Respostas a Bakhtin - Luis Alberto Brandão
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Respostas a BakhtinOrganizadorLuis Alberto Brando
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Organizador
Luis Alberto Brando
Respostas a Bakhtin
FALE/UFMG
Belo Horizonte
2012
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Sumrio
5 Leituras no limiar
11 Imagens do mundo:
notas sobre o cronotopo no pensamento de BakhtinCleber Arajo Cabral
25 Dilogo, conscincia e alteridade:
notas sobre a teoria do romance de Mikhail BakhtinMaria Elvira Malaquias de Carvalho
35 O narrador em Mikhail BakhtinEverton Almeida Barbosa
55 Razes do sentido na obra de Mikhail BakhtinJanine Resende Rocha
67 Uma esttica bakhtiniana: o eu no outro e a
definio do literrioFabrcia Walace Rodrigues
81 Consideraes sobre histria e literatura em BakhtinImara Bemfica Mineiro
93 A empatia e o riso:
a propsito da unidade na obra de Mikhail BakhtinThiago de Souza Bittencourt Rodrigues
Diretor da Faculdade de LetrasLuiz Francisco Dias
Vice-DiretoraSandra Maria Gualberto Braga Bianchet
Comisso editorialEliana Loureno de Lima Reis Elisa Amorim Vieira Fbio Bonfim Duarte Lucia Castello Branco Maria Cndida Trindade Costa de Seabra Maria Ins de Almeida Snia Queiroz
Capa e projeto grficoGlria Campos Mang Ilustrao e Design Grfico
Preparao de originaisPriscila Justina
DiagramaoEduardo Siqueira
Reviso de provasPriscila Justina Tatiana Chanoca Elisa Santos
ISBN
978-85-7758-143-6 (impresso)978-85-7758-144-3 (digital)
Endereo para correspondnciaFALE/UFMG Laboratrio de Edio Av. Antnio Carlos, 6627 sala 4081 31270-901 Belo Horizonte/MG Telefax: (31) 3409-6072 e-mail: [email protected]: www.letras.ufmg.br/labed
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No texto Os estudos literrios hoje, publicado em 1970, Mikhail Bakhtin,
fazendo uma avaliao do ambiente intelectual russo de ento, constata a
prevalncia de um certo temor de risco investigatrio, um temor de levantar
hipteses. Em seguida acrescenta: a ausncia de uma luta entre corren-
tes e o temor de levantar hipteses ousadas acarretam necessariamente o
domnio de trusmos e chaves; destes, lamentavelmente, no h carncia
entre ns.1 Se no plenamente, pelo menos em larga medida o diagnstico
se aplica tambm a outros momentos e contextos, incluindo os prprios
estudos que tomam a obra de Bakhtin como objeto.
O desejo de lutar contra esse temor est na base dos textos que aqui se
apresentam. Os debates empreendidos se pretendem efetivamente crticos, no
sentido de libertos da tendncia, quase inevitvel, a uma atitude arredia, ou de
mera reverncia, diante da complexidade e da pujana terica de um pensa-
mento como o bakhtiniano. Cada texto um exerccio de gerao de respostas
s muitas questes suscitadas pela leitura do autor russo. De forma afinada
com a proposta bakhtiniana expressa no panfleto Arte e responsabilidade,2
responder no equivale apenas a reagir a uma dvida, a contrapor-se a uma
interpelao, mas tambm a assumir as consequncias de tal reao e de
tal contraponto. nesse duplo movimento na verdade movimento nico,
no qual os dois vetores se conjugam que os presentes textos se querem
intensamente responsivos e responsveis relativamente a Mikhail Bakhtin.
1 BAKHTIN. Os estudos literrios hoje, p. 360.2 BAKHTIN. Arte e responsabilidade, p. xxxiii-xxxiv.
Leituras no limiar
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8 Respostas a Bakhtin Leituras no limiar 9
de subjetividade, pressuposto como autoevidente pelo autor. Por que os
conturbados movimentos da conscincia, seja ela autorreflexiva ou refra-
tada em outras conscincias, no rompem os limites da racionalidade?
esse racionalismo que justifica a recusa de incorporar, noo de alterida-
de, outros tipos de ressonncias, como as do inconsciente? tambm tal
racionalismo que explica o fato de Bakhtin no ter dado desenvolvimento
noo de ritmo, presente apenas em seu trabalho inicial? Por que toda
voz, no mbito literrio, atribuda a um sujeito representado, e a um
sujeito representado como cognoscente?
O problema da imagem do homem tambm colocado por Everton
Almeida Barbosa no texto O narrador em Mikhail Bakhtin. Pode-se inquirir
se a nfase s relaes entre autor e personagem no inversamente
proporcional constituio de uma teoria do narrador, como figura que
possuiria estatuto prprio, no redutvel ao das outras duas figuras (ou
seja, no equivalente nem insero do autor no texto, nem mera
personagem que narra). As hesitaes e dificuldades de desenvolver tal
figura no seriam tributrias da insistncia em projetar, na literatura, a
relao eu/outro (a qual, por mais matizada, configura inevitavelmente
uma polaridade)? Tal relao perscrutada por Fabrcia Walace Rodrigues
no texto Uma esttica bakhtiniana: o eu no outro e a definio do liter-
rio. A interrogao permanece ecoando: apesar de prevista a hibridao
das vozes, o dialogismo, para ser reconhecido como tal, no exige que as
vozes permaneam identificveis, diferenciveis?
Similarmente figura do narrador (ou, de modo mais preciso, de
um sujeito da enunciao literria), outra figura possui grande relevn-
cia, justamente por sua presena difusa, na obra de Bakhtin. Trata-se da
figura do leitor, interpelada por Janine Resende Rocha no texto Razes
do sentido na obra de Mikhail Bakhtin. Se o princpio do pensamento
bakhtiniano, em conformidade com seu humanismo cognitivista, o da
identidade (em oposio, por exemplo, ao princpio do estranhamento,
advogado pelos primeiros formalistas, e ao subjugo da identidade so-
berania de outros fatores, como a linguagem), pressuposta a forosa
identidade entre autor e leitor? A empatia noo abordada no texto A
empatia e o riso: a propsito da unidade na obra de Mikhail Bakhtin,
de Thiago de Souza Bittencourt Rodrigues , na experincia da leitura
Algumas das categorias-chave do pensamento bakhtiniano so aqui
abordadas e problematizadas. Porm, tambm ganha destaque o que po-
demos chamar de no categorias bakhtinianas, ou seja, o que permanece
em segundo plano, no desenvolvido, obliterado ou mesmo explicitamente
recusado neste pensamento. Assim, o ato de responder a Bakhtin prev
no apenas que sua obra seja tomada como uma srie de perguntas, mas
tambm que se formulem perguntas que, embora cabveis no horizonte
da obra, esta no formula manifestamente, pelas mais diversas razes
e em distintos graus. Responder a Bakhtin , pois, atribuir-lhe sentidos:
simultaneamente com, a partir e contra Bakhtin. O autor postula: Chamo
sentidos s respostas a perguntas. Aquilo que no responde a nenhuma
pergunta no tem sentido para ns.3
Sobre uma das mais importantes categorias do sistema bakhtiniano,
o cronotopo, pode-se indagar: se tal categoria, inspirada no espao-tempo
da fsica einsteiniana, indica que tempo e espao so indissociveis, por
que se concede primazia ao tempo, e por que este subsume o ideal de
corresponder a certa concepo de tempo histrico? Tratar tempo e es-
pao como categorias da prpria realidade efetiva no confina a teoria
bakhtiniana do romance, e a ideia de histria que lhe d suporte, a uma
perspectiva realista? Se o cronotopo uma categoria do mundo mate-
rial, da experincia concreta, o que significa operar com a noo de um
sentimento de tempo, de um sentimento de espao? Questes como esta
ecoam no texto de Cleber Arajo Cabral, intitulado Imagens do mundo:
notas sobre o cronotopo no pensamento de Bakhtin. E em Consideraes
sobre histria e literatura em Bakhtin, Imara Bemfica Mineiro dedica-se
a desdobrar as perguntas relativas concepo bakhtiniana de histria, a
partir da polmica asseverao, feita pelo autor, de que o romance seria
o gnero literrio do futuro.
O debate sobre o cronotopo abarca tambm o processo, fundamental
para Bakhtin, da individuao da conscincia humana na representao
literria. sobre a problemtica da conscincia que se debrua o texto
Dilogo, conscincia e alteridade: notas sobre a teoria do romance de
Mikhail Bakhtin, no qual Maria Elvira Malaquias de Carvalho destaca a
inexistncia de uma teoria do sujeito, ou a falta de explicitao do modelo 3 BAKHTIN. Apontamentos de 1970-1971, p. 381.
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10 Respostas a Bakhtin Leituras no limiar 11
RefernciasBAKHTIN, Mikhail. Os estudos literrios hoje. In: ______. Esttica da criao verbal. 4. ed. Traduo de Paulo Bezerra. So Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 359-366.
BAKHTIN, Mikhail. Arte e responsabilidade. In: ______. Esttica da criao verbal. 4. ed. Traduo de Paulo Bezerra. So Paulo: Martins Fontes, 2003. p. xxxiii-xxxiv.
BAKHTIN, Mikhail. Apontamentos de 1970-1971. In: ______. Esttica da criao verbal. 4. ed. Traduo de Paulo Bezerra. So Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 367-392.
BAKHTIN, Mikhail. Reformulao do livro sobre Dostoivski. In: ______. Esttica da criao verbal. 4. ed. Traduo de Paulo Bezerra. So Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 337-357.
literria, a relao dominante? O papel do leitor simtrico ao do autor,
mera atualizao de sentidos, de certo modo prevista no texto? No h
interesse em experincias de leitura estritamente negativas ou imponde-
rveis? Tal desinteresse explicaria o fato de Bakhtin no ter se dedicado
ao estudo das vanguardas artsticas e de autores do alto modernismo, a
obras que inviabilizam qualquer aproximao leitural que no seja agnica
e provocadoramente instvel?
