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RESTAURAÇÃO URBANÍSTICA DO SÍTIO HISTÓRICO DA PRAÇA DA ALFÂNDEGA - PROJETO MONUMENTA PORTO ALEGRE RODRIGUES, MIRIAN (1); SARAIVA DE OLIVEIRA, DORIS (2) (1) Faculdade de Arquitetura, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional - PROPUR/UFRGS Porto Alegre, RS - Brasil. Telefone: (51) 3288-7532 - (51)9335-2004 [email protected] (2) Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Especialista em Restauração e Conservação de Sítios e Monumentos Históricos CECRE-UFBA Porto Alegre, RS Brasil. Telefone:(51)3221-8373 (51)9999-4233 [email protected] RESUMO O artigo apresenta experiência inovadora de requalificação de uma área tombada em novembro de 1999 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, localizada no centro histórico da cidade de Porto Alegre, realizada pelo Projeto Monumenta, cujos objetivos eram a melhoria das condições dos sítios históricos urbanos incluindo a restauração de monumentos, edificações, praças e ruas de valor cultural, além de outras iniciativas que visavam reforçar a representatividade dos centros históricos na memória coletiva dos seus habitantes e usuários. Essa área denominada sítio histórico é formada pelo cais do porto, as praças da Alfândega, da Matriz e áreas circundantes, a Avenida Sepúlveda e Rua General Câmara que fazem a ligação entre esses espaços. Foram observados alguns princípios para a modelagem do Projeto, entre os quais o reconhecimento da contribuição essencial do tecido urbano privado de valor cultural na constituição dos centros históricos e na formação de sua ima gem e a ênfase nas atividades de serviço e na habitação como vitalizadoras dos centros históricos. Outro aspecto da maior relevância foi a intervenção de restauração e melhoria do espaço público, numa área de 13,5 hectares composto por praças, largos e ruas, cuja experiência foi de soma e ampliação do efeito da restauração de monumentos e edifícios privados, dando-lhe um sentido de conjunto, marcando a efetiva mudança do ambiente do centro histórico da cidade e da paisagem urbana. O projeto previu a regularização e recuperação das pavimentações, a restauração dos canteiros na sua forma e dimensão originais, restauração dos monumentos, a instalação de mobiliário, o remanejamento de equipamentos e vegetação, acessibilidade e a melhoria da iluminação pública. Além disso, o projeto contemplou a restauração de edificações significativas no entorno das praças da Alfândega e da Matriz, incluindo o Portão Central do Cais do Porto. Pesquisa acadêmica realizada na área de percepção ambiental para identificar os locais com maior imageabilidade dentro do perímetro do centro histórico apontou a Praça da Alfândega como um dos locais emblemáticos da cidade e dos cidadãos porto-alegrenses. A preparação para a restauração desse espaço público se constituiu num conjunto de iniciativas e pesquisas. As escavações arqueológicas fazem parte deste rol e foram realizadas na Praça. Tiveram como objetivo identificar as diferentes etapas de ocupação dessa área e localizar as antigas estruturas

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RESTAURAÇÃO URBANÍSTICA DO SÍTIO HISTÓRICO DA PRAÇA DA ALFÂNDEGA - PROJETO MONUMENTA PORTO ALEGRE

RODRIGUES, MIRIAN (1); SARAIVA DE OLIVEIRA, DORIS (2) (1) Faculdade de Arquitetura, Programa de Pós-Graduação em Planejamento

Urbano e Regional - PROPUR/UFRGS Porto Alegre, RS - Brasil. Telefone: (51) 3288-7532 - (51)9335-2004

[email protected]

(2) Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Especialista em Restauração e Conservação de Sítios e Monumentos Históricos – CECRE-UFBA

Porto Alegre, RS – Brasil. Telefone:(51)3221-8373 – (51)9999-4233 [email protected]

