Resenha de Marvin CARLSON - Teorias do Teatro. Estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade

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Maria Sílvia Betti O livro de Carlson constitui-se num oportuno estímulo no sentido de recuperar, para o debate sobre a arte teatral, todo um riquíssimo veio analítico e interpretativo de elaborações críticas produzido ao longo da história do teatro no Ocidente. No percurso teórico abrangido —de Aristóteles até as teorias pós-estruturalistas e feministas dos anos 80—, Carlson manipula confortável e fluentemente um imenso número de trabalhos e fontes de referência, acompanhando o desenvolvimento paralelo de estudos gerais de áreas como a poesia, a teoria literária e a história. Via de regra sua abordagem evita explicitar visões pessoais, parecendo querer ostentar uma suposta neutralidade. É inevitável, porém, que em alguns trechos essa intenção fique involuntariamente comprometida em função do fato de o próprio discurso construir-se a partir de uma perspectiva em parte europeia e em parte anglo- americana. É o que ocorre, por exemplo, no tocante à ausência praticamente total de menções a quaisquer formas de reflexão crítica pertinentes ao universo cultural pós- colonial ou ao Terceiro Mundo. Carlson contenta-se, a esse respeito, com a referência ao "latino-americano" Augusto Boal, centrada na menção a seu "Teatro do Oprimido" e às teorizações relativas ao Sistema Coringa, sem quaisquer

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CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro. Estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo, Ed. UNESP, 1997. Resenha de Maria Sílvia Betti.

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Maria Sílvia Betti

O livro de Carlson constitui-se num oportuno estímulo no sentido de recuperar,

para o debate sobre a arte teatral, todo um riquíssimo veio analítico e interpretativo de

elaborações críticas produzido ao longo da história do teatro no Ocidente.

No percurso teórico abrangido —de Aristóteles até as teorias pós-estruturalistas

e feministas dos anos 80—, Carlson manipula confortável e fluentemente um imenso

número de trabalhos e fontes de referência, acompanhando o desenvolvimento paralelo

de estudos gerais de áreas como a poesia, a teoria literária e a história.

Via de regra sua abordagem evita explicitar visões pessoais, parecendo querer

ostentar uma suposta neutralidade. É inevitável, porém, que em alguns trechos essa

intenção fique involuntariamente comprometida em função do fato de o próprio

discurso construir-se a partir de uma perspectiva em parte europeia e em parte anglo-

americana. É o que ocorre, por exemplo, no tocante à ausência praticamente total de

menções a quaisquer formas de reflexão crítica pertinentes ao universo cultural pós-

colonial ou ao Terceiro Mundo. Carlson contenta-se, a esse respeito, com a referência

ao "latino-americano" Augusto Boal, centrada na menção a seu "Teatro do Oprimido" e

às teorizações relativas ao Sistema Coringa, sem quaisquer outras referências a

trabalhos posteriores do autor ou à maneira como ele leva adiante ou reformula muitos

dos conceitos que elaborara nesses trabalhos.

Sob a perspectiva dos blocos temáticos abordados, o ponto de partida é o

estabelecimento de um roteiro geral das formulações desenvolvidas no tocante à

tragédia no interior da tradição crítica europeia. A ampla e diversificada gama de

reflexões desenvolvidas no século 20 é assinalada, em seguida, mediante o

levantamento das reflexões registradas no interior de campos tão diversos como os da

psicanálise (Freud, Jung), da filosofia (Jaspers, Husserl, Sartre), da literatura (Albert

Camus), da crítica literária (George Steiner, Roland Barthes), da antropologia (grupo de

Cambridge), da crítica política e sociológica (Lukács) e da própria dramaturgia

(Tchekhov, Shaw, Wilde, Dürrenmatt, Eugene O'Neill, Brecht).

