Resenha do livro Ele nos deu histórias (Richard L. Pratt, Jr.)

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1 Resenha André Aloísio Oliveira da Silva PRATT JUNIOR, Richard L. Ele nos deu histórias: um guia completo para a interpretação de histórias do Antigo Testamento . São Paulo: Cultura Cristã, 2004. Richard L. Pratt, Jr é doutor em estudos do Antigo Testamento pela Universidade de Harvard, mestre em Teologia pelo Union Theological Seminary e bacharel em Filosofia e Religião pelo Roanoke College. Atualmente é professor de Antigo Testamento no Reformed Theological Seminary em Orlando, Flórida, e presidente do Third Millennium Ministries. Entre as suas obras estão os livros “Every Thought Captive” (Todo pensament o cativo) e Pray with Your Eyes Open(Ore com seus olhos abertos). É membro da Igreja Presbiteriana de Orangewood, juntamente com sua esposa e sua filha. “Ele nos deu histórias” é um livro sobre interpretação de narrativas do Antigo Testamento. O autor tem em vista com seu livro não apenas o público acadêmico, mas também o cristão não diretamente envolvido com o ministério da Palavra, de modo que escreve com clareza, sem apelar para o hebraico ou para termos complicados. Isso não significa, porém, que ele não é profundo; pelo contrário, ele apresenta o assunto com muita profundidade e abrangência, de modo a ser útil até para o mais acadêmico dos leitores. Na introdução, o autor apresenta três processos de interpretação, que se constituem no plano geral da obra: preparação, investigação e aplicação. Na preparação para a interpretação das narrativas do Antigo Testamento, é necessário ter as ferramentas hermenêuticas, como conhecimentos e habilidades para a interpretação, e a energia hermenêutica, que é a obra de iluminação do Espírito Santo. Na investigação das narrativas do Antigo Testamento, deve-se levar em consideração, em primeiro lugar, a investigação histórico-gramatical, que olha para as palavras da Escritura dentro da correspondente frase, parágrafo e livro, sem esquecer a época em que foram escritas; e em segundo lugar, a investigação histórica, cuja importância reside no fato de que, primeiro, a linguagem utilizada na Escritura expressa uma convenção restrita a uma determina época, segundo, Deus usou os autores bíblicos com as suas personalidades e intenções e, terceiro, a revelação se adaptou ao seu público originou, sendo, assim, necessário conhecer sobre o documento, o escritor e o público para uma correta investigação. Na aplicação das narrativas do Antigo Testamento, deve-se reconhecer que ela

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“Ele nos deu histórias” é um livro sobre interpretação de narrativas do Antigo Testamento. O autor tem em vista com seu livro não apenas o público acadêmico, mas também o cristão não diretamente envolvido com o ministério da Palavra, de modo que escreve com clareza, sem apelar para o hebraico ou para termos complicados. Isso não significa, porém, que ele não é profundo; pelo contrário, ele apresenta o assunto com muita profundidade e abrangência, de modo a ser útil até para o mais acadêmico dos leitores.

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Resenha André Aloísio Oliveira da Silva

PRATT JUNIOR, Richard L. Ele nos deu histórias: um guia completo para a

interpretação de histórias do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.

Richard L. Pratt, Jr é doutor em estudos do Antigo Testamento pela

Universidade de Harvard, mestre em Teologia pelo Union Theological Seminary e

bacharel em Filosofia e Religião pelo Roanoke College. Atualmente é professor de

Antigo Testamento no Reformed Theological Seminary em Orlando, Flórida, e

presidente do Third Millennium Ministries. Entre as suas obras estão os livros “Every

Thought Captive” (Todo pensamento cativo) e “Pray with Your Eyes Open” (Ore com

seus olhos abertos). É membro da Igreja Presbiteriana de Orangewood, juntamente

com sua esposa e sua filha.

“Ele nos deu histórias” é um livro sobre interpretação de narrativas do Antigo

Testamento. O autor tem em vista com seu livro não apenas o público acadêmico, mas

também o cristão não diretamente envolvido com o ministério da Palavra, de modo que

escreve com clareza, sem apelar para o hebraico ou para termos complicados. Isso não

significa, porém, que ele não é profundo; pelo contrário, ele apresenta o assunto com muita

profundidade e abrangência, de modo a ser útil até para o mais acadêmico dos leitores.