RESUMO O artigo apresenta experiência inovadora de requalificação de uma área tombada em novembro de 1999 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, localizada no centro histórico da cidade de Porto Alegre, realizada pelo Projeto Monumenta, cujos objetivos eram a melhoria das condições dos sítios históricos urbanos incluindo a restauração de monumentos, edificações, praças e ruas de valor cultural, além de outras iniciativas que visavam reforçar a representatividade dos centros históricos na memória coletiva dos seus habitantes e usuários. Essa área denominada sítio histórico é formada pelo cais do porto, as praças da Alfândega, da Matriz e áreas circundantes, a Avenida Sepúlveda e Rua General Câmara que fazem a ligação entre esses espaços. Foram observados alguns princípios para a modelagem do Projeto, entre os quais o reconhecimento da contribuição essencial do tecido urbano privado de valor cultural na constituição dos centros históricos e na formação de sua ima gem e a ênfase nas atividades de serviço e na habitação como vitalizadoras dos centros históricos. Outro aspecto da maior relevância foi a intervenção de restauração e melhoria do espaço público, numa área de 13,5 hectares composto por praças, largos e ruas, cuja experiência foi de soma e ampliação do efeito da restauração de monumentos e edifícios privados, dando-lhe um sentido de conjunto, marcando a efetiva mudança do ambiente do centro histórico da cidade e da paisagem urbana. O projeto previu a regularização e recuperação das pavimentações, a restauração dos canteiros na sua forma e dimensão originais, restauração dos monumentos, a instalação de mobiliário, o remanejamento de equipamentos e vegetação, acessibilidade e a melhoria da iluminação pública. Além disso, o projeto contemplou a restauração de edificações significativas no entorno das praças da Alfândega e da Matriz, incluindo o Portão Central do Cais do Porto. Pesquisa acadêmica realizada na área de percepção ambiental para identificar os locais com maior imageabilidade dentro do perímetro do centro histórico apontou a Praça da Alfândega como um dos locais emblemáticos da cidade e dos cidadãos porto-alegrenses. A preparação para a restauração desse espaço público se constituiu num conjunto de iniciativas e pesquisas. As escavações arqueológicas fazem parte deste rol e foram realizadas na Praça. Tiveram como objetivo identificar as diferentes etapas de ocupação dessa área e localizar as antigas estruturas

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do cais e os alicerces do antigo prédio da Alfândega. As estruturas arqueológicas são parte da escadaria e da murada do cais. Foi desenvolvido programa de educação patrimonial direcionado aos estudantes de ensino fundamental no canteiro das escavações. A restauração da praça contemplou o resgate de aspectos históricos da evolução espacial daquela área. As ações desenvolvidas permitem concluir sobre os inúmeros benefícios às cidades, alavancados pelo Programa Monumenta na preservação e restauração do patrimônio cultural, na qualificação visual e estética da paisagem urbana compatibilizando-a a dinâmica de crescimento urbano e uso dos espaços públicos por parte dos cidadãos.

Palavras-chave: patrimônio cultural; paisagem urbana; restauração; espaços públicos.

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Introdução

O Centro Histórico de Porto Alegre possui uma área protegida por tombamento como

patrimônio cultural do país pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)

desde novembro de 1999, denominada Sítio Histórico e que está intrinsecamente ligada à

própria origem da cidade. A região protegida compreende um espaço plano, a partir do Cais

Mauá, a Praça da Alfândega, considerada um dos sítios de ocupação mais remota da cidade,

um trecho em aclive, Rua General Câmara, conhecida popularmente como Rua da Ladeira

que se estende até a Praça da Matriz e quarteirões adjacentes. Ambas as praças possuem ao

seu redor várias edificações inventariadas e tombadas como o Memorial do Estado do Rio

Grande do Sul, Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Centro Cultural Santander, Museu de

Comunicação Social José da Costa, Clube do Comércio e o Cinema Imperial, na Praça da

Alfândega. O Palácio Piratini, Memorial do Legislativo, Solar dos Câmara, Pinacoteca Ruben

Berta, Teatro São Pedro, Memorial do Ministério Público e Biblioteca Pública do Estado, na

Praça da Matriz (Praça Marechal Deodoro). Até a época do tombamento do sitio pelo IPHAN,

não havia uma ação governamental efetiva integrada para a preservação desses espaços

públicos.

