Resistência da Poesia/Resistência na Poesia

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36 Tropelías. Revista de Teoría de la Literatura y Literatura Comparada, 18 (2012) Rosa Maria Martelo RESISTÊNCIA DA POESIA/ RESISTÊNCIA NA POESIA 1 Rosa Maria MARTELO Universidade do Porto O certo é que a poesia deve, entre outras coisas, contribuir para fundar uma sociedade mais justa. Ruy Belo, Na Senda da Poesia egressemos a 1960, para recordar um acontecimento literário pleno de sentido. Nesse ano, Carlos de Oliveira, já então reconhecido como um dos mais notáveis escritores portugueses e um dos mais consequentes protagonistas do Neo-realismo literário, publica uma recolha de poemas intitulada Cantata. O livro viria a causar indisfarçável desconforto entre os neo-realistas, habituados de há muito ao empenhamento do autor e ao modo como denunciara a opressão fascista e defendera os desapossados da terra, tanto na poesia como no romance. E enquanto pela voz de João Gaspar Simões a crítica mais conservadora saudava o modo como Carlos de Oliveira finalmente “resgatava” a sua obra do que a “comprometia” e “maculava” 2 , os compagnons de route do escritor interrogavam-se sobre o que lhes parecia surpreendente e desviante nos poemas de Cantata. 1 Este ensaio foi elaborado no âmbito do Projecto Interidentidades do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Unidade I & D financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, integrada no Programa Operacional Ciência e Inovação 2010 (POCI 2010), Quadro Comunitário de Apoio III (POCI 2010-SFA-18-500). Foi lida uma versão abreviada deste texto no Symposium Poetry and Resistance, organizado pelo Department of Portuguese and Brazilian Studies, em colaboração com a Rede Internacioanl LyraCompoetics, Brown University, 7-8 de Outubro de 2011. 2 Reproduzo mais extensamente o comentário de Gaspar Simões: «Humano nas suas emoções, nem sempre Carlos de Oliveira fora puro nas suas aspirações à poesia. O neo-realismo implícito nalguns dos seus versos, um neo-realismo de confessado propósito – é o caso de Descida aos Infernos –, comprometia por vezes, a beleza da obra. Com esta Cantata resgata-se do que porventura maculava esses versos anteriores. A imagem da estrela do mar fossilizada na pedra exprime com sublimidade a condição da poesia de Carlos de Oliveira, que ficará, na verdade, nos quadros neo-realistas como o aceno petrificado de uma das mais belas inspirações da moderna poesia portuguesa» (Simões, s. d.: 368). R

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MARTELO, Rosa Maria "Resistência da Poesia/Resistência na Poesia"

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  • 36 Tropelas. Revista de Teora de la Literatura y Literatura Comparada, 18 (2012) Rosa Maria Martelo

    RESISTNCIA DA POESIA/ RESISTNCIA NA POESIA1

    Rosa Maria MARTELO Universidade do Porto

    O certo que a poesia deve, entre outras coisas, contribuir para fundar uma sociedade mais justa.

    Ruy Belo, Na Senda da Poesia

    egressemos a 1960, para recordar um acontecimento literrio pleno de sentido. Nesse ano, Carlos de Oliveira, j ento reconhecido como um dos mais notveis escritores portugueses e um dos mais consequentes protagonistas do

    Neo-realismo literrio, publica uma recolha de poemas intitulada Cantata. O livro viria a causar indisfarvel desconforto entre os neo-realistas, habituados de h muito ao empenhamento do autor e ao modo como denunciara a opresso fascista e defendera os desapossados da terra, tanto na poesia como no romance. E enquanto pela voz de Joo Gaspar Simes a crtica mais conservadora saudava o modo como Carlos de Oliveira finalmente resgatava a sua obra do que a comprometia e maculava2, os compagnons de route do escritor interrogavam-se sobre o que lhes parecia surpreendente e desviante nos poemas de Cantata.

