Resenha Poderemos Viver Juntos - A. Touraine
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Revista Tecer - Belo Horizonte – vol. 3, nº 5, novembro 2010 183
Poderemos viver juntos?
Adilson Schultz
Introdução: pergunta geral – resposta global
O sociólogo Alain Touraine abre uma instigante pergunta ao tratar da constituição do
sujeito na sociedade contemporânea: Poderemos viver juntos? O título do livro é uma
pergunta retórica à qual só pode ser dada uma resposta condicionada: poderemos
sim, desde que... Ou então: não há outra saída – temos que viver juntos. Tomado
nesses termos, a pergunta de Touraine denuncia uma crise geral do sujeito na
sociedade contemporânea, para além da crise ambiental, moral, trabalhista, econômica,
etc, ou que qualquer uma de “nossas crises prediletas”, como diz Ignacy Sachs. Sua
perspectiva mais bem se enquadra numa crise geral civilizacional, transcendendo
condições socioculturais específicas. A pergunta Poderemos viver juntos? é global, e a
resposta só pode ser geral
O procedimento de Touraine é perseguir a resposta para a pergunta-título do livro na
sociologia, na educação, na política e no direito, e ir constituindo como que um
programa para o viver juntos, que tem a formação do sujeito em sua base, única
forma de deter a corrosão da civilização:
Se a decomposição da cultura, da personalidade e da política não for detida pelas
intervenções do sujeito, vai acarretar a decadência das sociedades ( que perdem todo
princípio de unidade) e a crise da personalidade (que se torna incapaz de opções e
projetos pessoais). (TOURAINE, 165).
Juntos, mas separados – o problema da comunicação
Na tentativa de responder a pergunta-título de seu livro, Touraine dirá que por um
lado é fato que estamos cada vez mais próximos, e é fato a globalização, seja em
termos técnicos, com informações, capitais e mercadorias que cruzam fronteiras e
oceanos, seja em termos culturais, sendo evidente que vemos os mesmos programas
de TV, sonhamos a mesma felicidade, nos vestimos da mesma maneira, etc. Somos de
fato muito iguais. Tentamos inclusive criar programas mundiais para o clima, para os
direitos humanos, etc.
No entanto, isso não significa que estejamos, de fato, juntos. Aquilo que está presente
em toda parte, pode não estar em parte alguma, dirá Touraine! Usamos as mesmas
coisas, mas não nos comunicamos de fato uns com os outros. O mundo da cultura e
o mundo da economia, o mundo da instrumentalidade e o mundo simbólico, da
técnica e da consciência, separaram-se na sociedade contemporânea. Na escola, na
família, no convívio social como um todo, técnica e cultura não dialogam. Essa é, em
Doutor em Teologia. Professor no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e na Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. [email protected]
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tese, a principal característica da modernidade tardia, ou pós-modernidade. E é aí que
se cria o fosso social que impossibilita a criação de sujeitos verdadeiramente
autônomos.
De um lado somos acossados pela indiferenciação do mercado, que equaliza a tudo e
a todos. Não se vivem relações baseadas em sujeitos autônomos, mas na massa; e a
mimetização do desejo é a marca da sociedade globalizada. De outro, somos
acossados pelos particularismos de toda ordem, geralmente com reivindicação grupal
e identitária, nos isolando na identidade rígida. A massa, dirá Touraine, nos isola tanto
quanto o grupo. Seja um show com milhares de fãs, ou uma igreja com 50 fiéis, não
estamos de fatos juntos, pois não há comunicação entre nossas reivindicações de
massa e aquelas de grupo; ou, não há comunicação entre os diferentes grupos.
A questão colocada por Touraine, então, é como será possível parar o duplo
movimento que enclausura a todos ora na globalização indiferenciada, ora na
privatização autoritária. Alguns querem a unidade, com tudo igual; outros querem a
diversidade, com a afirmação da identidade. Touraine responderá que para superar
essa dualidade entra em jogo o projeto de vida pessoal, ou a afirmação do sujeito, o
desejo de cada um fazer da sua vida uma existência que valha à pena, o esforço de
individuação de quem quer ser o ator ou a atriz de sua vida, o sujeito.