Em Bakhtin h uma noo abrangente, uma espcie de metacate-
goria, que abarca vrias outras mas se desdobra segundo aspectos espe-
cficos, uma imagem imantadora do pensamento. a noo de fronteira
ou de limiar. Recebem especial ateno, ao longo de sua obra, as zonas
fronteirias entre culturas e entre pocas; as feies cronotpicas repre-
sentadas, na literatura, por lugares de passagem, como os portais e as
escadas; os pontos de contato, de interao afirmadora, conflituosa ou
redefinidora entre conscincias; a liminaridade interna e externa dos
discursos. Os textos aqui reunidos tm em comum o objetivo de exerci-
tar, na leitura crtica da obra bakhtiniana, justamente esse amplo senti-
do de limiar. Surgidos das discusses ocorridas na disciplina Seminrio
de Literatura e Outras Artes: A Teoria da Narrativa de Mikhail Bakhtin,
por mim ministrada no primeiro semestre de 2010 junto ao Doutorado
em Literatura Comparada do Programa de Ps-Graduao em Estudos
Literrios da Faculdade de Letras da UFMG, so textos que perseguem a
meta de incorporar, ao estudo do pensamento de Bakhtin, um senso de
interpelao ativo. Assim buscam ler o terico russo consonantemente
maneira como ele lia o escritor a que atribuiu a funo de seu mais esti-
mulante interlocutor: Em Dostoivski, o homem sempre representado
no limiar, ou, noutros termos, em estado de crise.4
4 BAKHTIN. Reformulao do livro sobre Dostoivski, p. 347.
Luiz Alberto Brando
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As reflexes sobre o espao e o tempo perpassam praticamente todos os
trabalhos de Mikhail Bakhtin. Tais categorias embasam a noo bakhtiniana
de imagem artstica que viabiliza sua potica histrica do romance. Vale
ressaltar, entretanto, a carga valorativa atribuda a estes conceitos sendo o
espao correlato localizao geogrfica concreta e o tempo compreendido
como fluxo histrico de acontecimentos. A tais qualificativos (concreto e
histrico), so associadas noes como material, corpreo e visvel. Esse
repertrio de qualidades lastreia as investigaes de Bakhtin sobre o ro-
mance, afianando as condies necessrias para que o texto literrio atue
como instrumento de conhecimento do mundo e da histria.
Em vrios de seus textos, notadamente nos ensaios sobre o cronoto-
po e acerca do romance de formao, encontram-se menes importncia
do processo de assimilao do tempo histrico e do espao humano no
texto literrio. A fim de esboar um entendimento sobre a importncia,
no pensamento de Bakhtin, das relaes entre as categorias de espao
e tempo esta ltima sempre associada ao evento da ao humana, ou,
ainda, ao evento da realidade como processo no advento de uma nova
qualidade de apreenso do mundo como imagem, prope-se, a partir do
cruzamento de trechos de sua obra, elaborar uma reflexo crtica acerca
do conceito de cronotopo.
Para tanto, faz-se uma leitura contrastiva de algumas premissas e
atributos que caracterizam o cronotopo como imagem da realidade (e do
tempo histrico). So cotejados, assim, os ensaios Formas de tempo e
Imagens do mundo: notas sobre o cronotopo no pensamento de Bakhtin
Cleber Arajo Cabral
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14 Respostas a Bakhtin Imagens do mundo: notas sobre o cronotopo no pensamento de Bakhtin 15
de cronotopo no romance e O romance de educao e sua importncia
na histria do realismo. A partir das formulaes arroladas, pode-se in-
sinuar, com base na hiptese de Ian Watt a respeito das relaes entre a
tradio filosfica realista e o desenvolvimento do realismo no romance,1
que a potica histrica do romance, elaborada por Bakhtin, faria parte de
um projeto mais amplo: o de uma teoria do conhecimento que se vale
da arte literria como matria para seu projeto filosfico uma esttica
material embasada no estudo das condies de conhecimento do mundo
e do ato tico.
I. Cronotopo: caracterizao crticaEspao e tempo so constitutivos da realidade do universo.
Bernard Piettre
toda imagem de arte literria cronotpica.
Mikhail Bakhtin
Logo ao incio do ensaio Formas de tempo e de cronotopo no romance,
postulada a centralidade da categoria tempo para o estudo do desenvolvi-
mento dos gneros narrativos. categoria tempo estariam subordinadas
as categorias espao e sujeito compreendidas, de acordo com Bakhtin,
como formas da realidade. Essas categorias so abordadas como imagens,
que seriam configuraes de contedos da realidade singular em devir,
em processo de transformao. O termo imagem, na obra de Bakhtin,
assume significados distintos, de acordo com o contexto e a especifici-
dade das questes tericas s quais remete. Neste caso, a imagem no
nem um conceito nem uma palavra, nem uma representao visual,
mas uma formao esttico-singular realizada [] o mundo temtico dos
eventos (o contedo formalizado).2 Nas Observaes finais do ensaio
sobre o cronotopo, texto redigido em 1973, Bakhtin esclarece que, no
contexto da anlise cronotpica, a noo de imagem refere-se imagem
artstico-histrica.3 Desse modo, em seu estudo de como tais formas se
1 WATT. A ascenso do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding.2 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 53-54.3 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 361.
apresentam assimiladas e expressas no texto literrio, Bakhtin busca
apreender as condies do desenvolvimento de uma nova imagem da
realidade do mundo representada, como conscincia concreta, por meio
da criao literria.
O referido ensaio se inicia com a proposio do conceito de crono-
topo, o qual possibilitaria a compreenso do processo de assimilao do
tempo, do espao e do indivduo histrico real no texto literrio, tendo
como base a interligao fundamental das relaes temporais e espa-
ciais. O conceito de cronotopo, elaborado por Einstein em sua teoria da
relatividade, transposto para os estudos literrios quase como uma
metfora (mas no totalmente, como lembra o terico) que expressa a
indissolubilidade das noes de tempo-espao. Desse modo, o cronotopo
caracterizado como uma categoria conteudstico-formal [] na qual o
tempo [] torna-se artisticamente visvel.4
Em seu texto O problema do contedo, do material e da forma
na criao literria, Bakhtin prope, como tarefa principal da esttica,
compreender o objeto esttico sinteticamente no seu todo, compreen-
der a forma e o contedo na sua inter-relao [] compreender a forma
como forma do contedo e o contedo como contedo da forma. Sendo
um contedo dotado de forma,5 o objeto esttico constitui-se a partir
de um contedo artisticamente formalizado (ou de uma forma artstica
plena de contedo).6 Por contedo, o terico entende o mundo e seus
momentos, mundo como objeto do conhecimento e do ato tico,7 sendo
constitudo por juzos ticos e elementos de reconhecimento cognitivo.8
J a forma abarcaria duas dimenses: composicional (que seria a orga-
nizao do material verbal) e arquitetnica (a unificao e a organizao
dos valores cognitivos e ticos). A partir das citaes acima, gostaria
de sugerir que o conceito de cronotopo, ao ser caracterizado como um
sintagma conteudstico-formal, alude no s reviso empreendida por
Bakhtin dos pressupostos filosficos que fundamentam espao e tempo
como categorias do conhecimento, mas, principalmente, sua assimilao
4 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 211.5 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 69.6 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 50.7 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 35.8 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 39-40.
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16 Respostas a Bakhtin Imagens do mundo: notas sobre o cronotopo no pensamento de Bakhtin 17
no campo semntico como imagens de contedos da realidade formalizados
em significados temticos ou figurativos em imagens do mundo. Assim,
no cronotopo artstico-literrio, ocorre a fuso dos indcios espaciais e
temporais num todo compreensivo e concreto []. Os ndices do tempo
transparecem no espao, e o espao reveste-se de sentido e medido
com o tempo.9
Para Bakhtin, tempo e espao so considerados categorias elemen-
tares, mas, diferentemente do estabelecido por Kant na esttica trans-
cendental, no seriam formas subjetivas apriorsticas, que atuariam como
condies transcendentais do conhecimento mas contedos materiais
objetivos da prpria realidade efetiva,10 que determinam as condies
de representao da experincia, delimitando, assim, as possibilidades de
concretizao artstica. Aqui possvel notar ecos das teorias de Einstein,
bem como das crticas feitas pelo fsico a Kant. Para Einstein, tempo e
espao seriam medidas de um sistema de coordenadas,11 o tecido do
mundo, a teia-de-aranha do universo que determina o comportamento
dos corpos.12 Em sntese: espao-tempo constituem um continuum []
[Assim,] no se podem dissociar as coordenadas de um corpo no espao
desse mesmo corpo no tempo.13
Nota-se, nessa ltima passagem, um dos pontos nodais do cronoto-
po, a indissociabilidade de espao-tempo. Cabe, porm, ressaltar a inverso
operada por Bakhtin. Se para Einstein o problema da natureza do espao
era essencial, sendo o espao concebido como um lugar de ao de um
campo [de foras, no caso, gravitacionais],14 para Bakhtin interessam
os tempos da realidade do mundo (o tempo fsico dos acontecimentos
no mundo, o tempo histrico da cultura, o tempo biogrfico do homem).
Assim, coloca-se a pergunta pelo lugar de ao no qual se desenrolam os
eventos da realidade/mundo local esse constitudo pelas relaes entre o
transcorrer irreversvel do tempo, a cultura e a marcha da conscincia pela
histria. Novamente, o dilogo com Einstein: se para o fsico no h um
9 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 211. Grifos meus.10 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 212.11 PIETTRE. O tempo, idealidade ou conceito?, p. 118.12 PIETTRE. O tempo, idealidade ou conceito?, p. 120.13 PIETTRE. O tempo, idealidade ou conceito?, p. 117.14 PIETTRE. O tempo, idealidade ou conceito?, p. 110.
tempo universal comum, mas tempos diferentes, ou relgios diferentes,
conforme os sistemas de coordenadas,15 cabe lembrar que o cronotopo
auxilia a apreender os fenmenos de tempo profundamente variados [as
heterocronias],16 que se vislumbram no processo histrico-literrio.
Ao renovar as condies do entendimento de tempo e espao, to-
mando-os como realidades materiais, Bakhtin cria as condies necessrias
para o entendimento renovado das relaes entre o romance realista e
a concepo de realidade enriquecida que emerge no sculo XVIII com
Goethe. Dessa forma, estabelecem-se os fundamentos para uma teoria do
conhecimento embasada em um modelo de totalidade real do mundo na
representao realista da experincia vinculando, desse modo, o contexto
cultural (a realidade histrica do mundo representante) imagem artstica
(o mundo representado). Portanto, o tempo passa a ser considerado no
como idealidade abstrata, mas como sendo representao da realida-
de material imediata, como evento concreto, configurando-se enquanto
um tempo medido pela construo.17 J o espao seria uma espcie de
contexto de referncias imantado por qualidades temporais, um palco de
ambincia geograficamente real onde ocorrem as aes das personagens.