    1 Este ensaio foi elaborado no mbito do Projecto Interidentidades do Instituto de Literatura Comparada

    Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Unidade I & D financiada pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia, integrada no Programa Operacional Cincia e Inovao 2010 (POCI 2010), Quadro Comunitrio de Apoio III (POCI 2010-SFA-18-500). Foi lida uma verso abreviada deste texto no Symposium Poetry and Resistance, organizado pelo Department of Portuguese and Brazilian Studies, em colaborao com a Rede Internacioanl LyraCompoetics, Brown University, 7-8 de Outubro de 2011. 2 Reproduzo mais extensamente o comentrio de Gaspar Simes: Humano nas suas emoes, nem

    sempre Carlos de Oliveira fora puro nas suas aspiraes poesia. O neo-realismo implcito nalguns dos seus versos, um neo-realismo de confessado propsito o caso de Descida aos Infernos , comprometia por vezes, a beleza da obra. Com esta Cantata resgata-se do que porventura maculava esses versos anteriores. A imagem da estrela do mar fossilizada na pedra exprime com sublimidade a condio da poesia de Carlos de Oliveira, que ficar, na verdade, nos quadros neo-realistas como o aceno petrificado de uma das mais belas inspiraes da moderna poesia portuguesa (Simes, s. d.: 368).

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    De uma limpidez formal notvel, rarefeitos e concisos, esses poemas eram, sem dvida, diferentes de algumas das mais emblemticas composies neo-realistas assinadas por Carlos de Oliveira. Contrariamente ao que acontecia com poemas como Xcara das bruxas danando (Me Pobre, 1945) ou Descida aos Infernos (1949), no era fcil detectar em Cantata o estilo que fora comum na poesia empenhada do Neo-realismo: nem acessibilidade, nem comunicabilidade, nem reelaborao de formas populares, nem dimenso perlocutiva, nem tom futurizante...3 A ponto de, em 1963, este livro ter vindo a estar no centro de uma polmica entre o neo-realista Jos Fernandes Fafe e o ento jovem poeta Gasto Cruz. Em sucessivos nmeros do Dirio de Lisboa, os dois polemistas iam retomando uma discusso centrada na amplitude a dar uma eventual definio de Neo-realismo, num momento em que este movimento apresentava j inequvocos sinais de dissoluo. Vrias vezes debatido ao longo da polmica, o livro Cantata surgia como uma obra na qual no era fcil identificar sinais da estratgia intervencionista desenvolvida pelos poetas neo-realistas nas dcadas de 40 e 50, embora o seu autor nunca tivesse posto em causa a funo de resistncia social e poltica que sempre atribura tanto ao romance quanto poesia. Cantata ressuma desencanto, tristeza, cansao... No encontramos a a participao no combate pela dignidade e pelas condies da felicidade humana, reconhecia Jos Fernandes Fafe, visivelmente a contragosto. Mas justificava:

    Suponho que Carlos de Oliveira tem conscincia disso. Tanto que nunca publicou Cantata separadamente. (A plaquette com este ttulo resume-se a pequena tiragem, depressa esgotada nas ofertas do escritor aos amigos). Praticamente, Cantata s foi publicada h pouco, no volume das Poesias. Talvez Carlos de Oliveira tenha querido que Me Pobre, Colheita Perdida, Terra de Harmonia projectem na tristeza de Cantata um pouco dos seus cantos de liberdade (Fafe, 1963: 19).

    A justificao no era muito convincente. Na verdade, Cantata marcava um efectivo processo de mudana na obra de Carlos de Oliveira, como os livros subsequentes amplamente iriam confirmar. De resto, essa mudana vinha sendo anunciada, na medida em que, ao longo da dcada de 50, o escritor tinha feito sucessivas crticas secundarizao da forma em funo de critrios de avaliao crtica essencialmente ideolgicos e pragmticos, por parte da ortodoxia do movimento neo-realista. Se, na dcada de 40, Carlos de Oliveira retomara as formas da tradio popular e chegara mesmo a escrever poemas de interveno muito imediatista, como foi o caso do poema em redondilha Me Pobre, musicado por Fernando Lopes Graa, ao qual a censura logo havia de cortar uma quadra4, no incio da dcada de 60 o poeta tinha j 3 A ttulo de exemplo, recordo o poema Nvoa, de Cantata: A morte / em flor / dos camponeses / to

    chegados terra / que so folhas / e ervas de nada / passa no vento / e eu julgo ouvir / ao longe / nos recessos da nvoa / os animais feridos / do Incio (Oliveira, 2003: 164). 4 Sobre este poema e o modo como circulou de forma a iludir a censura, veja-se Martelo (1998: 208 e ss).