A constituição do sujeito como alternativa ao gueto e à massa
Touraine resume os objetivos de seu programa assim, explicitando o caráter
propositivo da ideia de sujeito:
Combater constantemente em duas frentes; de um lado contra as ideologias e as
políticas comunitaristas, e de outro contra a ideologia neoliberal que dissolve as
sociedades reais nos mercados e nas redes globalizadas. Mas também, além desses
procedimentos críticos, colocar no centro da análise e da ação não a sociedade, suas
necessidades, suas funções e sua consciência, mas o sujeito pessoal, sua resistência,
suas esperanças e seus revezes. (TOURAINE, 190)
Sujeito pode ser definido como um resultado da confluência ou da “combinação de
atividade racional e de identidade cultural pessoal. (...) O sujeito está na encruzilhada
de princípios gerais e de princípios particulares de conduta.” (TOURAINE, 204) Sujeito é
“um transeunte passando entre dois universos” (TOURAINE, 186): De um lado, os
poderes comunitários autoritários, e de outro, a dominação dos mercados.
É essa noção de sujeito que serve de base para a construção da sociedade
contemporânea. O que estamos assistindo na contemporaneidade é o declínio das
noções políticas de sociedade, como a de nação ou cidadania. Na alta modernidade,
pós revolução francesa, imperaram as categorias políticas, como nação ou cidadania.
Depois, na média modernidade, no auge da sociedade industrial, imperava a economia
e suas categorias ideológicas de produção ou inclusão social. Agora essas duas
noções se esgotam: as ideologias se extinguem, virando instrumentalidade política, e a
economia se profissionaliza, com o estado e sua gestão virando empresa. O que
vemos agora é a predominância da noção do sujeito, sobre a qual repousam as
reivindicações éticas (TOURAINE, 181). Para além dos sistemas ideológicos e políticos,
o que importa é a defesa do indivíduo – não qualquer indivíduo ou a noção de
individualismo, mas sua vontade de se ator social, sua construção como sujeito.
Politicamente, a noção de sujeito assenta-se sobre “a recusa a reduzir a experiência
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humana ao domínio das necessidades” (TOURAINE, 161), criando novas mediações
entre o mundo da instrumentalidade e aquela das identidades.
“O dissidente é a figura mais exemplar do sujeito” (TOURAINE, 95): o sujeito está no
mundo, mas não é do mundo. Ele está incluído, mas não está. Opera por um duplo
afastamento, seja da massa, seja da comunidade.
O sujeito recusa reduzir a organização social ao mercado e a identidade à
comunidade. Por ser impossível aceitar a dissociação completa do mercado e das
comunidades, construí a ideia de sujeito, que torna por seu torno possível a de ser
ator social. (TOURAINE, 100)
O sujeito não é uma alma presente no corpo ou o espírito dos indivíduos. Ele é a
procura, pelo próprio indivíduo, das condições que lhe permitem ser o ator da sua
própria história, (...) reivindicar o seu direito à existência individual. (TOURAINE, 73)
No limite da construção teórica, Touraine formula a noção de sujeito como aquilo que
nos “protege” da própria sociedade (!):
O sujeito é o desejo do indivíduo de ser um ator. A subjetivação é o desejo de
individuação, e esse processo pode desenvolver-se apenas se existir uma interface
suficiente entre o mundo da instrumentalidade e o da identidade. Caso não exista
essa interface, é difícil não cair ao mesmo tempo na participação imitativa e no
enclausuramento comunitário. (TOURAINE, 73-74)
No programa teórico de Touraine, o único recurso diante do risco de viver isolado,
seja perdido na indiferenciação da massa, seja circunscrito na identidade do grupo, é
a defesa do indivíduo, na vontade de ser ator ou atriz da sua vida, isto é, na sua
afirmação de ser sujeito. Trata-se de colocar em marcha e em evidência nos
processos um novo princípio de construção da sociedade, qual seja, a afirmação do
indivíduo enquanto sujeito. Contra a sociedade e contra os particularismos, os sujeitos.
É ali que se podem criar as condições para a comunicação entre os particularismos e
os universalismos. De um lado, a mundialização da economia e da cultura. Do outro,
o refúgio na nossa comunidade homogênea. Segundo Touraine, nenhum dos
procedimentos ajuda a nos comunicarmos. A construção de uma vida individual,
autônoma, é a saída. O desejo de construção de uma vida verdadeiramente
autônoma, o sujeito. Contra a dominação do mercado e contra a dominação
comunitária do grupo, o sujeito, entendido em sua dimensão livre em termos culturais,
sociais, mentais e espirituais. Para além da crítica aos sistemas de produção de
qualquer ordem, a educação de sujeitos.
