Resenha - A Geografia Da Fome

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    RESENHA

    1 Prefcio originalmente escrito em francs para a edio do livro de Josu de Castro, Geopoltica daFome, publicado na Frana em 1952. A verso aqui transcrita foi extrada de Castro, Josu de.Geopoltica da Fome: ensaio sobre os problemas de alimentao e de populao. 7a. edio revista eaumentada. Prefcios de Pearl S. Buck, Lord John Boyd Orr e Max Sorre. So Paulo: Editora Brasiliense,1965. 467p.

    2 Gegrafo, professor da Universidade de Paris Sorbonne, Maximilien Sorre (1880-1962) foi umdos principais expoentes da Geografia Humana no sculo 20.

    GEOPOLTICA DA FOME: ECONOMIA E HUMANISMO1

    Max Sorre2

    Em seu livro Geopoltica da Fome, o professor Josu de Castro apresentaum dos aspectos mais prementes e, sem dvida, o mais trgico desta geografiada alimentao, que o captulo inicial de toda geografia humana.

    Realmente, a importncia de tais problemas no era desconhecida dosentendidos do assunto. Existe muito de humanidade profunda na obra de um E.Rclus ou de um Vidal de la Blache, para que no se tivesse deles uma claraconscincia. Na verdade nossos antigos mestres no estavam enganados a respeitodos tabus que Josu de Castro denuncia. Todavia, ele tem muita razo quandoafirmava que o comum dos gegrafos e, principalmente, o comum dos homens,preferiria nada dizer a propsito desse assunto. E muitos h que lanavam umvu discreto sobre essas feias perspectivas. Eis que, apesar disso, ns, civilizados,vimos levantar-se diante de ns o espectro horrvel da fome. Coisa que no seimaginaria nos 20 anos passados, ns temos tido fome como nossos avs tiveramfome. Os quadros mais sombrios, nos quais estvamos inclinados a no encontrarseno na literatura, retomaram, a nossos olhos, cor e realidade. Viram os mdicoso aparecimento, nos hospitais da Europa Ocidental, de molstias estranhas, cujascausas mal se conheciam.

    No foi preciso menos para que uma verdade elementar se tornasse,enfim, sensvel: as necessidades alimentares jamais foram satisfeitas de um modopermanente, seno para uma pequenssima parte da humanidade. Os demais

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    tm vivido de maneira precria, margem da subalimentao. Enquanto asgrandes fomes flagelavam regies que so como que as terras clssicas da fome,a ameaa de escassez peridica rondava em torno de numerosos grupos e aao insidiosa dos desequilbrios dos regimes e das carncias atingiaprofundamente os outros em sua vitalidade. Datam apenas de ontem nossosconhecimentos sobre as molstias de carncia o que vale dizer, sobre as formasmenos espetaculares, porm no menos insidiosas, duma certa espcie de fome.

    O livro de Josu de Castro, em que so estudadas, em seu quadrogeogrfico, as insuficincias de alimentao dos grupos humanos, vem, de certomodo, ao encontro de vrias ordens de preocupaes. Primeiro, uma angstiadespertada em todas as almas pela lembrana de misrias recentes e pelaconscincia que temos, agora, de sua persistncia em vrias regies. Depois, osentimento de uma contradio entre duas sries de fatos: o crescimentodemogrfico atual da espcie humana e a possibilidade de acelerao dessecrescimento pela generalizao das observncias higinicas, de um lado, e, deoutro lado, o balano dos recursos alimentares.

    A velha frmula de Malthus j no aceitvel, mas a inquietao que ainspira ainda perdura. Enfim, os progressos da fisiologia da alimentao orientarampara esses problemas todos aqueles que, a um ttulo ou outro, tm se interessadopela ecologia humana. Seja-me permitido dizer que o meu caso. O movimentonatural do pensamento do ecologista o conduz para o estudo das condies denutrio dos grupos humanos no seu quadro geogrfico, independentemente detoda preocupao de atualidade. A convergncia dessas trs linhas de pensamento sensvel no livro de Josu de Castro. Mdico e gegrafo especializado, tem elecontribudo pessoalmente nas atividades da Organizao das Naes Unidas, nosetor da Alimentao e Agricultora (FAO), de cujo conselho hoje o Presidente.Sua colaborao nessa grande obra internacional permitiu-lhe avaliar com maiorexatido a significao universal e a importncia do problema da alimentao.Primaciais, do ponto de vista cientfico, so esses problemas, de imenso alcancepara a poltica geral da humanidade. Lord Boyd Orr, que escreveu o prefciopara a edio inglesa dessa obra, diz: O ttulo deste livro brilhantemente escritobem poderia ter sido Fome e Poltica, pois surgem, dos debates nele suscitados,concluses polticas da maior importncia. E a concluso mais geral quesomente uma aliana das naes lderes do mundo pode salvar a humanidade detemerosas catstrofes e acabar com a angstia que a oprime.