Apesar de sua importância histórica, arqueológica, urbanística, paisagística e cultural, a área

não recebeu nas últimas décadas o tratamento adequado para sua manutenção e a

preservação de suas características físico-espaciais.

A preocupação com a cidade histórica pensada como um objeto de conservação por inteiro e

não a soma de seus monumentos históricos, iniciou tardiamente, quando intervenções na

malha urbana já haviam lesado a estrutura da cidade antiga. Cabe aqui trazer a observação

de Choay de que “A noção de patrimônio urbano histórico constituiu-se na contramão do

processo de urbanização dominante” (Choay, 2001, p.179-180).

Nos processos de requalificação urbana, além dos aspectos referentes à historicidade, as

questões relativas à estética são essenciais para a qualidade de vida urbana. Projetos

ilustram esta preocupação, por terem como objetivo reverter o processo de deterioração dos

espaços públicos urbanos.

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Se as edificações que circundam as praças delimitam os seus espaços abertos, as

edificações históricas no processo de avaliação ambiental tendem a ser percebidas de forma

positiva e associadas a valores da estética formal e simbólica (Lang, 1987).

Em Porto Alegre, a partir do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de 1979, surgiram

legislações urbanísticas visando à proteção do patrimônio urbano. No Plano Diretor de

Desenvolvimento Urbano e Ambiental de 1999, foram instituídas as Áreas Especiais de

Interesse Cultural, cujo objetivo é preservar espaços “que apresentam ocorrência de

patrimônio cultural que deve ser preservado a fim de evitar a perda ou desaparecimento das

características que lhes conferem peculiaridade” (Art. 92, PDDUA, 1999).

Como reconhecimento da importância desses espaços, refletidos na legislação urbanística,

a área foi considerada prioritária para participar do Programa Monumenta, do IPHAN, que

desde 2002, sob a coordenação da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e participação do

Governo do Estado, promoveu ações de amplo alcance de qualificação urbana, obras de

restauração em vários bens tombados e inventariados, pesquisas arqueológicas e obras de

restauração e qualificação, trazendo melhorias urbanísticas, arquitetônicas, além de ações e

projetos de educação patrimonial.

Histórico do Sítio

Porto Alegre é a capital do Estado do Rio Grande do Sul, extremo sul do Brasil, fazendo

fronteira com a Argentina e Uruguai possui uma população de 1.409.351 habitantes e uma

área de 497 km² (IBGE, 2010). Nasceu de um pequeno povoado composto por famílias

açorianas, denominado Porto dos Casais. Esse local encontrava-se junto às margens do Lago

Guaíba próximo de onde atualmente se encontra a Praça da Alfândega. Serviu de

acampamento de tropas da coroa portuguesa, em constante deslocamento pela região sul do

Brasil, na disputa por territórios com o reino da Espanha. Nesse local estabeleceram-se os

primeiros imigrantes açorianos em 1752. Em 1773, já com a denominação de Freguesia da

Madre de Deus de Porto Alegre, tornou-se capital da Província de São Pedro e, em 1822 foi

elevada à categoria de cidade.

Seguindo a tradição do urbanismo português, seu traçado apresenta um território dividido em

cidade alta - Praça da Matriz, concentrando o centro cívico e administrativo e, cidade baixa –

Praça da Alfândega, que aglutinava funções comerciais, portuárias e de aduana. Essa última

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se transformou ao longo do tempo, com sucessivos aterros das margens do lago. A

arquitetura e o urbanismo dessa região trazem testemunhos das diversas épocas, desde o

século XVIII.

