Resenha Livro VIII A República

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A República – Livro VIII Por Ana Pismel Diante da exposição de Sócrates a respeito de como se dá o conhecimento – baseado na analogia Ver/Conhecer – vimos terminar o desvio proposto por Polemarco e Adimanto. Nesse parêntese foi discutida a viabilidade da cidade perfeita, que só pode existir de fato se tiver filósofos por governantes, sua natureza e, seguidamente, a natureza do conhecimento verdadeiro. O exame empreendido nos livros V, VI e VII culmina na exposição da natureza do conhecimento do inteligível presente na Alegoria da Caverna, que descreve a ascensão da alma ao mundo das idéias e, principalmente, à idéia do bem tida como princípio de perfeição de todas as demais. Uma vez fundamentadas afirmações que até então tinham sido tomadas tal como ditas, o trajeto da discussão pode prosseguir e, para tanto, retomando o exame referente aos tipos de governo encontrados de fato, qual entre eles seria o melhor e mais justo, assim como o teor da constituição interna do homem semelhante a ela. Voltando, então, à discussão acerca da cidade, são avaliados os tipos de governo encontrados nas cidades já existentes, a saber: timarquia, democracia, oligarquia e tirania, sendo que as outras constituições estariam entre as mencionadas. Todas são examinadas quanto à sua presença em nível de publico e individual, ainda na intenção de comparar

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A República – Livro VIII

Por Ana Pismel

Diante da exposição de Sócrates a respeito de como se dá o conhecimento – baseado

na analogia Ver/Conhecer – vimos terminar o desvio proposto por Polemarco e Adimanto.

Nesse parêntese foi discutida a viabilidade da cidade perfeita, que só pode existir de fato se

tiver filósofos por governantes, sua natureza e, seguidamente, a natureza do conhecimento

verdadeiro. O exame empreendido nos livros V, VI e VII culmina na exposição da natureza

do conhecimento do inteligível presente na Alegoria da Caverna, que descreve a ascensão da

alma ao mundo das idéias e, principalmente, à idéia do bem – tida como princípio de

perfeição de todas as demais. Uma vez fundamentadas afirmações que até então tinham sido

tomadas tal como ditas, o trajeto da discussão pode prosseguir e, para tanto, retomando o

exame referente aos tipos de governo encontrados de fato, qual entre eles seria o melhor e

mais justo, assim como o teor da constituição interna do homem semelhante a ela.

Voltando, então, à discussão acerca da cidade, são avaliados os tipos de governo

encontrados nas cidades já existentes, a saber: timarquia, democracia, oligarquia e tirania,

sendo que as outras constituições estariam entre as mencionadas. Todas são examinadas

quanto à sua presença em nível de publico e individual, ainda na intenção de comparar dentro

delas o homem mais justo ao mais injusto, levando ao cabo a pesquisa acerca da natureza e

benefício da justiça.

Com relação ao homem na democracia, já haviam constatado que ele era bom e justo

(544 e). Sócrates propõe que seja examinada em seguida a constituição que privilegia as

honras (denominando-a timarquia) e o homem tal como ela, depois a oligarquia e o homem

oligárquico, seguindo com a democracia e o democrático e, finalmente, a tirania e seu

correspondente no homem (545 e). O exame das constituições segue uma seqüência na qual

cada uma tem origem na corrupção da anterior; de maneira análoga se dá o exame da

constituição dos homens relativo a cada uma delas. O recurso expositivo usado por Sócrates

remete a uma progenitura na qual os filhos seguem uma orientação que os leva a decair

quanto às virtudes da constituição de seu pai. Esse movimento, entretanto, não poderá ser

reproduzido com a máxima precisão, dado o espaço limitado.

Com relação ao homem democrático, como afirmam (544 e), é bom e belo, pois já

incorreram nesse exame anteriormente. Em seguida, é examinada a timarquia, e como ela

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decorre da aristocracia. Podemos notar, aqui, que Sócrates parte, como era de se esperar, da

constituição da cidade perfeita que levantou, dando a entender que as outras constituições são

inferiores à reinante nela, uma vez que surgem de sua corrupção. Voltando à timarquia, a

rebelião dos descontentes, que coloca de lado os melhores no governo e na guerra e projeta

homens ávidos por riquezas, opera mudanças na forma de governo. De um lado, os antigos

governantes valorizam a virtude e a constituição anterior; de outro, é difícil achar homens

zelosos e íntegros para os cargos de governo entre os restantes. Pois eles serão ávidos de

riqueza e a valorizarão no particular enquanto a regulam no publico, descuidando, além disso,

das Musas e da ginástica. Em síntese, tanto tal governo quanto o homem correspondente a ele

são um misto de bem e mal, o que caracteriza essa forma de governo.

