Resenha de Charles Kahn

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148 volume 4 número 1 1999 sistema a que ela pertence. O A. não recusa esta tese, pois não recusa a aplicação da noção de verdade em filosofia. Ele apenas pondera que “ não devemos aplicá-la em história da filosofia ” (p. 623). Contrariamente ao filósofo, o historiador da filosofia trata de teses filosóficas e não de verdades filosóficas. É por essa razão que o historiador move-se internamente a um complexo de teses ou de conceitos próprios a um determinado sistema filosófico. Na verdade, com essas afirmações o A. está retomando discussões anteriores tidas com C. Panaccio e H. Pasqua sobre o relativismo em filosofia. Dizer, como parece ter pretendido o A., que o sentido de uma tese somente pode ser deter- minado internamente a um sistema, implica a impossibilidade da prática do historiador. Visando evitar este perigo, o A. opta por uma noção mais fraca de relativismo. O historiador da filosofia não deve negar a continuidade semântica entre o que foi afirmado pelo autor medieval X e o enunciado ‘p’ apresentado como tendo sido afirmado por X. Essa continuidade é mesmo pressuposta por uma atividade cujo objetivo é compreender do que trata um determinado enunciado e que busca recons- truir a sua gênese. Como apêndice, Marc Geoffroy propõe uma nova tradução de duas versões árabes da Quaestio 1.11a de Alexandre de Afrodísia sobre a natureza do universal e de três seções (I, 5 ; V, 1-2) da Metafísica do Sifâ’ de Avicenne. Alfredo C. Storck CHARLES KAHN, Sobre o Verbo Grego Ser e o Conceito de Ser. Núcleo de Estudos de Filosofia Antiga (Depto. de Filosofia da PUC-Rio), Rio de Janeiro, 1997. Tradução de Maura Iglésias e outros. 227 páginas. Haveria, no registro ordinário, pré-filosófico da língua grega, alguma peculiaridade no uso do verbo “ser” que se revelasse fundamental e imprescindível para a compreensão da ontologia dos filó- sofos clássicos? E, no caso em que houvesse, ela determinaria uma natureza intrinsecamente limita- da e mesmo paroquial de tal ontologia, que, diante desse quadro, seria assim incapaz de validar suas pretensões fora de seu domínio original? Essa é a questão sobre a qual se debruçou, durante anos, Charles Kahn, tendo inclusive dedica- do-lhe um livro inteiro, The Verb ‘Be’ in Ancient Greek, 1973. O volume que o Núcleo de Estudos de Filoso- fia Antiga da PUC-RJ nos apresenta, porém, consiste numa série de artigos, inteligentemente dispostos

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Charles Kahn

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    sistema a que ela pertence. O A. no recusa esta tese, pois no recusa a aplicao da noo deverdade em filosofia. Ele apenas pondera que no devemos aplic-la em histria da filosofia (p.623). Contrariamente ao filsofo, o historiador da filosofia trata de teses filosficas e no de verdadesfilosficas. por essa razo que o historiador move-se internamente a um complexo de teses ou deconceitos prprios a um determinado sistema filosfico. Na verdade, com essas afirmaes o A.est retomando discusses anteriores tidas com C. Panaccio e H. Pasqua sobre o relativismo emfilosofia. Dizer, como parece ter pretendido o A., que o sentido de uma tese somente pode ser deter-minado internamente a um sistema, implica a impossibilidade da prtica do historiador. Visandoevitar este perigo, o A. opta por uma noo mais fraca de relativismo. O historiador da filosofia nodeve negar a continuidade semntica entre o que foi afirmado pelo autor medieval X e o enunciadop apresentado como tendo sido afirmado por X. Essa continuidade mesmo pressuposta por umaatividade cujo objetivo compreender do que trata um determinado enunciado e que busca recons-truir a sua gnese.

    Como apndice, Marc Geoffroy prope uma nova traduo de duas verses rabes da Quaestio1.11a de Alexandre de Afrodsia sobre a natureza do universal e de trs sees (I, 5 ; V, 1-2) daMetafsica do Sif de Avicenne.