Souza (1997), em seus estudos sobre a evolução urbana de Porto Alegre, divide-o em cinco

períodos históricos: o primeiro denominado ocupação do território, de 1680 a 1772, quando o

Rio Grande do Sul é incorporado à Colônia do Brasil; o segundo, de 1772 a 1820, denominado

trigo, em virtude do produto cultivado pelos açorianos e escoado pelo porto de Porto Alegre, o

que contribuiu para o desenvolvimento portuário e consequentemente urbano; o terceiro, de

1820 a 1890, denominado imigração, marcado por sérios problemas econômicos e políticos

como a Revolução Farroupilha, porém marcado pelas imigrações (alemã a partir de 1824 e

italiana em 1875); o quarto, de 1890 a 1945, que é o período denominado industrialização

quando a cidade entra na fase industrial, de valorização da cidade e o quinto, de 1945 aos

nossos dias, denominado metropolização, pelo grande crescimento populacional causado

pelo êxodo rural, expansão da periferia conformando uma área metropolitana e o

deslocamento das indústrias para a fora de Porto Alegre.

O Projeto Monumenta Porto Alegre

O Programa Monumenta, instituído no final de 1999 pelo Ministério da Cultura/IPHAN, em

cooperação com o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, apoio técnico da

UNESCO e parceria da Caixa Econômica Federal, é integrado por um conjunto de 26 cidades

em várias regiões brasileiras, escolhidas entre os sítios históricos tombados federais

representativos das manifestações arquitetônicas e urbanísticas de várias épocas, entre eles,

Porto Alegre.

A escolha da área do Projeto Monumenta Porto Alegre, baseado nos eixos longitudinal e

transversal à orla do lago Guaíba, teve por diretrizes a pré-existência do Projeto do Corredor

Cultural da Rua da Praia e do perímetro tombado pelo IPHAN em 1999, que se estende do

alto da Rua Duque de Caxias à orla do Guaíba, cruzando-se no Largo dos Medeiros, ponto

fortemente ancorado na história da cidade. A área conformada por esses eixos, cujo perímetro

foi levemente ampliado para conter um volume significativo de imóveis privados de valor

cultural, abarca os principais monumentos e logradouros tradicionais do Centro Histórico. Os

investimentos do Monumenta concentram-se prioritariamente ao longo desses eixos,

prevendo-se que o seu efeito dinamizador se espraie na circunvizinhança, atraindo

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investimentos e incentivando iniciativas de restauração de imóveis e melhorias urbanísticas

(Figura 1).

Figura 1. Área de abrangência do Projeto Monumenta. Fonte: Arquivo UEP Monumenta Porto Alegre.

Pesquisa acadêmica realizada na área de percepção ambiental para identificar os locais com

maior imageabilidade dentro do perímetro do centro histórico aponta a Praça da Alfândega

como um dos locais bonitos do centro de Porto Alegre com maior frequência (46,6%) tendo

como justificativa o “uso”, seguida pela “vegetação”, “valor histórico” e “identidade”. Ela

também aparece no percentual de locais feios (13,3%) com justificativas de “falta de

segurança” e “falta de manutenção” (Rodrigues, 2010).

Praça da Alfândega

A Praça da Alfândega é um local emblemático da cidade e dos cidadãos porto-alegrenses.

Sua denominação original foi Praça da Quitanda, local de comércio de hortigranjeiros e onde,

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em 1804, foi construída a primeira alfândega da cidade. A partir de 1866 a praça foi

arborizada, ajardinada e adquirindo os contornos de um jardim público (Figura 2).

Figura 2. Praça da Alfândega vista de 1931. Fonte: Arquivo IPHAE.

Em 1909 foi apresentado pela Secretaria de Obras do Estado, o anteprojeto do cais em frente

à Praça Senador Florêncio (outra denominação da Praça da Alfândega), destinado a fazer o

contato entre o porto e a cidade, o qual promoveu o embelezamento da capital, construindo-se

edifícios para repartições federais sobre o terreno conquistado ao rio. A capital não dispunha

ainda de um local apropriado para o desembarque de passageiros, que o faziam, de forma

inconveniente e até perigosa, por meio de trapiches.