Dessa maneira, o texto literrio visto por Bakhtin como um tesouro de
imagens da experincia e o cronotopo seria o operador analtico que
viabilizaria a sondagem do modo pelo qual a teia-dos-eventos da realidade
histrica assimilada pela linguagem por meio da representao literria.
II. Ver os tempos no espao: ler por imagens poticas a formao histrica do homem
Tudo neste mundo tempo-espao, cronotopo autntico.
Mikhail Bakhtin
De acordo com o tradutor Paulo Bezerra, nas notas referentes ao ensaio
O romance de educao e sua importncia na histria do realismo,
podem-se observar
trs fatores fundamentais da formao desse romance e, respec-tivamente, os aspectos fundamentais da pesquisa de Bakhtin:
15 PIETTRE. O tempo, idealidade ou conceito?, p. 119. Grifos meus.16 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 212.17 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 316.
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18 Respostas a Bakhtin Imagens do mundo: notas sobre o cronotopo no pensamento de Bakhtin 19
1) a nova imagem do homem (a imagem em formao, o heri no-pronto); 2) a mudana radical do quadro espcio-temporal do mundo; 3) a pluralidade do discurso no romance (a pluralidade de lnguas no romance, a representao do mundo heterodiscursivo).18
Considerando que o estudo do tempo e do espao no romance gerou
a teoria do cronotopo,19 ao cotejar as consideraes feitas anteriormente
sobre o cronotopo (1934-1935) com as que se encontram no texto sobre o
romance de educao (1936-1938), reforam-se e se evidenciam os temas
do projeto de potica histrica bakhtiniana:
O tema central do nosso trabalho so o espao-tempo e a imagem do homem [em formao] no romance. O nosso critrio a assimi-lao do tempo histrico real e do homem histrico nesse tempo [] [Pois] toda tarefa histrica s pode ser resolvida com base em um material histrico concreto [] Da nosso tema mais concreto e especial a imagem do homem em formao.20
Assim, para estabelecer sua classificao tipolgica das modalidades
do romance, Bakhtin se volta para a temtica da formao substancial
[da imagem] do homem em seu desenvolvimento.21 Considerando os
exemplos22 do romance de educao arrolados, o terico ressalta que
sua proposta de caracterizao do romance de educao se baseia nas
diferenas vinculadas relao desses romances com o realismo, par-
ticularmente com o tempo histrico.23 A diferenciao das duas modali-
dades do romance de educao examinadas por Bakhtin uma na qual a
personagem central, bem como as demais grandezas (espao e tempo),
uma grandeza constante, esttica, e outra, na qual a personagem seria
uma grandeza varivel, uma unidade dinmica , ocasionada pelo grau
de interiorizao do tempo histrico real. No primeiro tipo,
a formao do homem transcorria sobre o fundo imvel de um mundo pronto e, no essencial, perfeitamente estvel. [] O mundo presente e estvel [] exigia do homem certa adaptao a ele
18 BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 440.19 BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 440.20 BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 217.21 BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 218.22 Bakhtin expe, em ordem cronolgica (da Antiguidade greco-latina Modernidade), os prottipos
dessa modalidade de gnero. Vale ressaltar que os autores que ocupam posio especfica no desenvolvimento do romance realista de formao so, de acordo com os pressupostos de Bakhtin, Rabelais e Goethe, visto que se ocuparam da tarefa de construir a imagem do homem em crescimento com base no tempo histrico. Para esclarecimentos, ver BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 217-224.
23 BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 218.
[] Formava-se o homem, e no o prprio mundo: o mundo, ao contrrio, era um imvel ponto de referncia para o homem em desenvolvimento.24
A esse romance de formao, no qual no se percebe a emergncia de
uma nova imagem de homem, contrape-se o segundo tipo, no qual a
formao do homem se apresenta em indissolvel relao com a formao
histrica. A formao do homem efetua-se no tempo histrico real com
sua necessidade, com sua plenitude, com seu futuro, com seu carter
profundamente cronotpico.25 De acordo com Bakhtin, romances como
Gargntua e Pantagruel e Wilhelm Meister tratam, precisamente, da nar-
rativa-imagem de formao histrica do homem. Neste tipo de romance
realista de formao, os problemas da realidade e das possibilidades
do homem, da liberdade e da necessidade, os problemas da iniciativa
criadora26 so abordados no como o objeto de uma descrio esttica,
mas como o objeto de uma narrativa dinmica.27
Morson e Emerson, em seu estudo sobre Bakhtin, propem que na
literatura e na cultura em geral, o tempo sempre histrico e biogrfico, e
o espao sempre social; assim o cronotopo na cultura deve ser definido
como um campo de relaes histricas, biogrficas e sociais.28 Por esse
vis, a unificao das categorias tempo e espao parece remeter assimi-
lao de caractersticas de um contexto histrico-social, tornando-o visvel
e reconhecvel, como um campo de experincias, na linguagem literria.
Em suas Observaes finais sobre o ensaio do cronotopo, aps enume-
rar tipos recorrentes de motivos cronotpicos29 no decorrer da histria do
romance, Bakhtin reitera que a arte e a literatura esto impregnadas por
valores cronotpicos de diversos graus e dimenses.30 O repertrio de
cronotopos tipologicamente estveis (ou imagens visuais estveis) analisa-
do por Bakhtin consiste em: estrada (encontro/desencontro/convergncia
de trilhas); castelo (saturao do passado histrico); salo-sala de visita
24 BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 221. Grifos meus.25 BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 221. Grifos meus.26 BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 222.27 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 356.28 MORSON; EMERSON. Mikhail Bakhtin, p. 388.29 Para um detalhamento dos valores cronotpicos associados s imagens mencionadas, ver BAKHTIN.
Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 349-362.30 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 349.
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20 Respostas a Bakhtin Imagens do mundo: notas sobre o cronotopo no pensamento de Bakhtin 21
(miniatura de relaes sociais); cidade provinciana/vila (tempo idlico/
cclico), metrpole (tempo de transformao); soleira, escada, antessala,
corredor, rua, praa (limiar/estado de passagem/transio). A estes temas
e figuras, somem-se, ainda, os cronotopos do autor e leitor. Desta forma,
o cronotopo, como materializao privilegiada do tempo no espao, o centro da concretizao figurativa, da encarnao do romance inteiro. Todos os elementos abstratos [] gravitam ao redor do cronotopo, graas ao qual se enchem de carne e de sangue, se iniciam no carter imagstico da arte literria.31
A imagem artstico-literria, tida como sinnimo de realidade his-
trica viva, adquire o valor de documento ontolgico, viabilizando o
que parece ser o projeto de uma teoria do conhecimento embasada na
emergncia de um sentimento realista do tempo no gnero romance.32
O termo emergncia empregado por Bakhtin em seu ensaio sobre o
romance de educao para caracterizar o advento de uma conscincia de
apreenso do tempo que atua como fator transformador da imagem do
heri. Em sua proposta de estudo da histria do romance de formao,
Bakhtin estabelece, como critrio norteador de sua tipologia do romance,
a diviso em romances sem emergncia (a imagem do heri carece de
desenvolvimento, caso do romance de viagem e biogrfico) e em roman-
ces de emergncia (onde ocorre a transformao/desenvolvimento do
heri, como o idlico-cclico, o bildungsroman, os didtico-pedaggicos e
os romances de emergncia histrica ou romances realistas).
Desse modo, podemos dizer que, concomitantemente ao advento do
romance realista de formao no sculo XVIII, observa-se, com o Laocoonte
de Lessing, a emergncia de uma educao esttica do olhar que torna
possvel a visualizao dos reflexos do tempo na linguagem. Ao abordar o
problema da assimilao da realidade histrica, Lessing formula o princpio de
cronotopia geral da imagem artstico-literria, que, conforme Bakhtin, rege a
31 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 356.32 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 316. Para maiores esclarecimentos sobre a
emergncia do sentimento realista do tempo, ver BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 206-256 e MORSON; EMERSON. Mikhail Bakhtin, p. 425-430. Sobre o despertar do sentimento de tempo, ver tambm, BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 226. A respeito da viso do tempo em Goethe e sua relao com a emergncia do sentimento de tempo e o processo de condensao do mundo em realidade histrica, ver BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 244-249.
imagem da arte temporal que representa os fenmenos espaciais e sensoriais no seu movimento e na sua transformao [que] [] serve para assimilar a verdadeira realidade temporal (at um certo limite, histrica) e [] permite refletir e introduzir no plano artstico do romance os momentos essenciais dessa realidade.33
A partir do exposto, para o terico russo, o sculo XVIII, o mais
abstrato e anti-histrico, em realidade, foi a poca da concretizao e da
visualizao do mundo novo e real e de sua histria.34 Dessa maneira, o
advento do sentimento do tempo na natureza e na vida humana decorre
de uma ideia de educao esttica do homem pautada no olhar e na visi-
bilidade na capacidade de ler os indcios do curso do tempo em tudo,
comeando pela natureza e terminando pelas regras e ideias humanas (at
conceitos abstratos).35 Assim, ao pensar o cronotopo, pensa-se a relao
indissolvel entre a emergncia de uma conscincia a respeito das dinmi-
cas do tempo histrico e o reconhecimento dos indcios de transformao
do mundo a partir da ao criadora do homem.
Desse modo, ao associarmos o problema da assimilao do tempo-
-espao histricos no romance, tal como formulado por Bakhtin, com a
hiptese de Ian Watt, de que a tradio realista na filosofia suscitou o
realismo no romance,36 podemos pensar a potica histrica bakhtinia-
na como uma epistemologia filosfica centrada no processo histrico de
transformao das coordenadas da representao de uma concepo de
carter universalizante, tributria de uma idealidade potica abstrata, de
matriz clssica, para uma concepo realista, voltada para a descrio de
casos particulares e concretos. Se a tradio realista na filosofia origina-se
de uma tentativa obstinada de atingir o conhecimento da verdade humana
por meio da transcrio da vida real em referncias objetivas, Bakhtin teria
tentado elaborar sua epistemologia do ato como um esforo de apreender
a experincia histrica apresentada em sua manifestao literria. Ao ten-
tar investigar e relatar a particularidade da experincia, o romance atuaria
como transmissor do conhecimento dos eventos e das aes fato que o
torna condio cognitiva para uma teoria do conhecimento tico baseada
na percepo da historicidade nele veiculada.33 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 356.34 BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 247.35 BAKHTIN. O romance de educao e sua importncia na histria do realismo, p. 224.36 WATT. A ascenso do romance, p. 30.
