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Figuras de Retórica

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  • 180 Bakhtiniana, So Paulo, Nmero 9 (1): 180-186, Jan./Jul. 2014.

    FIORIN, Jos Luiz. Figuras de retrica. So Paulo: Contexto, 2014. 205

    p.

    Maria Helena Cruz Pistori

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, So Paulo, Brasil; CNPq;

    [email protected]

  • Bakhtiniana, So Paulo, Nmero 9 (1): 180-186, Jan./Jul. 2014. 181

    O argumento o que reala, o que faz brilhar uma ideia. Jos Luiz Fiorin

    Ao datar o Prefcio de sua obra, o professor Fiorin utiliza esta forma pouco

    usual: So Paulo, numa brumosa tarde de inverno de 2013. A referncia ao tempo

    acinzentado, pouco luminoso e coberto de nvoas do inverno. Mas a figura das brumas,

    que muitas vezes encobrem nosso olhar (e nossa compreenso), com muita propriedade

    pode ser evocada nesta apresentao de Figuras de retrica. Sim, porque se trata de

    iluminar, esclarecer e definir conceitos que nem sempre tm sido bem compreendidos,

    apesar do fascnio que vm exercendo sobre os estudiosos da linguagem h mais de dois

    milnios. E j adiantamos aqui: obra que surge para se tornar referncia na rea.

    Linguista renomado e reconhecido, Jos Luiz Fiorin professa um interesse pela

    retrica que no de hoje. Para um pblico mais amplo do que o propriamente

    acadmico, basta lembrar sua contribuio semanal revista LNGUA Portuguesa desde

    2006, na seo que logo passa a levar o nome da disciplina Retrica. Mas penso que

    justamente sua profunda formao de linguista estudioso de Saussure, Benveniste,

    Hjelmslev..., ao lado de seu conhecimento da literatura, do grego, do latim, da prpria

    lngua portuguesa, que tornam singular sua ltima publicao: Figuras de retrica.

    No se trata de um catlogo de figuras, avisa o mestre, mas da apresentao de

    mecanismos de construo de sentido, operaes enunciativas de intensificao ou

    atenuao dos significados presentes no discurso a servio da persuaso (p.10). Mas,

    ainda que no seja um catlogo, a lista longa: so apresentadas ao leitor mais de uma

    centena de figuras (alguns afirmam que a fria taxionmica dos antigos chegou a

    classificar centenas delas...). E, em sua definio e anlise, por muitas vezes o autor

    recupera o debate que sobre ela travaram os antigos, os clssicos e os contemporneos:

    Ccero, Quintiliano, a Retrica a Hernio, Pierre Fontanier, Jakobson, o Grupo ...

    A compreenso de cada uma das figuras e de sua argumentatividade no discurso

    precedida dos trs captulos iniciais que do ao leitor os fundamentos do trabalho,

    apresentando e analisando com acuidade as relaes entre lingustica e retrica e

    levando o leitor a perceber as dimenses tropolgicas e argumentativas da linguagem,

    ambas constituindo sua retoricidade geral. A cada figura dedicado, ao menos, um

    captulo (o funcionamento argumentativo da metfora, rainha das figuras, e da

    metonmia merecem mais captulos). O quarto captulo mostra ao leitor o modo como o

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    autor sistematizou a apresentao das figuras. Na realidade, mesmo se tratando de uma

    reorganizao de textos que apareceram originalmente na revista LNGUA Portuguesa,

    da Editora Segmento, conforme informa o autor no Prefcio, esse todo, agora, adquire

    novos sentidos e, indubitavelmente, maior relevncia para os estudiosos da linguagem.

    Sabemos que, h mais de dois mil anos, os estudos da retrica so parte da

    cultura humana. No entanto, ora se constituram em torno das quatro ou cinco operaes

    de construo do discurso persuasivo que se encontram nos tratados gregos e latinos

    inventio, dispositio, elocutio, actio e memoria (nem sempre a memoria estar presente),

    ora se restringiram a algumas delas, de preferncia elocutio. Mesmo esta ltima,

    porm, e seu interesse no estilo, s com Grgias (ca.485 aC-ca.380 aC) passa a integrar

    a disciplina. De modo sucinto, Fiorin refaz esse percurso da disciplina ao longo dos

    sculos, indicando os perodos em que se restringiu ao estudo das figuras e, mais

    recentemente, em que ela foi retomada em sua inteireza, com o foco na argumentao.

    Mais importante, porm, no a retomada histrica, mas seu modo de contextualiz-la

    em relao aos estudos discursivos, pois ser sempre este o eixo de toda a obra o

    discurso.