    Alfredo C. Storck

    CHARLES KAHN, Sobre o Verbo Grego Ser e o Conceito de Ser.Ncleo de Estudos de Filosofia Antiga (Depto. de Filosofia da PUC-Rio), Riode Janeiro, 1997.Traduo de Maura Iglsias e outros. 227 pginas.

    Haveria, no registro ordinrio, pr-filosfico da lngua grega, alguma peculiaridade no uso doverbo ser que se revelasse fundamental e imprescindvel para a compreenso da ontologia dos fil-sofos clssicos? E, no caso em que houvesse, ela determinaria uma natureza intrinsecamente limita-da e mesmo paroquial de tal ontologia, que, diante desse quadro, seria assim incapaz de validar suaspretenses fora de seu domnio original?

    Essa a questo sobre a qual se debruou, durante anos, Charles Kahn, tendo inclusive dedica-do-lhe um livro inteiro, The Verb Be in Ancient Greek, 1973. O volume que o Ncleo de Estudos de Filoso-fia Antiga da PUC-RJ nos apresenta, porm, consiste numa srie de artigos, inteligentemente dispostos

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    em ordem cronolgica, pelos quais se desenha um notvel itinerrio, em que podemos acompanhar oaprimoramento progressivo das formulaes e resolues propostas por Kahn.

    O desafio inicial de Charles Kahn foi defender a ontologia grega contra adversrios severos dediferentes tipos: os que negavam qualquer validade universal ontologia grega clssica dado o seuenraizamento numa lngua particular (o relativismo lingstico e a gramtica profunda, p. 36-37,159-161), e os que a acusavam e talvez ainda a acusem de deslizes falaciosos entre diferentesacepes do verbo ser, as quais ou nem sequer teriam sido percebidas em sua mtua diversidade,ou teriam sido subrepticiamente ignoradas em favor de preconceitos filosficos duvidosos (certa tra-dio da filosofia analtica, p. 37, 160).

    Kahn inicialmente parece ter se preocupado com alguns problemas especficos de filologia his-trica e com algumas objees filosficas mais peculiares. De um lado, tratava-se de argumentar, con-tra Stuart Mill e certa tradio ligada ao positivismo lgico, que a ontologia grega em geral no come-te, no prprio ato de seu surgimento, uma falcia simplria na confuso entre os usos existencial ecopulativo do verbo (p. 3-4, 37, 160, 205). De outro lado, do ponto de vista da filologia histrica, trata-va-se de argumentar contra a tese de Meillet e Brugman, assumida pela ortodoxia tradicional (p. 44-5,156-9), segundo a qual o valor existencial do verbo ser seria historicamente o seu sentido maisprimitivo, ao passo que a noo abstrata de cpula teria surgido apenas tardiamente, com conse-qente abandono do sentido concreto original. Mas essas duas linhas de argumentao se encon-tram num terceiro centro de interesse: mostrar que a ausncia de um termo especial para designar oconceito de existncia de modo algum pode ser acusada como causa das pretensas falcias que seimputam aos antigos (p. 104-6).

    Finalmente, talvez a grande questo de Kahn possa ser vista como um desenvolvimentonatural de uma preocupao presente j no primeiro artigo (O Verbo Grego >Ser= e o Conceitode Ser, 1966), a saber, mostrar que no h uma correspondncia um-a-um entre distines gra-maticais e distines semnticas (p. 4-5): isto , uma mesma construo gramatical poderia ouat mesmo deveria comportar uma diversidade de funes lgicas, assim como uma mesma fun-o lgica poderia ser expressa em mais de um tipo de construo sinttica. A lngua grega defato dispunha de um mesmo e nico verbo B o einai B para o desempenho de diversas funeslgico-lingsticas. Sob o pressuposto de que tais funes deveriam ser rigorosamentedistinguidas e mesmo separadas (inclusive por uma notao absolutamente unvoca), poder-se-ia talvez imputar confuso aos filsofos gregos. No entanto, longe de ser vista como lamentvelfonte de embarao ou de falcias simplrias, essa situao da lngua grega ordinria concebidapor Kahn como uma notvel vantagem: dispondo de um nico e mesmo verbo com ocorrnciassobredeterminadas, a ontologia grega teria adquirido fora justamente por articular de imediatoquestes que se tornam desarticuladas na posteridade. A questo da existncia, assim como ateoria da proposio, nasceriam para os gregos j (e unicamente) sob a forma da questo sobre os