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    desenvolvido uma ideia diferente acerca da poesia. E essa ideia estava muito mais perto da perspectiva defendida por Gasto Cruz no contexto da polmica que estou a citar, quando este acentuava a necessidade de transfigurar a realidade, de lutar contra o imobilismo, contra a tola venerao do que est, e valorizava o papel da metfora como elemento bsico do realismo no campo da poesia (Cruz, 1963: 24).

    A obra de Carlos de Oliveira ia manter-se em dilogo com o pensamento marxista que a norteara desde o incio. E tanto assim que, no ltimo livro que publicou, Finisterra (1978), o escritor voltaria a equacionar a questo de onde partira: a irredutibilidade entre lei e justia, e o que considerava ser o erro primordial a posse da terra. Em Finisterra, uma vez mais os camponeses que atravessam toda a sua obra exigiro justia, apresentados como uma ameaa perene, como os fantasmas que assombraro para sempre uma sociedade injusta. Todavia, do ponto de vista da potica, Carlos de Oliveira tambm procurara, desde cedo, superar a distncia a que o realismo de matriz marxista deixara a tradio da poesia moderna, ao optar por critrios de acessibilidade e de eficcia comunicativa. E era o culminar desse processo de distanciamento que se podia ler em Cantata: os poemas recolhidos neste livro j no propunham um contrato de leitura realista, j no criavam qualquer iluso de transparncia discursiva, j no pugnavam explicitamente por justia. Eram textos rarefeitos, de versos curtos e abruptos, escritos com recurso frequente a um vocabulrio de raiz concreta, no qual o poeta corporizava um pensamento assumidamente materialista e dialctico. Textos que obrigavam o leitor a deter-se nas caractersticas formais, e nos quais a carncia de quase tudo, observada por Carlos de Oliveira nos desapossados da terra (Oliveira, 1992: 588), se transformara em forma, estilo tatuagem, para usar um imagem do poeta (ibid.), do mesmo modo que a carncia, a precaridade e a brevidade que observara na vida dos seres humanos vitimizados por outros seres humanos se tinha transformado em discurso breve, rarefeito, precrio. Cantata exibia, portanto, mas como linguagem, estilo, o mundo que Carlos de Oliveira sempre tinha tematizado. Em lugar de se limitar a designar esse mundo sob um contrato realista, isto , em lugar de o designar sob a forma de um mundo reconhecvel para o leitor como o seu mundo habitual, os poemas exibiam-no na estrutura desgastada dos textos, violentando a linguagem. E violentando at o passado da obra.

    Neste ponto, Carlos de Oliveira afastava-se do Neo-realismo mais ortodoxo para, sem pr em causa o materialismo e a dialctica que sempre o tinham norteado, tomar parte activa num processo de intensificao do dilogo com a tradio da poesia moderna que seria marcante na poesia portuguesa da dcada de 60. Afastava-se do Neo-realismo no que este tinha de realista e anti-modernista, mas continuava a mover-se em funo das suas obsesses pessoais e sociais (1992: 1155) de sempre, as quais, alm

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    de tematizadas, surgiam corporizadas (somatizadas e postas vista como forma) no tratamento da linguagem enquanto matria susceptvel de exemplificar o mundo, sem para isso precisar de recorrer referncia explcita.