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22 Respostas a Bakhtin Imagens do mundo: notas sobre o cronotopo no pensamento de Bakhtin 23
Ao considerarmos a semelhana do mtodo postulado pelo realismo
filosfico (o estudo de casos individuais e particulares da experincia) e
o problema epistemolgico da correspondncia entre a obra literria e a
realidade37 a qual ela imita (ou da assimilao de aspectos do mundo re-
presentado pelo mundo representante, em termos bakhtinianos), parece
plausvel dizer que a teoria do cronotopo, em certa instncia, seria tribu-
tria da tradio filosfica realista. No por acaso, tal mtodo encontra
no romance de realismo formal o objeto privilegiado em sua tarefa de
observar: a particularizao de referncias do tempo, a especificao (ou
ambientao) do espao e a individuao das conscincias das personagens.
Tendo como base o dilogo entre a literatura e a histria, o cronotopo atua
como um operador que auxilia vislumbrar as condies em que a imagem
literria evoca e atualiza aspectos histrico-sociais em suas particularida-
des concretas. Ora lupa reveladora do pormenor caracterstico do texto
nico, [ora] culo adequado viso distanciada38 eis a natureza bifocal
e dialgica da cronotopia das imagens poticas.
III. O cronotopo como porta epistemolgicapara entrar na nossa experincia [], esses significados, quaisquer que eles sejam, devem receber uma expresso espao-temporal
qualquer [] uma forma sgnica audvel e visvel por ns. [] qualquer interveno na esfera dos significados s se realiza atravs da porta
dos cronotopos.
Mikhail Bakhtin
Convm procedermos recapitulao das questes elencadas, a ttulo de
sntese: em sua anlise histrica da formao do romance como gnero que
expressa a complexidade do mundo, Bakhtin est interessado na concepo
de realidade vigente em cada perodo de desenvolvimento do gnero, e no
modo como essa imagem do mundo representado pelo texto literrio deixa
de ser uma conscincia abstrata para se tornar conscincia concreta, adqui-
rindo determinidade geogrfica e intelegibilidade histrica. Desse modo, a
cada nova conscincia das temporalidades, corresponderia outra imagem de
mundo e a elaborao de uma nova imagem do ser. Considerando que o
37 WATT. A ascenso do romance, p. 15-16.38 FERNANDES. Crontopo.
tempo indica movimento e, portanto, um evento dinmico, assim coloca-se
a questo da alterao da identidade das personagens, do processo de sua
transformao e, concomitante a esse processo, possvel ver a riqueza
e a singularidade de uma nova relao com o novo mundo.
Destarte, ao determinar tempo e espao como coordenadas ob-
jetivas, e no mais como formas ideais e absolutas que fundamentam
a experincia, o cronotopo atua como uma das proposies-chave que
fundamentam a esttica material bakhtiniana. Tendo como fio condutor
o problema da assimilao do tempo histrico pela linguagem literria (o
problema da assimilao da realidade histrica na imagem potica), coloca-
-se o tema da diferena entre o tempo que representa e o tempo que
representado. Se, de acordo com Bakhtin, o autor-criador pinta o mun-
do, surge uma questo: de que ponto espao-temporal observa o autor
os acontecimentos por ele representados? De sua contemporaneidade
inacabada em toda a sua complexidade [] encontrando-se ele mesmo
como que numa tangente da realidade representada,39 estabelecendo
uma relao dialgica do tempo passado com o presente, no qual aquele
se renova neste.
Ao que se pode perceber, tendo como fundamento as bases con-
ceituais utilizadas para criar o cronotopo como operador terico, Bakhtin
objetivava, por meio da atribuio de materialidade concreta realidade
do tempo-espao, transpor o fosso criado pelo empobrecimento da reali-
dade e do ser resultantes da crtica iluminista e do idealismo kantiano a
separao entre matria e conscincia/esprito, que tornava o espao e
o tempo formas universais a priori da experincia. Ao recorrer s crticas
feitas por Einstein s concepes kantianas de espao e tempo, tomando-as
como contedos da realidade material, Bakhtin, aparentemente, incorre
no mesmo realismo ingnuo que Einstein. Apesar das consequncias
epistemolgicas de tal perspectiva analtica (que aponta na direo de um
empirismo pr-cientfico), parece mais interessante concebermos critica-
mente o realismo ingnuo bakhtiniano como uma postura talvez discutvel
do ponto de vista filosfico, mas que se mostra fecunda [em razo de seus
desdobramentos posteriores].40
39 BAKHTIN. Formas de tempo e de cronotopo no romance, p. 360.40 PIETTRE. O tempo, idealidade ou conceito?, p. 119.
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24 Respostas a Bakhtin Imagens do mundo: notas sobre o cronotopo no pensamento de Bakhtin 25
A fim de concluir estas notas de leitura sobre o cronotopo, a ge-
nealogia do sentimento de tempo, tal como proposta por Bakhtin, parece
pretender se pautar em um modelo de realidade (e do gnero romance)
que seria, supostamente, o nico capaz de expressar a complexidade do
mundo da vida em seus devires. Pelo que se pode entrever em sua potica
histrica, o modelo de arte valorizado por Bakhtin provm de uma realida-
de material idealizada, quase ingnua, na qual seria possvel vislumbrar
indcios das vrias foras configuradoras da teia-do-mundo (as tempora-
lidades da cultura erudita, da cultura popular, do poltico, as contradies
socioeconmicas, o tempo biogrfico dos autores) atuantes em um dado
contexto histrico. Tomando a noo de corpo como correlata imagem
do homem, podemos dizer que esta seria a lente (ou caleidoscpio) que
permitiria conceber como essas vrias temporalidades se sedimentam no
espao, revestindo-o de significaes. Como base material para o conhe-
cimento cronotpico, o corpo seria, portanto, a porta para o arquivo das
imagens do mundo exibidas no livro por vir da histria.
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WATT, Ian P. A ascenso do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Traduo de Hildegard Feist. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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O livro Problemas da potica de Dostoivski, publicado pela primeira vez
em 1929, apresentou ao panorama dos estudos literrios uma peculiar e
inovadora abordagem da obra artstica, ou do romance em especial, que
logo repercutiu sobre grande parte da crtica do sculo XX. Trata-se, sem
dvida, do mais importante estudo de Mikhail Bakhtin, pensador de vasta
erudio e cultura filosfica, cuja produo pode ser, de um lado, tomada
como dissidente e, de outro, como continuadora do movimento denomi-
nado formalismo russo.
Em seu conjunto, o legado deixado por Bakhtin permite que o re-
conheamos como um dedicado teorizador do romance, o gnero literrio
que decidiu estudar com maior agudeza de reflexes conceituais e mais
profundas indagaes tico-filosficas. Um dos traos que caracterizam a
escrita e o pensamento de Bakhtin sua capacidade de criar noes que,
aparentemente, no se definem de modo isolado ou autnomo, uma vez
que reaparecem ao longo de sua obra, para serem questionadas ou revali-
dadas. Termos como dilogo, conscincia e outro, vastamente empregados
em sua produo bibliogrfica, tendem a operar como conceitos-chave:
eles se aproximam quase analogicamente, esboando uma rede conceitual
que atua maneira de um sistema.
A tese do dialogismo, desenvolvida em Problemas da potica de
Dostoivski, ampara-se no debate sobre a relao entre o autor e o heri
do romance, e altera o quadro semntico que Bakhtin havia construdo
em um texto anterior, tambm da dcada de 1920, chamado O autor
Dilogo, conscincia e alteridade: notas sobre a teoria do romance de Mikhail Bakhtin
Maria Elvira Malaquias de Carvalho
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28 Respostas a Bakhtin Dilogo, conscincia e alteridade: notas sobre a teoria do romance de Mikhail Bakhtin 29
e a personagem na atividade esttica.1 Embora este seja um trabalho
inconcluso e de difcil leitura, dada sua complexa dico e sua proposta
de formular um corpo de ideias que chegue a constituir algo da ordem de
uma filosofia geral da esttica, percebe-se que Bakhtin parte das catego-
rias do autor e da personagem para montar sua teoria do romance, que
culminar no livro de 1929.
Neste estudo sobre Dostoivski, vemos a defesa de uma nova con-
cepo de autoria e uma reinterpretao da relao entre o autor e a
personagem. lanado o conceito de dialogismo, o qual, em sentido
lato, diz respeito no somente a elementos da estrutura romanesca ou a
procedimentos discursivos que Bakhtin atribui narrativa dostoievskiana,
mas tambm a uma concepo de mundo que abarca tanto as relaes
humanas como as prticas sociais. Dostoivski saudado como o primeiro
artista a descobrir ou a fazer uso da polifonia no concerto geral das vozes
que compem o romance.
As noes de dialogismo e polifonia surgem de modo quase simul-
tneo (O romance polifnico inteiramente dialgico,2 escreve Bakhtin),
mas no exatamente fcil conceitualiz-las, pois h frequentes nuances
de distino entre elas. Pode-se compreender o dialogismo como catego-
ria maior ou menor que a polifonia, j que existem diferentes nveis de
dilogo. O romance polifnico, criado por Dostoivski, caracteriza-se pela
independncia e virtual autonomia da voz da personagem em relao
voz do autor. Dito de outro modo, no romance polifnico, ainda que no
se possa falar de anulao da instncia autoral, h um notvel enfraque-
cimento da posio do autor.
Por onde quer que se busque compreender o dilogo, esbarramos
invariavelmente com a onipresena da conscincia, de tal modo que no
possvel definir um conceito sem se remeter ao outro. Sabe-se, toda-
via, que no romance dito polifnico o autor no representa diretamente
a personagem, e sim a sua autoconscincia. Por conseguinte, vivel o
surgimento de um fenmeno que Bakhtin chama de grande dilogo, no
qual as personagens e o autor so todos tomados como sujeitos cognos-
centes, isto , como sujeitos de suas prprias conscincias.