    Destacamos tal posicionamento principalmente porque a revitalizao da

    retrica no sc. XX foi primeiramente obra de filsofos (ou jusfilsofos), preocupados

    com os raciocnios que envolviam a tica, a moral e o direito; o marco na rea o

    conhecido Tratado da argumentao. A nova retrica, de Cham Perelman e Lucie

    Olbrechts-Tyteca, de 1958. Esse compndio da argumentao no trata exatamente de

    processos de linguagem, escapando assim ao escopo da Lingustica, mas do que os

    autores denominaram tcnicas discursivas de argumentao; s mais tarde passa o

    Tratado a se constituir fonte de pesquisa para linguistas. O foco de Fiorin, porm,

    outro: j quando apresenta motivos para o declnio da retrica, praticamente reduzida ao

    estudo das figuras entre o sc. XIX e meados do sc. XX, mostra-nos como novas

    condies discursivas alteram nosso modo de v-la e, sobretudo, como novas

    concepes de cincia, de objetividade/neutralidade e de modelos de comunicao vo

    permitir a aproximao da Lingustica com a antiga disciplina. Na realidade, destaca

    que tal aproximao foi possvel tambm por causa da alterao e ampliao do prprio

    objeto da lingustica, de Saussure a Benveniste; agora se trata de uma lingustica que vai

    alm da frase, abrangendo o texto, plano de manifestao do discurso, adverte Fiorin.

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    a partir da considerao de uma retoricidade geral na linguagem que o autor prope

    que a lingustica do discurso deva herdar os ensinamentos da retrica; isto , defende o

    aproveitamento de seus estudos na compreenso daquilo que perturba a gramtica da

    lngua e uma pretensa lgica da linguagem, o campo da retrica (p.23), e no a mera

    aplicao de uma doutrina fixada na Antiguidade.

    O texto vai retomando, ento, os primeiros trabalhos na rea a aproximar

    Lingustica e Retrica: o clebre texto de Jakobson intitulado Dois aspectos da

    linguagem e dois tipos de afasia (1963: 43-67) (p.15), que trata da metfora e da

    metonmia como processos simblicos de construo de sentido em todas as linguagens;

    a seguir, o trabalho do Grupo , de 1974, tentativa de classificao das figuras de um

    ponto de vista metodolgico mais rigoroso. Fiorin tambm apresenta o modo como o

    famoso aide-mmoire - A antiga retrica, de Roland Barthes, publicado em 1970 na

    revista Communications, reaviva o interesse pela retrica entre os linguistas.

    No segundo captulo, ressaltamos o esclarecimento do significado inicial de

    ornatus, no latim, e a maneira como, segundo o autor, deve ser compreendido na

    retrica: bem argumentado, bem equipado para exercer sua funo; e do prprio

    termo argumento, cuja raiz grega argu- significa fazer brilhar, cintilar. E a devemos

    destacar a posio-chave do autor em relao s figuras de retrica: no h uma ciso

    entre argumentao e figuras, pois estas exercem sempre um papel argumentativo

    (p.27). Ora, aqui o Prof. Fiorin est dialogando com aqueles que as consideram como

    ornamentos, um embelezamento da linguagem ou uma forma de expresso que se

    distancia da natural. Dialoga ainda com o posicionamento de Perelman e Tyteca que,

    no Tratado, fazem uma distino entre figuras argumentativas e figuras de estilo,

    afirmando que s ser argumentativa a figura que acarrete mudana de perspectiva ao

    leitor em relao nova situao de emprego. Caso isso no ocorra, a figura ser

    percebida como ornamento, como figura de estilo. Ela poder suscitar a admirao, mas

    no plano esttico, ou como testemunho da originalidade do orador (Tratado da

    argumentao. A nova retrica. So Paulo: Martins Fontes, 1996, p.192). Outros, como

    Olivier Reboul, consideram que, ao lado das figuras de retrica - persuasivas, existem

    as no retricas, como as poticas, humorsticas (Introduo retrica. So Paulo:

    Martins Fontes, p.113). A obra de Fiorin contextualiza o estudo das figuras a partir da

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    retrica antiga mas, no presente, integra-as - todas, aos estudos do discurso, como

    operaes enunciativas criadoras de efeitos de sentido argumentativos.

    Como se pode observar, esses primeiros captulos so essenciais para a

    compreenso e possvel aprofundamento do todo da obra. No terceiro, tomamos contato

    com autores mais recentes, como Ricouer, Greimas & Courts, Denis Bertrand, que

    propem aparato terico-metodolgico que servir ao autor para exposio das figuras e

    suas funes no discurso: avivar ou abrandar determinado sentido. Sem dvida, a

    clareza do texto virtude comum nos textos do professor; e neste, em particular, o

    aspecto didtico mas no simplificador outra de suas qualidades. Dessa forma,

    conceitos como intensidade-extenso das grandezas lingusticas, acelerao-

    desacelerao, elasticidade-condensao, entre outros, so compreendidos sobretudo por

    meio da argumentao pelo exemplo, no que o autor mestre. Vejamos um pequeno

    trecho deste terceiro captulo. Retomando Ricoueur e Benveniste, ele chega

    afirmao:

    [...] a retrica a disciplina da impropriedade do sentido.