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    princpios do conhecimento verdadeiro. E uma das razes disso seria o fato de que, na lnguagrega ordinria, o verbo ser teria como significado primitivo um valor veritativo capaz de in-cluir, de um s golpe, um desdobramento copulativo e uma dimenso existencial. O valor mais b-sico e imediato do verbo ser se encontraria nas construes absolutas em que seu contedolexical poderia ser traduzido como verdade, o caso; no entanto, essas construes abso-lutas com sentido veritativo poderiam (ou deveriam) ser facilmente desdobradas em construespredicativas nas quais estaria includa a postulao de que existe a coisa a respeito da qual sepretende afirmar algo verdadeiro. E isto porque o sujeito dessas construes absolutas, noobstante ser gramaticalmente simples, seria sempre um fato complexo, analisvel numa proposi-o com a forma predicativa habitual (cf. p. 193-5).

    J no primeiro artigo (Sobre o verbo grego ser e o conceito de ser, 1966) Kahn articula comadmirvel fora essa tese central, que ir recebendo sucessivamente maior preciso e apuro. Kahnafirma que o objeto da ontologia grega, o ente, concebido primeiramente como objeto do discursoe do conhecimento verdadeiro (p. 26): aquilo que verdade, aquilo que o caso. Mas, de acordocom o uso sobredeterminado do verbo a partir do sentido veritativo mais primitivo, to on, ao invs dedesignar apenas coisas simples, designaria tambm de maneira geral fatos com estruturaproposicional (p. 26), isto , fatos complexos cuja existncia, longe de ser analisada de maneira abs-trata como simples ato de existir, seria imediatamente concebida como uma conexo de determina-es, exprimvel na frmula predicativa S P.

    Dentro desse quadro, a pergunta inicial da ontologia grega seria: como a realidade deve ser,para que o conhecimento e o discurso verdadeiro (ou falso) sejam possveis? (p. 102). Viriam aindacompletar esse painel duas caractersticas do verbo ser exploradas sobretudo (mas no exclusiva-mente) por Plato, a saber: o seu aspecto esttico-durativo, em contraste com o verbo gignesthai(tornar-se, vir a ser) e certa nuana de seu aspecto veritativo, enriquecido pelo contraste comphainesthai (parece ser o caso).

    Parte fundamental da estratgia de Kahn, assim, consiste em mostrar que o conceito deexistncia, tal como formulado pela reflexo dos medievais e incorporado na tradio da filoso-fia ocidental, no se apresentou para os gregos como um tpico relevante para a investigaofilosfica. Kahn dedica um artigo inteiro a essa questo (Por que a existncia no emerge comoum conceito distinto na filosofia grega?, 1976). Apenas com o advento da sofstica emergiria naGrcia antiga uma preocupao com a noo abstrata de existncia (p. 174-5). No sucede, po-rm, que os gregos tenham ignorado totalmente tal noo: pelo contrrio, eles a conheceram(como testemunham as reflexes de Aristteles sobre o bode-cervo em A. Po. II-7), mas, entretanto,no a problematizaram de maneira isolada como um tpico central para a filosofia. A questoimediata e central para os gregos nunca foi se isto existe, mas sim como isto existe sendoprecisamente aquilo que ?. Pois o uso existencial do verbo, longe de isolar uma noo abstrata