O ano de 1912 foi importante para a configuração desse espaço, com a decisão de demolir o

prédio da alfândega que ali existia desde 1820, desatravancando o corpo da praça e

permitindo uma série de melhorias e beneficiamentos. Nessa mesma época teve início à

construção do atual porto, e consequentemente o aterro da área, criando a possibilidade de

construção dos prédios da Delegacia Fiscal (atual Museu de Arte do Rio Grande do Sul), dos

Correios e Telégrafos (atual Memorial do Rio Grande do Sul) e entre os dois, a Avenida

Sepúlveda. A estátua equestre do General Osório foi inaugurada em 1933 e em seguida a

remodelação dos canteiros e construção do calçamento com pedras tipo portuguesa.

A partir da década de 70 do século XX ocorre uma profunda descaracterização da cidade e

principalmente da área central. Foi construído um muro ao longo da faixa portuária, integrante

do projeto do sistema municipal contra cheias. O efeito, em termos urbanísticos, foi o de isolar

a cidade do lago Guaíba. Nessa época também os bondes foram retirados de circulação. Fato

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positivo do período foi a unificação, em 1972, das Praças Senador Florêncio e Barão do Rio

Branco e a incorporação de um trecho da Rua Sete de Setembro à área da Praça da

Alfândega. No lado oposto, na Rua dos Andradas (conhecida popularmente como Rua da

Praia), concentram-se os prédios do Clube do Comércio, dos antigos cinemas Imperial e

Guarani e a Antiga Farmácia Carvalho, e o Grande Hotel, conferindo especial animação ao

local e à praça que passa a desempenhar a função de passeio público, local de encontro e

passeio, agregando a população. Nos anos 80 do mesmo século é demolido o prédio do

Grande Hotel e de parte da Antiga Farmácia Carvalho, desta resta a fachada. Os cinemas

Imperial e Guarani não existem mais, mas o edifício Art Deco, onde operavam, está em

restauração e abrigará o Centro Cultural da Caixa e dependências da Prefeitura Municipal.

Arqueologia na praça

Preparando os projetos para as obras na Praça da Alfândega, em 2005 foram mapeados os

vestígios existentes no subsolo da desta por meio de um procedimento de investigação

geofísica, com o emprego de equipamento de georadar. Foi aplicado pela primeira vez na

cidade com a finalidade de detectar estruturas presentes no subsolo. Esta evidenciou a

presença da murada do antigo cais e de duas escadarias do porto construído entre 1852 e

1856, a 50 cm de profundidade em relação ao nível atual da praça, no alinhamento da Av.

Sete de Setembro, das fundações da antiga Alfândega e dos trapiches, no alinhamento

adotado pela então futura Av. Sepúlveda. Essa pesquisa faz parte do Programa de

Arqueologia Urbana da Secretaria Municipal da Cultura. A pesquisa arqueológica é um

procedimento atualmente incorporado aos projetos de restauração do patrimônio cultural. No

período de escavação, a população reagiu de forma positiva ao processo. Foi desenvolvido

programa de educação patrimonial direcionado aos estudantes de ensino fundamental no

canteiro das escavações. A restauração da praça previu o resgate de aspectos históricos da

evolução espacial daquela área. As estruturas arqueológicas que deveriam permanecer à

vista são parte da escadaria e da murada do cais. Entretanto, a equipe acabou abandonando

a ideia de deixar à vista as estruturas por questões de orçamento e segurança. Elas foram

devidamente documentadas e posteriormente recobertas com areia para evitar a degradação.

A prospecção foi determinante para trazer à luz elementos que demonstram que o espaço da

atual Avenida Sepúlveda fez parte, historicamente, do acesso à cidade por via lacustre. O

mapa de localização dos vestígios arqueológicos traduz com precisão a localização do

trapiche, escadaria e linha do antigo cais, oferecendo elementos que comprovam a

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configuração passada daquele espaço (Figura 3). A localização do atual portão de acesso do

Cais Mauá encontra-se justamente no eixo longitudinal da Av. Sepúlveda como uma extensão

do antigo trapiche, reforçando o caráter de acesso à cidade através do Lago.

(a) (b)

Figura 3. Arqueologia na Praça: (a) Mapa arqueológico com a localização do trapiche e murada do

antigo cais; (b) Escavação e localização dos sítios. Fonte: (a) Arquivo UEP Monumenta Porto Alegre e

(b) Foto de D.Oliveira.

