparente distinção entre ato mental e conteúdo mental constante da definição seis, capítulo cinco de VFI serviria de suporte para uma interpretação realista direta que ele atribui a Mr. Dawes Hicks. A interpretação constante nesse texto foi desenvolvida por mim na tentativa de compreender o argumento de Lovejoy contrário à posição realista direta. A conclusão a que cheguei é que para ele a interpretação (equivocada) de que ato mental e conteúdo mental são coisas não apenas distintas, mas separadas, estaria na base da leitura realista direta da teoria da percepção de Arnauld. Isso porque a percepção, enquanto ato mental, é a marca da modificação mental quando a mente percebe alguma coisa. Ainda que esse ato tenha a função de apreender algum conteúdo como objeto percebido, esse conteúdo não pode ser uma modificação mental, restando para o realismo direto a conclusão de que o conteúdo apreendido é a própria coisa externa à mente.

Page 156: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

156

capítulo seis de VFI, como visto acima); o texto da definição nove do capítulo cinco de VFI

apresenta, segundo ele, uma compreensão de percepção, ou ideia, como conteúdo mental, isto

é, um entendimento aparentemente distinto daquele que afirma que a percepção é um ato da

mente. Diz-se aqui aparentemente, pois como se verá, a interpretação de Lovejoy do que é a

percepção é aquela que congrega na mesma modificação mental um ato e um conteúdo. Mas,

além dessas razões contra a interpretação realista direta, Lovejoy oferece mais duas: 1) a tese

de que a percepção é um evento mental, o que implica que o modo de ser da percepção é tão

completamente distinto da realidade material externa ao pensamento que ocasiona problemas

para a compreensão de como se daria uma apreensão mental direta de objetos físicos; e 2) a

tese de que esse modo mental da percepção é essencialmente representativo.

Tendo em vista os indícios de que a leitura realista direta é equivocada (leitura essa que

reduz percepção-ideia exclusivamente a um ato mental), questiona Lovejoy, por que motivo

Arnauld, que parece admitir na definição seis como coisas distintas o par ato mental e conteúdo

mental, considera que o fenômeno da percepção-ideia não envolve duas entidades (a mente que

se modifica e determinados objetos [representativos] distintos dessa modificação), mas sim

apenas uma única modificação? Porque, segundo Lovejoy, a interpretação mais adequada da

definição seis, acima explicitada, é aquela que considera que essa única modificação mental

possui duas relações implícitas. Como Arnauld admite que há modificações mentais que são

representativas de coisas distintas da mente – o que Malebranche recusa como sendo um

problema – ele precisa explicar isso da seguinte forma: a modificação mental representativa

guarda uma peculiaridade, pois ela é ao mesmo tempo um modo dependente da mente que

aponta ou indica alguma coisa exibida ou representada na mente e que, no entanto, é diferente

da mente. Dessa forma, o conteúdo representativo da percepção parece ser o resultado da função

representativa do modo da mente em questão (a percepção). Nesse contexto, o conteúdo não

consiste numa outra coisa independente da mente, como supõem tanto Malebranche quanto

aqueles partidários de uma interpretação realista direta de Arnauld. É conveniente ressaltar aqui

que a dificuldade dos realistas diretos, pela interpretação feita aqui de Lovejoy, é em aceitar

que um modo da mente possa ser ao mesmo tempo ato e conteúdo; por isso, para eles, a

percepção é um ato e seu conteúdo são as coisas externas à mente. No fim das contas, a lógica

do realismo direto parece assemelhar-se muito àquela de Malebranche, estando a diferença de

compreensão apenas no que diz respeito ao status ontológico do que é percebido: seres

representativos ou as coisas mesmas. Assim, segundo Lovejoy, a dualidade que Arnauld

pretende negar na percepção não é aquela entre conteúdo representativo e as coisas externas à

Page 157: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

157

mente, que seria uma negativa própria da interpretação realista direta de Arnauld; mas sim a

dualidade entre o ato mental perceptivo e o conteúdo representativo distinto, separado,

independente da mente, que seria a motivação da sua crítica a Malebranche. Dessa maneira,

entende-se aqui que a interpretação de Lovejoy corrobora significativamente a leitura de que a

crítica arnaldiana aos seres representativos de Malebranche não implica a defesa de um realismo

direto.

Denis Moreau (1999, p. 144-146), em seu livro sobre a polêmica entre Arnauld e

Malebranche, também se filia à interpretação de que Arnauld não rejeita a noção e o papel da

representação como necessários para a percepção. Em acordo com Lovejoy (1923), Moreau

classifica Arnauld como um filósofo da representação, assim como o é Malebranche, pois,

segundo ele, a função representativa da percepção-ideia não é jamais questionada. Ao contrário,

ela é tomada como o ponto de partida segundo o qual se pode compreender o que é a ideia, pois

a representação é constitutiva da ideia e de nada serviria procurar o porquê, já que se trata de

algo primitivo. Como sustentação, Moreau aponta parte da definição oito do capítulo cinco de

VFI, a saber,

[...] Pois, no que concerne às ideias, [representação] quer dizer que as coisas que nós

concebemos estão objetivamente no nosso espírito e no nosso pensamento. Ora, essa

maneira de ser objetivamente no espírito é tão particular ao espírito e ao pensamento,

como sendo aquilo que compõe sua natureza, que em vão procurar-se-á algo de

semelhante em tudo o que não é espírito e pensamento. E, como já notei, foi isso que

embaralhou todo esse tema das ideias: disso que se quis explicar, por comparações

feitas com as coisas corporais, a maneira pela qual os objetos são representados por

nossas ideias, ainda que não pudesse haver acerca disso nenhuma relação verdadeira

entre os corpos e os espíritos (VFI, 5, 68)202.

Se a representação, ou a maneira de ser objetivamente no pensamento, é algo próprio e

particular que estabelece, forma a natureza do pensamento, está-se tratando de algo que é básico

e primitivo naquilo que o pensamento é: pensar é representar. Tentar explicá-la a partir de outra

coisa que não o pensamento é equivocado e inútil, já que não se pode explicitar a natureza do

202 « […] Car, au regard des idées, cela veut dire que les choses que nous concevons sont objectivement dans notre esprit et dans notre pensée. Or cette manière d’être objectivement dans l’esprit est si particulière à l’esprit et à la pensée, comme étant ce qui en fait la nature, qu’en vain on chercherait rien de semblable en tout ce qui n’est pas esprit et pensée. Et c’est, comme j’ai déjà remarqué, ce qui a brouillé toute cette matière des idées, de ce qu’on a voulu expliquer, par des comparaisons prises des choses corporelles, la manière dont les objets sont représentés par nos idées, quoiqu’il ne puisse y avoir sur cela aucun vrai rapport entre les corps et les esprits » (VFI, 5, 68).

Page 158: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

158

pensamento a partir do que é corpóreo. Assim, seguindo o raciocínio indicado por Moreau,

como representar é a natureza da ideia (ideia é representação) e pensar é ter ideias, trata-se

portanto de um postulado, um conhecimento primeiro e indiscutível, que o que o pensamento

faz é representar.

Dessa maneira, esse posicionamento em defesa do caráter representativo das ideias

como constitutivo de sua natureza permite a leitura de que também Moreau discorda da tese da

adesão arnaldiana à concepção da teoria da percepção como um realismo direto. Como se pode

notar, Moreau, assim como Lovejoy, reconhece que o objetivo de Arnauld é apenas minar a

concepção malebranchista de ideia e não atacar toda forma de representacionalismo:

[...] quando Arnauld escreve que se pode provar “a falsidade das Ideias tomadas como

seres representativos” (VFI, 5, 66)203, ele ataca talvez isso que são as ideias em

Malebranche, provavelmente ao que o Oratoriano pensou sobre seu ser, mas

certamente não [ataca] a função representativa dessas ideias (MOREAU, 1999, p.

146)204.

Moreau (1999, p. 149-153) considera que é preciso explicar, e qualificar em que medida,

por que a defesa de que Arnauld é um filósofo da representação dá a ele o status de

representacionalista. Pode-se dizer, de forma geral, segundo a interpretação que Moreau faz de

Arnauld, que isso se deve à leitura de que não há uma relação direta entre a mente que percebe

e a coisa percebida, visto que essa relação é mediada pela representação operada pela

percepção-ideia, que consiste na natureza das modificações mentais que possuem uma maneira

de ser objetiva, isto é, são objetivamente na mente a exibição de alguma coisa como objeto para

a mente que percebe.

Contudo, com a finalidade de tornar a interpretação mais clara acerca do que significa

a mediação entre a percepção e a coisa percebida realizada pela representação, Moreau avalia

que é preciso comentar uma importante passagem do texto de Arnauld que é responsável por

fornecer subsídios para uma interpretação da teoria da percepção arnaldiana à luz de uma

concepção realista direta, que é contraditória com a posição que ele defende. Eis a passagem:

“[...] [é] imediatamente que nós podemos conhecer as coisas materiais tanto quanto Deus e

203 Essa referência ao texto de Arnauld, feita originalmente por Moreau, foi aqui adaptada tendo em vista a edição da obra de Arnauld utilizada por mim nessa tese. 204 « […] lorsqu’Arnauld écrit qu’on peut prouver « la fausseté des Idées prises comme des êtres représentatifs » (VFI, 5, 66), il s’en prend peut-être à ce que sont les idées chez Malebranche, probablement à ce que l’Oratorien a pensé de leur être, mais sûrement pas à la fonction représentative de ces idées » (MOREAU, 1999, p.146).

Page 159: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

159

nossa alma, isto é, que nós podemos conhecê-los sem que haja qualquer meio entre nossas

percepções e o objeto (VFI, 6, 79)”205. Aparentemente, nessa passagem Arnauld defende uma

posição totalmente oposta a que se tem visto até esse momento da exposição à medida que fala

em conhecimento imediato das coisas materiais e na inexistência de qualquer meio, ou

intermédio, entre a percepção e o objeto. Entretanto, ao se olhar para o contexto do qual essa

passagem foi retirada poder-se-á notar que ela fala em conhecimento imediato das coisas

materiais tendo em vista a oposição entre conhecimento imediato das coisas criadas e

conhecimento mediado pelas ideias como elas são compreendidas por Malebranche, ou seja,

como certos seres representativos realmente distintos da mente. Essa passagem encontra-se no

meio de uma discussão em que Arnauld está qualificando o sentido da palavra ‘imediatamente’

e visa a concluir que se pela noção de meio, ou de intermediário, compreende-se a existência

de entidades representativas distintas da percepção, então a percepção das coisas deve ser

concebida como imediata, isto é, sem o intermédio de tais entes representativos. Entretanto,

isso não exclui, segundo Arnauld, a compreensão de que a percepção se dá por meio das ideias

tais como elas são definidas por ele mesmo, isto é, como já dito mais acima, como modificações

mentais que estão objetivamente, ou por representação, na mente:

[...] se por conceber imediatamente o sol, um quadrado, um número cúbico,

compreende-se aquilo que é oposto a concebê-los por meio das ideias, tais quais eu as

defini no capítulo precedente, isto é, como ideias não distintas das percepções, eu

permaneço de acordo com que nós não os vemos imediatamente, pois é mais claro

que o dia que nós só podemos vê-los, percebê-los, conhecê-los pelas percepções que

temos deles, seja da maneira que for que nós as tenhamos (VFI, 6, 79)206.

A interpretação de Moreau acerca desse contexto procura mostrar que os realistas

diretos atêm-se às concepções de Arnauld acerca da percepção e da ideia principalmente no que

essas concepções dizem respeito à inexistência de alguma outra coisa entre o pensamento (e

suas modificações) e as coisas percebidas. Como se tem visto ao longo do capítulo, a recusa

205 « […] [c’est] immédiatement que nous pouvons connaître les choses matérielles aussi bien que Dieu et notre âme, c’est-à-dire que nous les pouvons connaître sans qu’il y ait aucun milieu entre nos perceptions et l’objet » (VFI, 6, 79). 206 « […] si par concevoir immédiatement le soleil, un carré, un nombre cubique, on entend ce qui est opposé à les concevoir par le moyen des idées, telles que je les ai définies dans le chapitre précédent, c’est-à-dire, par des idées non distinctes des perceptions, je demeure d’accord que nous ne les voyons point immédiatement ; parce qu’il est plus clair que le jour que nous ne les pouvons voir, apercevoir, connaître, que par les perceptions que nous en avons, de quelque manière que ce soit que nous les ayons » (VFI, 6, 79).

Page 160: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

160

arnaldiana da tese malebranchista da existência de terceiras entidades na relação entre

percepção e coisa percebida, é, na realidade, a defesa de que, no que concerne à percepção,

apenas o pensamento e as coisas criadas por Deus são os termos da relação de percepção; não

havendo, portanto, nada entre a mente e as coisas percebidas. Tendo isso em vista, é bom que

se diga que a atenção dos realistas diretos sobre essas concepções de Arnauld ressalta a falta de

intermediários de um ponto de vista substancial, isto é, no que concerne à concepção de que na

percepção só há duas substâncias envolvidas – a mente que percebe e a coisa (externa)

percebida. Para eles, todo o contexto da discussão de Arnauld sobre o sentido do termo

‘imediatamente’ é lido sob a ótica da distinção real entre as substâncias envolvidas na

percepção. Ao fazerem isso, os realistas diretos permitem-se concluir que, como entre a mente

que percebe e a coisa percebida não há uma terceira coisa, uma terceira substância, então a

percepção das coisas se dá de forma direta ou imediata.

Entretanto, Moreau lembra que, para além das distinções reais entre a percepção e a

coisa percebida priorizadas na compreensão realista direta da percepção, há outras formas de

distinção, como as modais, que precisam ser consideradas a fim de se produzir uma explicação

mais precisa do processo perceptivo, por um lado; e a fim de tornar inteligível e não

contraditório todo o contexto da discussão sobre o significado da palavra ‘imediatamente’, por

outro lado. Nesse sentido, ainda que possa ser um consenso a defesa de Arnauld de que não há

uma terceira substância envolvida na percepção, não se deve ignorar que entre a mente que

percebe e a forma particular dessa percepção há uma distinção de tipo modal à medida que a

mente percebe alguma coisa mediante um tipo de modificação específica de sua natureza, que

é a ideia. Segundo Moreau, essa ideia é tanto algo distinto da coisa externa de que ela é ideia,

uma vez que são coisas de natureza diferentes, quanto da mente da qual ela é uma modificação,

já que ela não define a essência da mente, pois é apenas uma modificação que não determina

completamente a natureza da mente. Dessa maneira, é razoável compreender que entre as duas

únicas substâncias envolvidas na percepção (a mente e a coisa percebida) existe, não um

terceiro ente, mas sim um processo perceptivo dado por um tipo particular de modificação

mental sem a qual não se poderia pensar ou perceber alguma coisa – esse processo perceptivo

pode ser apontado aqui justamente como a exibição ou a representação na mente, feita pela

ideia, de um conteúdo determinado. É a isso que Arnauld se refere quando diz, como explicitado

em citação feita acima, que se por conhecer alguma coisa imediatamente significa conhecê-la

independentemente da sua ideia (quando ideia, ou percepção, é compreendida como a

modificação mental responsável por dar a conhecer, exibir, representar a coisa à mente) então

Page 161: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

161

é apenas por intermédio de ideias que se pode conhecer ou perceber alguma coisa207. Dessa

forma, é preciso esclarecer que a relação entre a mente que percebe e a coisa que é percebida

não pode ser considerada imediata, pois passa necessariamente pela mediação de um modo

mental responsável por representar a coisa para a mente. Sendo assim, entende-se aqui

juntamente com Moreau, que ignorar que seja através de um modo específico da mente, cuja

função é determinar um conteúdo, que se possa dizer que a mente percebe alguma coisa, é

desconsiderar um elemento importante do processo perceptivo sem o qual sua compreensão

pode permanecer obscura. Pois, o que seria propriamente a percepção imediata, direta de um

objeto, excluído o papel de intermediação desse modo mental pelo qual alguma coisa pode ser

dada a ser pensada, conhecida, ou percebida pela mente? Seria o contato direto entre a mente e

as coisas externas? E como se processaria um contato direto entre a mente e as coisas materiais?

Enfim, questões que o realismo direto deve responder a fim de esclarecer o que parecem

dificuldades importantes208.

Em resumo, alinhado com a interpretação exposta, entende-se aqui que o aparente uso

contraditório do termo ‘imediatamente’ visa apenas a explicitar a recusa de Arnauld de que a

percepção envolva necessariamente uma terceira substância intermediária entre a mente e a

coisa percebida. É por isso que no espaço de poucas linhas é dito tanto que o conhecimento das

coisas materiais não se dá imediatamente, quanto que ele se o dá. Isso porque Arnauld quer

frisar que, do ponto de vista substancial, os termos envolvidos na percepção são apenas dois; e,

por isso, num contexto em que se sugere que a percepção é mediada por uma ideia, tomada

como uma terceira substância, é preciso que se reforce que essa mediação não existe, pois a

percepção das coisas é imediata entre a mente e a coisa, ou seja, sem a interferência de uma

outra entidade. Agora, no contexto em que ideia é concebida como modificação mental, então

a percepção tem de ser dita mediada, pois ela o é por essa modificação representativa da mente

que não se confunde com a coisa percebida e não se reduz à mente. Desse modo, se para Arnauld

o conhecimento, ou a percepção que se tem das coisas, é necessariamente mediado pela ideia

dessas coisas, então é legítimo tomá-lo como um representacionalista, ainda que de um tipo

207 “[...] se por conceber imediatamente o sol, um quadrado, um número cúbico, compreende-se aquilo que é oposto a concebê-los por meio das ideias, tais quais eu as defini no capítulo precedente, isto é, como ideias não distintas das percepções, eu permaneço de acordo com que nós não os vemos imediatamente, pois é mais claro que o dia que nós só podemos vê-los, percebê-los, conhecê-los pelas percepções que temos deles, seja da maneira que for que nós as tenhamos” (VFI, 6, 79). 208 Mais à frente falar-se-á sobre aspectos da leitura realista direta da teoria da percepção de Arnauld apenas sob a ótica da interpretação que alguns autores, como Ong-Van-Cung e Nadler, fazem das passagens aqui discutidas do capítulo seis de VFI. Infelizmente, não se dedicará a explicitar as eventuais soluções que o realismo direto propõe para questões dessa natureza.