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    Cadernos de Cincia & Tecnologia, Braslia, v. 20, n. 2, p. 367-371, maio/ago. 2003

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    Os neomalthusianos ofereceram solues pessimistas ao problema daalimentao. O livro de Josu de Castro um extenso requisitrio, apaixonantee apaixonado, contra essas doutrinas que diminuem a humanidade. Ele culpa oserros dos homens, o esprito de ganncia, a imprevidncia, como responsveispor todo o mal. Constitui, ainda, esse livro um libelo contra os malefcios doimperialismo e do colonialismo libelo constantemente justificado. Masesquecemos, por vezes, que nessa matria existem tambm slogans polticos.A moda, hoje, d um sentido repugnante a palavras que usvamos sem malciaem nossa juventude, e o vocabulrio poltico, isto , passional, contamina ovocabulrio cientfico.

    Pode o historiador ser tentado a fazer uma triagem crtica entre osargumentos e deles colher essa idia de que as necessidades alimentares estona origem de todos os grandes movimentos humanos. Chega-se, porm, a acordosobre a sua exatido, no geral. mesmo o essencial. Ter-se- o direito decensurar Josu de Castro por falar to acaloradamente sobre temas que soessenciais para a humanidade? Eu, por mim, julgo que ele realizou um trabalhobenfico, insistindo, com uma fora persuasiva, sobre a gravidade da situao.Seja de quem for o acervo de responsabilidades e de culpas, salutar que nosdefrontemos com esses problemas. E a prpria veemncia de Josu de Castroaproveitar a seu desgnio, que forar a ateno dos indiferentes sobre esteparadoxo mortal: a humanidade, em sua grande massa, margem dasubalimentao, sofrendo fome, ao passo que as tcnicas modernas de produo,aplicadas aos solos disponveis, permitiriam no s que todos os homens tivesseo que comer, de modo suficiente, como tambm afastariam, por algum tempopelos menos, a inquietao que traz o crescimento das populaes. E se digopor algum tempo para no prejulgar a soluo de um problema atualmenteterico, que, entretanto, no se suprime com o negar. Somos homens e vivemosno tempo. preciso desfazermo-nos de fantasmas. Urge crermos em ns mesmose em nossa prpria capacidade. No preciso seguir toda a argumentao deJosu de Castro contra os neomalthusianos, para subscrever sua concluso:O caminho exato da sobrevivncia est ainda ao alcance do homem. Ele marcado pela confiana que deve sentir em sua prpria fora. a verdadeiralinguagem de um homem.

    No faltariam na Frana pessoas categorizadas que pudessem apresentara edio francesa da Geopoltica da Fome. E eu j disse o bastante para fazercompreender que um socilogo, ou um economista, ou um fisiologista fosse

    Geopoltica da fome: economia e humanismo

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    capaz de tal encargo, a despeito do ttulo do livro. Josu de Castro solicitou, noentanto, a um gegrafo a apresentao de seu livro ao pblico francs. Que sejapermitido ento ao apresentante insistir sobre o interesse propriamente geogrfico,retomando certas consideraes desenvolvidas no primeiro captulo do livro. perfeitamente cabvel tratar desse problema, sob o aspecto geogrfico.

    A fome um fenmeno de ordem universal. Mas as grandes penriasdevastadoras, aquelas que atraem a ateno dos homens, flagelam com mais oumenos intensidade ou freqncia conforme os pases. H regies que so comoque as terras clssicas da fome, e entre essas os grandes formigueiros da siaOriental e Sul-Oriental, nas quais o estado atual da tcnica de produo nopermite uma vitria definitiva contra as foras hostis do clima ou restaurar odesgate do solos. Josu de Castro insistiu bastante nas causas humanas desseretardamento tcnico nos diversos pases do Este euro-asitico. Nosubestimaremos por isso a importncia natural dos obstculos a vencer. H,tambm, pases em que reinam as molstias de carncia resultantes dos tiposregionais de alimentao.

    Em suma, o quadro da fome no mundo tem suas modalidades geogrficas.As diferenas locais prendem-se ao conjunto dos traos de complexo geogrfico,traos naturais e traos humanos. Elas constituem uma descrio do gnero devida. por a que reconhecemos a fome. Mas, h mais. O tratamento geogrfico,como com bastante exatido o mostra Josu de Castro, o que fornece osesclarecimentos mais complexos sobre esse fenmeno. Ele lhes d sentido pleno,o que no fazem nem a sociologia, nem a economia, nem a histria, porqueencara o fenmeno no conjunto das condies do meio. Leio no captulo primeiro,dcimo pargrafo: Procurei um mtodo de estudo que fornecesse a viso maisampla do problema, uma perspectiva em que as implicaes, as influncias e asconexes de seus mltiplos fatores naturais e culturais, pudessem tornar-seinteligveis. E precisamente esse o benefcio que traz a aplicao do mtodogeogrfico.

    Assim fazendo, o autor avanou na rota a que agora parecem ter chegadoos gegrafos. As resolues do Congresso Internacional de Geografia de Lisboatm, sob este aspecto, uma larga significao. Foi constituda uma comisso deinformao de geografia mdica. Outra comisso est incumbida de estudar aproduo agrcola e suas possibilidades, em suas relaes com as necessidadeshumanas. Alm disso, a geografia humana torna-se cada vez mais a geografia do

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    homem. Do homem com suas sujeies e suas exigncias, com o poder de suastcnicas e a perfectibilidade destas. A esta geografia humana, renovada em seuesprito, ou, talvez, mais exatamente, recolocada no caminho que lhe abriramnossos mestres, presta Josu de Castro uma excelente contribuio.

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