Projeto urbanístico para intervenção no espaço público

O projeto de restauração do Sítio Histórico da Praça da Alfândega contempla a melhoria

urbanística de praças, ruas, avenidas do Centro Histórico com a regularização e restauração

de pavimentos originais como o mosaico de pedra portuguesa e os paralelepípedos do leito da

Av. Sepúlveda, restauração de canteiros dos jardins no seu formato e dimensões originais,

instalação de mobiliário urbano, restauração de luminárias históricas, colocação de novas

luminárias reforçando a iluminação pública, relocação de vegetação como as palmeiras

imperiais que brotaram espontaneamente em locais como o antigo leito da Avenida

Sepúlveda, recomposição dos jardins com um novo projeto paisagístico, execução de rampas

e de pavimentação padronizada, visando facilitar o deslocamento de portadores de

necessidades especiais. O projeto também contemplou a restauração de prédios no entorno

da praça, tanto os protegidos por tombamento quanto imóveis privados de interesse cultural.

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Tais intervenções são de largo alcance, visando resgatar o caráter histórico daqueles

espaços, ampliando a percepção da população da sua importância simbólica, requalificando

parcelas do espaço que foram descaracterizadas, aumentando as áreas de convivência da

população, destacando os prédios históricos em seu perímetro e devolvendo a paisagem

urbana a qualidade estética.

Este projeto abrange uma área de 13 hectares de praças, ruas, largos e avenidas, implicando,

entre outras ações, na readequação dos pavimentos, boa parte em pedra portuguesa,

redesenho dos canteiros, instalação e realocação de mobiliário urbano, remanejamento de

equipamentos e redes de infraestrutura, melhoria da iluminação pública ao nível do pedestre e

iluminação cênica de alguns dos monumentos. Pela intensidade de pedestres que cruza a

Praça da Alfândega foram mantidos os seus dois calçadões tradicionais, da Rua Sete de

Setembro e da Rua da Praia, sendo que este último será preparado para circulação de

veículos leves para atender às necessidades de acessibilidade do Clube do Comércio e do

futuro Centro Culturais da CAIXA. Um módulo de serviço situado ao longo do limite oeste da

Praça busca recriar em memória a preexistente fachada comercial que deu lugar ao prédio da

CAIXA. Nesse módulo estarão concentrados os equipamentos hoje dispersos na Praça, tais

como as duas bancas de revista, zeladoria, serviço de segurança, dois conjuntos de

banheiros, pago e grátis, além de café de balcão, sorveteria e loja de flores. O propósito é,

além da organização dessas funções, a retomada da animação desse quadrante da Praça. Os

tradicionais engraxates em cadeiras especialmente desenhadas estarão postados nas

laterais do módulo. Também para os artesãos de uma tradicional feira de artesanato foram

desenhados modelos de bancas adequados às suas atividades. Não foi possível a execução

dessas bancas no âmbito do Projeto Monumenta, mas elas foram abarcadas pelo PAC-

Cidades Históricas que vai dar continuidade a intervenções previstas e não finalizadas.

Um dos aspectos relevantes do projeto de qualificação do espaço público foi a recuperação da

Av. Sepúlveda como porta de acesso à cidade, resgatando de alguma forma o Decreto

Municipal n° 21 de 30 de setembro de 1925 que nomeou esta avenida como a rua que dá

acesso ao cais (Figura 4). A Avenida Sepúlveda encontrava-se obstruída em parte de seu

traçado porque um trecho havia sido anexado à Praça. Além disso, seu pavimento original em

paralelepípedos de granito rosa estava encoberto por várias camadas de asfalto, seus

canteiros centrais apresentavam outra conformação e o renque de palmeiras imperiais estava

descaracterizado. Essas características fundamentais na morfologia da rua foram

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recuperadas. A cobertura de asfalto foi removida, os paralelepípedos foram realinhados e

nivelados, os canteiros centrais foram refeitos conforme o desenho original, sendo

recolocadas em cada canteiro as duas palmeiras como constava no projeto original. A rua

conquistou o quarteirão que havia sido absorvido pela praça. Assim, a Avenida Sepúlveda

voltou a ser o “boulevard” de acesso à cidade, com toda a sua amplidão e magnitude, fazendo

a ligação do porto com o centro da cidade.