Page 162: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

162

distinto daquele de Malebranche. É interessante apontar que essa leitura representacionalista da

concepção de Arnauld sobre a percepção aproxima-se da interpretação que se defenderá no

último capítulo acerca da teoria cartesiana da percepção. E nessa perspectiva, Arnauld poderia

ser tomado como aquele que elabora melhor os elementos envolvidos na teoria de Descartes.

Entretanto, como se verá na sequência, é preciso considerar com mais atenção um aspecto

ressaltado por autores que entendem a posição de Arnauld como um realismo direto. Com isso

pretende-se jogar luz sobre uma questão acerca do significado da redução da noção de ideia,

como conteúdo representativo, à noção de ato mental que não pode ser ignorado, mesmo

quando a interpretação de Arnauld como representacionalista parece muito convincente.

Assim sendo, a leitura apresentada até aqui corrobora a admissão de um

representacionalismo em Arnauld. Entretanto, há autores que leem toda a passagem que foi

discutida do capítulo seis de VFI como indicando apenas uma tentativa arnaldiana de conciliar

sua teoria da percepção com um vocabulário representacionalista de uso corrente entre os

cartesianos. Mas para esses autores o que Arnauld faz é demonstrar uma trivialidade na

conciliação dessa forma representacionalista de falar com o que seria sua perspectiva realista

direta. A trivialidade estaria presente porque o que Arnauld diria em toda essa passagem é que

a percepção das coisas é mediada pela percepção que se tem das coisas. Há aspectos presentes

em toda a argumentação, exposta até aqui, em defesa do representacionalismo na teoria da

percepção de Arnauld que são interpretados ou ressaltados de um outro modo por alguns

defensores do realismo direto. Notadamente, aspectos que dizem respeito a passagens em que

Arnauld define ideia e percepção como o mesmo tipo de modificação mental, e também a

consideração do papel central da ideia, ou percepção, no processo perceptivo (visto acima como

sendo uma importante fonte para a defesa do representacionalismo de Arnauld). Para esses

realistas diretos, a definição da ideia-percepção como um único modo mental implica que essa

modificação mental trata-se de um ato e não de um conteúdo mental (como supõe, de certa

maneira, Lovejoy e Moreau), de modo que reforçar o papel central da ideia no processo

perceptivo, a saber, afirmar que a percepção das coisas se realiza através das ideias, seria apenas

uma constatação trivial de Arnauld de que as coisas são percebidas necessariamente por meio

de um ato mental, que é a percepção.

Segundo a interpretação de Kim Sang Ong-Van-Cung em “L’objet de nos pensées:

Descartes et l’intentionnalité” (2012, p. 205-206), o que Arnauld pretende frisar – na

passagem em questão, na qual ele reforça que é pelas ideias que as coisas são concebidas – não

é que a ideia seja o objeto da percepção, no sentido de ser um intermediário entre a mente e a

Page 163: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

163

coisa percebida, mas sim que ela é a percepção pela qual uma coisa é percebida. Dessa forma,

a ideia, que em sentido habitual, para Arnauld, não é realmente distinta da percepção, constitui

apenas o ato pelo qual a mente percebe alguma coisa. Em resumo, a ênfase de Arnauld na

centralidade da ideia no processo perceptivo vista no capítulo seis de VFI teria apenas a função

de esclarecer que isso não significa nada além de que é pela ideia, ou percepção, que se tem

ideia, ou percepção, de alguma coisa – não havendo, portanto, nenhuma defesa de que a

percepção seja intermediada por alguma coisa, mas, ao contrário, uma explicitação de que a

percepção das coisas se dá diretamente:

A percepção do espírito é, no sentido ordinário do termo, direta. Mas pode-se dizer

das ideias, ou percepções, no entanto, que elas são os meios de perceber os objetos

externos, mas não no sentido em que existiria um meio intermediário entre nossas

percepções e o objeto, pois as ideias não são aquilo que percebemos, mas as

percepções pelas quais nós percebemos as coisas físicas (ONG-VAN-CUNG, 2012,

p. 205-206)209.

Essa interpretação de Ong-Van-Cung dialoga com a leitura de Steven Nadler em

“Arnauld and the Cartesian philosophy of ideias” (1989, p.108-115), que, de forma mais

desenvolvida, procura mostrar o caráter trivial da afirmação arnaldiana de que é por meio das

ideias que as coisas são percebidas, concebidas, vistas etc. Segundo Nadler, dada a rejeição de

Arnauld da existência de uma terceira entidade entre a mente que percebe e a coisa percebida;

e dada a definição de ideia como constituindo o mesmo modo mental que a percepção – o que,

segundo Nadler, significa que a ideia é, para Arnauld, idêntica ao ato de perceber –, é preciso

concluir que as únicas coisas envolvidas na percepção são a mente e a coisa percebida, de modo

que não há nada que medeie o processo perceptivo. É essa lógica de interpretação do processo

perceptivo do ponto de vista das substâncias envolvidas nele (bem explícita em Nadler) que foi

apontada por Moreau (como visto anteriormente nessa seção) como constante da interpretação

realista direta feita da teoria da percepção de Arnauld. Entretanto, é preciso que se diga que, o

que é destaque nessa interpretação não é o suposto esquecimento (proposital ou não) das

distinções modais constituintes da substância pensante, como parece ser para a interpretação de

Moreau acerca da interpretação realista direta. Mas sim, o fato de, para Nadler, a distinção

modal entre a mente e a ideia, ou percepção, não acrescentar nada a mais ao processo

209 « La perception de l’esprit est, au sens ordinaire du terme, directe. Mais on peut dire néanmoins des idées, ou perceptions, qu’elles sont les moyens de percevoir les objets externes, mais non au sens où il existerait un milieu intermédiaire entre nos perceptions et l’objet, car les idées ne sont pas ce que nous percevons, mais les perceptions par lesquelles nous percevons les choses physiques » (ONG-VAN-CUNG, 2012, p. 205-206).

Page 164: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

164

perceptivo, como é sugerido tanto por Moreau quanto por Lovejoy – para quem a ideia se trata

de um modo mental que, ao envolver um conteúdo representativo, incrementa o processo

perceptivo, que se volta para esse conteúdo como o objeto imediato da percepção. Como Nadler

compreende que a definição de ideia feita por Arnauld acaba por conferir a ela o status de ato

mental, é necessário concluir, segundo ele, que ao dizer que as coisas são vistas por meio das

ideias, Arnauld está apenas dizendo que a mente percebe as coisas através do ato de ter ideias,

o que significa, em última instância, perceber, isto é, que a mente percebe as coisas através do

ato da percepção. Não há nesse contexto uma defesa de que as ideias são objetos imediatos da

percepção, mas apenas a observação de que elas são a via pela qual a mente percebe as coisas210.

Nesse sentido, não sobra espaço na interpretação de Nadler para considerar as ideias,

em nenhum sentido, como conteúdos mentais, o que, segundo ele, é feito por Lovejoy. Nadler

(1989, p. 111) afirma que, ainda que Lovejoy reconheça que ideia e percepção são uma única e

mesma modificação mental, Lovejoy toma ideia-percepção como sendo um conteúdo

percebido. E, dessa maneira, segundo Nadler, ele mantém, mesmo sem se dar conta, um

dualismo, uma distinção, entre o ato mental de perceber e conteúdo mental percebido que,

compreende-se aqui, seria uma espécie de reprodução da estrutura da teoria da percepção

malebranchista a que Arnauld visa atacar. Entende-se aqui que a crítica de Nadler pretende

mostrar que a aceitação de que o fenômeno mental da percepção envolve um ato mental e um

conteúdo mental (que é distinto do ato) é incompatível com a compreensão de Arnauld de que

não há ideias separadas da percepção. Sendo a ideia idêntica à percepção, não há distinção no

processo perceptivo entre ato mental de perceber e conteúdo mental percebido e, por isso, o que

é percebido não é um intermediário, mas a coisa mesma.

O que é central na interpretação de Nadler é a consideração de que as definições de

Arnauld acerca do que é a ideia impedem a consideração delas como objetos, ou como

conteúdos, pois elas são definidas como atos da mente. E enquanto atos, as ideias simplesmente

seriam o caminho, a via pela qual a mente percebe alguma coisa, independentemente de

intermediários tais quais conteúdos ou objetos mentais – que dirá seres representativos ao estilo

dos de Malebranche. Eis aí uma interpretação favorável a uma compreensão realista direta de

Arnauld que está baseada numa compreensão de que as ideias, ou percepção, são

exclusivamente atos mentais que captam ou apreendem imediatamente as coisas externas.

Interpretação essa que, ainda que não demonstre completamente a falsidade da leitura

representacionalista de Arnauld, impõe-lhe um grave problema, que é o de exigir dela uma

210 Cf.: NADLER, 1989, p. 113-114.

Page 165: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

165

explicação satisfatória para a concepção representacionalista diante da concepção arnaldiana

de que o processo perceptivo não envolve a dicotomia entre percepção, como ato, e ideia, como

conteúdo.

À guisa de conclusão, é necessário realizar alguns comentários acerca do que foi

discutido. Em primeiro lugar, não se pretende aqui responder definitivamente a questão sobre

se a crítica aos seres representativos de Malebranche implica uma adesão a um realismo direto

por parte de Arnauld. O que se quis frisar com mais cuidado é que existem elementos fortes no

texto arnaldiano que indicam um projeto de crítica à noção malebranchista de que a percepção

necessariamente envolve determinadas entidades representativas realmente distintas da mente

e das coisas externas, que estão em Deus e que, por esse motivo, a percepção está fadada a um

representacionalismo radial. Ao longo do capítulo foi vista a argumentação de Arnauld que

pretende debelar tal compreensão ao demonstrar que ela pressupõe princípios falsos e provoca

consequências absurdas. O tipo de representacionalismo que a admissão desses entes

representativos de Malebranche suscita é uma consequência absurda que é vislumbrada e

fortemente combatida por Arnauld, como visto na seção anterior. Entretanto, não há uma visão

tácita de que, em seu trabalho, Arnauld esteja procurando desmontar toda e qualquer

compreensão representacionalista da percepção, haja visto toda a discussão presente no capítulo

seis de VFI, e comentada aqui, acerca da suposta não imediaticidade da percepção das coisas

externas, o que subsidia a interpretação de que Arnauld põe-se contra o representacionalismo

malebranchista, mas admite um mais moderado. Entretanto, não é prudente esquecer-se da

leitura realista direta que, ao focar na identidade entre percepção e ideia, é capaz de ler as

passagens sobre a presumida mediação da percepção das coisas externas pelas ideias como uma

constatação simples de que essa percepção se dá pela percepção das coisas (uma vez que

perceber é ter ideias). De forma que esse vocabulário representacionalista tratar-se-ia apenas de

um modo de falar que poderia e deveria ser compreendido adequadamente tendo em vista as

definições acerca do que é a ideia realizadas no capítulo cinco de VFI.

Assim, diante dessas possibilidades interpretativas, entende-se aqui que é preciso

destacar o seguinte: tanto a leitura representacionalista, quanto a leitura realista direta da teoria

da percepção de Arnauld parecem envolver problemas relativos ao conceito cartesiano de

realidade objetiva das ideias, que é fundamental para a teoria cartesiana da percepção, à medida

que as duas posições precisam lidar com a compreensão arnaldiana de que a ideia e a percepção

são o mesmo modo mental indistinto, o que permite que se considere que Arnauld promove

Page 166: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

166

uma redução do conteúdo representativo ao ato perceptivo211. O que se quer comentar nesse

momento é que a maneira como Arnauld posiciona-se na crítica que faz a Malebranche abre

margem para se interpretar que ele negligencia a noção cartesiana em questão. Isso porque o

seu objetivo de negar a tese malebranchista de que o conteúdo representativo percebido pela

mente seja uma terceira entidade no processo perceptivo (que é realmente distinta e

independente tanto das operações da mente, quanto das coisas externas) acaba por conduzi-lo

a uma definição de ideia que a reduz à mera operação da mente (quando afirma que a ideia e

percepção são a mesma modificação mental). Nesse sentido, é parte do objetivo de Arnauld na

sua crítica a Malebranche demonstrar que a ideia não é distinta da percepção, que se trata de

uma única operação mental capaz de apresentar à mente alguma coisa como objeto percebido.

Dito de outro modo, se Arnauld opera uma redução da noção de ideia – tradicionalmente

entendida como conteúdo representativo, pelo menos desde Descartes – a um ato de percepção

da mente; e isso é feito em função de sua crítica a Malebranche, que em sua teoria da percepção

radicalizou a noção de ideia como conteúdo representativo e deu-lhe um status de

independência da mente; como a teoria da percepção de Arnauld, pretenso intérprete que

melhor teria entendido Descartes, pode ser lida relativamente ao conceito cartesiano de

realidade objetiva das ideias? Como visto no capítulo 1 (a aprofundar-se mais no próximo

capítulo), o conceito de realidade objetiva parece ser a defesa cartesiana de que o processo

perceptivo é composto por um certo tipo de ato mental ambíguo cuja função é determinar um

conteúdo como objeto na mente que possui uma realidade típica das coisas enquanto elas são

pensadas. A redução da ideia ao ato de perceber proposta por Arnauld significa a redução do

conteúdo ao ato de tal forma que o tom da identificação ideia-percepção parece deixar pouca

margem para sugerir que, mesmo enquanto ato mental, o processo perceptivo envolva a

dicotomia ato-conteúdo.

Ainda que realistas diretos e representacionalistas tenham produzido interpretações

distintas para essa perspectiva arnaldiana da identificação ideia-percepção, todas elas devem

produzir uma explicação capaz de conjugar o conteúdo percebido (aquilo que é percebido) com

a noção de ideia como ato mental, isto é, noção essa que parece abolir, nas modificações

mentais, a dualidade de um ato que apreende um conteúdo. A princípio, a posição realista direta

pode aceitar que esse conteúdo percebido seja redutível à coisa externa percebida, respeitando,

dessa forma, a rejeição de Arnauld de que no campo da percepção a ideia seja alguma coisa

211 « […] [perception et idée] ne sont point deux entités différentes, mais une même modification de notre âme […] »

Page 167: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

167

distinta da percepção, como, por exemplo, um objeto mental. E a posição representacionalista

tem de dar conta de como esse conteúdo representado não se configura num objeto mental

distinto do próprio ato perceptivo.

Seja da maneira como for, o que se apresenta como problemático é se Arnauld é capaz

de – ao rejeitar a teoria da percepção de Malebranche212 reduzindo a dicotomia entre o ato

mental de percepção que envolve um conteúdo distinto dele a uma única modificação da mente,

a um único ato que se refere a alguma coisa como percebida – apresentar uma interpretação

adequada do conceito de realidade objetiva das ideias empregado por Descartes. Se esse

conceito fala sobre a maneira de ser de um objeto apresentado na consciência por um ato mental

que o determina, trata-se, portanto, de um conceito que aparentemente conjuga justamente

aquilo que Arnauld parece querer evitar, que é a relação dual entre um ato mental perceptivo

que envolve um conteúdo representativo, que no caso cartesiano, pode-se dizer, existe

objetivamente na mente.

Sendo assim, é legítimo considerar Arnauld como aquele que melhor leu, interpretou e

desenvolveu a teoria cartesiana da percepção? É possível refletir sobre como a teoria da

percepção de Arnauld pode ser considerada uma boa interpretação da teoria cartesiana se for

lida pela ótica representacionalista moderada213. Entretanto, como já aventado, essa leitura

precisa dar conta do status da identificação entre ideia e percepção operado por Arnauld. Nesse

sentido, considerando que essa dificuldade aponta para uma espécie de negligência arnaldiana

com o conceito cartesiano de realidade objetiva, considera-se aqui, pelo menos por ora, que a

filosofia de Arnauld, tal como a de Malebranche, não é a melhor, ou a mais definitiva,

interpretação da teoria cartesiana da percepção. Tendo isso em vista, o capítulo seguinte, o

último dessa tese, retornará a Descartes com o objetivo de desenvolver uma interpretação acerca

212 É legítimo interpretar o trabalho de Malebranche como uma tentativa de solucionar determinados problemas vislumbrados pelo autor na teoria cartesiana da percepção, que comporta em si uma ambiguidade à medida que é pensada por Descartes como se tratando de uma modificação mental representativa de conteúdos para a consciência chamados de realidades objetivas. Para Malebranche, compreender que a mente possua modos representativos de coisas externas a si mesma é um problema no que diz respeito à teoria da percepção. Segundo ele, esses conteúdos representados no pensamento não podem ser modificações mentais se eles representam algo de externo à, ou diferente da, mente. Isso porque as modificações mentais reduzem-se a meras operações mentais capazes apenas de exibir estados da própria mente. Do que se trata, então, a percepção das coisas externas realizada pela mente? Em função da diferença de tipo ontológico entre a mente e as coisas materiais, esses conteúdos exibidos na mente também não podem ser as coisas externas criadas por Deus. Sendo assim, Malebranche conclui que esses conteúdos percebidos devem ser entidades representativas distintas tanto das operações mentais, quanto das coisas externas que estão em Deus e é por ele disponibilizado para a percepção realizada pelas mentes finitas. Cf.: capítulo 2. 213 Como já apontado, a perspectiva representacionalista moderada considerada nesse capítulo é a que mais se aproxima da interpretação que se desenvolverá no capítulo 4 acerca da teoria cartesiana da percepção.

Page 168: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

168

das noções de ser objetivo e de realidade objetiva que sejam subsidiárias de uma compreensão

mais clara dos caminhos para uma interpretação da teoria cartesiana da percepção.