A oligarquia, por sua vez, é examinada na cidade e no homem que a ela se assemelha.

Uma vez sabido que ela é a forma de governo que tem por critério de participação no governo

o censo, ou seja, um mecanismo que permite apenas os ricos no governo, ventando aos pobres

essa possibilidade, passa-se a examinar o homem oligárquico. Tal homem, perante a busca de

riqueza, termina por valorizá-la mais que a virtude, organizando o censo justamente para

controlar o governo e continuar em superioridade em relação aos outros. O que acaba sendo

desvantajoso, uma vez que os mais ricos nem sempre são os mais qualificados para exercer

tais cargos. Isso prejudica a administração da cidade e a divide em duas partes: a rica e a

pobre. Outra desvantagem, segundo Sócrates (552 a), é a multiplicidade de funções admitida

na constituição. Tem-se na cidade oligárquica governantes ricos, mas cidadãos vivendo na

mendicância.

O homem examinado a seguir, parcimonioso e trabalhador, abstêm-se do supérfluo, o

que se dá também na cidade cujo governo é conforme a ele. No entanto, se essas

características estão presentes em tais constituições, não se deve a educação, mas à

necessidade – não sendo genuínas. Dessa forma, mesmo comedido na vida prática, havendo

oportunidade, esse homem comete ações corruptas, em se tratando de bens alheios. Mesmo

tendo postura melhor que os já vistos, a verdadeira virtude da alma ele não possui (554 e). É

importante lembramos que a permissividade da oligarquia gera descontentamento em grande

parte dos cidadãos. Essas tensões culminam na ruptura dessa constituição. Com efeito,

Sócrates diz sobre isso: “passa a existir democracia, creio eu, quando os pobres, vitoriosos,

matam uns, expulsam outros, e aos restantes fazem participar do governo e das

magistraturas em pé de igualdade e, no mais das vezes, cargos são distribuídos por sorteio”

(577a). Eis o homem democrático e sua cidade par.

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O modo de vida vigente em tal cidade pode parecer belo a princípio, mas o desprezo

pela busca da verdadeira bondade, assim como a excessiva indulgência e o descaso para com

os estudos fazem dela bem menos livre do que seria de se esperar, na medida em que se torna

escravo de sua liberdade.

Por fim, é examinado o tipo de governo que Sócrates define como “a mais bela

constituição, e o mais belo homem” (562 a): a tirania. Derivada, pos sua vez, da democracia,

ela tem por gênese a busca insaciável da liberdade em tal governo, é isso que a leva a

transformar-se em tirania. Aos que a levam ao extremo cabe a punição por parte dos outros.

Isso faz com que alguns – os que punem – sejam tidos como oligarcas e ímpios, havendo

necessidade de proteção para que não caiam em ciladas. Antes de contratar estrangeiros, seria

bem mais fácil libertar escravos que já estão na cidade, pois esses serão gratos e o defenderão

sempre. Daí nasce a condição de um indivíduo que, uma vez protegido, pune os que vão

contra o povo, defendendo-o. Quando, porém, não houver mais malfeitores, ele será obrigado

a manter sua posição de forma ostensiva e violenta. Eis o tirano de Sócrates, finalizando a

exposição das diferentes formas de governo, que domina o Livro VIII da obra.

Pode-se notar o fato de que para Sócrates, os homens, na democracia são livres em

excesso, o que prejudica a constituição, na medida em que seus cidadãos, justamente por

terem essa liberdade, se revoltam com freqüência. A tirania, ao contrário, não detém para seus

cidadãos tal liberdade, mas é elogiada por Sócrates, pois é a forma de governo que mais se

aproxima da que reina em sua cidade perfeita.

É interessante retomar a observação quanto ao caráter didático da estratégia expositiva

de Sócrates, pois ao ir colocando a sucessão de constituições, vai postando lado a lado com

elas o homem que a ela se assemelha em constituição interna, assim como vinha fazendo com

a pesquisa da justiça e injustiça na cidade. Alias, foi devido a essa estratégia que se deu

anteriormente a necessidade da construção de uma cidade perfeita que permitisse empreender

justamente essa comparação entre a constituição em nível de cidade e a constituição interna

dos homens. O Livro VIII deixa ao seguinte a análise do homem tirano, movimento que

certamente constitui para Sócrates o meio de chegar à constituição de sua cidade perfeita e

expor como se dá o governo dos reis filósofos.

Bibliografia

Platão, A República; tradução de Ana Lia de Almeida Prado; Martins Fontes, 2006.

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