Ao invés de escolher entre dois campos, deve-se afirmar a existência de contradição
mais profunda, que opõe a afirmação da defesa do sujeito pessoal e de sua liberdade
à lógica dos sistemas, quer esta lógica seja a do mercado ou a de uma identidade
nacional ou cultural. (...) É preciso recusar escolher entre a globalização dirigida pelos
países industriais e pelas ditaduras que impõem em nome dos direitos de uma
comunidade, pois essas duas forças, cuja oposição domina hoje o planeta, ameaçam
de maneira igualmente grave a liberdade do sujeito. (TOURAINE, 348-349)
O papel do sujeito em relação à sociedade
Qual seria, então, ainda, o papel que resta ao Estado e à Sociedade em geral na
constituição dos sujeitos? E qual é a dinâmica da relação dos sujeitos entre si? O
estado precisa proteger o sujeito em sua liberdade, e garantir condições para a
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comunicação entre eles. (TOURAINE, 171). Desaparece desse esquema a noção de
sociedade enquanto princípio regulador das condutas.
É necessário proteger o sujeito, a sua liberdade e a comunicação entre os sujeitos e
as culturas. Aqui não se trata, porém, da liberdade negativa (freedom from), e sim da
liberdade positiva (freedom to). (...) Trata-se da proteção de princípio não social (a
liberdade do sujeito), sobre o qual deve repousar a organização social. (...) É dessa
dupla limitação dos poderes mais dominadores, os poderes dos mercados e das
comunidades, que se deve partir. Pois assim se afirma o universalismo do sujeito,
concebido como o direito que garante a todos os seres humanos dar um sentido à
própria existência. (TOURAINE, 171)
Esse aspecto de “liberdade para”, e não apenas de, explicita a diferenciação de um
programa baseado no sujeito em relação àquele baseado no indivíduo ou no
individualismo. O sujeito é um ser para algo, no sentido da ação, da disposição para
a vida social, e não para si mesmo. O sujeito é o princípio não social para constituir
a sociedade.
Só podemos viver juntos, isto é, combinar a unidade de uma sociedade com a
diversidade das personalidades e das culturas, se colocarmos a ideia de sujeito
pessoal no centro de nossa reflexão e de nossa ação. (...) O sujeito como combinação
de uma identidade pessoal e de uma cultura particular com a participação num
mundo racionalizado e como afirmação, por este mesmo trabalho, de sua liberdade e
sua responsabilidade. (TOURAINE, 25)
A essa altura Touraine preocupa-se em distanciar da noção de sujeito o individualismo
ou qualquer correlato negativista, como egoísmo, isolamento, solidão. O sujeito é
aquele que tem noção de seu lugar político na sociedade, sendo inerente à sua
constituição plena a preocupação e ocupação constante do outro. É como se ao
formular a noção de sujeito imediatamente se formulasse a ideia de viver juntos.
A escola de sujeitos
Touraine concluirá seu programa destacando três saídas ou caminhos para o dilema
social: a) a educação para o sujeito, b) a afirmação da democracia, c) os direitos
iguais. A democracia, o direito, e a escola precisam ser colocadas a serviço da
liberdade de cada sujeito pessoal, e não da sociedade, ou do estado, ou do mercado,
ou da nação. No caso da democracia, a luta essencial pela limitação do poder, pela
representatividade social dos dirigentes políticos, e pela cidadania (TOURAINE, 299). No
caso do direito, as condições jurídicas formais garantidas para os direitos das
minorias. No caso da educação, uma escola que não sirva de instrumentalização da
sociedade, mas que forme sujeitos autônomos – até mesmo “contra” a sociedade.
Para vivermos juntos, resumirá Touraine, é preciso ter um sistema político que exalte a
diferença, um sistema jurídico que prescreva a igualdade, mas, sobretudo uma escola
que ensine a viver junto, ou seja, nos dê condições de nos tornarmos atores e atrizes
da nossa vida, sujeitos.
A escola de sujeitos é o elemento que mais se destaca quando o assunto é formação
ou educação de caráter. Uma escola que ensina para a liberdade e para a autonomia,
sempre se ocupando com os valores que possibilitam a vivência em comum, quais
sejam, a solidariedade e a diversidade. Mais do que qualquer coisa, no entanto,
precisa educar para romper com a dissociação, a falta de comunicação entre a
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cultura e a economia, entre o afeto e a instrumentalidade, entre a massa e o gueto.
A falta de comunicação é apontada por Touraine como o grande problema de nosso
tempo. À solidariedade e à diversidade enquanto pilares da sociedade formadora de
sujeitos pode-se acrescentar a necessidade de comunicação entre estes.
