Resenha A Lenda da Flauta Mágica

3
Mais do que um simples filme, “A Lenda da Flauta Mágica” é um retrato político-social da conjuntura instituída na Europa do século XIII. Vai além de pura ficção. Pode ser uma prazerosa forma de entretenimento, no entanto, pode ensinar também. É ideal para estabelecermos pontes entre o passado e nosso presente. Após assistir essa obra, nossas convergem a um ponto: há situações que resistem ao tempo. Para fazer uma análise sobre o espaço urbano na Idade Média, temos que abandonar, em parte, o conceito que conservamos do que é cidade: ruas pavimentadas; metrô; ônibus; intensa circulação de pessoas; prédios; praças (refúgio semi-natural à selva de pedras em que estamos confinados). Distante dessa visão de concreto, o meio urbano medieval se confundia com o próprio campo, isto é, era mais uma extensão da própria zona rural. Afinal, quando abordamos esse período histórico, devemos lembrar que a vida de então girava em torno da agricultura para subsistência, portanto, não havia necessidade de produzir além do necessário tampouco comercializar. Sem mencionar que as pessoas desfrutavam de tudo que precisam em sua propriedade agrária. Na verdade, os primeiros resquícios de um espaço urbano medieval se constroem ainda no período correspondente ao esfacelamento do Império Romano e o princípio dessa era no século V. Com exceção a península Itálica, onde a economia se sustentava através do comércio com o Oriente, “o urbano” se manifestava no restante do continente por meio de algumas poucas vilas. As cidades propriamente só começaram a surgir na baixa Idade Média, acompanhada da decadência do feudalismo e a ascensão da burguesia. O núcleo dessas povoações resulta das feiras que passaram a ser organizadas nos cruzamentos das estradas. Um ou outro comerciante se fixa ali a partir de então e aos poucos os burgos vão se desenvolvendo. A nova ordem que emergiu, assim como o estilo de vida nascido com ela, ganha palco na cidade. Ou melhor, esta surge para atender aquela. O fato de que na época não havia automóvel ou outros babélicos elementos tão intrínsecos a paisagem urbanística contemporânea não exime os centros da Idade Média de qualquer conturbação. Viver em uma cidade era tão caótico como hoje. Exigia muito cera de abelha, pois não devia ser nada agradável ouvir os feirantes berrando para vender suas mercadorias. Assim como na atualidade, a urbis medieval era segregacionista e excluidora: o castelo, obviamente, se reservava a nobreza. Em contraste ao luxo aí os pobres se amontoavam em casebres construídos em vielas

Transcript of Resenha A Lenda da Flauta Mágica

Page 1: Resenha A Lenda da Flauta Mágica

Mais do que um simples filme, “A Lenda da Flauta Mágica” é um retrato político-social da conjuntura instituída na Europa do século XIII. Vai além de pura ficção. Pode ser uma prazerosa forma de entretenimento, no entanto, pode ensinar também. É ideal para estabelecermos pontes entre o passado e nosso presente. Após assistir essa obra, nossas convergem a um ponto: há situações que resistem ao tempo.

Para fazer uma análise sobre o espaço urbano na Idade Média, temos que abandonar, em parte, o conceito que conservamos do que é cidade: ruas pavimentadas; metrô; ônibus; intensa circulação de pessoas; prédios; praças (refúgio semi-natural à selva de pedras em que estamos confinados). Distante dessa visão de concreto, o meio urbano medieval se confundia com o próprio campo, isto é, era mais uma extensão da própria zona rural. Afinal, quando abordamos esse período histórico, devemos lembrar que a vida de então girava em torno da agricultura para subsistência, portanto, não havia necessidade de produzir além do necessário tampouco comercializar. Sem mencionar que as pessoas desfrutavam de tudo que precisam em sua propriedade agrária.

Na verdade, os primeiros resquícios de um espaço urbano medieval se constroem ainda no período correspondente ao esfacelamento do Império Romano e o princípio dessa era no século V. Com exceção a península Itálica, onde a economia se sustentava através do comércio com o Oriente, “o urbano” se manifestava no restante do continente por meio de algumas poucas vilas. As cidades propriamente só começaram a surgir na baixa Idade Média, acompanhada da decadência do feudalismo e a ascensão da burguesia. O núcleo dessas povoações resulta das feiras que passaram a ser organizadas nos cruzamentos das estradas. Um ou outro comerciante se fixa ali a partir de então e aos poucos os burgos vão se desenvolvendo. A nova ordem que emergiu, assim como o estilo de vida nascido com ela, ganha palco na cidade. Ou melhor, esta surge para atender aquela.

O fato de que na época não havia automóvel ou outros babélicos elementos tão intrínsecos a paisagem urbanística contemporânea não exime os centros da Idade Média de qualquer conturbação. Viver em uma cidade era tão caótico como hoje. Exigia muito cera de abelha, pois não devia ser nada agradável ouvir os feirantes berrando para vender suas mercadorias.