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    de mero ato de existir, estaria sempre prenhe de cpula incompleta (p. 113, 141), no sentido deque ele sempre suporia um fato complexo que j comportaria implicitamente uma estruturaproposicional, na medida em que a descrio ou definio estrita desse fato s poderia ser feitamediante uma formulao predicativa S P. Nessa perspectiva, pode-se dizer que a noo deexistncia absorvida nos diversos modos de predicao: existir sempre ser algo determinado.E essa observao, que Kahn introduz inicialmente a respeito de Aristteles (p. 103), seria vlidaa fortiori tambm para os filsofos antigos em geral (p. 96), ao menos quanto sua intuio defundo; pois, ainda que a formulao consciente e advertida de uma tbua de categorias (ou mo-dos de predicao) se deva a Aristteles, inegvel que muito antes dele a ontologia grega jteria concebido que existir sempre ser sendo um F (cf. p. 206).

    A ontologia grega, assim, dispunha dos recursos prprios para estabelecer, como questo cen-tral desde sua origem, o mesmo problema que ocupa o centro das atenes no Tractatus deWittgenstein: como o mundo deve ser estruturado de modo a serem possveis a linguagem lgica ecientfica? (p. 102). E com o primado do sentido veritativo (segundo o qual to on seria o objeto abertoao conhecimento e ao discurso proposicional) e a absoro da noo de existncia dentro do sentidomais essencial de ser um F, no haveria lugar, na ontologia grega, para o ceticismo da dvidahiperblica de Descartes, nem para o argumento ontolgico de Anselmo. Pois, ao no permitir a dis-criminao da existncia como mais um predicado entre outros (p. 105-6), a ontologia grega, em suaprpria origem, teria antecipado a observao crtica de Kant a respeito da impossibilidade de seconceber a existncia como um predicado ordinrio, bem como o ponto de vista de Frege, para quem ooperador existencial ( x) dependeria parasitariamente da forma sentencial primria Fx e seriaapenas um conceito de segunda ordem (p. 34).

    Mas em outro artigo (Alguns usos filosficos do verbo ser em Plato, 1981), creio, queKahn alcana a formulao mais madura de sua tese: alguns usos (filosficos) do verbo ser emPlato (mas no s em Plato...) seriam sobredeterminados, no sentido de que vrias leituras gramati-cais de uma nica ocorrncia so no apenas possveis, mas s vezes exigidas para a plena compre-enso do texto (p. 108)1.

    A tese de Kahn a seguinte: alguns usos do verbo na construo absoluta, ao invs de pode-rem ser interpretados estritamente como (i) pura assero de existncia ou como (ii) cpula incom-pleta (como se estivesse implcito um signo de lacuna), devem ser interpretados como um (iii)sentido veritativo, mas um sentido veritativo que internamente se desdobra ou se analisa em um

    (1) Kahn chama de subdeterminado o uso do verbo em que vrias leituras gramaticais seriam indife-rentemente possveis, ao passo que sobredeterminado seria o uso do verbo que exige vrias leiturasgramaticais simultneas.

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    sentido copulativo (elptico, incompleto) e em um sentido existencial. Isto quer dizer: uma mesmaocorrncia do verbo deveria necessariamente ser entendida (sob pena de nos escapar inteiramentea inteligibilidade do texto) como ao mesmo tempo veritativa, copulativa e existencial. Como veritativapor que o verbo teria um contedo lexicalmente traduzvel como assim, o caso. Mas tam-bm como copulativa, na medida em que aquilo sobre o que versa a pretenso de verdade seria umacomplexo de fatos, ou uma atribuio elptica, exprimvel sob a forma proposicional padro. En-fim, como uma ocorrncia tambm existencial, visto que a pretenso de verdade envolveria apostulao de existncia do sujeito do qual se afirmam os atributos. Essa sobredeterminao doverbo garantiria uma perfeita e natural tradutibilidade entre construes absolutas com valorveritativo e construes explicitamente copulativas, e em ambas o valor existencial estaria implci-to (p. 122, nota 18, p. 133).