1 BAKHTIN. O autor e a personagem na atividade esttica, p. 3-192. 2 BAKHTIN. Problemas da potica de Dostoivski, p. 42.
H dilogos que se passam entre conscincias, mas tambm h
dilogos dentro de apenas uma conscincia, como sucede no microdilogo
interior de Rasklnikov. Tudo isso possvel porque Dostoivski teve a
capacidade de auscultar relaes dialgicas em toda a parte, em todas
as manifestaes da vida humana consciente e racional; para ele, onde
comea a conscincia comea o dilogo.3 Relaes dialgicas no ocorrem
em toda a parte, como bem retifica a formulao acima, mas apenas nas
manifestaes da vida humana consideradas conscientes e racionais. Toda
a tese do dialogismo se sustenta, por princpio, nos domnios da racionali-
dade e da afirmao do poderio da conscincia, e despreza o papel que os
subterrneos da mente e o inconsciente poderiam porventura desempenhar
no universo ficcional de Dostoivski.
Categoria estruturante para o pensamento bakhtiniano, a conscin-
cia fundamenta as reflexes sobre a relao entre o autor e a personagem,
como se observa tanto em Problemas da potica, como no j citado trabalho
inconcluso que antecede o famoso livro. Em O autor e a personagem na
atividade esttica, Bakhtin diferencia as funes executadas por estas
duas entidades da seguinte forma: a conscincia do autor a conscincia
da conscincia, isto , a conscincia que abrange a conscincia e o mundo
da personagem, que abrange e conclui essa conscincia da personagem
com elementos por princpio transgredientes a ela mesma.4 Logo, o au-
tor ocupa uma posio exterior personagem, fenmeno nomeado como
exotopia, dado que ele, o autor, necessariamente onisciente, segundo esta
concepo, tem o privilgio de conhecer integralmente a personagem e
de possuir, por isso mesmo, um excedente de viso e de conhecimento
sobre esta ltima.
J no texto sobre Dostoivski, ainda que o paradigma anterior do
rapport entre o autor e o heri do romance se descaracterize para dar
lugar ao surgimento do dialogismo, Bakhtin no abre mo de sua noo
de ativismo do autor como padro cognoscitivo que gere, por assim dizer,
toda sua teoria do romance. A diferena entre as duas concepes de
autoria reside no fato de que, no romance monolgico, o autor no fala
com a personagem, mas sobre a personagem. Esta , portanto, um ele
3 BAKHTIN. Problemas da potica de Dostoivski, p. 42.4 BAKHTIN. O autor e a personagem na atividade esttica, p. 11.
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30 Respostas a Bakhtin Dilogo, conscincia e alteridade: notas sobre a teoria do romance de Mikhail Bakhtin 31
em relao instncia autoral. No romance polifnico, por sua vez, o autor
no fala do heri, mas com o heri, o que quer dizer que a personagem
se torna um tu frente ao autor.
Nos fragmentos da Reformulao do livro sobre Dostoivski,5 escri-
tos mais tarde, na dcada de 1960, Bakhtin reitera que o autor profunda-
mente ativo, mas o seu ativismo tem um carter dialgico especial.6 Todo
o elogio do dialogismo tem como fundamento um problema que precisa
ser enfrentado, a saber, o problema da reificao das relaes humanas
e da desvalorizao coisificante do homem.7 Permitir que a personagem
seja tratada como um tu, e no mais como um ele ou um isso, e conceder
a ela a liberdade de seu prprio discurso e o manejo de sua conscincia
individual, so inovaes estticas que ressaltam a luta de Dostoivski
contra a reificao do homem no advento do capitalismo. Uma coisa o
ativismo (aktvnost) em relao a um objeto morto, a um material mudo,
que se pode modelar e formar ao bel-prazer; outra coisa o ativismo
em relao conscincia viva e isnoma do outro,8 distingue Bakhtin,
enfatizando o salto da nova posio axiolgica do autor, comparada ao
paradigma anterior.
Tanto a conscincia como o dilogo so considerados um tipo de
atividade no finalizvel. Existe um processo contnuo de dilogo entre o eu
e o outro, ou entre o autor e a personagem, se preferirmos usar apenas as
categorias da narrativa. Trata-se, portanto, de um dilogo em andamento.
Quanto conscincia, no se pode perceber nela nenhum princpio ou
fim que a determine; ela infinita e est descolada do nascimento e da
morte do homem. O princpio e o fim esto situados no mundo objetivo
(e objetificado) para os outros e no para o prprio conscientizante.9
Alm da premissa de que somente o outro capaz de prover a conscin-
cia humana de finitude ou acabamento, a principal informao que deve
ser retida que a conscincia essencialmente dialgica e plural. Surge
aqui a necessidade de refletirmos sobre as condies em que se desen-
volve a retrica da alteridade em Bakhtin e de que maneira ela auxilia as
5 BAKHTIN. Reformulao do livro sobre Dostoivski, p. 337-357.6 BAKHTIN. Reformulao do livro sobre Dostoivski, p. 339. Grifos do autor.7 BAKHTIN. Problemas da potica de Dostoivski, p. 62-63. Grifos do autor.8 BAKHTIN. Reformulao do livro sobre Dostoivski, p. 339. Grifos do autor.9 BAKHTIN. Reformulao do livro sobre Dostoivski, p. 345.
formulaes sobre o autor e o heri, seja no romance monolgico, seja
no romance polifnico.
De sada, o leitor se v s voltas com um intrigante desafio: com-
preender exatamente o que Bakhtin quer dizer quando utiliza o termo
outro em suas vrias ocorrncias, haja vista ser este um dos conceitos
mais importantes do campo das humanidades. Os comentaristas da obra
bakhtiniana no parecem se deter mais atentamente sobre o exame deste
conceito especfico, no obstante a retrica da alteridade produzida pelo
pensador russo ter contaminado diversos tipos de prticas discursivas
no interior dos estudos literrios e dos estudos culturais, no decorrer
das ltimas dcadas do sculo XX at os dias de hoje. Termos de extra-
o bakhtiniana como hibridismo, fronteira, dilogo etc. sofreram rpida
expanso pelos domnios acadmicos, mas agora caminham dentro dos
incuos e previsveis circuitos de sua banalizao.
De qualquer modo, permanece a incgnita sobre a definio do con-
ceito de outro e sua localizao na conscincia, ou diante dela. Questionar
sobre o outro , na verdade, questionar sobre o prprio eu, isto , sobre a
concepo de homem ou de sujeito que Bakhtin esboa construir, ao falar
das posies axiolgicas no contato dialgico. Muitas vezes se percebe
que o movimento para o outro no significa perda de si, como se poderia
concluir apressadamente; pelo contrrio, este movimento de solicitude do
outro (O homem nunca encontrar sua plenitude apenas em si mesmo10)
que resguarda o indivduo de se fundir com este ltimo, impedindo que
haja perdas de ambos os lados.
Julia Kristeva, uma das primeiras intrpretes de Bakhtin na Europa
Ocidental, responsvel pelo prefcio da traduo francesa do livro sobre
Dostoivski, publicada em 1970.11 A diferena inconcilivel entre a aborda-
gem bakhtiniana e o pensamento formalista, de acordo com Kristeva, pode
ser sentida nas respectivas concepes de linguagem presentes em cada
caso. Problemas da potica estaria inaugurando todo um debate sobre o
discurso, o enunciado e a enunciao, conceitos at ento inexistentes. A
partir deste vazio epistemolgico que a cincia da poca oferecia a Bakhtin,
a autora argumenta que se pode vislumbrar em sua obra uma noo de
10 BAKHTIN. Problemas da potica de Dostoivski, p. 180.11 KRISTEVA. Une potique ruine, p. 5-21.
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32 Respostas a Bakhtin Dilogo, conscincia e alteridade: notas sobre a teoria do romance de Mikhail Bakhtin 33
linguagem baseada no sujeito, o que colocaria em questo as categorias
que a lingustica e a potica clssica dispunham, j que eram, sobretudo,
categorias da lngua e abstraam o papel do sujeito no sistema de signos.
Um dos principais limites que Kristeva verifica na tese bakhtinia-
na justamente a falta de uma teoria do sujeito, o que no a impede,
curiosamente, de interpretar certas lacunas do texto de Bakhtin como
proposies aproximativas e imprecisas, mas plenas de intuies, que
pressentem a interveno freudiana e o lugar que ela conceder ao desejo
do outro.12 No estaramos mais diante do sujeito cartesiano, possuidor
de seu discurso, idntico a si mesmo e se representando nele.13 Apesar
de admitir expressamente que o livro no comporta nenhuma referncia
psicanlise,14 Kristeva defende, na tese de Bakhtin, a diviso do sujeito,
o qual passa agora a ser constitudo por seu outro. Segundo ela, o dia-
logismo ser o termo que designa esta dupla pertena do discurso a um
eu e ao outro, este Spaltung do sujeito [] esta topologia do sujeito em
relao ao tesouro de significantes (Lacan) exterior a si.15
Eis a uma leitura to confiante quanto tendenciosa do psicologismo
rudimentar e incipiente que Bakhtin sempre demonstrou. Julia Kristeva
aposta na emergncia de um sujeito cindido pelo outro, descentrado em
relao a seu desejo e sua linguagem, o qual substitui um sujeito uno
e pleno. Mas a obra de Mikhail Bakhtin no permite, de modo algum, que
assinalemos tal mudana de paradigma. Isto se d, em primeiro lugar,
porque o sujeito, ou a subjetividade, em sentido mais amplo, no faz
parte do leque de preocupaes conceituais ou filosficas do autor. (No
mximo, h em Bakhtin uma tentativa de teorizao sobre a intersubje-
tividade, que transcorre, entretanto, dentro de um campo epistemolgico
mais propriamente cultural que psicolgico). Em segundo lugar, porque a
sexualidade e o erotismo tampouco so temas que entrem na constituio
do pensamento bakhtiniano. Desejo no sequer uma palavra que aparea
em seu vocabulrio.
12 KRISTEVA. Une potique ruine, p. 9.13 KRISTEVA. Une potique ruine, p. 12-13.14 KRISTEVA. Une potique ruine, p. 13.15 KRISTEVA. Une potique ruine, p. 13. O termo alemo Spaltung, que quer dizer diviso, ruptura, ciso,
foi utilizado por Freud para falar da clivagem do eu (Ichspaltung) no inconsciente. Posteriormente, retomado por Lacan em sua teoria da diviso do sujeito em relao ao outro, lugar do significante.
Bakhtin descreve a personagem de Dostoivski como uma funo
infinita, como um ser que, em nenhum momento, coincide consigo mes-
mo. No entanto, essa no coincidncia do heri consigo prprio no o
bastante para que tomemos o texto de Dostoivski como explorador da
diviso do sujeito e da fuga de seu desejo do(de) significante(s).16 Todas as
personagens de Dostoivski lidam forosamente com uma ideia grandiosa
e no resolvida. O sujeito, capaz de se autorrefletir, produz imagens con-
traditrias de si, de modo que dentro dos limites da prpria racionalidade
que se verifica tal desacordo do homem consigo mesmo.