    Se olharmos para a poesia portuguesa publicada naqueles anos, veremos que no se tratava de uma atitude isolada. Nesse momento, a poesia portuguesa recupera a defesa da posio autonmica reivindicada pela poesia moderna e genericamente pela arte moderna, encarando os poemas como criaes discursivas que so em si mesmas actos de resistncia, independentemente da necessidade de explicitaes de carcter ideolgico ou de tomadas de posio poltica explcitas. Cest par sa seule existence que [lart] cest dj de la rsistance, diz Deleuze a Claire Parnet quando esta lhe pede para desenvolver o conceito de resistncia (Deleuze/ Parnet, 1988). E, nesta afirmao, a uma ideia moderna de poesia que se regressa, a condio autonmica da arte que sublinhada, tanto mais que Deleuze ir enfatizar o modo como a escrita literria cria forosamente uma outra sintaxe, uma lngua estrangeira lngua, num exerccio que, por natureza, potncia de vida, libertao da vida (ibid.). Ao procurar definir o conceito de resistncia na entrevista que estou a citar, Deleuze recupera muito concretamente, uma tese expendida num dos ensaios reunidos em Crtica e Clnica: A sade como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta (Deleuze, 2000: 14). Assim, o fim ltimo da literatura seria distinguir no delrio essa criao de uma sade, ou essa inveno de um povo, quer dizer, uma possibilidade de vida. Escrever por esse povo que falta. Mas Deleuze sublinha que, nesta frase, por significa menos no lugar de do que na inteno de (idem: 15).

    Regressando a Cantata, poderamos dizer que Carlos de Oliveira passara precisamente da noo (neo-realista) de escrever no lugar de, dando voz aos que a no tm, para a noo (modernista) de escrever na inteno de; ou seja, passara da valorizao da resistncia na poesia afirmao da resistncia da poesia. Sintoma claro desta inflexo: o progressivo desaparecimento do ns coral neo-realista na sua poesia. Se, como disse ainda Deleuze citando Primo Levi, un des motifs de lart et de la pense cest lhonte dtre un homme, isto , a necessidade de perguntar comment des hommes on pu faire a (Deleuze / Parnet, 1988), a residindo a condio de resistncia da arte, Carlos de Oliveira continuava sem dvida a fazer essa pergunta e, portanto, a escrever em inteno das vtimas, mas agora sem pretender falar no seu lugar. E o mesmo poderamos dizer dos livros de poemas ento publicados por Gasto Cruz, Fiama Hasse Pais Brando, Luiza Neto Jorge, Armando da Silva Carvalho. Ou mesmo por Herberto Helder e Ruy Belo. Ou mesmo por Sophia de Mello Breyner Andresen, Jorge de Sena, Eugnio de Andrade e Mrio Cesariny. Escrever na inteno de era partir do princpio de a poesia ser, em si mesma, um acto de violncia e de

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    resistncia; era valorizar a condio ontolgica propriamente textual e material da escrita e a correlativa emergncia de uma subjectivao mais livre, precisamente na medida em que esta surgia da experincia libertria de um discurso gerado pela experimentao e pela agramaticalidade. Mesmo Cesariny, por certo o menos textualista de todos os poetas que referi, no deixou de assinalar num texto datado de 1986:

    A cincia perdeu, provavelmente por muitos tempos a vir, a sua pretenso a produto exacto e absoluto de aferio das coisas, do mesmo passo que a poesia (re)comea a exercer-se na individuao-despersonalizao do enunciado. Importa no ler despersonalizao como ela parece que aparece na inveno fernandiana: levando a uma fico de outras-a-mesma-personalidade com cada uma delas afirmando personalidades; mas sim como real destruio do conceito e da prtica da personalidade, e dos seus referentes, para emerso do indivduo ausente de nome prprio, de tempo e de lugar [] (Cesariny in Pascoaes, 1987: 30).