Page 169: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

169

4 DESCARTES: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA

TEORIA DA PERCEPÇÃO

Ao final do último capítulo foi sugerido que os esforços argumentativos de Arnauld

contra a teoria malebranchista da percepção conduziram-no à operação de uma redução radical

da noção de ideia como conteúdo mental à noção de percepção como ato mental. Essa redução,

como visto, indica como objetivo o encerramento da dicotomia ato-conteúdo na teoria da

percepção a fim de debelar os pontos que dão margem à construção de uma teoria como a de

Malebranche, que considera que enquanto conteúdo representativo as ideias jamais poderiam

ser resultado de operações mentais, sendo, portanto, independentes e realmente distintas dessas

operações. Ora, segundo a leitura sugerida ao final do capítulo 3, para evitar a consequência

malebranchista, Arnauld procura mostrar que ter a ideia de um objeto é nada além de percebê-

lo, isto é, a ideia consiste no ato mental de apreensão da coisa percebida, de tal modo que, como

consequência disso, não haveria lugar para se considerar que o processo perceptivo (intelectual)

envolva o par ato mental de perceber e conteúdo mental percebido.

Conforme foi discutido, é com base nessa interpretação que algumas leituras de caráter

realista direto da teoria da percepção de Arnauld são defendidas à medida que entendem, a

partir da identificação entre percepção e ideia, que entre a operação perceptiva da mente e a

coisa percebida não haveria uma terceira coisa intermediária: só haveria o ato mental e a coisa

mesma percebida. O objetivo aqui não é dar adesão definitiva à interpretação realista direta,

mas apenas mostrar que a identificação da ideia com a percepção sugere fortemente que

Arnauld ignora um aspecto tradicionalmente vinculado à ideia, a saber, que ela é, para dizer o

mínimo, também um conteúdo mental. E, nesse sentido, Arnauld acaba por negligenciar um

ponto muito significativo para a teoria da percepção cartesiana, que se relaciona com as noções

de ser objetivo e de realidade objetiva – conceitos esses que exprimem as preocupações de

Descartes com o aspecto da ideia enquanto conteúdo mental representativo de alguma coisa

como objeto na consciência. Ao reduzir a ideia à mera operação mental, Arnauld parece

desconsiderar os esforços cartesianos para explicitar o que é a percepção, pois parece ignorar

que ela consiste numa operação que guarda em si mesma uma ambiguidade como uma marca

própria da sua natureza, ou como uma marca do tipo de ato mental em que ela consiste.

Investigar o que é essa operação ambígua do intelecto que envolve ato e conteúdo, o significado

das noções de ser objetivo e de realidade objetiva, o status ontológico dessas noções e sua

função no processo perceptivo é o objeto de estudo desse capítulo.

Page 170: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

170

4.1 Os conceitos de ser objetivo e de realidade objetiva da ideia

No primeiro capítulo, que versa, de maneira geral, sobre o tema da natureza e da

estrutura das ideias segundo Descartes, pôs-se em discussão a definição de ideia como imagem

das coisas enquanto exposição do caráter intencional da ideia. Viu-se que a intencionalidade da

ideia é dada pelo seu caráter representativo, que, apesar da analogia com a imagem, não guarda

nenhum sentido de reprodutibilidade imagética, tomando, dessa maneira, a noção de

representação como a exibição de um conteúdo não imagético no intelecto. Com isso, pode-se

dizer que a noção de representação possui um caráter primário, constitutivo, ligado àquilo que

é mais básico na ideia, que é apresentar alguma coisa como objeto para a mente. Na sequência

da análise do fenômeno da representação como exibição de um conteúdo no intelecto, fez-se

necessária a explicitação da caracterização cartesiana da estrutura das ideias. Tratou-se ali da

exposição do que a tradição dos estudos cartesianos chama de via cartesiana, ou seja, o modelo

analítico da natureza das ideias, segundo Descartes. As ideias são atos do pensamento que

envolvem um conteúdo apresentado ao intelecto como um objeto. Enquanto ato do pensamento,

todas as ideias possuem a mesma forma, são todas atos de representação; e enquanto conteúdo,

as ideias diferenciam-se umas das outras pelo objeto que exibem no intelecto. O ato

representativo constitutivamente envolve um conteúdo representado, e a análise proposta na via

cartesiana permite ressaltar um duplo aspecto presente nas ideias, uma ambuiguidade que em

realidade compõe o fenômeno mental da representação à medida que ele é simultaneamente um

ato da mente cuja função, ou resultado, é a determinação de um conteúdo na consciência.

Em resumo, a via cartesiana procura analisar a natureza e a estrutura das ideias a partir

das noções de realidade material, de realidade formal e de realidade objetiva. Essas noções

permitem compreender o que são as ideias enquanto um fenômeno mental representativo de

objetos e quais são suas especificidades na teoria cartesiana. Ao mesmo tempo que as noções

de realidade material e formal das ideias têm por função explicitar que elas tratam-se de um

tipo específico, uma forma particular de modificação mental (sendo isso que é mental a

“matéria” da ideia), essa forma particular de ato mental que é a ideia consiste na representação

de objetos para a mente, isto é, envolve um conteúdo intencional que aponta para algo de

diferente da própria operação intelectual e que, segundo Descartes, não consiste num mero

nada, como já dito no primeiro capítulo. Assim, a ideia é aquele tipo de ato da mente que diz

respeito, ou envolve, necessariamente (e é por isso que se trata de um tipo especial de operação

mental) a apresentação de um conteúdo na consciência como objeto. Esse conteúdo

representado pela ideia é apontado por Descartes como uma realidade objetiva.

Page 171: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

171

Nesse contexto, a concepção das ideias como um certo tipo de ato mental, isto é, como

uma modificação mental específica cuja função é apresentar um conteúdo como objeto para a

consciência expõe, como anunciado anteriormente, aquele que constitui um significativo

problema acerca da teoria cartesiana das ideias e da percepção, a saber, o seu caráter dual, que

consiste em ser ao mesmo tempo um evento mental que é simultaneamente uma operação da

mente e um conteúdo intencional portador de grau de realidade, para Descartes. É importante

nesse momento retomar – para enfatizar apropriadamente, já que se trata do cerne da questão –

que a exposição cartesiana do duplo aspecto da ideia apresenta a noção de conteúdo exibido

como real, como uma realidade objetiva, que se traduz como a maneira de ser da coisa enquanto

pensada. A noção de realidade objetiva do conteúdo representativo das ideias é introduzida por

Descartes à medida que esse conteúdo não é considerado por ele um “puro nada” (AT VII, 103;

AT IX, 82), pois não se constitui uma mera denominação extrínseca da coisa percebida, segundo

Descartes responde a Caterus, mas apresenta ao intelecto graus de realidade que obedecem à

hierarquia própria à ontologia cartesiana na qual substâncias possuem mais grau de realidade

que seus modos.

Como visto nos capítulos segundo e terceiro, a ambiguidade da noção de ideia na teoria

cartesiana é objeto de uma intensa disputa teórica entre Malebranche e Arnauld que, segundo a

interpretação apresentada aqui, diz respeito à tentativa de ambos de oferecer uma interpretação

do que é a percepção, em especial no que diz respeito à concepção de ideia enquanto um

conteúdo determinado no pensamento, que sanasse os problemas por eles observados nessa

matéria. Dessa forma, Malebranche propõe uma reinterpretação, a seu modo, da teoria

cartesiana das ideias que o leva a concebê-las como entes, ou objetos, representativos

independentes da mente porque ele pensa ser problemática a tese de que a representação de

objetos no intelecto possa ser resultado de uma operação mental. Isso significa que ele não

aceita (pelas razões já demonstradas no segundo capítulo) justamente a ambiguidade

reconhecida e defendida por Descartes de que a ideia é simultaneamente um ato mental de

representação de um objeto, em que esse objeto é, de certa maneira, dependente desse ato, isto

é, dependente de uma operação mental específica. Assim, compartilhando de pressupostos

cartesianos, Malebranche elabora uma outra teoria – historicamente conhecida como a teoria

da visão das ideias em Deus – como tentativa de solucionar aquilo que ele compreende como

problema na teoria de Descartes.

É importante ressaltar que, como o aspecto da ambiguidade da ideia que não é aceito

por Malebranche como ele foi pensado por Descartes é o de que atos mentais possam ser

Page 172: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

172

representativos de objetos, está-se falando propriamente da noção de realidade objetiva da ideia.

É essa concepção cartesiana que é o foco do problema e que Malebranche não aceita como

sendo dependente do pensamento à medida que nele só há modificações de sua própria natureza,

que é o pensamento sendo ora de uma maneira, ora de outra, isto é, modificações que apenas

expressam o que o pensamento é, e não uma exibição de alguma outra coisa distinta dele. Dessa

forma, para Malebranche, o aspecto representativo, ligado à realidade objetiva da ideia, não

pode ser explicado por operações da mente e, por isso, porque é um outro distinto do intelecto,

é preciso concebê-lo como, atribui-lo a, algo externo e independente da mente, o que leva

Malebranche a cunhar sua noção de ideia como um ente representativo distinto das operações

mentais e cujo lugar é Deus. Como visto, essa interpretação malebranchista provoca uma reação

de Arnauld que gira em torno da proposição de uma interpretação sobre a teoria cartesiana das

ideias cujo objetivo é corrigir sua ambuiguidade característica, de modo a evitar a leitura

malebranchista, o que, sugeriu-se aqui, termina por esvaziar, de certa maneira, a noção

cartesiana de realidade objetiva da ideia.

Passa-se nesse momento à recuperação das concepções cartesianas de ideia, de ser

objetivo e de realidade objetiva, bem como da discussão em torno delas, já apresentada no

primeiro capítulo, com o intuito de retomar uma leitura do argumento cartesiano em favor da

concepção de que o ser objetivo das ideias é alguma coisa que existe e tem realidade objetiva

no pensamento. A partir dessa reapresentação, pretende-se avançar uma argumentação mais

robusta em favor de certa autonomia ontológica do ser objetivo na teoria cartesiana da

percepção. A finalidade disso é apresentar uma interpretação sobre em que medida a ideia pode

ser um determinado tipo de ato mental que exibe como objeto algum conteúdo para o intelecto

que tem grau de realidade objetiva, isto é, que é alguma coisa de irredutível e relativamente

independente do ato mental representativo..

A questão que se pretende enfrentar nesse momento visa a retomar e esclarecer as

noções de ser objetivo e de realidade objetiva na filosofia de Descartes com o objetivo de

oferecer uma explicação sobre o sentido em que o objeto percebido, pensado, exibido na

consciência é dependente da mente, por um lado, e, no entanto, não se reduz à mente, por outro

lado. Como se verá mais detalhadamente, a hipótese é de que o ser objetivo é uma espécie de

objeto representativo, que é determinado na mente pelo ato perceptivo, ainda que ele guarde

certa autonomia ontológica em relação ao ato da mente que o exibe. Para compreender o sentido

dessa hipótese cabe, então, explicar em que medida um ato do intelecto pode ser representativo

de coisas distintas dele, bem como esclarecer como o ser objetivo, determinado por um ato da

Page 173: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

173

mente, consiste numa realidade no pensamento que o difere, de algum modo, do próprio ato.

Com isso, pretende-se mostrar porque a interpretação malebranchista da percepção é

desnecessária do ponto de vista cartesiano, bem como apontar que a leitura de Arnauld

enfraquece a teoria da percepção de Descartes ao sugerir um reducionismo do conteúdo

representativo ao ato de representação, o que pode levar a uma interpretação realista direta da

percepção.

A discussão de Descartes com Caterus (AT VII, 91-12; AT IX, 73-95) acerca da noção

da realidade objetiva dos objetos no pensamento traz para a teoria cartesiana das ideias a

necessidade de elaboração e de esclarecimento da noção de ser objetivo, que precisa ser

investigada fundamentalmente segundo seu status ontológico a fim de que se torne

compreensível o papel que ele ocupa no processo perceptivo. Essa necessidade é fruto do

reconhecimento do tratamento dado a essa questão nos textos da referida discussão, que atribui

sentido ontológico à noção de ser objetivo que não se quer aqui ignorar. Além disso, considera-

se, como ficará mais claro, que o aspecto ontológico ligado a esse debate é fundamental para a

compreensão do sistema cartesiano como ele é desenvolvido principalmente nas Meditações.

Dessa forma, é preciso esclarecer o que é exatamente a natureza do ser objetivo para

Descartes, que, como visto até agora, aparentemente não consiste nem em afecções puras do

sujeito, nem numa mera denominação, dado que possui realidade irredutível às operações do

pensamento, nem num ente representativo independente da mente, já que consiste numa

modificação mental. Nas respostas a Caterus, apresentada de forma geral no primeiro capítulo

dessa tese, Descartes214 concentra-se em esclarecer que a ideia envolve um ser objetivo que não

se restringe ao resultado, ao término de uma operação do intelecto tal como um objeto, que

começa e termina como uma mera operação mental. Descartes defende que o ser objetivo é a

coisa mesma enquanto pensada, isto é, a coisa existindo objetivamente no pensamento, que é a

maneira como as coisas costumam ser no pensamento quando são pensadas. Como foi visto

mais detidamente na exposição da discussão em questão feita no primeiro capítulo, o texto de

Descartes sugere que ao tratar do tema da aplicação do princípio de causalidade ao ser objetivo

é preciso considerá-lo não no que diz respeito ao ato mental, ou à realidade formal da ideia, isto

é, a ideia tomada como um determinado tipo de operação da mente que tem por função exibir

um conteúdo como objeto – o que, aparentemente, consiste na compreensão de Caterus sobre

o que pensa Descartes –, mas sim no que concerne à ideia como um conteúdo representativo,

214 Cf. AT VII,102-104; AT IX, 81-83.

Page 174: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

174

um objeto determinado na mente, que em razão daquilo que exibe diferencia-se das demais

ideias:

E aqui ser objetivamente no intelecto não significará o término de uma operação do

entendimento à maneira de um objeto, mas sim estar no entendimento da maneira

como seus objetos estão normalmente lá; de tal maneira que a ideia do sol é o sol

mesmo existindo no entendimento; é certo que não existindo formalmente, como ele

está nos céus, mas existindo objetivamente, isto é, da maneira como os objetos

costumam existir no entendimento [...] (AT VII, 102)215.

Nesse contexto, o que Descartes faz é ressaltar que tendo em vista seu caráter

representativo, isto é, enquanto um conteúdo específico representado, o ser objetivo da ideia é

alguma coisa que é na mente algo para além de uma simples operação à medida que se configura

como um determinado objeto diferente do sujeito, isto é, ele é capaz de uma diferenciação que

parece escapar ao fato de ser o resultado de uma operação mental que apenas apresenta aquilo

que o sujeito é. O fato de que a ideia seja de x ou de y, segundo Descartes, requer uma explicação

acerca do seu ser objetivo que exceda o ato mental a ele ligado porque não consiste em alguma

coisa que é meramente relativa à mente, ou é um ser de razão, ou uma afecção; mas sim trata-

se de um objeto determinado, uma coisa representada de tal maneira no pensamento que não

pode ser considerado um “puro nada”. Dito de outra maneira, segundo Descartes, o ser objetivo

é uma coisa real à medida que constitui um objeto na consciência irredutível à mera operação

do pensamento: como o conteúdo exibido pelo ato de perceber alguma coisa não se reduz ao

mero ato, esse conteúdo trata-se, ele mesmo, de um objeto para o pensamento que em si mesmo

é real. Isso porque o que ele é não pode ser explicado ou reduzido às operações do pensamento

à medida que consiste na exibição, no pensamento, de alguma coisa que é diferente do próprio

pensamento, no sentido de ser distinto de suas operações – e, por isso, é algo que em si é, de

certa forma, distinto e independente do referido ato de pensamento. O ser objetivo é a

conformação na consciência de um ‘outro’ diante da consciência, um objeto com suas

propriedades e características e que nessa condição necessariamente aponta para, faz referência

a, alguma coisa que não é o próprio pensamento. Dessa forma, se o ser objetivo é uma coisa

215 « Et là être objectivement dans l’entendement ne signifiera pas terminer son opération à la façon d’un objet, mais bien être dans l’entendement en la manière que ses objets ont coutume d’y être ; en telle sorte que l’idée du soleil est le soleil même existant dans l’entendement, non pas à la vérité formellement, comme il est au ciel, mais objectivement, c’est-à-dire en la manière que les objets ont coutume d’exister dans l’entendement […] » (AT IX, 81-82).

Page 175: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

175

que não se reduz aos atos do pensamento, trata-se de alguma coisa que existe no pensamento,

refere-se a uma realidade no pensamento e, enquanto tal, é plausível admitir que ele possua

graus de realidade, e, por conta disso, não é um “puro nada”. É preciso que se reforce que ao

tratar do conceito de ser objetivo como uma realidade no pensamento, Descartes busca enfatizar

que ele se trata de objetos representados que são coisas ou entidades reais que estão

objetivamente no pensamento, isto é, estão lá enquanto são representadas no intelecto. É isso

que Descartes quer assinalar quando afirma que a realidade objetiva da ideia é “a entidade ou

o ser da coisa representada pela ideia, na medida em que tal entidade está na ideia [...]” (AT

VII, 161; CP, 179)216.

Segundo Raul Landim no artigo “Ideia, ser objetivo e realidade objetiva nas

‘Meditações’ de Descartes” (2014, p.675-676), a argumentação em favor de que a noção de

ser objetivo consiste em objetos reais no pensamento porque são representação de coisas

determinadas na mente, que dela se diferenciam e, nesse sentido, não se reduzem às operações

da própria mente não é suficiente para convencer um objetor como Caterus acerca do tipo de

realidade particular que o ser objetivo possui no pensamento. Isso porque a noção de ser

objetivo como a exibição de um conteúdo como objeto para a consciência pode admitir que

seres de razão – que podem ser considerados um puro nada à medida que não possuem nenhum

tipo de realidade atual217 – sejam considerados seres objetivos conforme exibem alguma coisa

como objeto para o pensamento. Nesse caso, ser objetivo condiz com o objeto exibido no

pensamento, entendido como uma espécie de rótulo designador de alguma coisa, um ser de

razão, e não tem necessariamente, em função disso, realidade objetiva218.

