RESENHA É ÍTICA E NA EMPRESA: 12 ANOS DE …tanto, nã o posso, ao final, deixar de reconhecer que...

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JAN/FEV/MAR/2003 ©RAE 125 O livro de Humberg reúne uma seleção de artigos sobre o tema da ética originalmente publicados em jornais e revistas. Não há de se pon- derar sobre a escolha e a oportuni- dade do tema, tão atual hoje quanto para os pré-socráticos. Ética e mo- ral são processos interligados e por vezes complementares, o que nos co- loca diante de uma tarefa reflexiva nem sempre fácil. A questão da relação entre ética e moral põe-se de forma a tentar com- preender as razões pelas quais uma pessoa ou um grupo venha a agir de determinada maneira ou de outra dadas as alternativas possíveis. As- sim, julgar as ações ou omissões, aprovando as consideradas boas ou ÉTICA NA POLÍTICA E NA EMPRESA: 12 ANOS DE REFLEXÃO Por José Henrique de Faria Professor Titular do Departamento de Administração Geral e Aplicada da UFPR. E-mail: [email protected] RESENHA ÉTICA NA POLÍTICA E NA EMPRESA: 12 ANOS DE REFLEXÃO censurando as consideradas más, está relacionado ao objeto sobre o qual incide a judicação moral. As sanções morais, dessa maneira, fun- cionam como finalidade do próprio julgamento, sendo sociais – quando se referem ao outro – e da consciên- cia, – quando se referem a si. É um fato normal e inevitável que as pes- soas julguem o modo de agir e de ser de outras pessoas, o mesmo ocor- rendo com e no interior dos grupos e das organizações. Quando o que anima os julgamentos são códigos fundados em princípios éticos cole- tivamente construídos, pode-se mes- mo falar em moral da cooperação ou em moralidade social. Mas quando o julgamento funda-se em dogmas e crenças que pertencem à natureza particular de pessoas, grupos, orga- nizações, seitas ou corporações ou quando se baseia em um discurso- cobertura, que atende conveniências muito específicas, impondo-se aos sujeitos, estes estão na presença de uma moral da coerção, sem conteú- do ético, precisamente porque os in- teresses particulares ou os que se ex- plicitam como se fossem coletivos não podem ter a pretensão à univer- salidade. Como os sujeitos que pertencem a grupos ou organizações sabem que seus interesses pessoais não podem ser expressos como sendo pessoais, vão buscar um discurso cobertura que transforme esse interesse parti- ÉTICA NA POLÍTICA E NA EMPRESA: 12 ANOS DE REFLEXÃO De Mário Ernesto Humberg São Paulo : CLA, 2002. 122 p.

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JAN/FEV/MAR/2003 • ©RAE • 125

PETER PÁL PELBART

O livro de Humberg reúne umaseleção de artigos sobre o tema daética originalmente publicados emjornais e revistas. Não há de se pon-derar sobre a escolha e a oportuni-dade do tema, tão atual hoje quantopara os pré-socráticos. Ética e mo-ral são processos interligados e porvezes complementares, o que nos co-loca diante de uma tarefa reflexivanem sempre fácil.

A questão da relação entre ética emoral põe-se de forma a tentar com-preender as razões pelas quais umapessoa ou um grupo venha a agir dedeterminada maneira ou de outradadas as alternativas possíveis. As-sim, julgar as ações ou omissões,aprovando as consideradas boas ou

ÉTICA NA POLÍTICA E NA EMPRESA:12 ANOS DE REFLEXÃO

Por José Henrique de FariaProfessor Titular do Departamento de Administração Geral e Aplicada da UFPR.

E-mail: [email protected]

RESENHA • ÉTICA NA POLÍTICA E NA EMPRESA: 12 ANOS DE REFLEXÃO

censurando as consideradas más,está relacionado ao objeto sobre oqual incide a judicação moral. Assanções morais, dessa maneira, fun-cionam como finalidade do própriojulgamento, sendo sociais – quandose referem ao outro – e da consciên-cia, – quando se referem a si. É umfato normal e inevitável que as pes-soas julguem o modo de agir e deser de outras pessoas, o mesmo ocor-rendo com e no interior dos grupose das organizações. Quando o queanima os julgamentos são códigosfundados em princípios éticos cole-tivamente construídos, pode-se mes-mo falar em moral da cooperação ouem moralidade social. Mas quandoo julgamento funda-se em dogmas e

crenças que pertencem à naturezaparticular de pessoas, grupos, orga-nizações, seitas ou corporações ouquando se baseia em um discurso-cobertura, que atende conveniênciasmuito específicas, impondo-se aossujeitos, estes estão na presença deuma moral da coerção, sem conteú-do ético, precisamente porque os in-teresses particulares ou os que se ex-plicitam como se fossem coletivosnão podem ter a pretensão à univer-salidade.