Kristeva tambm comenta a noo de voz em Bakhtin. Para ela,
no se trata mais de uma phon oriunda dos textos gregos e que coincide
com o seu sujeito: uma phon desamparada que perdeu sua verdade
e se aflige pelo lugar de sua emisso.17 Essa reivindicao da perda da
autoridade do discurso deve ser melhor esclarecida. A orientao dialgica
interna na relao entre o autor e a personagem, tal como exposta em
Problemas da potica de Dostoivski, no compreende a fuso de vozes
entre ambas as instncias. O modelo dialgico de Bakhtin ainda prev
que as vozes sejam identificadas s personagens que as emitiram, isto ,
supe-se que tal correspondncia seja possvel. As vozes devem ser atribu-
das a agentes especficos e no a enunciados soltos ou despersonalizados.
Assim, um pouco radical comparar o que acontece em Dostoivski, um
romancista realista do sculo XIX, com as experimentaes da literatura
moderna e contempornea, nas quais, s vezes, a impossibilidade de se
definir a pertena exata de vozes a personagens ou a narradores pode
dar origem a clamores do tipo escrita rf, discurso sem o pai etc. que
tendem a questionar ou mesmo anular a responsabilidade do autor diante
do acontecimento da obra.
Foi dito que a conscincia deve ser tomada como categoria estrutu-
rante em Bakhtin. A conscincia muito mais terrvel do que quaisquer
complexos inconscientes,18 declara o autor em seus escritos tardios. A
afirmao serena e taxativa. Para Bakhtin, importam to-somente os
abismos da conscincia racional, cuja complexidade decerto fascinante.
16 KRISTEVA. Une potique ruine, p. 16.17 KRISTEVA. Une potique ruine, p. 14.18 BAKHTIN. Reformulao do livro sobre Dostoivski, p. 343.
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34 Respostas a Bakhtin Dilogo, conscincia e alteridade: notas sobre a teoria do romance de Mikhail Bakhtin 35
Dialgica e plural, a conscincia hospeda e ativa os movimentos de de-
sacordo consigo prpria. Talvez valha a pena mencionar brevemente o
fato de que houve, nos primrdios da teoria do romance de Bakhtin, uma
pequena digresso sobre elementos da ordem da irracionalidade e da
religio que compunham o quadro de relaes descritas entre o eu e o
outro. Trata-se da noo de ritmo, que surge em O autor e a personagem
na atividade esttica.19
Sem nos remetermos ao debate filosfico que Bakhtin empreende
naquele contexto, entendemos o ritmo como um estado de no conscin-
cia. Isto , se a conscincia, em sua plenitude, por si s um ato, o ritmo
constitui o seu repouso. O livre-arbtrio e o ativismo so incompatveis
com o ritmo [] A existncia ritmada visa a uma finalidade sem fim, o
fim no escolhido, discutido, no h uma responsabilidade pelo fim.20
Este lugar onde reina a passividade, onde no h dilogo, onde no h
responsabilidade e onde no h tampouco ato criador, vincula-se s foras
situadas fora da conscincia (o segredo, o silncio, a loucura, a violncia,
o prodgio, o azar, o gratuito), as quais Bakhtin voltar a citar posterior-
mente na Reformulao do livro sobre Dostoivski.21 O homem no pode
apreender o ritmo, pelo contrrio, s pode ser possudo por ele, como se
estivesse embriagado ou sob efeito de narcticos; por isso, impossvel
encontrar-se a si mesmo no ritmo.22
Um estudo mais aprofundado sobre a noo de ritmo poderia eluci-
dar questes relevantes sobre a relutncia da teoria bakhtiniana contra o
inconsciente humano. Resta destacar, contudo, que o ritmo constitui a mais
importante, ou talvez nica, concesso de Bakhtin a reunir argumentos
que levem em conta a relao entre o eu e o outro em circunstncias que
fogem ao controle da conscincia. possvel dizer, finalmente, que o ritmo
deve ser lido como uma antinoo para Bakhtin, na medida em que uma
categoria no producente para sua teoria do romance, considerados tanto
o universo monolgico quanto o universo dialgico.
O ritmo ameaa toda a epistemologia construda em torno da ideia
de conscincia como dominante da representao. Ele pe em risco a 19 BAKHTIN. O ritmo, p. 102-120.20 BAKHTIN. O ritmo, p. 109.21 BAKHTIN. Reformulao do livro sobre Dostoivski, p. 353.22 BAKHTIN. O ritmo, p. 109.
viabilidade do prprio contato com a alteridade, pois institui a solido altiva
e a resistncia ao outro, traando ao seu redor o crculo infrangvel do
eu para mim mesmo.23 Alm disso, o ritmo representa um grande perigo
para a sustentao do conceito de ativismo da (auto)conscincia, porque
sugere um abandono, uma diluio inteira na existncia, um puro existir,
em que o eu se torna um participante obscuro e espontaneamente passivo.
Em consequncia, a debilidade ou a pouca preciso desta noo se deve,
provavelmente, ao fato de que, significando uma negao da criatividade
e do ativismo da conscincia, o ritmo pode pressupor um estado em que
no h autor.
No sabemos se Bakhtin se deu conta dessas aberturas especula-
tivas que sua teoria desenhava. A lio que permanece, depois da leitura
de Problemas da potica de Dostoivski, a de que estamos diante de
uma grande obra, cujo ponto de reflexo o homem e sua relao com
a conscincia, palco onde acontece o dilogo com o outro, o exerccio
do ato criador e a garantia da responsabilidade do ser. Duvidar do poder
da conscincia colocar em questo praticamente todos os operadores
conceituais que sustentam, direta ou indiretamente, a teoria do romance
de Mikhail Bakhtin .
23 BAKHTIN. O ritmo, p. 109.
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RefernciasBAKHTIN, Mikhail. O ritmo. In: ______. Esttica da criao verbal. 5. ed. rev. Traduo de Paulo Bezerra. So Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 102-120.
BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade esttica. In: ______. Esttica da criao verbal. 5. ed. rev. Traduo de Paulo Bezerra. So Paulo: Martins Fontes, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoivski. 2. ed. rev. Traduo de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. Reformulao do livro sobre Dostoivski. In: ______. Esttica da criao verbal. 5. ed. rev. Traduo de Paulo Bezerra. So Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 337-357.
KRISTEVA, Julia. Une potique ruine. In: BAKHTINE, Mikhal. La potique de Dostoevski. Traduo de Isabelle Kolitcheff. Paris: Seuil, 1970. p. 5-21.
possvel ver, nos textos iniciais de Bakhtin, a tnica que caracterizar
muito de sua produo posterior. Seu mtodo consiste em separar ele-
mentos, categorias, planos, para em seguida tratar da reciprocidade e da
interpenetrao entre eles. assim em Arte e responsabilidade, em que
trata das relaes entre arte e vida. Bakhtin tem uma grande preocupao
em privilegiar o homem e sua participao responsvel em todos os even-
tos da vida. o homem quem pensa, quem produz conhecimento, quem
ama, quem sofre, quem cria formas artsticas, e portanto, ele tambm
o responsvel por estabelecer os vnculos necessrios entre esses atos
da existncia. Em outras palavras, o ato humano concentra a realizao
concreta desses vnculos, ele correlaciona e resolve dentro de um contexto
unitrio e nico e, desta vez, contexto final, tanto o sentido como o fato.1
No que no seja possvel viver sem que esses vnculos sejam estabe-
lecidos, mas que, para Bakhtin, essa experincia mais enriquecedora,
e para tanto ela necessariamente deve passar pela relao com a arte.
Um desdobramento da separao entre vida e arte a que Bakhtin
faz, no texto Para uma filosofia do ato, entre dois mundos que no tm
absolutamente comunicao um com o outro e que so mutuamente impe-
netrveis: o mundo da cultura e o mundo da vida.2 Nesse texto, o terico
tem a preocupao de mostrar que o mundo da vida, dos eventos, dos
atos concretos, conceitualmente e esteticamente inapreensvel, pois todo
1 BAKHTIN. Para uma filosofia do ato, p. 48.2 BAKHTIN. Para uma filosofia do ato, p. 20.
O narrador em Mikhail Bakhtin
Everton Almeida Barbosa
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38 Respostas a Bakhtin O narrador em Mikhail Bakhtin 39
ato concreto ocorre apenas uma nica vez. A partir do momento em que
um participante comece a pensar sobre a vida, ele j realiza um exerccio
de estar fora dela. As construes tericas e estticas so para Bakhtin
abstraes, na medida em que desejam dar um acabamento quilo que no
seria passvel de acabamento, o que ele denomina de Ser-evento nico.
Apesar disso, ele mesmo tem conscincia de que teoria e esttica tambm
se concretizam em atos as formas artsticas, as formas da produo
cientfica etc. e por isso, para escapar a uma contradio, aponta uma
espcie de diferena de natureza:
tudo o que terico ou esttico deve ser determinado como um momento constituinte do evento nico do Ser, embora no mais, claro, em termos tericos ou estticos.3
Os produtos das construes terica e esttica sobre a vida no
so, obviamente, a prpria vida em si ou repeties dela, mas esto
inscritos nela sob as formas pelas quais so transmitidos e se mani-
festam tambm nos atos modificados do sujeito. Como construo e
tentativa de repetio do mundo da vida, teoria e esttica no so
a prpria vida, mas como atos de pensamento e linguagem elas se
tornam constituintes da vida, do acontecimento nico e singular da
existncia. Essa diferena impe uma grande dificuldade em aceitar
certas afirmaes de Bakhtin, pois em trabalhos posteriores, ao se con-
centrar apenas na viso esttica, h uma tendncia em exigir relaes
e sentidos que so prprios da viso tica. Ocorre, no entanto, que o
mundo da arte para Bakhtin, em sua concretude e sua impregnao
com o tom volitivo-emocional, est mais perto do mundo unitrio e
nico do ato realizado do que qualquer outro mundo abstrato cultural
(tomado isoladamente).4 Esse fato traz uma dificuldade maior de apre-
ciao terica da produo artstica, visto que, ao se falar de arte, os
sentidos podem se aproximar muito de uma fala sobre a prpria vida.
o risco que corre Bakhtin no momento em que estabelece analogias
com a vida para explicar a arte, e talvez uma das fontes maiores das
crticas dirigidas a ele.3 BAKHTIN. Para uma filosofia do ato, p. 20.4 BAKHTIN. Para uma filosofia do ato, p. 79. Note-se que Bakhtin fala de mundo abstrato cultural. Esse
mundo por sua vez tomado isoladamente. As expresses revelam o procedimento arbitrrio de Bakhtin no intuito de estabelecer um campo de atuao terica.
o que ocorre no texto O autor e a personagem na atividade es-
ttica. De forma bastante direta, Bakhtin tenta aplicar, relao entre
autor e personagem na obra de arte, relaes semelhantes relao eu/
outro na vida. Os dois primeiros captulos do nfase imagem externa do
outro como imagem do corpo. Na relao axiolgica entre o eu e o outro,
forma-se em mim esteticamente a imagem externa do outro, sou eu que,
a partir do meu lugar privilegiado e nico na existncia, afastado do outro,
posso lhe dar seu acabamento externo. Essa exterioridade fundamenta,
para Bakhtin, a existncia do valor esttico, com todas as ressalvas que a
analogia operada por ele entre vida e arte exige que sejam feitas.