Assim, entende-se que, para além de explicitar que o ser objetivo é o objeto apresentado

na ideia, como a argumentação inicialmente proposta faz, é preciso explicar em que medida o

ser objetivo não se reduz de fato às operações da mente, se a finalidade é defender que ele se

trata de uma entidade real no pensamento. Essa necessidade se coloca porque definir o ser

objetivo como o objeto apresentado à consciência pela ideia não evita que eles sejam tomados

como meros seres de razão, já que, como visto, esses últimos também podem ser tomados como

ser objetivo quando constituem objetos de ideias. O que se quer chamar atenção aqui é que o

216 « […] l’entité ou l’être de la chose représentée par l’idée, en tant que cette entité est dans l’idée […] » (AT IX, 124). 217 Considera-se aqui que o tipo de realidade própria dos seres objetivos que é defendido por Descartes, a saber, a realidade objetiva concernente ao conteúdo das ideias, é um tipo de realidade atual no pensamento. 218 Landim (2014, p. 675) atribui a Eustachio de S. Paulo (Summa Philosophica Quadripartita de Rebus Dialecticis, Moralibus, Physicis et Metaphysicis, quarta parte, questão III, p. 17-20. Paris: Carolus Chastellain, 1609. 2 vol.) e também a Caietano (Comentarium super Opusculum De Ente et Essentia Thomae Aquinatis, c. IV, q. 7. Roma: Ex Pontificia Officina Typographica, 1907) a identificação do ser objetivo ao objeto do intelecto.

Page 176: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

176

fato de as ideias exibirem diferentes conteúdos como objetos no intelecto não legitima, apenas

por isso, a tese cartesiana de que elas não são um “puro nada”. É preciso um argumento

adicional para sustentar que o ser objetivo das ideias seja uma realidade objetiva no

pensamento.

Em função disso, Landim (2014, p. 677) aponta para o que ele considera ser um

argumento na Exposição Geométrica, axioma VI, em favor da tese de que o ser objetivo possui

diferentes graus de realidade objetiva. Segundo ele, Descartes aceita, sem contestação, a tese

de que há uma hierarquia ontológica de graus de realidade no que se refere às coisas formais

que vai do maior, o grau de realidade da substância infinita, ao menor, o grau de realidade dos

modos das substâncias finitas219. A partir disso, Descartes consideraria que é por essa razão que

as ideias que representam substâncias possuem mais graus de realidade que aquelas que

representam modos, pois, de alguma forma, a realidade das ideias é derivada da realidade das

coisas que elas representam:

Há diversos graus de realidade ou de entidade: pois a substância tem mais realidade

do que o acidente ou o modo, e a substância infinita mais do que a finita. Eis porque

também há mais realidade objetiva na ideia de substância do que na de acidente, e

mais na ideia de substância infinita do que na de substância finita (AT VII, 166-167;

CP, 182)220.

Há uma espécie de constatação não problematizada, que aparece na passagem da

Terceira Meditação que será citada abaixo, de que os objetos exibidos pelas ideias se

diferenciam entre si, e do próprio sujeito, em função dos graus de realidade que representam no

pensamento, sendo a ideia de substância infinita portadora de maior grau de realidade que a

ideia de um modo. Entretanto, no axioma VI da Exposição Geométrica citado acima, Descartes

parece oferecer uma razão que explica por que as ideias se distinguem de acordo com o grau de

realidade que exibem na consciência. Essa razão consiste em que as ideias retiram das

realidades formais o seu próprio grau de realidade objetiva. Assim, segundo Landim, na

Terceira Meditação Descartes parece apenas assinalar que a diferença entre as ideias se dá, não

apenas porque elas exibem objetos diferentes, mas porque elas possuem graus de realidade

219 É bom lembrar aqui que a ontologia cartesiana admite que tudo aquilo que é ou é substância infinita, isto é, Deus; ou é substância finita, a saber, coisa(s) pensante(s) e coisa(s) extensa(s); ou são modificações dessas substâncias. 220 « Il y a divers degrés de réalité ou d’entité : car la substance a plus de réalité que l’accident ou le mode, et la substance infinie que la finie. C’est pourquoi aussi il y a plus de réalité objective dans l’idée de la substance que dans celle de l’accident, et dans l’idée de la substance infinie que dans l’idée de la substance finie » (AT IX, 128).

Page 177: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

177

distintos no pensamento. Mas é no texto do referido axioma VI, que aparece a razão pela qual

as ideias possuem graus de realidade objetiva, a saber, porque se trata de uma realidade extraída

da realidade dos entes formais. Veja-se a citação da passagem da Terceira Meditação abaixo:

[...] considerando-as como imagens [...] é evidente que elas são bastante diferentes

entre si. Pois, com efeito, aquelas que me representam substâncias são, sem dúvida,

algo mais e contêm em si (por assim falar) mais realidade objetiva, isto é, participam,

por representação, em um maior número de graus de ser ou de perfeição do que

aquelas que representam modos ou acidentes (AT VII, 40; CP, 111, §15)221.

Pode-se conjecturar, no entanto, que a concepção de que o grau de realidade objetiva

das ideias é derivado do grau de realidade dos entes formais talvez já seja sugerida por Descartes

quando ele afirma que ter mais realidade objetiva é participar, enquanto representação, de mais

graus de ser (como na citação acima), isto é, é representar coisas mais complexas e completas

do ponto de vista ontológico. Todavia, no contexto da Terceira Meditação, isso torna-se

problemático porque as dúvidas com relação à existência e ao conhecimento das coisas externas

ao pensamento estão ainda vigentes, o que não permite considerar tal razão como justificativa

para a tese de que as ideias possuem graus de realidade objetiva. Trata-se, segundo Landim, de

um argumento que só pode ser válido após todo o percurso das Meditações, pois exige que a

dúvida acerca da existência das coisas externas e a dúvida metafísica já tenham sido superadas.

Entretanto, é preciso considerar aqui que, ainda que de posse de todas as respostas

fornecidas pelo sistema cartesiano, não parece plausível, assim como Landim sugere, que o fato

de haver uma hierarquia ontológica entre as coisas reais e existentes implique que as coisas

pensadas reproduzam entre si essa hierarquia. Isso porque não é claro, pelo que já foi

considerado até agora, que aquilo que é pensado, o ser objetivo das ideias, possua qualquer

realidade no pensamento para além de ser uma denominação exterior à coisa pensada. Justificar

o tipo de realidade que o ser objetivo tem enquanto é pensado é exatamente o cerne do problema

posto pelas considerações trabalhadas até esse momento. E não é uma suposta constatação a

posteriori de que as ideias reproduziriam em si a hierarquia de ser, constatada entre os entes

221 « […] les considérant comme des images […] il est évident qu’elles sont fort différentes les unes des autres. Car, en effet, celles qui me représentent des substances sont sans doute quelque chose de plus et contiennent en soi (pour ainsi parler) plus de réalité objective, c’est-à-dire participent par représentation à plus de degrés d’être ou de perfection, que celles qui me représentent seulement des modes ou accidents » (AT IX, 31-32).

Page 178: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

178

que possuem realidade formal, que pode servir de sustentação para a tese de que o ser objetivo

das ideias é alguma coisa que possui algum grau de realidade.

Pensa-se aqui ser necessário ainda um argumento que fundamente a tese de que o ser

objetivo possua realidade no pensamento. Pois, a plausibilidade do argumento de que o grau de

realidade das ideias é derivado do grau de realidade das coisas formais – e, por isso, há entre as

ideias a reprodução da hierarquia ontológica a que as coisas formais estão submetidas – só pode

ser válida se restar demonstrado que o ser objetivo exibido na ideia é alguma coisa de real no

pensamento e não um “puro nada”.

Ainda em acordo com Landim (2014, 679-680), pode-se encontrar na resposta de

Descartes a Caterus a sustentação para a concepção de que o ser objetivo possui realidade no

pensamento. Como visto, numa primeira análise das Respostas às Primeiras Objeções foi

considerado que o argumento cartesiano em favor da concepção em questão dizia respeito ao

fato de que o ser objetivo constituiria um objeto para o pensamento que, enquanto tal, seria a

representação de uma outra coisa diante da consciência que é distinta da própria consciência e,

por isso, irredutível a ela. Entretanto, como visto, esse argumento, por si só, não é suficiente

para justificar que os seres objetivos possuam um tipo de realidade específica no pensamento,

pois eles podem ser apenas uma denominação no intelecto, sem qualquer realidade atual, que

em nada acrescenta ou altera a coisa percebida. Tendo isso em vista, ao examinar mais

atentamente a resposta de Descartes a Caterus, pode-se afirmar que ela trata de uma distinção

de concepção do que são os modos de ser formal e objetivo a partir da qual se pode defender

que aquilo que é pensado é uma realidade no pensamento, ou seja, a consideração da distinção

entre os modos de ser formal e objetivo permite que se extraia dela uma argumentação em favor

da fatualidade da realidade objetiva do ser objetivo. Considere novamente a seguinte passagem

de Descartes,

[...] ser objetivamente não significa outra coisa além de ser no entendimento da

maneira como os objetos habitualmente são lá. Assim, por exemplo, se alguém

pergunta o que ocorre com o sol do fato de que ele está objetivamente no meu

entendimento, responde-se muito bem que nada ocorre com ele além de uma

denominação exterior, a saber, que ele termina como objeto a operação do meu

entendimento; mas se pergunta-se sobre a ideia do sol o que ela é, e responde-se que

se trata da coisa pensada enquanto ela está objetivamente no entendimento, ninguém

compreenderá que se trata do sol mesmo enquanto essa denominação exterior está

nele. E aqui ser objetivamente no intelecto não significará o término de uma operação

do entendimento à maneira de um objeto, mas sim estar no entendimento da maneira

como seus objetos estão normalmente lá; de tal maneira que a ideia do sol é o sol

Page 179: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

179

mesmo existindo no entendimento; é certo que não existindo formalmente, como ele

está nos céus, mas existindo objetivamente, isto é, da maneira como os objetos

costumam existir no entendimento [...] (AT VII, 102)222.

O trecho citado trata, entre outras coisas, de mencionada distinção entre o modo de ser

formal e o modo de ser objetivo, que é importante para sustentar que o ser objetivo tem realidade

no pensamento. Logo no início, Descartes esclarece que o ser objetivo diz respeito

exclusivamente a um ser típico das coisas do entendimento. E que, nesse sentido, é

absolutamente razoável considerá-lo uma denominação externa no que diz respeito àquilo que

tem realidade formal, ou que é uma coisa atual. É nesse sentido que Descartes se utiliza do

exemplo do sol para dizer que o sol enquanto pensado, isto é, a ideia do sol é apenas uma

espécie de rótulo externo ao sol atualmente existente, pois enquanto ideia ela não o afeta de

maneira nenhuma. Mais que isso, Descartes concorda que do ponto de vista do sol realmente

existente, a ideia é apenas o término de uma operação do intelecto como um objeto. Na mesma

linha, a ideia, quando considerada em si mesma como a coisa pensada que tem um modo de ser

objetivo no intelecto, também não é confundível com a coisa formal por ela representada. A

razão para essas considerações feitas por Descartes é explicitar que há uma distinção importante

a ser observada entre o modo de ser da coisa enquanto representada pela ideia e o modo de ser

da coisa na sua realidade formal. No tocante ao modo como as coisas estão no intelecto quando

são pensadas é necessário dizer que se trata de um modo diferente daquele que elas têm quando

existem atualmente porque entre eles há uma certa independência. Isso significa que a ideia de

alguma coisa não necessariamente depende, ou se explica, pela existência atual da coisa

representada, isto é, o ser objetivo nem sempre tem um correlato formal; bem como as coisas

atuais não dependem de nenhuma representação para serem o que são, isto é, as coisas não

222 « Être, dit- il, objectivement dans l’entendement, c’est terminer à la façon d’un objet l’acte de l’entendement, ce qui n’est qu’une dénomination extérieure, et qui n’ajoute rien de réel à la chose, etc. Où il faut remarquer qu’il a égard à la chose même, comme étant hors de l’entendement, au respect de laquelle c’est de vrai une dénomination extérieure, qu’elle soit objectivement dans l’entendement ; mais que je parle de l’idée, qui n’est jamais hors de l’entendement, et au respect de laquelle être objectivement ne signifie autre chose, qu’être dans l’entendement en la manière que les objets ont coutume d’y être. Ainsi, par exemple, si quelqu’un demande, qu’est-ce qu’il arrive au soleil de ce qu’il est objectivement dans mon entendement , on répond fort bien qu’il ne lui arrive rien qu’une dénomination extérieure, à savoir qu’il termine à la façon d’un objet l’opération de mon entendement ; mais si on demande de l’idée du soleil ce que c’est, et qu’on réponde que c’est la chose pensée, en tant qu’elle est objectivement dans l’entendement, personne n’entendra que c’est le soleil même, en tant que cette extérieure dénomination est en lui. Et là être objectivement dans l’entendement ne signifiera pas terminer son opération à la façon d’un objet, mais bien être dans l’entendement en la manière que ses objets ont coutume d’y être ; en telle sorte que l’idée du soleil est le soleil même existant dans l’entendement, non pas à la vérité formellement, comme il est au ciel, mais objectivement, c’est-à-dire en la manière que les objets ont coutume d’exister dans l’entendement […] » (AT IX, 81-82).

Page 180: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

180

precisam ser pensadas para ser. Trata-se aqui, em síntese, da caracterização de dois modos de

ser que guardam uma certa independência entre si, observada pela maneira como ser objetivo e

ser formal são alguma coisa a despeito de qualquer relação de subordinação causal, ou de

implicação epistemológica: o que é pensado não depende necessariamente de ter sido causado

por algo externo, e o que existe atualmente não precisa ser conhecido para ser o que é.

Todavia, além disso, a importante distinção mencionada anteriormente também trata de

uma certa autonomia do ser objetivo (desse modo de ser objetivo da coisa pensada) com relação

à realidade formal da própria ideia que o representa, isto é, com relação ao próprio ato de

pensamento que o exibe no intelecto. A parte final da citação se encarrega de anunciar isso

quando reforça que do ponto de vista do modo de ser objetivo, isto é, ao ser objetivamente,

aquilo que é pensado não significa uma operação do intelecto que assume a forma de um objeto,

mas sim uma presença no intelecto que tem um modo específico de ser próprio aos objetos

pensados. Trata-se portanto da consideração do ser objetivo para além da operação mental que

o exibe na consciência, mais que como uma denominação externa do ente formal, mas como

um conteúdo que tem um modo de ser particular no pensamento.

O que está em jogo é mostrar que o modo de ser particular que o ser objetivo tem no

pensamento, quando considerado nele mesmo, não pode ser confundido ou assimilado pelo

modo de ser formal das próprias operações intelectuais porque, pelo menos em alguns casos, o

ser objetivo não se trata de um conteúdo que depende do pensamento. Está-se falando aqui

daquelas representações de objetos que possuem propriedades necessárias, como as ideias de

Deus e dos objetos matemáticos, que não são constituídas pelo pensamento, apesar de estarem

nele e serem nele exibidas como objetos. Ora, o ser objetivo deve ser considerado como

possuindo uma autonomia ontológica relativa ao ato mental que o exibe, isto é, deve ser tomado

como uma realidade particular no pensamento porque se trata de um modo de ser na mente que

é irredutível à mente, não apenas porque é a exibição de um objeto, mas porque pode ser alguma

coisa que está na mente independentemente de ser por ela constituído. Assim, diante das

limitações da mente tendo em vista a constituição de seres objetivos cujo modo de ser na

consciência extrapola as condições da mente de ser sua autora, é preciso concluir que eles

compõem alguma coisa, de certa maneira, autônoma com relação à mente e, por isso, possuem

um tipo próprio de realidade, que Descartes chama de objetiva.

A concepção cartesiana de que o ser objetivo possui realidade no intelecto é explicada,

desse modo, pelo fato de que se trata de alguma coisa que não é meramente um ser de razão,

elaborado exclusivamente pelo pensamento, ou por ele abstraído, mas sim é a exibição de

Page 181: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

181

alguma coisa que é em si mesma uma realidade, com suas características próprias sobre as quais

o pensamento não tem nenhuma ingerência e, por esse motivo, não pode ser considerado a razão

do seu modo de ser próprio.

O trabalho de Ferdinand Alquié em um capítulo do livro “La découverte

métaphysique de l’homme chez Descartes” (1991, p. 201-217) acerca da realidade das ideias

corrobora essa interpretação acerca do sentido em que se pode afirmar que o conteúdo objetivo

das ideias é um tipo de realidade no pensamento. Alquié (1991, p. 201) considera que a doutrina

cartesiana das ideias acaba por expor três tipos de realidade admissíveis no contexto do sistema

cartesiano, a saber, a realidade da substância pensante, a realidade das coisas formais externas

ao pensamento e, também, a realidade da ideia tomada em si mesma, que é distinta das duas

outras. Nesse sentido, é possível afirmar que Alquié reconhece na teoria cartesiana que as

ideias, tomadas enquanto certos conteúdos representativos de coisas, são algo de real no

pensamento à medida que, assim tomadas, elas se diferenciam tanto do tipo de realidade

específica do pensamento, quanto do tipo de realidade própria das coisas externas. Enquanto

essas duas realidades constituem o modo de ser formal da substância pensante, por um lado, e

das coisas atualmente existentes, por outro lado; a realidade que é particular da ideia e que está

em jogo nessas considerações é a realidade objetiva que ela apresenta na consciência quando lá

exibe alguma coisa como objeto. Entretanto, Alquié procura oferecer uma razão para sustentar

sua interpretação. Segundo ele, o conteúdo apresentado pelas ideias no pensamento, pelo menos

alguns deles, apesar de estarem no pensamento, não são simples produtos das suas operações,

mas são alguma coisa que se impõe ao pensamento, de modo que são nele, de certo modo,

naturezas por si. Isso quer dizer que, a princípio, pelo menos determinadas ideias exibem

objetos de cujo o entendimento de sua definição o sujeito é apenas constrangido a reconhecer

quais são seus atributos e o que deles decorrem. São, nesse caso, objetos, como dito

anteriormente, sobre os quais o pensamento não tem nenhuma ingerência, isto é, não é

responsável por sua constituição. De modo que é legítimo compreendê-los como realidades, de

certa maneira, independentes em si mesmas.