Na introdução, o autor apresenta três processos de interpretação, que se constituem no

plano geral da obra: preparação, investigação e aplicação. Na preparação para a interpretação

das narrativas do Antigo Testamento, é necessário ter as ferramentas hermenêuticas, como

conhecimentos e habilidades para a interpretação, e a energia hermenêutica, que é a obra de

iluminação do Espírito Santo. Na investigação das narrativas do Antigo Testamento, deve-se

levar em consideração, em primeiro lugar, a investigação histórico-gramatical, que olha para

as palavras da Escritura dentro da correspondente frase, parágrafo e livro, sem esquecer a

época em que foram escritas; e em segundo lugar, a investigação histórica, cuja importância

reside no fato de que, primeiro, a linguagem utilizada na Escritura expressa uma convenção

restrita a uma determina época, segundo, Deus usou os autores bíblicos com as suas

personalidades e intenções e, terceiro, a revelação se adaptou ao seu público originou, sendo,

assim, necessário conhecer sobre o documento, o escritor e o público para uma correta

investigação. Na aplicação das narrativas do Antigo Testamento, deve-se reconhecer que ela

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representa um desafio e que, academicamente, pouco se tem falado sobre isso; que há

obstáculos para a aplicação, como a distância histórica e cultural que separa o mundo

moderno do mundo da Bíblia; e que existe uma tensão entre a relevância e a distância das

histórias bíblicas para os dias de hoje.

Dentro desse plano geral, Pratt inicia a primeira parte, com quatro capítulos, falando

do preparo para a interpretação de narrativas do Antigo Testamento. No primeiro capítulo, ele

apresenta o modelo de diálogo com a autoridade, o qual reconhece que as pessoas se

aproximam do texto bíblico com pressuposições, mas afirma que essas pessoas devem estar

dispostas a ouvir o texto bíblico e, se for o caso, corrigir as suas pressuposições à medida que

interagirem com ele. Nesse processo de diálogo com o texto bíblico, as pessoas vão se

aproximando cada vez mais de uma compreensão plena do texto. Três áreas especialmente

influenciam a interpretação: a vida cristã, a comunidade e a exegese, das quais o autor trata

nos próximos capítulos.

No segundo capítulo, o autor trata da influência da vida cristã sobre a interpretação,

em três aspectos: santificação, dotes e chamado. A santificação influencia a interpretação

porque o pecado é um fator que oblitera a visão e compreensão do texto bíblico. Os dotes

influenciam na interpretação porque pessoas com estilos cognitivos diferentes terão

determinadas tendências na interpretação da Bíblia. Aquele que tem um estilo analítico terá a

tendência de olhar para a Bíblia de forma microscópica, preocupando-se com detalhes e

unidades pequenas, enquanto quem tem um estilo global olhará para o texto

macroscopicamente, abordando uma narrativa como uma história completa e dando menos

atenção aos detalhes. O chamado de alguém influencia na interpretação porque a tendência da

pessoa será enxergar na Bíblia aquelas coisas que tem relação mais direta com seu chamado.

No próximo capítulo, Pratt trata da influência da comunidade sobre a interpretação. A

interpretação não é uma atividade individualista, mas deve-se interpretar com a ajuda de

outros, seja da comunidade presente, seja da passada. Assim, a herança teológica de um grupo

tem o seu valor, funcionando como um controle na interpretação.

No último capítulo desta primeira parte, o autor apresenta a influência da exegese

sobre a interpretação. Ele fala de três tipos de abordagem ao texto bíblico utilizados no

decorrer da história: a análise temática, a análise histórica e a análise literária. Na análise

temática, buscam-se temas nas narrativas que se referem às próprias perguntas do leitor.

Exemplos de análise temática são a teologia sistemática e a exemplaridade, quando se toma os

personagens bíblicos como exemplos do que fazer e não fazer. Na análise histórica, deve-se

reconhecer que nem sempre as narrativas tem a intenção de ser um relato histórico

milimetricamente preciso, nos moldes da ciência histórica moderna. Pode-se fazer essa análise

de maneira fatual, procurando reconstituir os fatos históricos envolvidos na narrativa, ou

teológica, tendo como exemplo a teologia bíblica. Na análise literária, que é a tendência atual

da hermenêutica bíblica, procura-se interpretar o texto bíblico reconhecendo suas unidades e

qualidades literárias, o que proporciona percepções que não ocorrem nas análises temática e

histórica. Alguns tipos de análise literária são a crítica à fonte, a crítica à forma, a crítica à

redação, a crítica à retórica, o estruturalismo e a crítica ao cânon.