    Parece, no entanto, haver uma incoerncia na trajetria de Kahn. De um lado, pois, os artigosem que se desenvolve com maior apuro a tese da sobredeterminao concordam inteiramente com aconcepo defendida desde o primeiro artigo: o valor veritativo encontrar-se-ia na base de todos osusos e sentidos do verbo, de modo que o conceito de existncia, que se presumia como mais primitivodo ponto de vista da filologia histrica, no teria seno um estatuto parasitrio, dependente do senti-do veritativo-copulativo. De outro lado, porm, Kahn propala, no segundo artigo (Sobre a Teoria doverbo Ser, 1973), uma pequena revoluo copernicana (p. 45, cf. p. 158): reinstalar a cpula nocentro dos usos de einai, relegando aos sentidos existencial e veritativo o carter parasitrio deoperadores sentenciais que incidem sobre sentenas primitivas articuladas segundo o padrocopulativo. E essa tese retomada na Retrospectiva de 1986, em que Kahn volta a ressaltar (p. 162-5) que a cpula seria mais fundamental do que os usos veritativo e existencial. Parece, assim, haveruma pequena oscilao de Kahn quanto a essa problemtica.

    Essa incoerncia, no entanto, no seno aparente: trata-se de perspectivas diversas, mas per-feitamente compatveis entre si. O artigo de 1973 e a Retrospectiva de 1986 procuram discriminarqual seria o sentido mais bsico do verbo ser de um ponto de vista mais estritamente lingstico e,alm do mais, eles denominam de uso veritativo estritamente a ocorrncia do verbo em construesabsolutas similares ao ingls Tell it as it is. Sob esse ponto de vista, pois, assume-se como elementomais primitivo a funo copulativa do verbo, sem a qual no poderiam ser compreendidos os usosexistencial e veritativo, os quais, assim, assumiriam a figura de operadores sentenciais que incidemsobre a sentena copulativa j num segundo nvel.

    No entanto, a perspectiva dos demais artigos ligeiramente diversa. Observe-se que emSer em Parmnides e Plato, o ltimo da srie (1988), Kahn fala em padro predicativo-veritativo (p. 199) como centro de organizao dos significados filosficos de einai. Assim,quando mencionam o valor veritativo do verbo, estes artigos no mais visam estritamente a cons-truo absoluta que deveria ser traduzida lexicalmente como o caso, assim, pois se trata

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    antes da pretenso de verdade que est implcita em toda frase declarativa (p. 108). E Kahnressalta: essa funo do verbo ... no uma noo to claramente definida quanto a construoveritativa (p. 108, grifos nossos). O que est em questo aqui a necessidade de ler, dentro daprpria construo copulativa, o operador sentencial veritativo. Kahn no pretende voltar atrsem sua revoluo copernicana. justamente a cpula que se apresenta, imediatamente, comouma funo lgica na qual estariam implcitas a pretenso de verdade e a postulao de existn-cia, que poderiam ser explicitadas por operadores sentenciais incidindo sobre a proposio ini-cial. E Kahn agora se pronuncia em termos de padro predicativo-veritativo apenas porque asobredeterminao lhe permite ver um valor copulativo-veritativo em qualquer ocorrncia do ver-bo, mesmo naquelas cuja gramtica de superfcie exibe uma construo absoluta. A base para aarticulao mais sutil dessa tese encontra-se justamente num dos textos em que Aristteles anali-sa a funo veritativa do verbo ser: pois em Metafsica V-7, ao afirmar que a proposioScrates msico equivale a verdade que >Scrates msico=, longe de introduzir algumaidiossincrasia no manejo do verbo ser, Aristteles estaria efetuando to apenas umaconstatao trivial a respeito da sobredeterminao de toda e qualquer sentena declarativa naforma proposicional (p. 110).