    Se para Cesariny este processo abre a possibilidade (romntica e surrealista) de haver um poeta que no escreve, apenas vive (ibid.), na maior parte das poticas da dcada de 60, o que enfatizado a resultante da produo potica: um objecto, material, poemtico, por natureza inacessvel ao brao do carrasco. Assim, a experimentao discursiva devia fazer da obra uma espcie de ourio, eriado, inexpugnvel, conforme a descrio de Derrida:

    O poema pode enrolar-se em bola, mas f-lo ainda para voltar os seus signos para agudos para fora. Ele pode, sem dvida, reflectir a lngua ou dizer a poesia mas nunca se refere a si mesmo, nunca se move por si []. A sua ocorrncia irrompe sempre, ou desvia, o saber absoluto, o ser junto de si na autotelia. Este demnio do corao jamais se congrega, antes se perde (delrio ou mania), expe-se sorte, preferiria deixar-se despedaar por aquilo que sobre ele avana (Derrida, 2003: 10).

    Na imagem do poema-ourio, proposta por Derrida, esto representados um conjunto de traos facilmente observveis nas poticas de 60: a meta-reflexividade, que aparentemente pe em causa a vocao referencial do poema, mas que na realidade a rev sob a forma de exemplificao literal e metafrica, j que o poema deve poder instanciar, como traos possudos, aqueles traos que refere, literal ou metaforicamente (Goodman, 1990: 86 e ss.); a valorizao da imagem e da metfora como instrumentos de produo libertria de sentido e de conhecimento; a despolarizao das identidades; e sobretudo a condio autonmica do esttico.

    Ferido[s] de realidade e em busca de realidade, para retomar aqui uma formulao usada na mesma poca por Paul Celan (1996: 34), estes poetas recusavam a instrumentalizao ideolgica da poesia, distanciavam-se de forma explcita e profundamente crtica de quaisquer formas de poesia de interveno, mas viam na escrita a possibilidade de criao de um espao (conceito, de resto, recorrente em Fiama Hasse Pais Brando, em Herberto Helder, em Carlos de Oliveira), espao esse sem

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    dvida herdeiro da injuno rimbaldiana la vraie vie est absente (Rimbaud, 1999: 424), que Godard refez em Pierrot le Fou (1965) como la vraie vie est ailleurs, afirmao na qual a palavra ailleurs mais deslocaliza do que localiza, exprimindo acima de tudo recusa e expectativa. Resistncia seria, ento, para voltar a Celan, o fazer atravs da fractura, em contra-faco (1996: 67). E uso intencionalmente o verbo fazer, em lugar de dizer.

    Sensivelmente aquando da primeira edio de Cantata, Adorno publicou a conferncia que viria a ficar conhecida pelo ttulo Engagement, embora o primeiro ttulo fosse mais extenso: Engagement ou autonomia artstica. As posies ento defendidas pelo filsofo podem ser aqui extremamente elucidativas, designadamente quando afirma que a existncia de um apelo na arte no depende de haver ou no engagement temtico (Adorno, 1984: 300), e sobretudo quando mostra que as obras ditas autnomas no esto desligadas da praxis e que a sua fora pode residir menos na tematizao da angstia do que no modo como a fazem nascer (o exemplo dado por Adorno a escrita beckettiana). De resto, e numa formulao onde tambm podemos surpreender uma aluso rimbaldiana, Adorno associa as obras de arte production de la vraie vie (1984: 305), alertando para o facto de a autonomia ser condio de uma relao com aquela mesma praxis de que, paradoxalmente, as obras de arte autnomas se afastariam: [] laccent que lon met sur luvre autonome est lui-mme de nature sociopolitique, faz notar Adorno. E acrescenta:

    Lhypocrisie de la vraie politique ici et aujourdhui, la rigidit de relations qui nulle part nont lair de vouloir se dgeler obligent lesprit se rfugier dans un domaine o il na pas besoin de sencanailler. Actuellement, tout le culturel, mme les oeuvres honntes, court le risque dtre touff dans le brouhaha de la culture; mais au mme moment on charge les oeuvres dart de recueillir et de conserver en silence ce dont laccs est interdit la politique (1984: 305).