Assim como na atualidade, a urbis medieval era segregacionista e excluidora: o castelo, obviamente, se reservava a nobreza. Em contraste ao luxo aí os pobres se amontoavam em casebres construídos em vielas tortas. Pelos becos fétidos, vagavam mendigos e prostitutas. As igrejas, em estilo medieval, resplandeciam grandiosidade e poder. O projeto arquitetônico delas se destacava entre os demais prédios, inclusive aqueles que abrigavam a administração pública, que em tese não existia. Claro que isso era intencional: em suma, evidencia que o catolicismo monopolizava todas as esferas da vida – política, cultura, religião, moral, ética.

No século XIII, a Europa experimentou um crescimento populacional sem precedentes em decorrência, especialmente, das boas colheitas. O emprego de novas técnicas e ferramentas na agricultura de uma contribuição imensurável no aumento da produção. A fim de abrigar a crescente população, os burgos, sem o mínimo planejamento, expandira-se além de suas muralhas habituais. Em outras palavras,

Page 2: Resenha A Lenda da Flauta Mágica

uma versão antiga do “bota abaixo”, que consigo levou toda aquela sujeira e mais um pouco. Em questão de anos, a vilas se transformaram em grandes cidades com 10, 20, 30 mil habitantes, mas sem a menor estrutura para comportar tanta gente. Como geralmente acontece, todo boom demográfico traz sério problemas (lê-se aqui doenças).

Em qualquer comparação, facilmente se encontram semelhanças entre as sociedades moderna e medieval. Se atualmente não é raro ver uma pilha de lixo próximo a nossas residências (ao menos temos a “decência” de jogar o entulho em um terreno baldio), nossos antepassados na Era das Trevas, sem muita cerimônia, atiravam janela a fora os resíduos que produziam. Ou seja, devia-se ter bastante precaução e evitar dar passos em falso, dado que nunca se adivinharia quando se seria o próximo a sentir um coquetel de fazes com urina descer pelo corpo ou simplesmente se atolar em merda. Faz-se necessário esclarecer que o lixo em questão era essencialmente orgânico (excrementos fisiológicos ou resto de alimentos).

Sob a perspectiva do mundo moderno, onde se conhece perfeitamente os males causados pela ausência de saneamento básico ou acúmulo de resíduos, qualquer um condenaria tamanha falta de higiene e imundice, sem esquecer de que também qualificaria esses europeus de porcos. Afinal, desde o jardim de criança somos educados que lugar de lixo é no lixo (embora se ouça tanto isso e tenhamos acesso à informação, por que não é difícil esbarrar o olhar com uma lata, garrafa peti, embalagem de plástico?). Contudo, para uma sociedade fortemente regimentanda na religião e no misticismo, em que imperava a crença de que qualquer desgraça representava um castigo divino, jamais podia se esperar que as pessoas tivessem consciência de que deviam descartar o lixo de forma mais higiênica ou mesmo reciclá-lo. Quem pensaria em criar um lixão sendo sua prioridade garantir um lugar no céu? Não que eram ignorantes – sequer tomavam banho todos os dias ou escovavam os dentes -, só tinham (lê-se desconheciam) os hábitos de higiene.

Uma coisa era certa: os europeus deixavam muito a desejar no quesito higiene. Pagaram caro por isso. Se a praga que os acometeu não fora uma punição divina, sem dúvidas, foi um castigo natural. No século XIV, a epidemia de peste negra varreu o continente europeu. A enfermidade não escolhia classe. Rei; conde; servo; comerciante; banqueiro; padre. Ninguém estava a salvo. Nem mesmo o papa, que se declarava o sumo representante de Deus no mundo, podia intervir contra tamanho apocalipse. Em vez de buscar respostas lógicas a peste, a sociedade preferiu recorrer à religião: quiçá a construção de uma igreja para lhe prestar adoração comoveria o Ser Supremo, que olharia aqueles vis humanos com benevolência. Eram somente meros ímpios pecadores. Tão desprezíveis.

Longe de ter sido enviada dos céus, a peste negra vinha literalmente da terra. Bastava olhar para qualquer lado e se veria um, dois, três, quantos ratos você quisesse. Na verdade, a doença era transmitida pelas pulgas do roedor. Embora originário do Oriente, esse animal se esbaldou com a imundice que encontrou na Europa. Simplesmente seguiram ao pé da letra a máxima crista “Crescei e multiplicai-vos”. De uma maneira ou outra, os próprios europeus contribuíram com sua desgraça. No fim das contas, o preço fora acre: 30 milhões de almas. Com um

Page 3: Resenha A Lenda da Flauta Mágica

genocídio natural de tais proporções, não surpreende que o homem da época pensava que estava sendo castigo pela fúria celestial. Deus estava mesmo possesso.

Incrivelmente ou não, algumas mentes arriscaram suas vidas em benefício humano. Confrontando-se com a doutrina teológica que vigorava, alquimistas, como Milius, tentaram criar uma cura para pandemia. Em vão. Suas experiências não tinham qualquer fundamente científico, geralmente usavam ervas medicinais. Entretanto, abriram caminho para que mais tarde outros pudessem praticar a ciência sem se sentirem coagidos ou ameaçados pelo poder atemporal.

Aqueles que ousaram não seguir o pensamento do universo explicado através da providência tornaram-se cinzas. Se nem mesmo o imperador do Sacro Império Germânico detinha autoridade para se opor a pseuda santa Inquisição, o que dizer de um alquimista judeu? Herege duas vezes!