    Mas certos detalhes da tese de Kahn ainda permanecem insatisfatrios. Kahn entende que ouso veritativo se desdobra, de modo natural e no falacioso (p. 122, nota 18), no uso existencialmais a cpula incompleta ou elptica. A conseqncia disso seria uma convertibilidade natural B eigualmente no falaciosa B entre construes absolutas S com valor veritativo (nas quais poder-amos ler a cpula incompleta) e construes explicitamente copulativas S P, nas quais estariaimplcita uma pretenso de verdade. Mas a maneira pela qual Kahn entende a gramtica filosficana convertibilidade dessas frases ainda deixa a desejar. Embora admita que o uso veritativo possa sedesdobrar num esquema sentencial de forma ___ ___ (p. 202), Kahn parece entender asobredeterminao de frases do tipo S como se (i) houvesse uma cpula elptica, cujo predicadodeveria ser explicitado, e como se (ii) a postulao de existncia incidisse estritamente sobre o sujeitodessa cpula incompleta. Assim, a frase inicial S deveria ser reescrita mais ou menos como verdade que S P, e que S existe.

    Isso, no entanto, insatisfatrio. Por um lado, inegvel que construes absolutas com senti-do veritativo podem se desdobrar naturalmente em frmulas predicativas com uma postulao deexistncia implcita. No entanto, no h nenhuma necessidade de entender que, na construo abso-luta inicial, estaria ainda implcito o predicado a ser expresso na sentena copulativa. Tampouco hrazo para restringir a postulao de existncia apenas ao sujeito da proposio explicitamente arti-culada, que o mesmo sujeito da construo absoluta inicial. Ainda que uma leitura tal como pro-posta por Kahn seja possvel em vrios contextos, cremos haver sobejamente outros contextos quepedem uma anlise mais refinada.

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    Nos textos de Plato e Aristteles, comum encontrarmos frases com a forma da constru-o veritativa S . No entanto, para desdobrarmos esse uso veritativo em uma cpula na qualesteja imanente uma pretenso de verdade e uma postulao de existncia, no precisamos su-por um predicado elptico. No precisamos ler a construo absoluta como uma cpula incom-pleta, como se S fosse uma abreviao elptica de S P. Pelo contrrio, devemos desarticularo sujeito da construo inicial, analisando-o nos seus elementos: o S deve ser redescrito comoalgo do tipo xy. De modo que a afirmao inicial S , sendo equivalente a xy , pode ser natu-ralmente desdobrada em uma sentena copulativa, x y, sem nenhuma necessidade de se ima-ginar predicados elpticos.

    A conseqncia disso que o valor existencial implcito na construo absoluta inicialtampouco se restringe ao sujeito S tomado em sua simplicidade, como se a frase S devesse serlida como um uso veritativo que ao mesmo tempo postulasse a existncia de um sujeito parapredicao ulterior B queremos dizer, como se o fosse aquilo que Kahn chama de operadorda frase existencial, isto , o x tomado previamente ao Fx (p. 172). Pelo contrrio, apostulao de existncia, ao incidir sobre S, no incide estritamente sobre uma coisa apta a ulte-riormente receber predicados, mas incide j sobre um fato complexo, cuja existncia poderia seranalisada sob a forma proposicional.

    Assim, na medida em que o sujeito S equivale semanticamente a um complexo xy, a construoabsoluta inicial S pode ser naturalmente rescrita na frmula copulativa padro, x y, sem anecessidade de supor um predicado implcito, e deve ser lida como uma pretenso de existncia queinternamente se desdobra numa estrutura predicativa: S seria equivalente a existe um S que xy, ou melhor dizendo, existe um S, porque x y 2.

    justamente este padro de anlise que se deve ter em conta diante de diversos textosaristotlicos. No livro Gamma da Metafsica, por exemplo, as formulaes do princpio da no contra-dio variam indiferentemente entre uma construo absoluta e outra copulativa. De um lado, temosa construo absoluta [dnaton] t at enai ka m enai (1006a 1; cf. 1009a 11-12, 1011b 26): impossvel que o mesmo seja (verdadeiro) e ao mesmo tempo no seja (verdadeiro), ou impossvel que [S e S no ].

    Mas, ora, se compreendemos que t at, fazendo as vezes do sujeito S da construoabsoluta, deve ser concebido como um complexo analisvel em dois elementos, podemos

    (2) Uma anlise semelhante a esta proposta por Mohan Matthen em Greek Ontology and the Is ofTruth Phronesis vol. 28, n1. 2, 1983, p. 113-135. Julgamos que o artigo de Matthen devidamente retifi-ca certos itens insatisfatrios na proposta geral de Kahn.