Após a execução das obras da Praça e Av. Sepúlveda o que se percebeu foi uma

considerável melhoria do espaço público, tornando a praça muito mais utilizada pela

população. Isso foi reflexo da abertura dos caminhos originais entre os canteiros, remoção de

vegetação que não era do projeto original e que escurecia e tornava os espaços inseguros,

qualificação do mobiliário urbano, iluminação e insolação. A intervenção somou e ampliou o

efeito da restauração de monumentos e edifícios privados, dando um sentido de conjunto e

marcando a efetiva mudança do ambiente do Centro Histórico.

(a) (b)

Figura 4. Av. Sepúlveda: (a) Vista a partir da Praça após restauração do traçado, renque de palmeiras, canteiros e pavimentação; (b) Vista da Av, Sepúlveda e da Praça da Âlfândega. Fonte: (a) Fotos de D. Oliveira.

Outras Ações

Com a finalidade de oferecer embasamento para as decisões de projeto quanto às mudanças

a serem efetuadas na Praça assim como em todo o espaço público da área do Monumenta,

incluindo os largos e as vias, foi feita uma exaustiva pesquisa histórica tendo por objeto o

Centro Histórico, seus monumentos e edificações de valor cultural, acompanhada de um

levantamento de fontes documentais para a formação de um banco de imagens fotográficas e

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iconográficas, contendo mais de 1200 imagens, já digitalizadas. Estes elementos de

informação alicerçaram a elaboração do Projeto Interpretativo da história da área central, por

intermédio do qual deverão ser instalados elementos de comunicação visual contendo

informações históricas, fotográficas e literárias, em lugares representativos para a memória da

cidade, de forma que a população e os visitantes possam se apropriar do seu significado

pregresso, incorporando-os à imagem e à vivência atual do Centro. Como parte desse projeto

interpretativo, foi confeccionado um dossiê literário, contendo trechos das obras de

referências sobre o Centro Histórico, assim como foram levantadas as denominações antigas

das ruas, a serem registradas nas placas indicativas, juntamente com os nomes adotados

atualmente.

Dentre as ações específicas do Monumenta no âmbito sociocultural, destacam-se duas: a

primeira foi a realização de oficinas de qualificação dos artesãos da Praça da Alfândega, com

o objetivo de produzir linhas de artesanato com características de Porto Alegre e da Praça.

A segunda foi uma ação conjunta do Monumenta com o Centro de Referência

Afro-brasileiro-CRAB, reunindo as entidades representativas do movimento negro da cidade.

Essa ação vinha sendo gestada mesmo antes da implantação do Programa em Porto Alegre.

Trata-se do Projeto do Museu de Percurso do Negro, cujo objetivo é dar conhecimento da

presença e do papel desempenhado pela população negra que historicamente habitava ou

trabalhava no Centro, com predominância de estivadores e outros trabalhadores portuários,

afastados para bairros periféricos. O projeto prevê execução de um conjunto de ações com o

apoio da UNESCO, culminando com a instalação de marcos na paisagem do Centro Histórico,

relacionados à história da presença negra, contendo informações sobre o significado desses

lugares. Três marcos já foram instalados, o Tambor na Praça Brigadeiro Sampaio, a Pegada

Africana na Praça da Alfândega e o Bará do Mercado, no Mercado Público. Estão previstos

mais três marcos em outros lugares do centro.