No terceiro captulo, Bakhtin tenta fundamentar um enfoque si-
milar, agora do homem interior, do todo interior da alma da personagem
enquanto fenmeno esttico. Em outras palavras, ele tenta desenvolver
uma explicao anloga anterior (relativa imagem externa do corpo
do outro), mas que se aplique agora imagem interna, ao todo interior
e no exterior do outro. Nesse processo, enquanto a imagem externa do
corpo discutida sob a perspectiva espacial, a imagem interna (da alma)
discutida sob a perspectiva temporal (da o ttulo do captulo). Por isso
suas primeiras reflexes acabam incidindo sobre o tema da morte. Na pro-
blemtica analogia entre vida e arte, Bakhtin afirma que a morte do outro
d ao eu a possibilidade de captar-lhe o todo temporal de sua existncia,
da mesma forma que os limites do corpo do outro lhe d a possibilidade
de captar-lhe seu todo espacial.
A questo colocada em termos do vivenciamento axiolgico (tempo-
ral) do outro por mim e do meu autovivenciamento. Inicialmente, a posio
do autor o situa fora do tempo, pois s nessa condio que ele, como autor,
pode dar acabamento temporal ao outro e a si mesmo. A complexidade est
quando a atividade esttica se volta para o eu-para-mim. Ao vivenciar um
objeto, no possvel ao autor vivenciar a vivncia desse objeto ( possvel
vivenciar o amado como objeto, mas no o amor) a no ser de fora. Essas
ideias permanecem de acordo com as colocaes anteriores, segundo as
quais a partir do momento em que penso sobre minha prpria vida teorica-
mente ou esteticamente, estou necessariamente situado do lado de fora
do mundo da vida, do acontecimento singular e nico da existncia. Estar
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40 Respostas a Bakhtin O narrador em Mikhail Bakhtin 41
fora do tempo uma escapatria intuitivamente vivenciada pelo sujeito.5
Nesse texto Bakhtin ainda no se debrua sobre o problema da re-
presentao literria diretamente, no sentido de que ele se dedica muito
mais a uma definio da natureza da esttica, a partir de uma reflexo
sobre as posies axiolgicas do autor e da personagem, muito calcada
ainda nas semelhanas que essas posies mantm com as posies ticas
do eu e do outro na vida real. A reflexo sobre o jogo entre as linguagens
do autor, do heri e do narrador, e a relao entre eles no mbito da
representao literria especfica no compem a proposta de discusso
deste ensaio. Dois trechos talvez sintetizem bem a ideia central defendida
por Bakhtin, e que ser modificada adiante:
Para mim, o outro coincide consigo mesmo; com essa coincidncia-integridade, que lhe d acabamento positivo, eu o enriqueo de fora e ele se torna esteticamente significativo, se torna personagem. Da, da parte de sua forma, em seu todo, a personagem sempre ingnua e espontnea, por mais desdobrada e profunda que seja em seu interior; a ingenuidade e a espontaneidade so elementos da forma esttica como tal...6
[...] desde o incio devemos vivenci-la integralmente, operar com ela toda, com o todo, no sentido ela deve ser morta para ns, formalmente morta.7
No texto O problema do contedo, do material e da forma na
criao literria, Bakhtin tem a preocupao de especificar o campo de
estudo da esttica, diferenciando-o dos campos cognitivo e tico, mas,
ao mesmo tempo, afirmando a necessidade de articulao entre eles, de
definio recproca do esttico com outros domnios da vida. Para ele,
essa definio deve ser feita a partir de um mtodo no intuitivo, que
no seja feito empiricamente somente a partir do material da literatura,
em seus aspectos tcnicos, mas que vise sempre a um contedo que diz
respeito vida humana. Esse argumento est inserido no contexto de uma
crtica ao formalismo ( esttica material) que, segundo ele, prescinde
do verdadeiro objetivo da apreciao esttica o contedo, a contempla-
o em favor de uma abordagem a partir do material lingustico. Nesse
5 BAKHTIN. O autor e a personagem na atividade esttica, p. 100.6 BAKHTIN. O autor e a personagem na atividade esttica, p. 118.7 BAKHTIN. O autor e a personagem na atividade esttica, p. 120.
sentido tambm, importante considerar que quando Bakhtin se ope ao
formalismo, ele leva em considerao sua opinio de que a cultura no se
resume linguagem e, portanto, a descrio lingustica no o procedi-
mento nico e suficiente para dar conta dos fenmenos da realidade, por
mais que ele considere que toda lngua compreenda uma viso de mundo.
O formalismo um exemplo do isolamento abstrato do aspecto material
dentro da interpretao literria, que no leva a entender o vnculo esta-
belecido entre arte e vida.
A anlise esttica de um fato da lngua deve sempre apontar para
os outros campos da realidade estabelecidos por Bakhtin: o tico e o cog-
nitivo. a viso esttica que estabelece o vnculo necessrio entre o ato
nico e singular realizado na existncia (o tico) e o conhecimento adqui-
rido e estabelecido pela experincia e que toma um carter a-histrico8
(o cognitivo). O mtodo de Bakhtin consiste em inicialmente isolar os
tipos de ato (cognitivo, tico e esttico) para em seguida estabelecer as
influncias recprocas que entre eles ocorrem. Mtodo semelhante ele usa
para tratar, por exemplo, do contedo e da forma, atribuindo um carter
puramente artstico para o primeiro, puramente formal para o segundo,
para finalmente propor a articulao (ou interpenetrao) entre ambos, a
tarefa de compreender o material em sua funo de realizao do objeto
esttico, em que consiste o contedo. O contedo definido por ele como
a realidade do conhecimento e do ato tico, que entra com sua iden-tificao e avaliao no objeto esttico e submetida a unificao concreta, intuitiva, a uma individualizao, a uma concretizao, a um isolamento e a um acabamento, ou seja, a uma formalizao multiforme com a ajuda de um material determinado.9
O homem na vida faz interagir conhecimento e ao, mas a arte
que lhes d o acabamento necessrio para que se concentrem numa for-
ma (que para Bakhtin no o material) definida, permitindo um retorno
ordenado a eles. Bakhtin aponta a reciprocidade, a interdependncia, entre 8 O conhecimento no aceita a avaliao tica nem a formalizao esttica, mas afasta-se disso; nesse
sentido, como se no houvesse nada que preexistisse a ele, como se comeasse desde o incio, ou mais precisamente, como se o elemento da preexistncia de algo significante permanecesse sua margem, recuasse para o domnio dos fatos histricos, psicolgicos, biogrficos e outros, casuais do ponto de vista do prprio conhecimento. BAKHTIN. O problema do contedo, do material e da forma na criao literria, p. 31.
9 BAKHTIN. O problema do contedo, do material e da forma na criao literria, p. 35.
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42 Respostas a Bakhtin O narrador em Mikhail Bakhtin 43
conhecimento, ao e arte, ao dizer que o ato cognitivo, o pensamento,
j vem apreciado e regulamentado pelo procedimento tico, prtico e
cotidiano, social e poltico... e, finalmente, o ato cognitivo provm da
representao esteticamente ordenada do objeto, da viso do objeto.10
O importante para ele nunca deixar que os conceitos com os quais lida
estejam completamente isolados ou estticos. A separao dos campos,
ou eixos (cognitivo, tico, esttico), apenas uma forma de estruturar
seu argumento, sempre com o intuito didtico de mostrar que esses eixos
no existem separadamente, pelo menos do ponto de vista da esttica:
uma transcrio terica, uma frmula do ato tico j a sua converso para o plano do conhecimento, ou seja, um elemento secundrio, derivado, enquanto que como forma artstica... tem relao com o prprio ato na sua natureza tica primeira, domi-nando-a por meio da empatia com a conscincia volitiva, sensvel e agente, enquanto que o elemento cognitivo secundrio pode ter somente o sentido auxiliar de um instrumento.11
A arte, para Bakhtin, parece ter a capacidade de estar, como reali-
zao humana, no limiar entre os planos tico e cognitivo. Se considerar-
mos o ato esttico como um ato que tambm se realiza concretamente,
necessariamente ele apresenta uma faceta tica, levando-se em conta que
toda arte pode ser considerada um evento, um ato, de comunicao (de
linguagem) entre indivduos (um autor e um contemplador, num exem-
plo mais simples), que se d por meio de uma forma e de um material.