    Defendendo que o comprometimento do escritor com a coisa, e no com uma escolha (idem: 290), Adorno valoriza a noo de resistncia, articulando-a com a exigncia de uma verdadeira vida que, todavia, no pode ser antecipada: Lart ne consiste pas mettre en avant des alternatives, mais rsister, par la forme et rien dautre, contre le cours du monde qui continue de menacer les hommes comme un pistolet appuy contre leur poitrine (Adorno, 1984: 289). este mesmo processo que, voltando agora a Deleuze, pressupe forosamente uma gramtica do desequilbrio, gerada em tenso com aquela outra gramtica que regula os equilbrios do discurso. Dito noutros termos, igualmente deleuzianos, tal processo implica uma escrita semelhante a um gaguejar na lngua e no fala (cf. Deleuze: 2000: 152; 147-8). A essa outra lngua (que se sobrepe primeira sem para isso a proscrever inteiramente, antes a desviando) chama Herberto Helder um idioma, uma lngua dentro da prpria

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    lngua (Helder, 2009: 562 e 572), e nesse sentido que faz a apologia do erro em vrios fragmentos de Photomaton & Vox. Texto maldito, texto mal dito, seria, ento, para regressar uma vez mais a Deleuze, aquele que consegue [f]azer gritar, fazer gaguejar, balbuciar, murmurar a lngua nela mesma (Deleuze, 2000: 149). Nos anos 60, a importncia do silncio (em Eugnio de Andrade, por exemplo), a eroso do verso (em Carlos de Oliveira), a fragmentao irregular da sintaxe (em Gasto Cruz e Luiza Neto Jorge), a valorizao da metfora e da imagem potica na generalidade da poesia ento publicada, a experimentao formal assumida pela generalidade dos poetas, todos esses traos de escrita se prendem com esta ideia (moderna) de poesia. E se reno nestes exemplos poetas de geraes diferentes porque a diferena geracional no lhes impedia obviamente a contemporaneidade. Nenhum destes poetas poria em causa a equao rimbaldiana segundo a qual la vraie vie est absente, num ailleurs que nenhuma ideologia ou projecto poltico poderia circunscrever e apontar sem lhe coarctar liberdade e potncia de concretizao. Nenhum destes poetas poria em causa a possibilidade de a poesia apontar para esse lugar, ainda que o apontasse como falta ou em falha. Lugar , de resto, o ttulo de um livro publicado por Herberto Helder em 1962, no qual encontramos estes versos: s vezes penso: o lugar tremendo. / sobre os mortos, alm da linguagem (Helder 2009: 152). So versos que podemos entender melhor luz de uma passagem de Photomaton & Vox:

    O ponto no estabelecer um sistema de referncias, instituir leis, consumar um mecanismo. Digo que o ponto propiciar o aparecimento de um espao, e exercer ento sobre ele a maior violncia. Como se o metal acabasse por chegar s mos e bat-lo depois com toda a fora e todos os martelos. At o espao ceder, at o metal ganhar uma forma que surpreenda as prprias mos (Helder, 2006: 79; itlicos meus).

    Essa forma, sempre pstuma, surpreendente at para as mos que lhe do origem, , evidentemente, o poema, compresso da linguagem que se pretende expanso de mundos. No entanto, a euforia ontolgica e gnoseolgica presente nas palavras de Herberto Helder reflecte um de dois caminhos possveis. Quando Benjamin dizia que na pessoa do flneur, a inteligncia vai ao mercado, sublinhando que, embora na suposio de contemplar de fora o espectculo, o que ela efectivamente procura j um comprador, estava a indicar um ponto de viragem a partir do qual a poesia no poderia seno ver-se no prprio seio de um processo de mercantilizao (das artes, da cultura) ao qual tentar resistir (cf. Benjamin, 2000: 59). desse ponto de viragem que nasce a modernidade ps-baudelairiana, com tudo quanto a afasta da positividade do conceito de poesia veiculado pelos romnticos (pensado sobretudo do ponto de vista de uma potica da produo). E se um dos caminhos ento abertos conduz circunscrio do potico matria poemtica como espao de resistncia j centrado na textualidade e nos seus efeitos, bem como projeco da autonomia do esttico que to difcil far o

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    dilogo do Neo-realismo com os Modernismos, outro caminho se comea ento a desenhar. E esse conduzir s sucessivas desvalorizaes da poesia a que podemos assistir a partir da dcada de 70 do sculo XX, aos infortnios da pobre Mrs. Poesy, como lhe chama Antnio Franco Alexandre, que tambm fala da poesia enquanto arte chiar (2001: 53), ou duplicata, remendo (1996: 201), garatuja (1996: 275, 364). Nessa outra perspectiva, a poesia no detm o papel que a levara a conceber-se como um espao (texto, discurso) que, embora fechado, assumia uma capacidade heurstica inquestionvel.