Outra ação dentro do projeto trata do financiamento a proprietários de imóveis privados

inventariados na área de projeto, para recuperação de fachadas e coberturas, selecionados

segundo critérios preestabelecidos, como o estado de conservação do imóvel, sua localização

e valor cultural. Destina-se com exclusividade à restauração de imóveis de particulares

inventariados pela Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural – EPAHC - por seu valor cultural

ou de compatibilização com o ambiente urbano. Os proprietários são incentivados por meio de

editais públicos a apresentar propostas para obtenção de financiamento em condições

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privilegiadas (zero % de juros e um prazo para o resgate do empréstimo de 10 anos para

comércio e serviços ou 15 anos para habitação,) para a restauração dos seus imóveis,

comprometendo-se a cobrir com recursos próprios os custos das obras necessárias no interior

dos mesmos. Já foram recuperados 14 prédios nessa modalidade. Os recursos obtidos com o

pagamento dos financiamentos vão para um fundo municipal criado especificamente para

esse fim. Com isso futuros financiamentos poderão ser viabilizados.

Conclusão

Em um processo dinâmico de renovação, a cidade e sua arquitetura necessita ser protegida,

preservada e ter fortalecida sua paisagem natural e cultural - além de ser reconhecida como

um recurso não renovável a ser incluído nos processos de gestão e planejamento de seu

território e no desenho arquitetônico - considerando o valor patrimonial das pré-existências

naturais e culturais que a identificam. Nesse aspecto, o Projeto Monumenta em Porto Alegre

foi um marco diferencial na relação da cidade, pois realizou uma revisão crítica com novas

aproximações para a recuperação do espaço público como elemento estrutural para a

organização física e social da cidade, consolidando uma imagem significante e reconstituindo

qualitativamente sua paisagem urbana.

As ações desenvolvidas trouxeram inúmeros benefícios na preservação e restauração do

patrimônio cultural edificado, recuperação da morfologia urbana e na qualificação visual e

estética dos espaços públicos. A resposta positiva por parte da população com a

intensificação do uso e fruição desses espaços, além da positiva contribuição na estética

urbana, demonstram a importância de recuperar e devolver aos cidadãos seus espaços de

convivência. Requer identificar e consolidar os valores consagrados de suas paisagens,

caracterizados por uma série de imagens que identificam uma realidade geográfica e

sociocultural, tanto local como regional. Requalificar esses preciosos lugares de forte

imageabilidade e referenciais urbanos físico-espaciais e simbólicos é tarefa complexa e

demanda uma profunda e rigorosa pesquisa fundamentada na natureza dos aspectos físicos

quanto ao uso, à estética e à estrutura do espaço construído e em seus aspectos históricos,

antropológicos, econômicos e socioculturais.

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Outro aspecto relevante do Projeto Monumenta Porto Alegre foi o permanente diálogo, a soma

de esforços das três diferentes esferas da administração pública, municipal, estadual e federal

e a prevalência da técnica nas decisões tomadas ao longo da trajetória do desenvolvimento e

execução do projeto, entre outras, que deixaram uma marca referencial nas ações de

requalificação do espaço público, propiciando um espaço inclusivo, gerador de paisagens

sociais e de revalorização do patrimônio arquitetônico identitário da cultura local,

reconstituindo e consolidando a paisagem urbana da cidade a partir de sua história cultural.

Referências Bibliográficas

CHOAY, F. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Editora UNESP, 2001. 179-180 p.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Sinopse do Censo Demográfico. 2010. Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?uf=43&dados=1>. Acesso em: 13 ago. 2014

LANG, J. Creating architecture theory: The role of the behavioral sciences in environmental design. New York: Van Nostrand Reinhold,1987. 278 p.

Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental - PDDUA. Lei Complementar 434/99’. Porto Alegre: Prefeitura Municipal, Secretaria do Planejamento Municipal, 2010.

Programa Monumenta. Porto Alegre/Organização Briane Bicca – Brasília, DF: Iphan/Programa Monumenta, 2010. 240 p.

RODRIGUES, M. A Contribuição do Patrimônio Cultural na Qualidade Visual da Paisagem Urbana. 2010. Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional - Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

SOUZA, C. F.; MÜLLER, D. M. Porto Alegre e sua evolução urbana. 2.ed., Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2007.

Dados históricos extraídos do banco de dados do Projeto Monumenta/Porto Alegre coordenado por Zita Possamai com a colaboração de Alice Trusz e Naida Menezes.al.