É interessante apontar que o movimento argumentativo que permite a realização da

primeira prova da existência de Deus na Terceira Meditação pode ser entendido segundo essa

perspectiva acerca da realidade do conteúdo objetivo das ideias, anteriormente apresentada. E

nesse ponto, afasta-se aqui da leitura de Landim (2014, p. 680-681), pois entende-se, como se

verá, que a noção de que as coisas, enquanto pensadas, possuem realidade objetiva já aparece

elaborada na Terceira Meditação mais do que como algo assumido sem explicação. Assim,

Page 182: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

182

mesmo que na apresentação da via cartesiana de análise das ideias223 a concepção de que elas

exibem objetos que possuem grau de realidade objetiva, tal qual as coisas atuais possuem grau

de realidade formal, apareça como uma constatação não problematizada, a análise introspectiva

das ideias, realizada mais à frente, parece esclarecer o sentido em que as ideias possuem

realidade objetiva, isto é, são exibições de objetos como algo de real no pensamento. Quando

o meditador avalia de quais, entre suas ideias, ele não pode ser a razão do conteúdo, ele está

explicitando o sentido de realidade objetiva que, como se viu até aqui, torna-se mais claro na

resposta de Descartes a Caterus: a coisa pensada tem realidade objetiva à medida que consiste

em algo que não é redutível às operações do pensamento. Dessa forma, a realidade objetiva do

conteúdo das ideias deve-se ao fato de que o modo de ser desses conteúdos no pensamento não

depende, exclusivamente, do seu poder criador, ou operador: a realidade objetiva do conteúdo

das ideias é algo além de uma constituição mental que configura um objeto. Assim, ao analisar

o conteúdo exibido pela ideia de Deus, o meditador reconhece se tratar de algo cuja operação

representativa da mente não pode explicar o conteúdo, ou seja, de algo que não se explica pelo

mero pensamento e que, por isso, é alguma coisa de independente dele. Isso sugere, avalia-se

aqui, que na esteira da argumentação que culmina na prova da existência de Deus é explicitado

em que medida coisas pensadas têm realidade objetiva: quando se trata de um conteúdo que

não pode ser reduzido ou explicado pelo pensamento porque exibe um conjunto de propriedades

que se impõe a ele224. E, por fim, como a ideia de Deus exibe um conteúdo cujas propriedades

são perfeitas, necessárias e infinitas, a realidade objetiva desse conteúdo é de tal maneira

especial que não apenas o meditador reconhece que um determinado conteúdo no seu

pensamento é irredutível a ele, mas, além disso, que se trata de um conteúdo que só pode ser

explicado por uma realidade formal infinita, perfeita e necessária, como o Deus existente. O

exemplo da máquina complexa elaborado por Descartes na resposta a Caterus parece ilustrar

tal compreensão ligada à necessidade de se encontrar uma explicação para os conteúdos

objetivos (que no caso da ideia de Deus leva à prova da existência de Deus):

[...] se alguém tem na mente a ideia de alguma máquina muito artificial, pode-se, com

razão, perguntar qual é a causa dessa ideia. [...] Não será muito satisfatório também

223 Cf. AT VII, 40; CP, 111, §15. 224 É preciso que se aponte aqui a questão sobre se todas as ideias possuem ou não realidade objetiva. Considerando-se que o conceito de realidade objetiva em debate diz respeito aos graus de ser presentes no ser objetivo exibido por uma ideia na consciência quando esse ser objetivo apresenta alguma coisa como um conjunto de propriedades necessárias, é possível compreender que nem todas as ideias possuam realidade objetiva. No entanto, como se verá mais à frente no texto isso não significa defender que apenas as ideias de Deus e dos objetos matemáticos possuam realidade objetiva, pois é razoável conceber que ideias de coisas materiais também possuam-na à medida que são, no fim das contas, ideias que designam coisas independentes da mente – ainda que antes da prova da existência das coisas materiais não se possa saber disso.

Page 183: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

183

quem disser que é o entendimento mesmo a causa à medida que se trata de uma de

suas operações; pois não se duvida disso, mas somente se quer saber qual é a causa

desse artifício objetivo que está nela. Pois, que essa ideia contenha esse artifício

objetivo e não outro, isso se deve, sem dúvida, a alguma causa; e o que se aplica ao

artifício objetivo pertencente a essa ideia, também se aplica à realidade objetiva

pertencente à ideia de Deus (AT VII, 103-104)225.

É preciso, agora, apontar o que é propriamente o ser objetivo exibido pelas ideias e que

tem realidade objetiva à medida que não é redutível às operações do pensamento. A questão

nesse momento volta-se para uma explicação acerca da natureza do conteúdo das ideias. Qual

é o status ontológico do ser objetivo de uma ideia que apresenta para a mente um objeto com

propriedades determinadas que se impõem ao pensamento e, por isso, é irredutível à operação

mental que o exibe, como no caso da ideia de Deus e dos objetos matemáticos? Segundo o que

foi visto, justamente pelo seu caráter não dependente da mente é que se pode pensar o ser

objetivo como algo de real no pensamento. Entretanto, não se trata da própria coisa existindo

formalmente no intelecto, mas sim a coisa existindo objetivamente, isto é, segundo um modo

de ser que, apesar de diminuto e imperfeito, não é um “puro nada”. Aqui retoma-se a leitura de

Landim (2014, p. 681-682), em acordo com o que é sugerido por ele, para considerar a

plausibilidade de que esse conteúdo real exibido pela ideia, porque apresenta propriedades

necessárias que entram na composição de um objeto que é visado pela mente, relaciona-se com

as essências. Como aquilo que se deriva necessariamente da ideia de alguma coisa é próprio

dessa coisa, isto é, se da ideia de um objeto advém forçosamente uma propriedade, quando se

fala que o ser objetivo apresenta propriedades necessárias do objeto, fala-se, então, que o ser

objetivo exibe no intelecto a essência do objeto. É isso que faz do ser objetivo uma realidade

no pensamento, que, no entanto, é de certo modo autônoma, pois não depende dele para ser o

que é.

Essa interpretação de Landim é bastante alinhada com aquela apresentada por Alquié

(1991, p. 201-202). Como visto anteriormente, com o intuito de explicitar que a realidade que

as ideias têm no pensamento consiste num tipo específico distinto tanto da realidade do eu

225 « […] si quelqu’un a dans l’esprit l’idée de quelque machine fort artificielle, on peut avec raison demander quelle est la cause de cette idée […] Celui- là ne satisfera pas aussi, qui dira que l’entendement même en est la cause, en tant que c’est une de ses opérations ; car on ne doute point de cela, mais seulement on demande quelle est la cause de l’artifice objectif qui est en elle. Car que cette idée contienne un tel artifice objectif plutôt qu’un autre, elle doit sans doute avoir cela de quelque cause, et l’artifice objectif est la même chose au respect de cette idée, qu’au respect de l’idée de Dieu la réalité objective » (AT IX, 83).

Page 184: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

184

pensante, quanto da realidade das coisas externas ao pensamento, Alquié encontra na

irredutibilidade dos conteúdos das ideias às operações do pensamento a justificativa para o que

procurava. O fato de algumas ideias apresentarem objetos que se impõem ao pensamento

também encaminha Alquié para a interpretação de que esses objetos exibidos estejam

relacionados a essências à medida que tratam, na verdade, de um conjunto de propriedades

necessárias que designam alguma coisa sobre a qual o pensamento não pode intervir,

reorganizar, reconstruir porque isso seria transformar tanto o conteúdo representado, quanto a

coisa por ele designada. É por isso que Alquié faz referência à seguinte passagem da Quinta

Meditação para tratar do tema em questão, pois nela Descartes trata dessa noção de essência

como conjunto de propriedades determinadas que constituem uma natureza em si, independente

de qualquer constituição subjetiva:

[...] encontro em mim uma infinidade de ideias de certas coisas que não podem ser

consideradas um puro nada, embora talvez elas não tenham nenhuma existência fora

do meu pensamento, e que não são fingidas por mim, conquanto esteja em minha

liberdade pensá-las ou não pensá-las; mas elas possuem suas naturezas verdadeiras e

imutáveis. Como, por exemplo, quando imagino um triângulo, ainda que não haja

talvez em nenhum lugar do mundo, fora do meu pensamento, uma figura, e que nunca

tenha havido alguma, não deixa, entretanto, de haver uma certa natureza ou forma, ou

essência determinada, dessa figura, a qual é imutável e eterna, que eu não inventei

absolutamente e que não depende, de maneira alguma, de meu espírito; como parece,

pelo fato de que se pode demonstrar diversas propriedades desse triângulo [...] (AT

VII, 64; CP, 131-132, §5)226.

Tendo isso considerado, avalia-se nesse momento que a interpretação de que o ser

objetivo exibido pela ideia possui realidade no pensamento à medida que não é integralmente

dependente dele é corroborada pela própria definição de realidade objetiva realizada na

Exposição Geométrica constante das Respostas às Segundas Objeções. Lá Descartes diz: “pela

realidade objetiva de uma ideia, entendo a entidade ou o ser da coisa representada pela ideia,

na medida em que tal entidade está na ideia; e, da mesma maneira, pode-se dizer uma perfeição

226 « […] je trouve en moi une infinité d’idées de certaines choses, qui ne peuvent pas être estimées un pur néant, quoique peut-être elles n’aient aucune existence hors de ma pensée, et qui ne sont pas feintes par moi, bien qu’il soit en ma liberté de les penser ou ne les penser pas ; mais elles ont leurs natures vraies et immuables. Comme, par exemple, lorsque j’imagine un triangle, encore qu’il n’y ait peut-être en aucun lieu du monde hors de ma pensée une telle figure, et qu’il n’y en ait jamais eu, il ne laisse pas néanmoins d’y avoir une certaine nature, ou forme, ou essence déterminée de cette figure, laquelle est immuable et éternelle, que je n’ai point inventé , et qui ne dépend en aucune façon de mon esprit ; comme il paraît de ce que l’on peut démontrer diverses propriétés de ce triangle […] » (AT IX, 51).

Page 185: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

185

objetiva, ou um artifício objetivo, etc. [...]” (AT VII, 161; CP, 179)227. Essa passagem pode ser

lida como assinalando que uma ideia apresenta uma realidade objetiva, que o conteúdo exibido

por uma ideia é uma realidade no pensamento, quando se trata da apresentação do ser da coisa

na ideia, isto é, enquanto o ser da coisa é pensado. Se a essência de uma coisa é aquilo que

guarda a definição, ou a determinação das propriedades dessa coisa, então é razoável admitir

que ao consistir no ser da coisa enquanto ela é pensada, a marca do conteúdo das ideias é ser

no pensamento, enquanto pensada, a essência ou o ser das coisas. É ser no pensamento a

exibição de algo que não depende do pensamento.

Tendo em vista que a noção de realidade objetiva do conteúdo das ideias está

relacionada com a noção de essência, as ideias que apresentam um conteúdo necessário são

ideias de essências ou são elas mesmas essências? Segundo Landim (2014, p. 684), a noção de

essência diz respeito tanto a um ser objetivo no pensamento segundo o qual alguma coisa tem

determinadas propriedades definidas, mas não necessariamente existe atualmente, o que diz

respeito à essência pensada; quanto a uma essência atualizada, ou existente, e nesse caso a

essência não se distingue da coisa existente. Nesse sentido, no que se refere às essências, elas

podem ser no pensamento certas ideias de coisas com propriedades determinadas que têm

existência necessária ou meramente possível (são ideias de essências, ou seja, ideias que exibem

um ser objetivo irredutível às operações do pensamento); ou como essências existentes, isto é,

instanciadas na realidade. Tendo isso em vista, pensa-se aqui que se pode responder a questão

do início do parágrafo dizendo que o conteúdo necessário pensado são ideias de essências, são

essências objetivas, isto é, são a maneira pela qual o intelecto é capaz de apresentar, segundo

uma operação representativa, objetos com propriedades necessárias e independentes da mente.

Isso é importante porque se quer defender, em consonância com Landim (2014, p. 684), que há

uma distinção real entre a essência objetiva e a essência atualmente existente, isto é, entre a

ideia da essência de uma coisa e a coisa existente como realização de uma essência: a ideia de

Deus é realmente distinta de Deus existente, ainda que ela seja a ideia da essência de um objeto

cuja existência é necessária. Pensa-se aqui que isso se justifica porque, como Descartes sugere

na resposta a Caterus, como visto anteriormente, o modo de ser objetivo de um objeto é distinto

do modo de ser formal da coisa, mesmo que se refira à mesma essência, pois no que concerne

ao conteúdo das ideias, seu modo de ser é um modo próprio das coisas enquanto são pensadas,

227 « Par la réalité objective d’une idée, j’entends l’entité ou l’être de la chose représentée par l’idée, en tant que cette entité est dans l’idée ; et de la même façon, on peut dire une perfection objective, ou un artifice objectif, etc. […] » (AT IX, 124).

Page 186: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

186

o que não é confundível com o modo de ser das coisas enquanto são existentes atualmente228:

ainda que a ideia do sol seja “o sol mesmo existindo no entendimento” (AT VII, 102), o modo

como ele existe lá é próprio das coisas pensadas e diferente das coisas atuais ou formais.

É preciso que se diga que essa leitura que assimila o ser objetivo das ideias às essências

parece dizer respeito apenas às ideias de Deus e dos objetos matemáticos, que são aquelas ideias

que apresentam conteúdos que o sujeito percebe como necessários pela simples análise que faz

deles. Contudo, isso quer dizer que as ideias das coisas externas não possuem realidade objetiva,

uma vez que são ideias cujo ser objetivo pode ser, de certo modo, forjado pelo intelecto? A

hipótese é de que isso não se aplica, pois essas ideias possuem sim realidade objetiva, mas o

conhecimento disso só pode ser alcançado após a realização de todo o percurso do sistema

cartesiano, com as provas existenciais e o desmantelamento da dúvida. É por isso que a análise

introspectiva das ideias proposta na Terceira Meditação apenas logra êxito em provar a

existência de Deus, independentemente de se deparar com toda sorte de conteúdos das ideias.

Após isso, na Quinta Meditação, Descartes alcança o conhecimento das naturezas verdadeiras

e imutáveis seguindo o mesmo movimento que o faz reconhecer que Deus existe na Terceira

Meditação, isto é, a observação de que aquilo que é irredutível, de algum modo, às operações

do pensamento guarda algum tipo de realidade que se impõe ao próprio pensamento, permitindo

reconhecer que é algo de independente dele. Mas apenas na Sexta Meditação é possível provar

que as coisas materiais externas existem e só a partir disso pode-se considerar a efetiva

existência de coisas que eram, até então, meramente possíveis. Desse modo, é legítimo conceber

que as ideias das coisas materiais possuem realidade objetiva porque elas, em última instância,

também exibem alguma coisa que é irredutível às simples operações do pensamento: elas

representam essências de coisas atualmente existentes. Nesse sentido, retomando, é possível

dizer que o ser objetivo das ideias que possuem realidade objetiva é a existência ou realidade

mental representativa das essências tanto de coisas necessárias, quanto de coisas possíveis.

Assim, se o ser objetivo das ideias tem uma realidade objetiva no pensamento porque é

o modo de ser representativo de essências, é possível avançar a seguinte interpretação sobre o

status ontológico do ser objetivo: trata-se de uma realidade exclusivamente mental que, apesar

disso, não depende da mente para ser o que é à medida que consiste num conjunto de

propriedades segundo as quais se determina o ser de um objeto e que se impõe ao pensamento

em função da necessidade de suas propriedades. A ideia, o ser objetivo e a realidade objetiva

compõem, nesse sentido, a teoria cartesiana da percepção na sua complexidade, que se pode

228 Cf. AT VII, 102.

Page 187: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

187

sintetizar do seguinte modo: o processo perceptivo se dá via ideias que, porque são “como as

imagens das coisas”, consistem em representações de coisas na consciência. Nesse sentido,

todas as ideias são o mesmo tipo de ato da mente cuja função é representar um conteúdo como

objeto para a consciência. Dessa forma, toda ideia necessariamente envolve um conteúdo

representado. Mas esse conteúdo não é algo de forjado pela operação mental da ideia, ele é a

exibição de um conjunto de propriedades que se imbricam segundo necessidades próprias e

independentes do ato mental que o exibe. De modo que esse conteúdo não pode ser reduzido e

nem explicado apenas por esse tipo de ato mental que é a ideia, pois se trata de um conteúdo

que tem um modo de ser que não é um “puro nada”, mas sim uma realidade objetiva no

pensamento. Em sendo assim, a ideia é um fenômeno ambíguo porque é simultaneamente um

ato da mente e um objeto na mente que, ao mesmo tempo que dependem um do outro (toda

ideia é um ato mental representativo de um objeto – esse tipo de ato mental representativo

depende do objeto representado e o objeto representado só o é em função desse tipo de ato

mental), eles são autônomos à medida que o modo de ser do conteúdo da ideia não se reduz ao

ato que o exibe.