    Depois dos anos 70, poetas como Joo Miguel Fernandes Jorge, ou, j no final do sculo XX, Manuel de Freitas e Jos Miguel Silva iro desvalorizar explicitamente a metfora, porque [] [u]ma metfora no leva a nenhum lado (Jorge, 1988: 40), ou porque se repudia a sua baba quente e desajustada (Freitas, 2002: 42). Em seu lugar, estes autores vo preferir valorizar a alegoria, entendida, em sentido benjaminiano, como um modo de expresso vocacionado para substituir a epifania pela aluso a uma irredimvel falta, isto , postergando a verdadeira vida para um ailleurs no localizvel no devir discursivo do poema. Paralelamente, importar verificar que, nas ltimas dcadas, em lugar da imagem potica e da afirmao do seu papel epifnico, vamos encontrar um acentuado incremento do recurso cfrase, que permite dialogar com outra ideia de imagem, a das artes visuais e tambm genericamente da comunicao visual.

    Se a modernidade ps-baudelairiana j trazia consigo um efeito de catbase relativamente ideia romntica de poesia, h que reconhecer que esse efeito se agudiza na poesia das ltimas dcadas. E todavia, sem grandes iluses quanto a estar inevitavelmente inserida no brua cultural de que falava Adorno, a poesia vai criando focos de resistncia. Podemos v-los, sob registos diferentes, em autores como Adlia Lopes, Manuel de Freitas, Jos Miguel Silva ou Rui Lage, para apontar alguns exemplos.

    No texto de apresentao do nmero especial dedicado pela revista Cosmos and History: The Journal of Natural and Social Philosophy ao tema The Poetics of resistance, Cornelia Grbner e David M. J. Wood referem que a maioria dos autores dos ensaios reunidos nesse nmero se opem ideia de haver, no contexto neo-liberal, uma total assimilao da obra de arte. Os ensastas discordam de que art is assimilated into public discourse and political language e de que the artist is empowered as social actor, but disempowered as artist-and-social-actor (2010: 6), contrapondo a estas perspectivas o que Grbner e Wood chamam uma autonomia porosa: [] this type of autonomy differs from the Adornan approach which locates the work of art in a third space where it is saguarded from two competing ideological poles, each of which

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    sought to assimilate it (ibid.). Com efeito, a ideia de autonomia porosa remete-nos para processos de resistncia menos centrados no antagonismo e na autonomia e mais interessados em explorar estratgias de subverso. Nesse mesmo nmero de Cosmos and History, Arturo Casas cita um manifesto do colectivo espanhol La Palabra Itinerante, no qual podemos ler: The most common method among poets in resistance is guerrilla method: rapid incursions in hostile territory to achieve objectives and then return to safe ground (Casas, 2010: 79).

    Na nota que abre o livro A Mulher-a-Dias (2002), Adlia Lopes esclarece: A mulher-a-dias sou eu, qualquer pessoa. [] De resto, os meus textos so polticos, de interveno, cerzidos com a minha vida (Lopes, 2009: 445). No que Adlia ignore ou desvalorize o quanto a tradio moderna nos ensinou acerca da complexidade dos processos de subjectivao em poesia; mas, situando a poesia no espao do mundo em que vivemos, os poemas de Adlia Lopes promovem a indecidibilidade entre dois contratos de leitura substancialmente diferentes, o lrico e o autobiogrfico. O uso da palavra cerzidos na frase que citei sugere ao leitor que os poemas so relacionveis com uma experincia de vida. E a reside em grande parte a eficcia da poesia adiliana enquanto denncia da violncia e da crueldade que sistematicamente observa no mundo contemporneo. Se o contrato autobiogrfico legitima a presena temtica do prosaico, do sofrimento banal e sem grande histria nos poemas, entretanto as fices lricas de Adlia Lopes analisam e resgatam esse sofrimento. Mas sem pretender apag-lo, ou distrair-nos dele. Usando e no usando, alternadamente, o pacto autobiogrfico na sua poesia, Adlia dialoga com a tradio moderna, ao mesmo tempo que problematiza a condio autonmica do poema. E deste modo que produz um dos mais violentos libelos contra a normalizao disciplinadora dos comportamentos no mundo contemporneo.