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    reescrever o enunciado acima na frmula predicativa padro, que inclusive a formulaoconsagrada do PNC: t at ma prcein te ka m prcein dnaton t at (1005b 19-20), ou seja: impossvel que o mesmo (predicado) seja atribudo e no seja atribudo ao mesmo tem-po ao mesmo (sujeito).

    Nessa perspectiva, vemos que t at na construo absoluta equivale a algum fato comple-xo xy (por exemplo, auto = Scrates sentado), no qual no h ainda nenhuma articulao lgicaimplcita, e sobre o qual incide a assero enftica do , a qual ao mesmo tempo afirma que existe ofato xy e que o fato xy o caso3. Mas dizer que Scrates sentado (o caso) equivale a dizer queScrates est sentado, ou dizer que verdade que Scrates est sentado.

    Essa maneira de compreender a construo veritativa absoluta, longe de se restringir a ummero detalhe de filologia, revela-se decisiva para a compreenso de alguns pontos fundamentais dafilosofia aristotlica. Aristteles afirma que, para alguns entes, perguntar se existe equivale a per-guntar por que. Essa equivalncia primeira vista paradoxal torna-se perfeitamente inteligvel sesupomos que aquilo sobre cuja existncia se indaga consiste num fato complexo A (por exemplo, tro-vo ou eclipse), de modo que perguntar pela existncia desse fato consiste em perguntar se esto jun-tos os elementos que compem esse fato complexo, ou seja, se h alguma causa pela qual esses ele-mentos se apresentam juntos de maneira a existir o fato complexo A4. Assim, Aristteles pode afirmarque, para certos itens, redunda no mesmo perguntar o que e por que 5, assim como redunda nomesmo procurar obter uma definio completa de sua qididade e procurar especificar a causa pelaqual A existe sendo precisamente o que 6.

    Aparentemente, Aristteles restringiria esse tipo de anlise a fatos manifestamente complexos,que poderiam ser analisados por uma predicao inter-categorial B os exemplos recorrentes so tro-vo = estrondo nas nuvens (1041a 24-26), ou roupa = homem branco (1029b 27-8). Mas no o caso.O livro Z da Metafsica se encerra com o propsito deliberado de aplicar este tipo de anlise, aindaque sob severas restries, tambm ousia: para investigar o por que de uma substncia, devemosdesarticul-la nos seus elementos constituintes (ver VII 7, 1041a 32-b 3).

    3. O prprio Kahn observa essa gramtica nos enunciados aristotlicos do PNC, em Sobre a Ter-minologia para Cpula e Existncia (p. 70). No entanto, Kahn no leva sua anlise s ltimas con-seqncias: ele concebe que a tradutibilidade entre a cpula e o uso veritativo na construo absolutadepende do acrscimo de um predicado que no estaria explcito nesta ltima.4. Analticos Posteriores II 2, 90a 4-8.5. Analticos Posteriores II 2, 90a 14-15; ver tambm II 8, 93a 3-4, e Metafsica VII 17, 1041a 23-28.6. O captulo II 8 dos Analticos Posteriores dedica especial ateno a essa problemtica.

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    nesse ponto, justamente, que sentimos pelo fato de Kahn no ter explorado maisdetalhadamente o verbo ser nos textos aristotlicos. Kahn sugere (p. 135) que a ousia, comonominalizao do verbo einai, poderia exprimir a estrutura proposicional do pensamento, emque se coadunariam as funes de predicar (atribuir a algo alguma propriedade), asserir (pretenderque essa atribuio seja verdadeira) e referir a algo (postular a existncia de algo). Mas Kahn tem emmente textos de Plato, e no de Aristteles. No obstante, h certamente muito a trilhar no caminhoindicado por Kahn B justamente para uma compreenso da ousia aristotlica como exemplo primeiroe privilegiado do ente.

    Lucas Angioni