Ora, a teoria cartesiana da percepção parece, então, ser aquela que procura explicar o

fenômeno da percepção das coisas como algo que ocorre a partir das operações mentais. Mas

que, no entanto, não precisa da postulação da existência de objetos externos que seriam

apreendidos pelas operações da mente (sejam eles as coisas atualmente existentes ou

determinadas entidades representativas, como pensou Malebranche). Não supõe que o ato

mental de perceber se realiza na apreensão ou assimilação direta da coisa e, em si mesmo, é

como uma denominação externa das coisas percebidas. Mas, ao contrário, compreende que,

independentemente da existência atual das coisas, determinados seres objetivos, conjuntos de

propriedades determinantes de um objeto, essências, são exibidas e percebidas pela consciência.

Não como entidades, ou coisas realmente distintas do pensamento, mas como resultado da

própria operação perceptiva.

4.2 Teoria cartesiana da percepção: um representacionalismo moderado

De posse da discussão realizada anteriormente, acredita-se ser o momento de examinar

qual é o papel do ser objetivo no que diz respeito ao processo perceptivo das coisas que são

externas e/ou independentes do pensamento. Segundo o que foi visto, o ser objetivo consiste

numa realidade mental relativamente independente da mente à medida que está nela, mas não

se reduz a ela. Nesse sentido, é legítimo defender que o ser objetivo consiste propriamente

Page 188: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

188

falando no objeto imediato do ato de percepção, da operação mental que exibe um conteúdo

como objeto para a consciência. O que se percebe diretamente quando se percebe alguma coisa

é o ser objetivo exibido no intelecto por meio de uma operação mental representativa. Isso

significa que o ser objetivo pode ser considerado o intermediário do processo perceptivo que

se coloca como um modo de ser representativo entre a mente (e suas operações) e a coisa, ou

realidade formal externa ao pensamento, (nesse caso, indiretamente) percebida. De forma que

a percepção, ou o conhecimento, das coisas formais se daria pelo acesso imediato que o sujeito

tem a esse ser objetivo, que é no intelecto o modo de ser das coisas enquanto elas são pensadas.

Isso significaria, então, que o acesso do sujeito às coisas atualmente existentes, porque se dá

por meio do ser objetivo que as representa no intelecto, não é direto, mas decorrente da

apreensão, como objeto, de um conteúdo mental com realidade objetiva no pensamento que é

realmente distinto das coisas atuais.

Entretanto, Landim (2014, p. 686) apresenta uma interpretação acerca da relação entre

o ser objetivo e seu (possível) correlato formal que implica uma concepção acerca da

imediaticidade e da mediaticidade da percepção diferente da que foi cogitada no parágrafo

anterior. Ele considera possível conceber que o ser objetivo e seu correlato formal guardam

uma relação de identidade que explicaria por que perceber o ser objetivo imediatamente não

exclui que a percepção do que é representado por ele seja também imediata, e não mediada.

Essa relação de identidade se daria porque entre a essência objetiva (a essência pensada) de

uma coisa e a essência instanciada na realidade (a coisa existente) não haveria nenhuma

distinção, já que se trata da mesma essência, ou seja, o mesmo conjunto de propriedades que

designa a natureza de uma coisa. Considerando isso, o argumento de Landim acerca da

imediaticidade da percepção das coisas parece ser o seguinte: o ser objetivo pode ser

interpretado como sendo a representação de essências de coisas meramente possíveis e de coisas

existentes; as essências enquanto são pensadas e enquanto estão instanciadas nas coisas atuais

consistem no mesmo conjunto de propriedades definidoras de alguma coisa; nesse sentido, ter

a ideia de x, isto é, pensar na essência objetiva de x é perceber um certo conjunto de

propriedades que pode estar instanciado como uma realidade formal existente; assim, quando

se pensa na ideia de x e x é uma coisa existente (é a essência instanciada, a essência existente),

a percepção imediata da essência objetiva de x é também percepção imediata da essência

existente de x; de modo que se pode concluir que x (atualmente existente) é diretamente

percebido pelo sujeito no processo perceptivo, pois, como a essência de uma coisa é aquilo que

a coisa é, ao perceber na ideia a essência de x, percebe-se imediatamente x. Assim, de acordo

Page 189: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

189

com essa leitura, a teoria cartesiana da percepção seria uma forma de realismo direto porque o

conhecimento das coisas não depende, em última análise, de um terceiro, de um intermediário

que se interpõe entre a percepção e a coisa percebida. Ainda que o ser objetivo apresentado pela

ideia na consciência seja uma realidade no pensamento (e ele o é à medida que consiste na

representação de essências que, enquanto tal, não dependem e não se resumem à mera atividade

do pensamento), ainda que a percepção imediata seja a que se tem do ser objetivo, a percepção

das coisas existentes não é indireta, para Landim, porque entre a essência pensada e a essência

existente não há distinção. De modo que ao perceber o ser objetivo de alguma coisa, percebe-

se também diretamente a coisa229.

Há muitos autores230 que defendem um realismo direto na teoria cartesiana da

percepção. Entre eles encontra-se Pierre Guenancia, a quem se considera importante, nesse

momento, fazer referência. Em um artigo de 2006 intitulado “L’idée comme representation”,

Guenancia defende que a teoria cartesiana admite para a percepção uma relação diádica entre o

sujeito e a coisa percebida que se realiza, portanto, sem nenhum intermediário. Trata-se, como

se verá, de uma defesa do realismo direto baseada em uma leitura bastante diferente da que foi

apresentada até agora, fundamentalmente no que diz respeito ao modo de conceber o que é a

realidade objetiva da ideia.

Entende-se aqui que a preocupação central de Guenancia é em defender que a ideia não

pode ser entendida como “[...] sinônimo, para Descartes, de uma tela interposta entre a mente

e as coisas fora dela” (GUENANCIA, 2006, p. 59)231. Isso significaria conceber que as ideias

formariam o que seria um mundo próprio da mente, fechado em si mesmo, a partir do qual se

poderia atingir as coisas fora da mente. No entanto, para o autor, esse ponto de vista, calcado

numa interpretação do que é a ideia que está ligada a uma perspectiva ontológica, é equivocado

no que diz respeito à concepção cartesiana do que é a percepção. Segundo ele, a questão deve

ser colocada em termos epistemológicos procurando compreender a maneira pela qual uma

ideia permite conhecer, exibir, ou representar um objeto. Isso exclui a questão ontológica acerca

da natureza das ideias, pois a preocupação não se concentra em definir uma suposta natureza

do conteúdo pensado, mas apenas esclarecer as condições em que algo a ser pensado pode ser

dado. O que parece justificar essa leitura está em que Guenancia insiste em que a ideia não é

229 Pretende-se na sequência desse capítulo divergir dessa tese, pois ela parece desconsiderar o que foi defendido anteriormente acerca da distinção entre o modo de ser objetivo no pensamento e o modo de ser formal das coisas. 230 Cf. YOLTON (1984); COOK (1987); NADLER (1989); ALANEN (2003); ONG-VAN-CUNG (2012). 231 « […] synonyme pour Descartes d’un écran interposé entre l’esprit et les choses hors de lui » (GUENANCIA, 2006, p. 59).

Page 190: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

190

um ser real, mas apenas a exibição de uma coisa como uma imagem. Dessa maneira, fica

fortemente sugerido que ele entende que ser por representação é distinto de ser real e por isso

o objeto que é exibido por uma ideia na mente não deve ser tomado como um análogo mental

daquilo que é real: “mas não é porque a ideia é um modo de ser por representação da coisa e

não um ser real, que a ideia é uma espécie de contraparte mental ou consciente de uma coisa”

(GUENANCIA, 2006, p. 60)232.

É importante chamar atenção aqui para o uso impreciso de determinados termos feito

por Guenancia. Ao dizer que a ideia não é um ser real, ele toma o termo ‘real’ por aquilo que é

atual de modo que retira disso a conclusão de que porque a ideia tem um modo de ser diferente

do modo de ser atual das coisas (que ele chama de real), então ela não é nada de real. Assim,

porque a ideia não seria nada de real no pensamento, resta ao autor a sugestão de que para se

compreender o que é a ideia deve-se defini-la apenas por sua função representativa, sem levar

em consideração questões sobre sua natureza. Isso significa, em última análise, que a ideia deve

ser compreendida enquanto o ato, ou a operação da mente, de apresentar coisas no pensamento.

Guenancia, como se pode interpretar, defende nesse contexto que a ideia não deve ser

considerada senão enquanto ato: é apenas uma função representativa da mente, não é nada além

dessa função, ou seja, não é nem um objeto mental, nem guarda alguma natureza que a

caracterize de algum modo como distinta da, ou irredutível à, operação representativa da mente:

“é por isso que vale mais a pena dizer que a ideia tem por função representar uma coisa e que

ela não é nada para além dessa função” (GUENANCIA, 2006, p. 60)233.

Ao enfatizar que a ideia deva ser tomada como o ato da mente de representar, isto é, o

ato mental que torna a mente consciente de algum objeto, consciente de algum conteúdo

pensado, Guenancia defende que a ideia não seja confundida com uma espécie de duplicata

mental da coisa atualmente existente. Isso porque o que a ideia exibe e dá a conhecer ao

intelecto, como visto, não seria para ele uma contraparte mental daquilo que é atual, mas apenas

seu sentido, aquilo que é entendido conscientemente e é capaz de designar um objeto: “a ideia

de uma coisa é o seu sentido ou sua significação. Nós [enquanto sujeitos] nunca fazemos a

experiência da separação ou da distinção da coisa e de sua significação. As duas coisas são

232 « Mais ce n’est pas parce que l’idée est un mode d’être par représentation de la chose, et non un être réel, que l’idée est une sorte d’homologue mental ou conscient d’une chose » (GUENANCIA, 2006, p. 60) 233 « C’est pourquoi il vaut mieux dire que l’idée a pour fonction de représenter une chose et qu’elle n’est rien en dehors de cette fonction » (GUENANCIA, 2006, p. 60).

Page 191: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

191

dadas juntas ou não são dadas” (GUENANCIA, 2006, p. 62)234. Nesse sentido, a ideia de uma

coisa e a coisa são numericamente a mesma, pois a consciência de um objeto, que é a

compreensão intelectual de um sentido ou de uma significação, segundo Guenancia, vem

acompanhada da própria coisa: ter a ideia de x é ser consciente de uma significação que designa

alguma coisa para além da (operação da) ideia x, isto é, o que se percebe, o que se conhece é a

coisa que é designada pela ideia e não a ideia. Não haveria nenhuma dualidade entre ideia e

coisa, nesse sentido, mas apenas uma operação mental capaz de tornar o sujeito consciente de

alguma coisa e as coisas mesmas em sua realidade formal. Essa interpretação leva Guenancia à

conclusão de que ter uma ideia, representar, significa apenas a operação específica e própria da

mente que permite perceber – diretamente – as coisas.

Guenancia defende, dessa forma, uma leitura realista direta da teoria cartesiana da

percepção, tal qual Landim o faz. Todavia, por vias de interpretação bastante diferentes. Isso

porque Landim, como visto, procura interpretar a natureza do ser objetivo de acordo com a tese

cartesiana de que ele não constitui um “puro nada”, isto é, dá ênfase à questão acerca da

natureza disso que é representado pela ideia no pensamento, o ser objetivo. Enquanto

Guenancia posiciona-se, segundo interpreta-se aqui, a partir de uma estratégia de esvaziamento

da importância da questão ontológica sobre o ser objetivo. E ele o faz em nome da valorização

do que considera preponderante, a saber, tomar a ideia sob o aspecto epistemológico a partir de

sua função de representar objetos na consciência, ou seja, como uma mera operação intelectual

de dar algo a conhecer à mente.

A fim de concluir a interpretação realista direta de Descartes feita por Guenancia, é

preciso expor e evidenciar o sentido em que ele toma o conceito de realidade objetiva. Sentido

esse que, segundo compreende-se aqui, é o que lhe permite defender o realismo direto na teoria

cartesiana. A partir da página 63 do seu artigo, Guenancia retorna ao vocabulário cartesiano a

fim de explicar o sentido em que uma ideia é uma estrutura articulada entre os polos da sua

realidade formal e da sua realidade objetiva. Entretanto, o autor quer evitar o percurso

cartesiano realizado na Terceira Meditação que pressupõe a demonstração de Descartes de que

as ideias precisam de uma causa que explique por que algumas são ideia de umas coisas e outras

são de outras coisas. Ele quer evitar o percurso que envolve a demonstração de que as ideias

possuem um modo de ser que é uma realidade na mente, uma realidade objetiva. Essa estratégia,

234 « L’idée d’une chose, c’est son sens ou sa signification. Nous ne faisons jamais l’expérience de la séparation ou de la distinction de la chose et de sa signification. Les deux sont données ensemble ou pas du tout » (GUENANCIA, 2006, p. 62).

Page 192: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

192

sugere-se aqui, faz parte do projeto de interpretação da teoria cartesiana da percepção que relega

o conceito de realidade objetiva a uma situação de desimportância como se esse conceito

tratasse-se apenas de uma complexificação desnecessária à teoria cartesiana. E nessa direção,

Guenancia considera que a noção de realidade objetiva aplica-se às ideias enquanto elas

representam alguma coisa e, nesse sentido, são objetos do entendimento. A realidade objetiva

diz respeito ao conteúdo representado pela ideia. Fala-se em realidade objetiva da ideia quando

esta é tomada enquanto representação de alguma coisa. A maneira como Guenancia propõe que

se deva compreender essas palavras é que elas indicam que o conteúdo representado pela ideia

não é nada além do sentido pensado, nada além da consciência de um significado de alguma

coisa que, em última análise, designa ou aponta para alguma outra coisa independente da mente.

Dessa forma, como já anunciado, a ideia não é uma espécie de duplicata ou contraparte na

mente da coisa realmente existente, mas é a penas aquilo que é entendido quando se percebe ou

se conhece alguma coisa. Nesse sentido, entre o conteúdo, a representação de uma coisa exibida

por uma ideia e a coisa atual não existe, para Guenancia, uma distinção real, pois a

representação é apenas o que se entende da coisa quando se pensa nela e não uma entidade ou

qualquer tipo de modo de ser real no pensamento.

A maneira como Guenancia (2006, p. 63) interpreta a resposta de Descartes a Caterus

nas Respostas às Primeiras Objeções corrobora o que foi dito até agora. Segundo ele, o modo

de ser objetivo das coisas enquanto elas são pensadas refere-se apenas à condição própria do

que está na mente quando se compreende alguma coisa. Assim, as ideias estão objetivamente

no entendimento à medida que ser pensado é algo que ocorre na mente e não fora da mente.

Entretanto, esse modo de ser não constitui a configuração de um duplo da coisa pensada no

entendimento, como se se tratasse, como já aludido, de um tipo de ser composto da realidade

própria que os objetos têm no entendimento. O modo de ser que as coisas costumam ter no

entendimento, segundo a interpretação de Guenancia, é apenas a exibição de um significado

que é inteligido na percepção que o sujeito tem de alguma coisa. Não haveria uma realidade

específica das coisas no entendimento enquanto elas são pensadas, mas apenas o fato de que,

como visto, quando elas são pensadas, seu significado está disponível na consciência. Dessa

maneira, ter a ideia de alguma coisa é simplesmente compreender um sentido que designa, visa

a, alguma coisa para além das próprias operações da mente. E, segundo esse modo de

compreender o que é a percepção, aquilo que é pensado, aquilo que é percebido, é a coisa

mesma, a coisa atual, e não a ideia dessa coisa, que propriamente falando, não é nada além de

uma operação da mente. A ideia é, segundo Guenancia, apenas a operação mental que, ao

Page 193: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

193

apresentar um sentido à consciência, visa à coisa mesma a partir desse sentido, ou significação,

entendido no processo perceptivo.

É relevante considerar o seguinte. Segundo a interpretação de Guenancia, anteriormente

exposta, a ideia é um ato da mente que exibe um sentido determinado no pensamento a partir

do qual se pode saber o que ela designa: a ideia do sol é nada além da compreensão intelectual

de um sentido determinado que designa uma coisa no mundo externo ao pensamento. Sendo

assim, cabe questionar: por que a interpretação de que a realidade objetiva de uma ideia é um

sentido determinado no entendimento (que designa a coisa representada) implica, como

Guenancia defende, que esse sentido exibido na consciência (essa realidade objetiva) não é algo

em si mesmo com relativa autonomia tendo em vista o ato mental que o exibe? Como, para o

autor, a realidade objetiva da ideia não é alguma coisa de realmente distinta da coisa formal

designada por ela – a ponto de o autor conceber que a percepção é uma relação diádica entre a

mente e a coisa externa a ela? Essas questões são relevantes tendo em vista o que foi discutido

nesse capítulo acerca da natureza do ser objetivo – discussão essa que é rejeitada por Guenancia

em seu artigo, mas da qual não se consegue aqui escapar. Descartes, tanto na Terceira

Meditação, quanto nas Respostas às Primeiras Objeções ressalta a ideia como a operação da

mente que exibe um objeto que não é um “puro nada” na consciência. Ao contrário, o conteúdo

apresentado pela ideia é alguma coisa de real no pensamento que possui um modo de ser próprio

das coisas enquanto elas são pensadas. Tendo isso em perspectiva, como é possível defender

que a ideia de uma coisa e a coisa atual são numericamente a mesma, como faz Guenancia, pois

enquanto sentido de, ou significação de, a ideia está sempre atrelada à coisa que designa? Como

se pode sustentar, como faz o autor em questão, que esse modo de ser do conteúdo de uma ideia

é aquele típico das coisas quando são compreendidas, mas que em termos de consistência

ontológica isso não significa nada?