Como os sujeitos que pertencema grupos ou organizações sabem queseus interesses pessoais não podemser expressos como sendo pessoais,vão buscar um discurso coberturaque transforme esse interesse parti-

ÉTICA NA POLÍTICA E NA EMPRESA:12 ANOS DE REFLEXÃODe Mário Ernesto HumbergSão Paulo : CLA, 2002. 122 p.

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RESENHA • O NOME DA MARCA: MCDONALD’S, FETICHISMO E CULTURA DESCARTÁVEL

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JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

cular em uma razão coletiva aceita,capaz de conferir legitimidade aoque não é necessariamente legítimo.É por essa razão que a cena políticae social precisa valorizar, como su-gere Marilena Chauí, um outro tipode sujeito, o coletivo – que vinculaética e moral, ética e direito, ética ecidadania, ética e democracia –, demaneira que a distinção entre a es-fera privada da ética e a esfera pú-blica da moral não possa mais sermantida, pois não há ética sem ga-rantia de direitos: “a questão éticatornou-se inseparável da democrá-tica, na medida em que a democra-cia afirma os princípios da igualda-de, da justiça, da liberdade e da fe-licidade como direitos universais,criados pelos agentes sociais, assimcomo o princípio do direito às dife-renças, universalmente reconhecidascomo legítimas por todos”.

Tratando da ética, Humberg afir-ma, logo no início de seu livro, quea honestidade é uma qualidade difí-cil de se encontrar entre os políti-cos. Após discorrer sobre as quali-dades de um bom presidente, o au-tor declara sua preferência. Seria éti-co o julgamento por ouvir dizer?Seria ético o conceito preconcebido?Seria a é t ica mero bom senso?Humberg não faz bom uso do queaconselha. Ao propor uma mudan-ça ética para o Brasil, sugere que amesma seja liderada por empresá-rios: com que ética? Com a éticados negócios? Por que os empre-sários seriam possuidores de umaética nacional/universal? O próprioHumberg reconhece que a ética das“grandes empreiteiras” não é dignade exemplo.

Depois de investir no tema, o au-tor define o objeto de seu texto e,com isso, deixa clara a razão de al-gumas de suas dificuldades analíti-cas. “Ética organizacional é um com-portamento regido por padrões cla-

ros, explícitos, que correspondem àpostura real dos dirigentes dessa or-ganização”. A ética é parte da cultu-ra e não corresponde a valores mo-rais ou religiosos “embora seja de seesperar que isto ocorra”. Uma pos-tura pode ser real sem ser necessari-amente ética. Valores religiosos po-dem corresponder a uma certa mo-ral mas não à toda moral. Assim,Humberg também deixa claro o focode suas considerações: a relaçãoempresa-governo-política e seuscorrelatos.

De fato, ética e moral vinculam-seà prática política, constituindo-se emmeios de julgamento. Quando atitu-des políticas são tomadas, é inevitá-vel que sejam apreciadas pelos dire-tamente atingidos e, muitas vezes, atémesmo pelos que por elas não sãoafetados. A avaliação das atitudes aca-ba por se referir, grosso modo, àsnoções de certo e de errado, bom oumau, seja do ponto de vista dos có-digos individuais – da ética –, sejadas normas sociais – da moral. Comoensina Heemann, esses padrõesaglutinam-se em três grandes grupos:a. o teleológico, em que o padrão para

a decisão moral depende de suasconseqüências;

b. o deontológico, em que o padrãopara a decisão moral pode ser obri-gatória ou correta pelo bem que pro-move ou, igualmente, por sua natu-reza; e

c. o relativista, que recusa os princípi-os absolutos oriundos do fim últi-mo ou do dever, admitindo-os emum quadro espaço-tempo mutável.

É ainda Heemann quem destacaque os juízos morais particulares ge-rais – juízo de obrigação e de valor,por exemplo – podem representar umnúcleo do comportamento moral. JáRicoeur propõe uma distinção entreética e moral que, embora convencio-nal, é de muita utilidade para anali-