Na segunda parte da obra, composta de oito capítulos, Pratt fala da investigação das

narrativas do Antigo Testamento. O objetivo dessa parte é descobrir o significado original

das narrativas no seu contexto histórico na Antiguidade. No capítulo 5, o autor dá orientação

para a investigação, apresentando o objetivo e os procedimentos para a investigação. O

objetivo da investigação é descobrir o significado original de um texto, as elaborações

bíblicas daquele texto (ou seja, tudo o que a Bíblia diz sobre uma determinada narrativa) e as

aplicações válidas do texto (todas as compreensões não-inspiradas possíveis no decorrer da

história), a soma dos quais é chamada de valor pleno do texto. Quanto aos procedimentos para

a investigação, ênfase é dada aos ângulos múltiplos sobre o significado original, que são três:

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paradigmático, sintagmático e pragmático. O ângulo paradigmático avalia o significado de

uma expressão comparando-a com as opções disponíveis, ou seja, o que o autor escolheu

dizer e não dizer. O ângulo sintagmático se relaciona com o modo como uma palavra é usada

em relação a outras palavras do texto. E o ângulo pragmático envolve o contexto pragmático e

extralinguístico no qual a expressão ocorre.

Do capítulo 6 ao 9, Richard Pratt apresenta os elementos encontrados nas narrativas do

Antigo Testamento: personagens, representação de cenas, episódios individuais e estruturas

narrativas extensas. Quanto aos personagens, tem-se Deus, as criaturas sobrenaturais e os

seres humanos, sendo que as narrativas se concentram nesses últimos. O fato de Deus ser o

grande assunto da Escritura não significa que Ele seja o personagem principal de todas as

histórias. As narrativas bíblicas são altamente seletivas na apresentação de detalhes sobre os

personagens, o que significa que qualquer detalhe apresentado terá grande importância na

narrativa. Quanto às cenas, tem-se algumas pistas para a divisão da narrativa em cenas, como

mudanças de tempo, mudanças de cenário e mudanças na forma de narração. Outra coisa

interessante a se observar são os tipos de imagens utilizadas nas cenas, que as tornam mais

vívidas, como a visual, a auditiva, a tátil, a gustativa e a olfativa. Sobre os episódios

individuais, eles têm diversas estruturas. Existem episódios do tipo relato, que apenas

descrevem situações, sem apresentar nenhum tipo de tensão; episódios do tipo tensão

pendente, onde uma tensão é criada, mas não resolvida; e episódios do tipo resolução, onde há

a tensão e a resolução da tensão. Episódios são compostos de cenas, que se agrupam para

formar fases, que se juntam para formar passos, os quais, por sua vez, compõem um episódio.

Finalmente, tem-se as estruturas narrativas extensas, que são compostas por vários episódios,

e podem ter estruturas semelhantes às dos episódios.

Nos capítulos 10 e 11, o autor trata dos escritores e do público das narrativas do

Antigo Testamento. Identificar o escritor e o público de uma narrativa não é tarefa fácil, pois

muitos livros de narrativas do Antigo Testamento são anônimos. Para identificá-los, deve-se,

primeiro, levar em conta que os textos passaram por desenvolvimentos antes de chegarem à

forma final, desenvolvimentos esses que também foram inspirados, e também se deve

considerar a transmissão dos textos depois que eles chegaram à sua forma final. Com isso em

mente, deve-se procurar por pistas no texto que permitam encontrar uma provável data mais

antiga e a data mais recente aceitável para o texto, localizando-o, assim, entre essas duas

datas, e facilitando a identificação do escritor e do público. Quanto às intenções do escritor,

deve-se procurar por pistas no texto, como na repetição de ideias, na alusão a outras

passagens, no uso da ironia e no discurso direto, e deve-se procurar por pistas nas

circunstâncias do autor, como nas intervenções divinas e na cultura do escritor. Outra questão

importante quanto às intenções do escritor se refere à relação do acontecimento passado

relatado pelo escritor com as suas circunstâncias presentes. O escritor faz essa associação

basicamente de três formas: por meio de observações sobre o passado, por meio de

prefigurações das questões com as quais seu público estava envolvido e por meio de

implicações do passado para o tempo presente deles.