A hipótese aqui é que a interpretação realista direta que Guenancia realiza da teoria de

Descartes constrói-se a partir da recusa em tomar o conceito de realidade objetiva das ideias na

gravidade que lhe cabe, procurando mascarar seu modo de construção na filosofia cartesiana

com a finalidade de dar-lhe um destino, ou uma função saneada de eventuais complicadores

metafísicos. Esse procedimento resulta numa estratégia argumentativa que é a de reduzir o

papel que a ideia ocupa na teoria cartesiana da percepção ao de mero ato mental a partir do qual

o sujeito percebe as coisas externas a ele. Falar que é por meio da ideia que se percebe alguma

coisa, nesse contexto, seria apenas tratar da constatação óbvia de que a percepção de alguma

coisa depende de um ato mental de percepção. Desse modo, a argumentação ignora qualquer

Page 194: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

194

aspecto ontológico possivelmente atrelado ao conteúdo exibido na consciência pela ideia como

relevante para a teoria. E, nesse sentido, as ideias não seriam nenhum tipo de intermediário da

percepção que o sujeito tem das coisas, isto é, as ideias não seriam nenhum tipo de objeto da

percepção a partir do qual se perceberia as coisas externas ao sujeito. Ao contrário, como já

dito, as ideias seriam nada além de atos mentais de percepção das coisas externas235.

A mesma estratégia argumentativa encontra-se em outros representantes da

interpretação realista direta da teoria cartesiana da percepção como YOLTON (1984); COOK

(1987), NADLER (1989), ALLANEN (2003), para mencionar rapidamente alguns. Entre eles

não se encontra, no entanto, LANDIM (2014), que, como visto, procura encarar as noções de

ser objetivo e de realidade objetiva a partir de uma análise que não se exime de considerar os

aspectos ontológicos ligados a essas noções.

Dessa forma, de acordo com a análise aqui realizada tendo em vista o procedimento

interpretativo que pretende esvaziar o conceito de realidade objetiva, propõe-se considerar a

leitura realista direta de Descartes (como a de Guenancia) muito discordante das ênfases que o

texto cartesiano dá à natureza especial do ser objetivo no pensamento. O exame empreendido

desses textos nesse capítulo procurou mostrar que Descartes tem por objetivo defender que o

ser objetivo não é uma mera denominação extrínseca sem realidade e certa autonomia no

pensamento e ignorar isso é, no mínimo, negligenciar um elemento fundamental para que se

compreenda o conceito de realidade objetiva e o papel que esse conceito ocupa na teoria

cartesiana da percepção.

Além disso, outra questão que parece aqui muito cara e que está relacionada ao esforço

em demonstrar que o ser objetivo tem realidade no pensamento é o fato de que só a partir dessa

perspectiva Descartes pode realizar a primeira prova da existência de Deus na Terceira

Meditação e abrir caminho para o desenvolvimento do percurso das Meditações. Somente a

noção de realidade objetiva da ideia como uma realidade no pensamento que necessita de

explicação causal conduz à prova de que Deus existe e é causa da ideia de Deus pensada pelo

sujeito. Desse modo, ainda que se possa observar ganhos com a interpretação realista direta de

Descartes que operem uma espécie de depuração de complexidades metafísicas aparentemente

desnecessárias, é imperioso observar que esses supostos avanços interpretativos não podem e

não devem desconsiderar aspectos fundamentais da condução argumentativa do pensamento de

um autor, que tem sua ordem e estrutura próprias. Por essas razões, considera-se aqui que a

235 Cf. HOFFMAN (2009, p. 169-170).

Page 195: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

195

interpretação realista direta parece fortemente inadequada para dar conta do fenômeno da

percepção na filosofia de Descartes.

Porém, é preciso aqui reforçar que, como dito anteriormente, LANDIM (2014) concebe

que a teoria cartesiana da percepção é uma espécie de realismo direto sem desconsiderar o

aspecto ontológico envolvido nas noções de ser objetivo e de realidade objetiva. Isso significa

que as razões apontadas anteriormente não atingem a intepretação realista direta desenvolvida

por Landim. É preciso oferecer uma razão adicional para se posicionar contra essa leitura.

Apesar de no desenvolvimento expositivo, realizado nesse capítulo, das noções de ser

objetivo e de realidade objetiva ter-se acompanhado as interpretações de Landim, entende-se

aqui, em desacordo com ele, que a conclusão em favor de uma interpretação realista direta de

Descartes é equivocada. Isso porque a leitura realista direta apresentada por ele parece

desconsiderar o que foi defendido (durante o desenvolvimento) acerca da distinção entre o

modo de ser objetivo no pensamento e o modo de ser formal das coisas. Como visto, tratam-se

de modos de ser realmente distintos, de forma que aquilo que é pensado, enquanto é pensado,

possui modo de ser próprio e independente daquilo que é uma coisa formal. Eis uma

compreensão aceita por Landim e acompanhada aqui em função da análise do texto das

Respostas às Primeiras Objeções realizada anteriormente que parece ser ignorada por Landim

quando ele afirma que a percepção imediata da essência objetiva de uma coisa é, em última

análise, a percepção imediata da essência existente dessa coisa. Em favor da distinção entre o

modo de ser objetivo e o modo de ser formal das essências pode-se fazer referência à seguinte

passagem de Descartes em carta de 1645 ou 1646 a destinatário desconhecido que

provavelmente constitui o texto dos comentários aludidos na carta a Mesland de 1645 ou

1646236: “[...] se por essência nós entendemos uma coisa que está objetivamente no intelecto, e

por existência [nós entendemos] a mesma coisa enquanto ela está fora do intelecto, é manifesto

que as duas são realmente distintas” (AT IV, 350; CSMK, 281). Concebe-se que esse trecho

reforça a compreensão de que ainda que a essência pensada de alguma coisa, isto é, um

determinado ser objetivo, seja o mesmo objeto que existe formalmente fora da mente237, o modo

de ser objetivo que o objeto tem enquanto está na mente é realmente distinto do modo de ser

formal do objeto que existe no mundo exterior à mente.

Nesse sentido, pretende-se defender aqui o seguinte encaminhamento: ainda que a

essência de uma coisa reúna as propriedades dessa coisa, enquanto ser objetivo, a ideia de um

236 Cf. AT IV, 346. 237 “[...] a ideia do sol é o sol mesmo existindo no entendimento [...]” (AT VII, 102; AT IX, 82).

Page 196: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

196

objeto possui, como já defendido, um modo de ser próprio que é realmente distinto do modo de

ser atual das coisas. Logo, mesmo que se concorde que segundo a teoria cartesiana da percepção

o sujeito pode perceber (ou conhecer) verdadeiramente o que as coisas são – o que consiste

numa forma de realismo, já que são as coisas mesmas, mesmo que indiretamente, que são

conhecidas –, isso, no entanto, não se dá senão por intermédio das representações que

disponibilizam no intelecto o ser objetivo das coisas (necessária ou possivelmente) atuais:

defender o realismo na filosofia de Descartes é diferente de defender que a teoria cartesiana da

percepção seja realista direta.

Dessa forma, defende-se aqui que a teoria cartesiana da percepção é de caráter

representacionalista porque ela não prescinde da mediação do ser objetivo das ideias no

processo perceptivo. A percepção e o conhecimento das coisas externas, para Descartes, decorre

da apreensão imediata do ser objetivo das ideias. Como esse ser objetivo consiste num conjunto

de propriedades que determinam um objeto, percebê-lo diretamente leva à percepção da coisa

que esse ser objetivo representa, contudo isso ocorre indiretamente, pois mediado pela

apreensão imediata do ser objetivo. Trata-se aqui, como se pode notar, de um

representacionalismo de um tipo moderado, se for tomada como referência a teoria

malebranchista da percepção. Isso porque, como visto, para Descartes esse ser objetivo não

constitui uma terceira entidade distinta da mente, mas é sim dependente da mente à medida que

é aquilo que é determinado no intelecto por um ato mental cuja função é exibir um conteúdo

como objeto para a consciência. E também porque a percepção imediata do ser objetivo não

encarcera o sujeito nas suas próprias representações, como se elas constituíssem um mundo

mental particular intransponível. Ao contrário, por intermédio do conteúdo exibido por suas

ideias, o sujeito acessa as coisas formais, externas ao pensamento, mas não diretamente, pois,

como visto, a mente não poderia assimilar ou captar diretamente uma realidade atual. É isso

que entende-se aqui estar explícito na carta de Descarte ao Padre Gibieuf de 19 de janeiro de

1642 nas duas passagens que se seguem: “[...] eu não posso ter qualquer conhecimento daquilo

que está fora de mim que não seja pelo intermédio das ideias dessas coisas que tenho em mim

[...]” (AT III, 474; FA, II, 905)238; e “[...] nós não podemos ter qualquer conhecimento das

coisas que não seja pelas ideias pelas quais nós as concebemos [...]” (AT III, 476; FA, II,

907)239.

238 « […] je ne puis avoir aucune connaissance de ce qui est hors de moi, que par l’entremise des idées que j’en ai eues en moi […] » (AT III, 474; FA, II, 905). 239 « […] nous ne pouvons avoir aucune connaissance des choses, que par les idées que nous en concevons […] » (AT III, 476; FA, II, 907).

Page 197: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

197

Em suma, compreende-se aqui que o representacionalismo moderado de Descartes

concebe que o acesso do sujeito às coisas se dá por intermédio de seres objetivos exibidos no

intelecto como representação de coisas. Como consequência disso, o acesso que o sujeito tem

às coisas não se dá, portanto, por uma apreensão direta e imediata dessas coisas. Enquanto

realidade mental, o ser objetivo consiste propriamente falando no objeto imediato do ato de

percepção, da operação mental que exibe um conteúdo como objeto para a consciência. E em

sendo assim, é legítimo conceber que a teoria cartesiana da percepção seja de cunho

representacionalista, pois tem no ser objetivo das ideias o intermediário por meio do qual o

sujeito conhece indiretamente as coisas que não dependem do pensamento, sejam elas

atualmente existentes ou meramente possíveis.

Page 198: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

198

CONCLUSÃO

A teoria das ideias de Descartes guarda uma ambiguidade na definição do que é ideia

que implica uma questão acerca da percepção, que é a seguinte: o que se percebe diretamente

no processo perceptivo são as ideias das coisas ou as coisas mesmas em sua realidade formal?

Essa ambiguidade, como foi visto, diz respeito ao fato de Descartes considerar que as ideias

devem ser tomadas segundo sua realidade formal, isto é, como um certo tipo de ato do

pensamento cuja função é a de apresentar alguma coisa como objeto para a consciência; e

segundo sua realidade objetiva, isto é, como um objeto determinado representado na

consciência que, por ser algo de irredutível às operações do pensamento e que a ele se impõe

pela imbricação necessária (e não forjada) das propriedades que apresenta, é alguma coisa de

real no pensamento. Ora, a noção de ideia, nesse sentido, diz respeito simultaneamente ao ato

de apreensão, ou percepção, de alguma coisa e ao conteúdo apreendido, ou percebido, como

objeto. E é preciso que se considere que a ideia se refere ao mesmo tempo a esses dois aspectos

porque Descartes desenvolve o conceito de realidade objetiva para dar conta de um modo de

ser próprio aos conteúdos pensados pelo sujeito que, ainda que exibidos à consciência pelo ato

mental representativo, são algum tipo de realidade autônoma no pensamento que não se

confunde com suas afecções. Tendo isso em vista, é legítimo questionar acerca da percepção,

se seu objeto imediato é a realidade objetiva do conteúdo apresentado pela ideia ou se é a

realidade formal da coisa visada pela ideia.

Nos estudos propostos nessa tese, procurou-se investigar a questão do

representacionalismo ou do realismo direto na teoria da percepção de Descartes tendo como

referência o desenvolvimento da questão a partir do debate instaurado já no século XVII, pouco

depois da morte de Descartes, entre Malebranche e Arnauld, acerca desse tema. Procurou-se,

nesse sentido, elaborar essa interrogação, compreender os elementos e os meandros nela

envolvidos e formular a partir disso uma interpretação para a questão no pensamento de

Descartes com base no modo como ele foi lido tanto por Malebranche, quanto por Arnauld.

Isso porque a leitura que esses importantes filósofos da tradição cartesiana fizeram da teoria de

Descartes é capaz de iluminar, cada uma a seu modo, os problemas nela compreendidos a ponto

de permitir um melhor enfrentamento da questão como ela pode ser pensada a partir do texto

cartesiano.

Como encaminhamento desse projeto, no primeiro capítulo da tese, propôs-se expor e

discutir as preliminares da teoria cartesiana das ideias, que envolvem não apenas a definição de

Page 199: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

199

ideia como representação, mas toda uma explicação das razões pelas quais uma certa via de

classificação e análise das ideias pela sua origem não é fundada em princípios bem assegurados.

Essa demonstração é capaz de romper com a associação entre representação, reprodutibilidade

imagética e semelhança que conduz Descartes a uma outra via de análise das ideias que

privilegia o exame delas segundo sua natureza e sua estrutura. Trata-se da via que demonstra

que é possível olhar para as ideias como certos atos do pensamento que, enquanto tais,

envolvem necessariamente conteúdos determinados como objetos para a consciência, isto é,

como representação de coisas. Dessa maneira, a fim de esclarecer o que é a ideia a partir de sua

natureza e de sua estrutura, foi feita a explicitação dos conceitos de realidade formal da ideia e,

além disso considerações sobre o conceito de realidade objetiva a partir das Respostas às

Primeiras Objeções de Caterus com o intuito de tornar mais claro, preliminarmente, o sentido

do conceito de realidade objetiva. Tendo isso em vista, o objetivo do primeiro capítulo em

questão foi o de apresentar argumentativamente a teoria cartesiana das ideias de modo a

circunscrever sua ambiguidade como uma questão em aberto.

Tendo isso em vista, no segundo capítulo, dedicou-se à exposição e ao exame da teoria

da percepção de Malebranche a partir da perspectiva geral de que o que a motiva, ou lhe dá

ensejo, é a leitura e a interpretação de que o que é característica fundamental da ideia é o seu

aspecto representativo de coisas. Isso significa que Malebranche privilegia, no que concerne às

ideias, a perspectiva de que elas sejam conteúdos representativos em detrimento da perspectiva

de que elas sejam atos representativos. De forma geral, entende-se que Malebranche reconhece

a ambiguidade na definição de ideia formulada por Descartes e propõe uma outra teoria que

pudesse dar conta de dirimi-la. A questão para Malebranche é mostrar que o conteúdo

representativo de uma ideia não é resultado de operações mentais que o constituem de alguma

forma, pois as operações da mente são apenas suas modificações internas, de modo que não

poderiam ser representativas de alguma outra coisa que não fosse a própria mente.

Como se viu ao longo do capítulo, ao recusar que os objetos percebidos pela mente finita

sejam dependentes das modificações dessa mente, Malebranche conclui que as ideias são

entidades realmente distintas das operações mentais, de modo que os objetos da percepção são

independentes da mente. Entretanto, esses objetos da percepção não podem ser as coisas

mesmas existentes à medida que a mente não tem condições ontológicas de apreender, ou

perceber, diretamente as coisas materiais. De modo que para dar conta de explicar o fenômeno

da percepção, baseado na leitura de que as ideias, pelo seu caráter representativo, não podem

ser resultados de modificações mentais, Malebranche conclui que o que é percebido são

Page 200: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

200

determinados seres representativos espirituais, que são como que substitutivos das coisas

criadas por Deus e que estão em Deus à medida que são idênticos a sua natureza tomada sob

um determinado aspecto, isto é, quando a natureza de Deus é modelo, ou exemplar, para todas

as coisas criadas.

Diante disso, observou-se que as consequências da interpretação e do posicionamento

de Malebranche frente à concepção cartesiana de ideia levam-no a uma compreensão de que o

processo perceptivo é de cunho representacionalista porque entre a mente que percebe e as

coisas materiais percebidas há uma terceira entidade, a ideia, que intermedeia todo o processo

sendo, propriamente falando, o objeto imediato da operação mental perceptiva. Mais que isso,

considerou-se nesse capítulo que o representacionalismo malebranchista trata-se, na verdade,

de um representacionalismo radical, pois, ao fim e ao cabo, o que se percebe realmente é a

substância de Deus quando se percebe nele as ideias. E apenas por inferência, devido à perfeição

e à bondade divinas, tem-se acesso às coisas criadas por Deus.

No terceiro capítulo, examinou-se a crítica de Arnauld às concepções malebranchistas

em sua teoria da percepção. A interpretação elaborada nesse capítulo acerca dos

posicionamentos de Arnauld tem como referência o seu propósito de solapar o procedimento

argumentativo utilizado por Malebranche que, segundo Arnauld, conduz a teses e

consequências absurdas acerca do tema da percepção, que seriam incompatíveis, na sua

interpretação, com a teoria de Descartes. Desse modo, notou-se que a fim de contestar os

fundamentos que permitem a Malebranche defender sua tese de que as ideias são objetos

representativos realmente distintos tanto da percepção, isto é, do ato mental da percepção,

quanto das coisas criadas por Deus, Arnauld reforça, no desenvolvimento do seu trabalho, o

caráter da ideia como não distinta do ato mental representativo. Ao fazer isso, ele pretende dar

uma resposta a Malebranche no sentido de mostrar a maior plausibilidade, frente à concepção

cartesiana de ideia, de uma teoria da percepção que compreende as ideias como não diferentes

de um ato representativo do pensamento por meio do qual o sujeito pode perceber as coisas. O

esforço argumentativo de Arnauld é o de provar não apenas que a teoria malebranchista está

assentada em bases falsas, mas que a compreensão de ideia como certos seres representativos

independentes da mente depende da postulação de entidades metafísicas desnecessárias para o

efetivo entendimento de como a percepção funciona. E dessa maneira, Arnauld pretende evitar

a consequência representacionalista de Malebranche, que ele entende como radical e

incompatível com os propósitos e a simplicidade de Deus na criação, bem como uma má

compreensão da teoria cartesiana da percepção.