    Adlia Lopes no a nica a recorrer a contratualizaes de leitura deste tipo. Elas esto muito presentes nos poetas que comearam a escrever entre finais do sculo XX e incios do sculo XXI, nos quais a explicitao de um vnculo entre a temtica do poema e vivncias assumidas como biogrficas, se no exclui a deriva do processo de subjectivao inerente poesia, tambm no deixa de o vincular a coordenadas vivenciais concretas. Assim acontece com o sujeito lrico, os espaos e os protagonistas da poesia de Manuel de Freitas, por exemplo. Os biografemas reconhecveis sinalizam precisamente a autenticidade de uma estratgia de resistncia ao que Carlos de Oliveira chamou um dia as coisas desencadeadas (1992: 581). Num texto recentssimo, intitulado Bartleby bar (Lisboa, dcada de 2010), Miguel Martins escreve: Fao parte da direco, bastante desapegada, de uma agremiao informal que tem por lema e objectivo a resistncia a quanto se faz por tradio, hbito, obrigao, comodismo, etc.,

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    a quanto se faz sem razo ou vontade prprias (Martins, 2011: 25). Trata-se de uma observao rigorosamente biogrfica, que remete para um bar lisboeta, no qual a poesia est permanentemente presente, como o leitor facilmente confirmar, se quiser. Por isso, quando lemos num outro texto do mesmo livro, que Oposio, Resistncia e Libertao parecem-me, pois, as trs palavras fundamentais quando o que est em jogo a felicidade e a infelicidade (9), percebemos talvez melhor que Miguel Martins recorra ao registo autobiogrfico e inclua este texto num livro cujo registo se situa algures entre o poema em prosa e a meditao intimista de perfil autobiogrfico.

    A contaminao entre o registo lrico e o autobiogrfico, que encontramos em Adlia Lopes, em alguns dos livros de Ana Lusa Amaral, em Manuel de Freitas e noutros poetas que, embora de geraes diferentes, esto a publicar neste momento, bem como a contaminao entre poesia e prosa que tantas vezes exploram, particularmente Adlia Lopes, a contaminao entre lirismo e narratividade, especialmente bem conseguida em Jos Miguel Silva, os dilogos entre a poesia e a msica, entre a poesia e a fotografia, o cinema, o desenho, a pintura, frequentemente em registos ecfrsticos, que de algum modo respondem com outro tipo de relao com a imagem desvalorizao da imagem potica, configuram actualmente estratgias de resistncia porosa da poesia, porquanto elas j no parecem considerar muito vivel a posio autonmica, em sentido adorniano.

    A noo de autonomia porosa pode ajudar-nos a compreender o modo de funcionamento da poesia actual e a forma como ela se foi afastando da estratgia do ourio, para voltar imagem de Derrida, sem deixar de manter uma estratgia de resistncia. Na poesia que hoje assume um discurso mais crtico relativamente ao neo-liberalismo, podemos reconhecer um posicionamento enunciativo que no se apresenta nem como exterior a esse contexto, em sentido autonmico, nem simplesmente como interior. Para ela, j no se trata de optar entre falar no lugar de, como no Neo-realismo, ou na inteno de, como na dcada de 60. Trata-se de rever essas perspectivas luz da constatao de que estamos todos dentro de embora certamente no do mesmo modo. E de reconhecer que, apesar disso, a poesia continua a criar condies para a emergncia de processos de subjectivao mais livres, e portanto a escrever por esse povo que falta. Que sempre falta.

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