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Mais de um terço do livro é dedicado a esse levantamento de teorias e propostas

produzidas no século 20. O grande fio condutor, neste caso, é a abordagem das

concepções de Stanislavski, Brecht e Artaud, que Carlson considera os teóricos

fundamentais do século. O trabalho de Stanislavski é apresentado com ênfase na

ressonância obtida por seu método de trabalho na América, especialmente após a

publicação de "A Preparação do Ator", sob a égide de seus amigos Norman e Elizabeth

Hapgood, em 1936, dois anos antes da publicação da versão final do texto na Rússia.

Brecht é apresentado como "o teórico que mais se ocupou da dimensão social e

política da arte". A visão dos escritos teóricos brechtianos é apresentada a partir de três

textos básicos: as notas introdutórias à ópera "Ascensão e Queda da Cidade de

Mahagonny", o "Pequeno Organon", que considera o mais consagrado resumo da teoria

brechtiana, e os "Diálogos Sobre o Comércio de Latão". A complexidade das

concepções brechtianas é registrada, paralelamente, a partir da controvérsia com Lukács

nos anos de 1937-38 no jornal "Das Wort", editado em Moscou como fórum

internacional antifascista e como campo de debate das novas teorias literárias soviéticas.

A abordagem das concepções de Antonin Artaud procura ressaltar, desde o

início, o teor de diversidade que as formulações deste viriam a desempenhar quanto às

brechtianas. Para Carlson, Brecht visa essencialmente ao raciocínio e à análise,

enquanto Artaud encara o pensamento discursivo como barreira para a liberação do

espírito, "aprisionado às cadeias do corpo".

Observando a radicalização do pensamento do autor após 1936 -precisamente

quando este desenvolve um trabalho mais fortemente voltado para o corpo como

elemento expressivo e erradica a palavra como centro irradiador de sentido-, Carlson a

seguir rastreia toda uma descendência teatral e teórica de base artaudiana, passando por

Grotowsky (defensor da ideia do ator arquetípico, com ênfase sobre a relação

espectador-espetáculo), por Arrabal (ligado à realização do teatro-pânico, vinculado,

paralelamente, a Jarry, ao dadaísmo e ao surrealismo), por Tadeusz Kantor (com a idéia

de "teatro autônomo" ou de "teatro zero", despreocupado em sugerir interpretações ou

simbolismos) e por Peter Brook (que postula a primazia do diretor e vê em Artaud uma

forma "sacra" de realização teatral); no que se refere a grupos teatrais, passa pelo Living

Theatre (combinando a ideia de luta contra a opressão política com a do impacto

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dramático prescrito por Artaud como tentativa de libertação do indivíduo) e pelo

American Theatre of the Ridiculous (fascinado com a ideia da teatralidade sob o prisma

da perversão).

O segmento final do livro, intitulado "O Século 20 a partir de 1980", procura

rastrear as principais diretrizes de discussão do teatro em vertentes teóricas

diversificadas. Em termos sucintos, Carlson procura delinear as características

principais do universo teórico sob a forma de inventário de suas principais frentes: a da

pesquisa semiológica (Pavis e Erika Fichter-Lichte), a da teoria da recepção (Hans

Robert Jauss) e a da perspectiva desconstrutivista (Jean Alter).

O vasto e complexo inventário das "Teorias do Teatro" encerra-se com um

mapeamento das metodologias de análise mais recentes e mais diretamente ideológicas:

aí se situam o materialismo cultural britânico, no qual se destaca Raymond Williams, o

"new historicism" (de Stephen Greenblatt e Stephen Mullaney), rico em abordagens de

Shakespeare e em análises do papel do teatro dentro das relações de poder, e as diversas

vertentes do pensamento crítico feminista, cuja inserção foi feita na edição revista e

ampliada que serviu de base ao texto publicado em português.

Em tempos como os nossos, em que a crise do capitalismo e das utopias produz

a inconsistência econômica e a fragmentação cultural, o livro de Carlson é sem dúvida

um excelente estímulo ao debate acerca de todas as contribuições que o teatro tem

apresentado ao debate de ideias de nosso tempo.

Maria Sílvia Betti é professora de teatro no Departamento de Letras Modernas

da USP e autora de "Oduvaldo Vianna Filho" (Edusp)

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