Page 201: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

201

Apesar da análise das passagens em que Arnauld parece que poderia assumir um tipo

de representacionalismo na percepção, diferente daquele de Malebranche, não se concluiu na

tese uma interpretação definitiva que o entenda dessa maneira. Isso porque o peso dado por

Arnauld à noção de ideia como ato do pensamento, quando ele associa ideia à percepção,

permite, como visto no terceiro capítulo, a interpretação de que o vocabulário

representacionalista utilizado por Arnauld nessas passagens esteja sendo empregado de maneira

meramente trivial, como quem constata que é apenas através de uma percepção que as coisas

são percebidas, o que pode subsidiar interpretações realistas diretas de Arnauld. Desse modo,

o que se retirou da investigação feita sobre Arnauld nesse capítulo é que para desmantelar a

teoria da percepção de Malebranche, Arnauld procura depurar justamente aquilo que enseja

essa teoria, a saber, a noção de que a ideia é um conteúdo representativo que, de alguma

maneira, se diferencia do ato mental que a torna disponível à consciência e, enquanto tal, precisa

ter a sua natureza explicada. Tendo isso em vista, ele promove uma interpretação da ideia que

a reduz à operação perceptiva da mente e, assim, impede que ela seja tomada como uma terceira

entidade. Contudo, como considerou-se, ao fazê-lo, Arnauld negligencia o conceito cartesiano

de realidade objetiva, permitindo uma interpretação acerca da ideia e da percepção que

esvaziam a teoria de Descartes.

No quarto e último capítulo da tese, retomou-se a discussão acerca da teoria cartesiana

da percepção a fim de olhá-la sob um prisma mais amplo e esmiuçado que se tornou possível

em função da análise de parte do debate entre Malebranche e Arnauld. Conforme a retomada

do exame da resposta com Caterus, procurou-se precisar mais claramente os conceitos de ser

objetivo e de realidade objetiva da ideia a fim de se produzir uma explicação do motivo pelo

qual a ideia é definida por Descartes como um ato da mente que exibe na consciência alguma

coisa como objeto, isto é, como algo de diferente das próprias afecções mentais do sujeito, um

ser objetivo.

Na interpretação desenvolvida, defendeu-se que o conteúdo apresentado pelo ato

representativo da mente na consciência, o ser objetivo, possui realidade objetiva. Isso significa

que esse ser objetivo é alguma coisa de real, que tem grau de realidade, no pensamento e, de

certa maneira, autônoma à medida que não se reduz a, ou não se explica pela, simples operação

mental que o exibe. Com isso se quer dizer que o ser objetivo tem realidade objetiva quando é

a representação mental de um conjunto de propriedades determinadas que designa algum objeto

distinto do sujeito. Sobre o ser objetivo, o pensamento não tem nenhuma ingerência, suas

operações não entram na composição desse conjunto de propriedades, de modo que é possível

Page 202: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

202

afirmar que o ser objetivo se impõe ao pensamento: é alguma coisa no pensamento, mas que

não depende dele para ser o que é.

Por ser algo de real no pensamento, é legítimo compreender o ser objetivo como algo

distinto do próprio pensamento. Entretanto, contrariamente à interpretação de Malebranche, a

leitura de Descartes feita nesse capítulo final entende que o ser objetivo não é independente da

mente e por isso cabe dizer que ele é apresentado pela ideia (tomada como ato) no pensamento.

Sendo assim, com relação às operações do pensamento, o conteúdo representativo, ou o ser

objetivo de uma ideia, possui apenas uma autonomia relativa que não implica independência.

E dessa forma, o ser objetivo não consiste num objeto realmente distinto e separado da mente.

É importante perceber que a interpretação realizada nessa tese recusa claramente a

solução malebranchista para a teoria da percepção. Contudo, ela recusa também a leitura

arnaldiana, que, em função das razões debatidas, procura reduzir o conteúdo representativo das

ideias às operações do pensamento. Entende-se que se fosse assim como Arnauld sugere,

Descartes jamais poderia oferecer uma resposta satisfatória a Caterus e o sistema cartesiano

restaria impedido de romper com o solipsismo. Levando isso em consideração, defende-se aqui

que se procurou estabelecer uma interpretação intermediária para o status ontológico do ser

objetivo que recusou tanto sua existência como uma terceira entidade distinta e separada da

mente, quanto sua redução indevida à simples operação mental.

Tanto a leitura de Malebranche, como a de Arnauld acerca da teoria da percepção de

Descartes produzem consequências teóricas não apenas imprevistas, mas, talvez

principalmente, recusáveis por ele. Pois, defendeu-se nessa tese que o texto cartesiano sugere

fortemente que a ambiguidade expressa na definição de ideia diz respeito a características

próprias da percepção do sujeito segundo as quais ele pode conhecer coisas externas ao seu

pensamento. O que se quer dizer é que ao procurar conjugar na definição de ideia os aspectos

do ato mental e do conteúdo mental, Descartes não estaria cometendo uma imprecisão, mas sim

explicando que o fenômeno da percepção de coisas, quando realizado pelo sujeito, é algo que

ocorre segundo as operações do seu pensamento, que são capazes de acessar objetos distintos

dele mesmo sem o recurso a entidades metafísicas pouco esclarecidas e sem o recurso a um

realismo ingênuo que admite como um dado a existência de coisas que seriam apreendidas pela

percepção. Entendeu-se nessa tese que Descartes, com a ambiguidade da noção de ideia,

procura mostrar que a percepção, nesses termos, é um fenômeno do sujeito pensante e, no fim

das contas, do homem, que se explica pela análise daquilo que se passa nesse sujeito, isto é,

sem a necessidade de qualquer postulação metafísica não fundamentada.

Page 203: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

203

Nesse sentido, é possível compreender com mais exatidão a afirmação de que ideia,

segundo Descartes, é um modo do pensamento que é “como imagem das coisas”. Isso significa

que a ideia é, como já dito, um certo tipo de modificação mental de caráter representativo e,

simultaneamente a isso, ela é indissociavelmente a exibição de um conteúdo que é representado

como objeto no pensamento; e esse conteúdo não se confunde com o ato. Arrisca-se aqui uma

analogia ilustrativa: tal como um projetor exibe uma imagem ao projetá-la numa tela em branco;

e essa imagem, ainda que dependa do projetor para ser projetada, não se confunde, ou se resume

ao projetor, à medida que ela é a exibição de alguma coisa distinta do próprio projetor, que se

configura segundo seu modo particular de ser; é admissível tomar analogamente a ideia como

uma espécie de projetor na teoria cartesiana das ideias, isto é, como um instrumento, o ato

representativo do pensamento, que projeta, ou apresenta (não figurativamente, nesse caso) um

determinado conteúdo na consciência. Ainda que o conteúdo representativo da ideia dependa

do ato mental que o exibe no intelecto (assim como a imagem depende do projetor), ele não

depende integralmente desse ato para ser o que é, pois é alguma coisa de real no pensamento,

relativamente autônoma com relação a ele, que designa, segundo seu modo próprio de ser,

alguma coisa fora do pensamento.

Por fim, se a ideia, segundo Descartes, é esse modo representativo do pensamento que

exibe um conteúdo determinado como objeto na consciência – conteúdo esse que é uma

realidade no pensamento relativamente autônoma ao ato que a exibe – e que não depende da

existência de nenhum correlato formal instanciado na realidade para ser pensado, então é

legítimo defender que a teoria da percepção de Descartes é de cunho representacionalista. Pois

são os conteúdos representativos que são diretamente percebidos pelo sujeito. Como foi visto

no último capítulo, entre o modo de ser objetivo das coisas pensadas e o modo de ser formal

das coisas existentes há uma distinção real que permite concebê-las como coisas

numericamente distintas. Nesse sentido, mesmo que o conjunto de propriedades que designa

um determinado objeto esteja atualizado no determinado objeto existente, a ideia desse conjunto

de propriedades distingue-se do ente formal que atualiza tais propriedades. Por esse motivo,

quando o sujeito percebe alguma coisa, o que ele percebe diretamente é a ideia de alguma coisa

que o remete para algo distinto do pensamento. A ideia medeia o processo perceptivo na teoria

cartesiana e o sujeito só acessa as coisas mesmas indiretamente.

Entretanto, para concluir, é necessário que se diga que, diferentemente do

representacionalismo de Malebranche, em que a mente finita só acessa um aspecto da

substância divina quando percebe as ideias em Deus, ou seja, onde a relação perceptiva da alma

Page 204: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

204

se dá apenas com Deus; o representacionalismo observado na teoria cartesiana da percepção

deve ser entendido como mais moderado à medida que, segundo ele, ainda que indiretamente,

isto é, por intermédio do ser objetivo exibido pela ideia na consciência, o sujeito estabelece

uma relação perceptiva e cognitiva com o mundo criado por Deus.

Page 205: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

205

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALANEN, Lilli. Descartes’s concept of mind. Cambridge e Londres: Harvard University Press, 2003.

ALQUIÉ, Ferdinand. La découverte méthaphysique de l’homme chez Descartes. Paris: Presses Universitaires de France, 4ª ed., 1991.

ARNAULD, Antoine. Des vraies et des fausses idées. Denis Moreau (editor). Paris: Vrin, 2011.

BEYSSADE, Jean-Marie. Sensation et idée: le patron rude. In: Antoine Arnauld: philosophie du langage et de la connaissance. Jean-Claude Pariente (org.). Paris: Vrin, 1995.

CHAPPEL, Vere. The theory of ideas. In: Essays on Descartes’ Meditations. Amélie O. Rorty (org.). University of California Press, 1986.

COOK, Monte. Arnauld’s alleged representationalism. Journal of the History of Philosophy, p. 53-62, 12, 1974.

_____. The alleged ambiguity of “idea” in Descartes’ philosophy. The Southwestern Journal of Philosophy, vol. 6, n. 1, p. 87-94. University of Arkansas Press: WINTER, 1975.

_____. Descartes’ alleged representationalism. History of Philosophy Quarterly, vol. 4, No. 2, p. 179-195 Abril, 1987.

_____. Malebranche versus Arnauld. Journal of the History of Philosophy, vol. 29, n. 2, p. 183-199. Johns Hopkins University Press: Abril, 1991.

_____. The ontological status of malebranchean ideas. Journal of History of Philosophy, vol. 36, n. 4, pp. 525-44, 1998.

COSTA, Michael J. What cartesian ideas are not. Journal of the History of Philosophy, vol. 21, n. 4, p. 537-549. Johns Hopkins University Press: October, 1983.

DAUVOIS, Daniel. Idée et figure chez Descartes. In: La voie des idée? Le statut de la representation XVIIe-XXe siècles. Kim Sang Ong-Van-Cung (org.). Paris: CNRS Éditions, 2006.

DE ROSA, Raffaella. Descartes and the puzzle of sensory representation. Nova York: Oxford University Press, 2010.

_____. Descartes’ causal principle and the case of body-to-mind causation. In: Canadian Journal of Philosophy, v. 43, n. 4, p. 438-459, 2013.

Page 206: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

206

DERENNE, Jaime. Recherches arnaldiennes – Tome I: Théorie raisonnée des idées chez Antoine Arnauld: reprise et prolongement du projet cartésien. Paris: Classiques Garnier, 2017.

DESCARTES, René. Coleção Os Pensadores: Descartes. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

_____. Œuvres de Descartes. Charles Adam & Paul Tannery (org.), 11 vol. Paris: Vrin, 1957-1996.

_____. Descartes, Œuvres philosophiques. Ferdinand Alquié (org.), 3 vol. Paris : Classiques Garnier, 1996-98.

_____. The philosophical writings of Descartes. Tradução de John Cottingham, Robert Stoothoff e Dugald Murdoch. Cambridge: Cambridge University Press, 1984-85. Vol I-II.

_____. The philosophical writings of Descartes. Tradução de John Cottingham, Robert Stoothoff, Dugald Murdoch e Anthony Kenny. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. Vol III.

_____. Princípios da Filosofia. Tradução de Guido Antonio de Almeida (coordenador), Raul Landim Filho, Ethel M. Rocha, Marcos Gleizer e Ulysses Pinheiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.

_____. Discurso do método & Ensaios. Tradução de César Augusto Battisti, Érico Andrade, Guilherme Rodrigues Neto, Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli, Pablo Rubén Mariconda, Paulo Tadeu da Silva. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

GLEIZER, Marcos André. Espinosa e a ideia-quadro cartesiana. In: Metafísica e conhecimento – ensaios sobre Descartes e Espinosa. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2014.

GUENANCIA, Pierre. L’idée comme représentation. In: La voie des idée? Le statut de la représentation XVIIe-XXe siècles. Kim Sang Ong-Van-Cung (org.). Paris: CNRS Éditions, 2006.

_____. L’intelligence du sensible. Gallimard, 1998.

GUEROULT, Martial. Descartes selon l’ordre des raisons. 2 vol. Pais: Aubier, 1953

_____. Malebranche: I. La vision en Dieu. Paris: Aubier-Montaigne, 1955.

KAMBOUCHNER, Denis. Les corps sans milieu: Descartes à la lumière d’Arnauld. In: La voie des idée? Le statut de la representation XVIIe-XXe siècles. Kim Sang Ong-Van-Cung (org.). Paris: CNRS Éditions, 2006.

Page 207: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

207

_____. Des vraies et des fausses ténèbres: la connaissance de l’âme d’après la controverse avec Malebranche. In: Antoine Arnauld: philosophie du langage et de la connaissance. Jean-Claude Pariente (org.). Paris: Vrin, 1995.

LANDIM FILHO, Raul. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992.

_____. Idée et représentation. In: Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento. São Paulo: Discurso Editorial, 2009.

_____. Objeto e representação. In: Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento. São Paulo: Discurso Editorial, 2009.

_____. Ideia, ser objetivo e realidade objetiva nas “Meditações” de Descartes. Kriterion, Belo Horizonte, n. 130, p. 669-690, Dez. 2014.

HOFFMAN, Paul. Direct realism, intentionality, and the objective being of ideas. In: Essays on Descartes. Nova York: Oxford University Press, 2009.

JOLLEY, Nicholas. The light of the soul: theories of ideas in Leibniz, Malebranche, and Descartes. Nova York: Oxford University Press, 1990.

LAIRD, John. The ‘legend’of Arnauld’s realism. Mind, New Series, Vol. 33, No. 130, p. 176-179, Abril 1924.

LENNON, Thomas. Philosophical commentary. In: The Search After Truth, Ohio State University Press, 1980.

LOVEJOY, Arthur O. ‘Representative ideas’ in Malebranche and Arnauld. Mind, New Series, vol. 32, n. 128, p. 449-461, Out. 1923.

_____. Reply to professor Laird. Mind, New Series, Vol. 33, No. 130, p. 180-181, Abril 1924.

MCRAE, Robert. “Idea” as a philosophical term in the seventeenth century. Journal of the History of Ideas, vol. 26, no. 2, p. 175-190, Abr. - Jun., 1965.

MALEBRANCHE, Nicolas. Oeuvres Complètes de Malebranche. Paris: Vrin, 1958-70.

_____. A Busca da Verdade. trad. Plínio J. Smith. Discurso Editorial, Paulus, 2004.

MOREAU, Denis. Deux Cartésiens: La Polémique Arnauld Malebranche. Paris: Vrin, 1999.

NADLER, Steven. Reid, Arnauld and the objects of perception. History of Philosophy Quarterly, vol. 3, n. 2, p. 165-173. University of Illinois Press on behalf of North American Philosophical Publications: Abr., 1986

Page 208: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

208

_____. Arnauld and the Cartesian philosophy of ideas. New Jersey: Princeton University Press, 1989.

_____. Malebranche and ideas. Nova York: Oxford University Press, 1992.

_____. Malebranche and the vision in God: a note on the Search After Truth III, 2, iii. Journal of History of Ideas, Vol. 52, n. 2, pp. 309-14, 1991.

ONG-VAN-CUNG, Kim Sang. L’ argument de l’ilusion en la philosophie cartésienne des idées. Revue de métaphysique et de morale (n° 42), p. 217-233. Presses Universitaires de France: 2004/2.

_____. L’objet de nos pensées. Paris: Vrin, 2012.

PEARCE, Kenneth L. Arnauld’s verbal distinction between ideas and perceptions. History and Philosophy of Logic, vol. 37, n. 4, p. 375–390, 2016.

PESSIN, Andrew. Malebranche on ideas. Canadien Journal of Philosophy. Vol. 34, n. 2, p. 241-286, Junho, 2004.

PYLE, Andrew. Malebranche. Routledge, 2003.

ROBINET, André. Descartes: la lumière naturelle, intuition, disposition, complexion. Paris: Vrin, 1999.

ROCHA, Ethel M. O conceito de realidade objetiva na Terceira Meditação de Descartes. Analytica, Vol. 2, n. 2, pp. 203-18, 1997.

_____. Teoria das ideias no sistema cartesiano: a questão da fundamentação do conhecimento. In: Analytica, vol. 6, n. 2. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001-2002.

RODIS-LEWIS, Geneviève. L’oeuvre de Descartes. Paris: Vrin, 1971, 2013.

SCHMALTZ, Tad. Malebranche on ideas and the vision in God. In: Cambridge Companion to Malebranche, pp. 59-87. Cambridge, 2000.

SHAPIRO, Lionel. Objective being and “ofness” in Descartes. Philosophy and Phenomenological Research, vol. 84, n. 2, p. 378- 418. International Phenomenological Society: Março, 2012.

VINCI, Thomas C. Cartesian Truth. New York: Oxford University Press, 1998.

WELLS, Norman J. Objective ideas in Descartes, Caterus and Suarez. Journal of the History of Philosophy, vol. 28, n. 1, p. 33-61. The Johns Hopkins University Press: Janeiro, 1990.

Page 209: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA ... · Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais

209

WILSON, Catherine. Descartes’ Meditations: an introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

WILSON, Margaret D. Descartes on the Origins of Sensation. Ideas and Mechanism: Essays on Early Modern Philosophy. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1999.

YOLTON, John. Ideas and knowledge in seventeenth-century philosophy. Journal of the History of Philosophy, vol. 13, n. 2, p. 145-165. Johns Hopkins University Press: Abril, 1975.

_____. Perceptual Acquaintance From Descartes to Reid. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984.