sar as considerações de Humberg: otermo “ética” é reservado à “perspec-tiva de uma vida concluída” e o ter-mo “moral”, à “articulação dessa pers-pectiva em normas caracterizadas aomesmo tempo pela pretensão à uni-versalidade e por um efeito de cons-trangimento”. Isso implica que “amoral somente constituiria umaefetuação limitada, embora legítimae mesmo indispensável, da perspec-tiva ética, e a ética nesse sentido en-volveria a moral”, de forma que aperspectiva é t ica – o momentoteleológico – corresponde à estimade si , e a moral – o momentodeontológico –, o respeito de si. Nes-se sentido, deve ser “evidente: 1) quea estima de si é mais fundamental queo respeito de si; 2) que o respeito desi é o aspecto que reveste a estima desi sob o regime da norma; 3) enfim,que as aporias do dever criam situa-ções em que a estima de si aparecenão somente como a origem mascomo o recurso do respeito quandojá nenhuma norma certa oferece guiaseguro para o exercício hic et nunc dorespeito”. Em síntese, Ricoeur con-clui que “a distinção entre ética emoral responde à obrigação humanade um fosso lógico entre prescrevere descrever, entre dever-ser e ser”, deforma que, se o ponto de vistadeontológico subordina-se à perspec-tiva teleológica, então “a distânciaentre dever-ser e ser parecerá menosintransponível que em uma confron-tação direta entre a descrição e a pres-crição ou, segundo uma terminolo-gia próxima, entre julgamentos devalor e julgamentos de fato”.

O que se depreende dessa análisekantiana é que o sujeito, embora pos-sa ser constrangido pelas regras damoral, é capaz de definir, em circuns-tâncias específicas em que o respeitode si pelo outro passa a ser um códi-go valorizado pelo sentimento depertença a seu próprio grupo ou pela

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PETER PÁL PELBART

ocupação de espaços políticos depoder nas organizações, uma pers-pectiva teleológica ditada por outrarazão. Assim, como a estima de si – aética – é mais fundamental que o res-peito de si – a moral –, o sujeito podepropor justificações a si, de tal formaque a moral, já não tendo a últimapalavra, pode conviver, nas organi-zações, com outras éticas que nãolhe correspondem, e os sujeitos nempor isso irão se sentir totalmente des-confortáveis por essa distinção.Humberg não percebe essa questãoe por isso pode propor uma éticaempresarial como solução.

O que justifica a prática de umaética em desacordo com os códigosmorais pode ser ou a falta de condi-ção da norma para continuar a ofe-recer um “guia seguro” ou as aprecia-

ções de caráter avaliativo, tanto daética como da moral. Neste segun-do caso, a prática é aquela em que aqualificação da ética passa a ser as-segurada não por sua correspondên-cia ou pela necessidade de renova-ção deontológica, mas pelo desen-volvimento de “padrões de excelên-cia”, como afirma Macintyre, osquais definem o sucesso esperado,tornando-se regras aceitas por umacerta coletividade organizacional einteriorizada por seus membros. Talprática resulta em atividades com re-gras “socialmente estabelecidas”,cujos padrões têm “sua própria his-tória” para justificar os critérios doque é uma organização bem-sucedi-da e do que são seus melhores “co-laboradores”. Na prática organiza-cional, esses padrões – nem sempre

escritos, mas usualmente sugeridosnas definições das estratégias – le-vam os sujeitos a conviverem comconjuntos de diferentes códigos – osdo dever-ser e os do ser –, o que osleva a valorizar mais o parecer-ser doque o de-fato-ser.

A falta de uma definição mais pro-funda de ética, leva Humberg a tra-tar do tema de forma excessivamen-te genérica e pouco precisa. Entre-tanto, não posso, ao final, deixar dereconhecer que Humberg tem umapreocupação original e que, inde-pendentemente da profundidade,trata de um tema que possui muitosadeptos no plano do discurso e pou-cos no plano das atitudes. Dessa for-ma, sinto-me à vontade para criti-car suas análises e para elogiar suasintenções.

RESENHA • ÉTICA NA POLÍTICA E NA EMPRESA: 12 ANOS DE REFLEXÃO

Na edição anterior da RAE-revista de administraçãode empresas, volume 42, número 4, outubro/dezembrode 2002, os créditos de dois dos autores do artigo “Umexercício de desconstrução do conceito e da prática desegmentação de mercado inspirado em Woody Allen”foram publicados de modo incorreto. Reproduzimos aseguir os nomes e instituições corretas dos autores:

Jorge Francisco Bertinetti LenglerDoutorando em Administração no Programa de Pós-Gra-duação em Administração da UFRGS e Professor do De-partamento de Ciências Administrativas da UNISC e daFACAD/Osorio/RS.E-mail: [email protected]

ERRATA

Marcelo Milano Falcão VieiraPh.D. pela Universidade de Edimburgo (Escócia), pro-fessor adjunto da Escola Brasileira de Administração Pú-blica e de Empresas (EBAPE/FGV) e professor do Pro-grama de Pós-Graduação em Administração da Univer-sidade Federal de Pernambuco (PROPAD/UFPE).E-mail: [email protected]

Roberto Costa FachinDoutor e Livre-Docente pela UFRGS, Professor do Pro-grama de Mestrado Profissionalizante em Administra-ção da PUC Minas - Fundação Dom Cabral. Professorcolaborador do Programa de Pós-Graduação em Admi-nistração da UFRGS.E-mail: [email protected]