Bakhtin caracteriza esse efeito tico da arte como empatia, como se o
contato com os elementos da obra de arte (especialmente a personagem),
evocasse a prpria experincia primeira de um ato concreto, realizado.12
Ao mesmo tempo ela traz em si a bagagem terica, cognitiva, com a
qual dialoga e pela qual muitas vezes julgada, que sinaliza ideologias,
pr-conceitos e opinies pr-dadas. Apesar de trazer esse referencial
abstrato, ela no se constitui numa pura transcrio terica do ato tico,
10 BAKHTIN. O problema do contedo, do material e da forma na criao literria, p. 30.11 BAKHTIN. O problema do contedo, do material e da forma na criao literria, p. 39.12 A atividade esttica no cria uma realidade inteiramente nova. Diferentemente do conhecimento
e do ato, que criam a natureza e a humanidade social, a arte celebra, orna, evoca essa realidade preexistente do conhecimento e do ato... enriquece-as e completa-as, e sobretudo ela cria a unidade concreta e intuitiva desses dois mundos, coloca o homem na natureza, compreendida como seu ambiente esttico, humaniza a natureza e naturaliza o homem. BAKHTIN. O problema do contedo, do material e da forma na criao literria, p. 33.
certamente por causa da intermediao da forma individualizada e aca-
bada, cujos elementos evocam aspectos da realidade, e que d obra de
arte a condio do distanciamento necessrio para a experincia esttica.
por esse motivo que Bakhtin faz a ressalva de que a considerao isolada
do contedo e da forma de uma obra, bem como do cognitivo e do tico
isoladamente, fogem alada da experincia esttica e de sua anlise.13
Sobre a relao entre forma e contedo, Bakhtin diz que o contedo de
uma obra como que14 um fragmento do acontecimento nico e aberto
da existncia, isolado e libertado pela forma da responsabilidade ante o
acontecimento futuro....15
Quando se isolam fragmentos dos acontecimentos concretos da
existncia, abre-se a oportunidade para o indivduo de, pela forma, atuar
criativamente sobre esses atos, retornar a eles com outra viso, com a ex-
perincia enriquecida. Nisso consistiria o ato esttico. Segundo a lgica de
Bakhtin, a autoria, por exemplo, s possvel se houver a possibilidade de
se operar aquele isolamento e aquele acabamento. Quando so operados,
h uma espcie de suspenso ou encarnao na obra artstica de um
fragmento da existncia que perdura, mas que no pode ser considerado
da perspectiva da tica, pois no uma reflexo do ser na vida sobre a
vida, no a auto-reflexo da vida em movimento, uma vez que ele foi
isolado da realidade. O sujeito da atividade esttica um sujeito situado
do lado de fora dos limites dessa vida.16
Por isso o autor, para Bakhtin, o autor-criador, um momento cons-
titutivo da forma artstica,17 e no um indivduo concreto. a atividade,
organizada e oriunda do interior, do homem como totalidade, que realiza
plenamente sua tarefa.18 O estudo psicolgico, biogrfico e histrico do
autor como um indivduo real considera-o como um momento do campo
tico e no do esttico. Parafrasear, na interpretao da obra de arte, 13 As concepes puramente filosficas esto obrigatoriamente ligadas ao elemento tico do contedo,
ao mundo do ato, ao mundo do acontecimento. Bakhtin diz ainda que tanto o elemento tico como tambm o cognitivo podem ser isolados e transformados em objeto de uma investigao independente, tico-filosfica ou sociolgica. BAKHTIN. O problema do contedo, do material e da forma na criao literria, p. 41, 43.
15 BAKHTIN. O problema do contedo, do material e da forma na criao literria, p. 60.16 BAKHTIN. Para uma filosofia do ato, p. 32.17 BAKHTIN. O problema do contedo, do material e da forma na criao literria, p. 58.18 BAKHTIN. O problema do contedo, do material e da forma na criao literria, p. 68.
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44 Respostas a Bakhtin O narrador em Mikhail Bakhtin 45
os sofrimentos, atos e pensamentos das personagens, transcrever o
elemento tico da obra. Da mesma forma, Bakhtin fala tambm de uma
percepo no literria do romance, que consiste na empatia puramente
tica ou reflexo cognitiva abstradas a partir dos elementos materiais
que se apresentam no romance, sem levar em conta a orientao formal,
a forma artstica por meio da qual eles se apresentam. Ele diz: na per-
cepo no viso as palavras, os fonemas, o ritmo, mas com as palavras,
com os fonemas e com o ritmo viso ativamente um contedo: envolvo-o,
formo-o e arremato-o.19
A partir dessa reflexo que aponta que a criao verbal, mais espe-
cificamente a criao em prosa, pode-se ser capaz de evocar pela empatia
o momento tico, pode-se tentar avaliar (ou justificar) as afirmaes
feitas por Bakhtin a respeito das categorias autor e personagem, como
tambm as breves inseres a respeito do narrador. Ao mesmo tempo em
que evoca o momento tico, o isolamento a que se submetem o cognitivo
e o tico na obra permite uma relao no cognitiva e no tica com o
acontecimento.20 Essa propriedade do esttico que permite a liberdade
e a criatividade do sujeito da atividade esttica, o autor-criador, o que
no implica dizer que o artista, como sujeito tico, seja isento de sua
responsabilidade social e poltica, de seu dever.
Como prosador-romancista, termo bastante usado por Bakhtin em
O discurso no romance, o indivduo real se relaciona com os diferentes
estratos sociais, ideolgicos, lingusticos, que a linguagem traz em si e
as transpe para o discurso esttico, dentro do qual autor. como se
o artista tivesse uma face dupla, que se limita por um lado com a vida
real e por outro, com sua prpria inveno, pois a obra, como j foi dito,
no deixa de ser um ato tico do artista no acontecimento singular e
nico da existncia. Dentro dessa inveno ele seria capaz de manter
uma distncia com os elementos do objeto criado de forma anloga
que ele mantm com os objetos no mundo da vida. Bakhtin cita as pos-
sibilidades em que isso ocorre: a narrativa direta do autor, as formas da
narrativa tradicional oral, formas da narrativa semiliterria tradicional
(cartas, dirios etc.), outras formas literrias fora do discurso do autor
19 BAKHTIN. O problema do contedo, do material e da forma na criao literria, p. 59.20 BAKHTIN. O problema do contedo, do material e da forma na criao literria, p. 61.
(como escritos morais, filosficos, cientficos etc.) e os discursos das
personagens.21
No caso das formas da narrativa tradicional, oral e escrita, e
das outras formas literrias fora do discurso do autor, o reconhecimento
de outras vozes um procedimento relativamente simples. Basta que se
conhea e saiba que um determinado texto ou tipo de discurso j existe
anteriormente e pode-se facilmente afirmar que ele no pertence ao au-
tor e que, consequentemente, o autor, ao transcrever essas formas para
dentro de seu prprio discurso, transforma-o em um discurso bivocal ou
plurilngue (se em seu texto aparecem lendas, cartas, fatos sociais, dis-
cursos jornalsticos, polticos ou jurdicos etc.). O romance se torna uma
espcie de palimpsesto, uma forma de linguagem saturada de elementos
heterogneos, um gnero hbrido. O caso se complica quando se passa
a pensar na diferena entre os discursos do autor e da personagem e sua
relao com o prosador-romancista, o artista. Nos casos mencionados
acima, caberia falar-se tanto de autor ou artista, porque seus discursos se
distanciam daquelas referncias reais (as formas preexistentes) de forma
semelhante. Esse procedimento no to simples, por mais que Bakhtin
o defenda, quando se quer diferenciar as palavras do autor das palavras
das personagens ou do narrador, ainda mais quando seu registro lingustico
o mesmo, ou seja, quando no h marcas diferenciadoras nas falas de
cada um daqueles elementos e eles parecem efetivamente pertencer a
uma mesma voz. Como diferenciar as palavras de Dostoivski das do autor
de seus textos e de suas personagens? H que, no mnimo, se conhecer
Dostoivski, conhecer o contexto em que atuou, suas palavras emitidas
em momentos no estticos e o pblico com quem dialogou. H casos em
que certamente essa verificao impossvel.
Bakhtin, no entanto, no deixou de destacar, nos artistas com que
trabalha, como Goethe, Rabelais e Dostoivski, uma certa inclinao pela
diversidade, uma auscultao da multiformidade da existncia, uma curio-
sidade pelo detalhe. No deixou tambm de percorrer seus escritos no
literrios. Em O discurso do romance, procura tambm dar vrios exem-
plos dos casos de plurilinguismo, tentando demonstrar a que voz pertence
cada parte do enunciado dos romances estudados. Bakhtin, no entanto, 21 BAKHTIN. O discurso no romance, p. 74.
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46 Respostas a Bakhtin O narrador em Mikhail Bakhtin 47
faz apenas parte do trabalho de diferenciao e articulao entre autor,
personagem e prosador, quando estabelece um recorte muito especfico,
que talvez seja o incio longo de uma discusso inacabada: a viso esttica.
Os textos em que lida mais diretamente com a questo do romance e as
relaes entre autor e personagem so textos que se restringem obser-
vao do esttico e daquilo que, por meio dele, pode ser experimentado.
S possvel entender e aceitar algumas de suas colocaes se
for levado em considerao o primeiro apontamento feito a respeito de
seu mtodo: a separao entre autor, narrador, personagem e escritor
como um procedimento que visa a isolar inicialmente esses elementos
para depois apontar as relaes e interpenetraes entre eles. S levan-
do em considerao esse isolamento e a insero de cada elemento num
determinado momento tico ou esttico que possvel ter mais clareza
a respeito das afirmaes de Bakhtin:
o prosador pode se destacar da linguagem de sua obra, e o faz em diversos graus de algumas das suas camadas e elementos. Ele pode utilizar a linguagem sem se entregar totalmente a ela; ele a torna quase ou totalmente alheia, mas ao mesmo tempo obriga-a, em ltima instncia, a servir s suas intenes. O autor no fala na linguagem da qual ele se destaca em maior ou menor grau, mas como se falasse atravs dela, um tanto reforada, objetivada e afastada dos seus lbios.22
Nessa passagem, se tomarmos o prosador como indivduo real que
atua eticamente e o autor como momento da criao esttica, notamos
que o tipo de relao que o primeiro mantm com a linguagem uma
relao tica. O prosador usa a linguagem da qual se destaca, as diversas
linguagens alheias ao seu contexto socioideolgico, para servir s suas
intenes. Essa ao de uso do prosador pode ser inscrita inteiramente
no mbito da tica. O autor, por sua vez, por ser um elemento intrnseco
viso esttica, tambm pode se destacar da linguagem, mas em vez de
us-las, fala atravs delas. Usar a linguagem d um aspecto objetal a
ela, de que ela pode ser manipulada, j que um dado concreto, um ato
da realidade. Ao falar atravs da linguagem, o autor no apresenta o
mesmo carter de indivduo concreto como o prosador, mas apenas de voz
(ou de marca lingustica escrita) que, ou fala por si, ou fala atravs das 22 BAKHTIN. O discurso no romance, p. 105.
outras vozes, e s pode existir assim, como voz. Essa distino no est
to clara em todos os momentos dos textos de Bakhtin aqui estudados.
Essa primeira distino das categorias entre os planos tico e esttico j