A escola do sujeito se afastará sempre mais do modelo que a concebe como agência
de socialização. (...) A escola não deve ser feita para a sociedade; ela não deve se
atribuir como missão principal formar cidadãos ou trabalhadores, mas acima de tudo,
aumentar a capacidade dos indivíduos para serem sujeitos. Ela se voltará cada vez
menos para a transmissão de um conjunto de conhecimentos, de normas e
representações, e será cada vez mais centrada, de um lado na manipulação de
instrumentos e, do outro, na expressão e na formação da personalidade. (TOURAINE,
326-327)
A escola é portadora de uma concepção geral de sociedade na medida em que esta
se concebe como profundamente marcada pelas dissidências, pelos sujeitos. A escola
de sujeitos forma não apenas caráter pessoal, mas, sobretudo concepções gerais
desses sujeitos. Forma dissidências. (TOURAINE, 221)
O movimento ecológico como aglutinador de sujeitos
Resta ainda uma palavra sobre a criação de um movimento de sujeitos. Quem forjará
essa mudança civilizacional? O sujeito isolado certamente não. Quem reivindicará o
novo modo de vida? Aparentemente o capitalismo reinante forjou também a própria
impossibilidade ou o fracasso do modelo reivindicatório clássico na sociedade. A crise
do sistema mostra também sua crise política: a da ação política, das expressões de
descontentamento, as denúncias, as reivindicações. No mundo do trabalho, por
exemplo, a “reengenharia” baseada na flexibilidade até mesmo inviabilizou a
consciência de classe.
Na linguagem de Touraine, serão os levantes em nome dos direitos universais
elementares que terão poder para opor-se aos interesses dos financistas de todos os
lugares e de todas as classes. No entanto, levante de cidadãos contra financistas não
mobiliza as massas. Falta um objetivo concreto das manifestações populares, e esse
pode ser o lugar do novo pensamento ecológico, hoje já transmutado na linguagem
do desenvolvimento sustentável. Essa linguagem ecológica dá aos protestos, aos
dissidentes e aos descontentes em geral o que eles não tem por si, o objetivo
concreto e positivo importante: salvar o planeta. Resta esperar os movimentos futuros
para ver se a hipótese de Touraine se confirma, se os movimentos ambientalistas
realmente redimirão o planeta e a civilização.
Conclusão: para além das nossas “crises prediletas”, a crise civilizacional
Touraine parte da pressuposição de que a crise instalada na sociedade não é
totalmente sistêmica, nem natural – no estilo “o mundo é assim mesmo e não tem
jeito” -; pelo menos não tanto ao ponto de prescindir do caráter ou do sujeito. A
situação de descontrole social atual é fruto da ação de homens e mulheres que
colocam o interesse financeiro e pessoal acima de tudo, pessoas que não
desenvolveram a noção de sujeitos – daí sua não preocupação com o mundo. Há uma
nítida crise de gestão do mundo – a crise ambiental só veio evidenciar com
plasticidade o que a economia escondia nos números, o fato do mundo estar sendo
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gerido para uma terça parte de sua população, excluindo quase 4 bilhões de pessoas
da sociedade formal.
Nesse sentido, a reivindicação da educação de sujeitos, na linguagem de Touraine, diz
respeito a mudar o modo de vida, e junto com ele o modo de gestão financeira e
social do mundo. O que está em jogo é mais ainda do que um novo modelo de
desenvolvimento; trata-se da necessidade de um programa civilizacional. Para além da
simples crítica ao processo de globalização ou à flexibilização do capitalismo, e para
além de seu antídoto, qual seja, os fundamentalismos regionais identitários e
autoritários de toda ordem, a constituição de uma espécie de 3a via, a educação de
sujeitos, nos termos formulados por Alain Touraine em “Poderemos viver juntos?” Essa
3a via acaba por mostrar que a situação do mundo pede uma mudança civilizacional,
mais do que ambiental ou social.
A crise não é só do capitalismo, nem só do trabalho, nem só de gestão, nem só do
caráter, nem só ambiental. Todas essas crises, cada um a seu modo, busca a mesma
saída, correndo em busca da insubstituível substância contra o mimetismo contínuo, o
azougue, aquilo que forma o sujeito. O mundo do capitalismo não reconhece a
pessoa, mas apenas o eu produzido pelo consumo; não dá espaço à sua
individualidade, mas apenas reconhece sua adesão à cultura geral. Por outro lado,
surpreendentemente, não reconhece o direito de acesso ao universal, a tudo o que
podemos ter e ser. De um lado, o interdito à pessoalidade; do outro, o limite à
participação universal. Para escapar desse dilema, desse duplo interdito, e da falácia
que pode constituir a luta contra ambos, o indivíduo precisa individualizar-se, realizar-
se enquanto sujeito. Nesse processo, forjará a responsabilização pelo mundo e a
confiança nas outras pessoas. Só assim é possível viver realmente juntos.
Referências
TOURAINE, Alain. Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis: Vozes, 1999.