No capítulo 12, Pratt dá um panorama geral dos livros vetero-testamentários que são

em sua maior parte narrativos. Ele os divide em quatro categorias: história mosaica (Gênesis,

Êxodo, Números e Deuteronômio), história deuteronômica (Josué, Juízes, Samuel e Reis),

histórica cronística (Crônicas, Esdras e Neemias) e outros livros (Rute, Ester e Jonas). Cada

uma dessas categorias tem características próprias que devem ser levadas em consideração na

interpretação.

Na terceira e última parte, o autor aborda, em quatro capítulos, a aplicação das

narrativas do Antigo Testamento. No capítulo 13, ele apresenta o objetivo e os procedimentos

para a aplicação. O objetivo da aplicação é semelhante ao objetivo que os escritores bíblicos

tinham ao escreverem as narrativas para seu público: fazer observações para o seu tempo,

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reconhecer prefigurações do seu tempo e indicar implicações para o seu tempo. Quanto aos

procedimentos para a aplicação, deve-se considerar as ligações entre o passado e o presente e

as adaptações ao tempo presente. Para encontrar ligações, é preciso reconhecer as diferenças e

as semelhanças entre o passado e o presente. Apesar de haver diferenças temporais, culturais e

pessoais, há várias semelhanças: Deus é o mesmo, o mundo é o mesmo e o tipo de pessoas é o

mesmo: imagens de Deus que caíram em pecado. Quanto às adaptações, elas devem ser de

três tipos: temporais, culturais e pessoais. É justamente dessas adaptações que Pratt trata nos

próximos três capítulos.

No capítulo 14, o autor fala sobre as adaptações temporais. Ele trata das épocas da

história da redenção, mostrando suas divisões e sua unidade. Ele também apresenta a relação

das narrativas do Antigo Testamento com Cristo, mostrando como as narrativas prenunciam

os três ofícios de Cristo: Profeta, Sacerdote e Rei. Além disso, ele também aborda a teocracia

cristã, mostrando como a ideologia dos escritores do Antigo Testamento deve ser adaptada

diante das mudanças ocorridas com a teocracia cristã no Novo Testamento.

No capítulo 15, Richard Pratt trata das adaptações culturais. Primeiro, ele aborda as

variações culturais, lembrando que a cultura sofre influência da religião, o que faz com que

devamos avaliar a qualidade moral das práticas culturais do Antigo Testamento e dos dias de

hoje, e que a cultura sofre influência da natureza, o que permite uma flexibilidade cultural

legítima tanto no Antigo Testamento quanto nos dias de hoje. Depois, ele analisa a cultura do

Antigo Testamento, que tinha tanto flexibilidade cultural quanto legislação cultural, e a

cultura do Novo Testamento, onde apesar de haver legislação cultural, há uma flexibilidade

cultural muito maior. Finalmente, a aplicação da narrativa aos dias de hoje pode ser feita

considerando a cultura do Antigo Testamento, o ensino do Novo Testamento e a subcultura

para a qual será feita a aplicação.

No capítulo 16, o autor encerra o livro tratando das adaptações pessoais. Ele apresenta

os obstáculos às adaptações pessoais, entre os quais se encontra a própria natureza das

narrativas do Antigo Testamento, que não foram escritas para uma pessoa específica, mas

para Israel como nação. Depois ele fala dos passos práticos para a aplicação pessoal, como o

reconhecimento das variações do público original, a inferência de princípios a partir do

significado original e o reconhecimento das variações do público moderno. Finalmente, Pratt

trata dos níveis de aplicação pessoal: conceitual (mudanças no pensamento), comportamental

(mudanças no comportamento) e emocional (influências nas emoções).

Este é um livro indispensável para quem deseja interpretar melhor as narrativas do

Antigo Testamento e, consequentemente, pregar melhor nessas porções da Palavra de Deus.

Além dos conceitos apresentados de forma bastante clara, o livro está recheado de ilustrações

retiradas do cotidiano e de exemplos do uso dos conceitos nas mais diversas narrativas

bíblicas. O conhecimento profundo de Richard L. Pratt, Jr, somado à sua longa experiência

como professor de Antigo Testamento, fazem desse livro uma joia rara, que une perfeitamente

a teoria e a prática da arte de interpretação das histórias vetero-testamentárias.