    Exemplifiquemos isso. Quando se diz, no captulo XXXVII de

    Memrias pstumas de Brs Cubas, de Machado de Assis, que o homem uma errata pensante, apreende-se a metfora, quando se observa que h uma no pertinncia em considerar que o homem

    uma errata. Afinal, errata se usa para escritos. No entanto, essa

    predicao impertinente estabelece uma tenso entre identidade

    (correo de erros, aprimoramento) e diferena (em cada edio/em

    cada estgio da vida) e, assim, ganha pertinncia (p.28-9).

    Na classificao das figuras de que vai tratar ao longo da obra, o autor se vale da

    sistematizao dos antigos, dividindo-as conforme ocorram (1) por adjuno ou

    repetio, aumentando o enunciado; (2) por supresso, diminuindo-o; (3) por

    transposio de elementos, ou seja, a troca de seu lugar no enunciado; (4) e pela

    mudana ou troca de elementos. Na verdade, os tropos realizam um movimento de

    concentrao semntica, que caracterstica da metfora, ou um de expanso semntica,

    que a propriedade da metonmia (p.31). Cada figura definida no apenas

    formalmente, mas de modo que o leitor realmente possa verificar como o efeito de

    sentido argumentativo se constri discursivamente. Para isso, sempre ser amplamente

    exemplificada e contextualizada: nunca apenas a linha onde ela ocorre, mas todo o

    trecho em que aparece, tornando possvel ao leitor recuperar minimamente o contexto.

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    O farto exemplrio , com certeza, uma das riquezas da obra. Os autores citados

    recuperam a lusofonia como um todo, no tempo e no espao, e em diferentes gneros:

    brasileiros, portugueses, angolanos... Dos clssicos (Cames, Vieira, Machado...) aos

    modernos e contemporneos (Joo Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Fernando

    Pessoa, Guimares Rosa, Jos Paulo Paes, Ondjaki, Jos Eduardo Agualusa...); de

    autores de todo o sc. XVIII e XIX (Dom Francisco de Vasconcelos Coutinho, Alencar,

    Castro Alves, Garret, Ea de Queirs...) queles que se dedicaram cano (Chico

    Buarque, Joo Bosco e Aldir Blanc, Paulo Soledade e Marino Pinto...). A lista imensa.

    H tambm o discurso jornalstico, representado pelo Jornal do Brasil o exemplo da

    informao meteorolgica no dia posterior decretao do AI-5 imperdvel, a revista

    Veja, O Estado de S. Paulo... Sempre encontramos ainda o cuidado de exemplificao

    em outras linguagens que no a verbal, pois, afirma o mestre, se a semitica, que se

    quer uma teoria geral da significao, pretende voltar retrica, para herd-la, preciso

    tratar da linguagem em geral (p.30). E, nesse ponto, lamentamos a falta de ilustraes,

    pois os exemplos visuais so apenas descritos. Finalmente, a obra apresenta um ndice

    remissivo, que facilita ao leitor o encontro de qualquer figura pela qual tenha interesse,

    e uma bibliografia que abrange obras da retrica antiga, clssica e nova, da Lingustica,

    da Semitica, Pragmtica, de Gramtica.

    Duas questes fecham estes comentrios. Primeiramente, uma obra como esta

    realmente fazia falta em nossas estantes. Hoje encontramos apenas pequenas amostras

    de figuras em listas breves, ora no fim de algumas gramticas, ora em obras que tratam

    da linguagem jurdica, ora em obras que tratam da retrica, ou em livros didticos.

    Obras especficas sobre o tema (algumas foram publicadas na dcada de 80), alm de

    esgotadas, no se propunham a perspectiva discursiva nem a profundidade terica

    encontrada nesta Figuras de retrica.

    E, para concluir, gostaria de retomar uma afirmao de Fiorin no Prefcio,

    justamente porque, a meu ver, indica a importncia da obra de forma ampla, j que as

    figuras so apenas parte de todo o complexo retrico que herdamos dos antigos: a

    retrica foi uma aventura do esprito humano para, na construo da democracia, em

    que so essenciais a dissenso e a persuaso, compreender os meios de que se serve o

    enunciador para realizar sua atividade persuasria (p.11). A questo de compreenso:

    quais sentidos so construdos, quem os constri, como se constroem, para quem, com

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    que finalidade... E esta a relevncia e utilidade da obra: mostrar como compreender

    a/as linguagem/linguagens que permeiam nossa atividade cotidiana numa sociedade

    democrtica, com a possibilidade (idealista?) de, nas palavras do professor, tornar os

    homens mais humanos.

    Recebido 28/03/2014

    Aprovado 08/06/2014