Resumo Da ''Teoria Pura Do Direito'' de Hans Kelsen

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II – Teoria Pura do Direito. Neste capítulo será apresentada a Teoria Pura do Direito e, em seguida será mostrado como essa teoria não é apenas relativa ao direito, e sim às ordens normativas em geral, ao menos em grande parte. A Teoria Pura do Direito divide-se em duas partes: a Estática Jurídica e a Dinâmica Jurídica. Há ainda, é claro, outras idéias que são pressupostos ou conseqüências destas dimensões do Direito, mas que, ou já foram tratadas quando se apresentou a visão de Kelsen no capítulo anterior, ou não foram consideradas de interesse imediato. Esta divisão que Kelsen faz entre Estática e Dinâmica Jurídica remete à análise do Direito envolvendo ou não seu processo de criação e/ou validação. A Dinâmica Jurídica seria a análise do Direito enquanto algo em transformação, ou melhor, seria a análise da validação de uma norma. Enfim, a Dinâmica Jurídica busca responder à questão de porque se deve obedecer a uma determinada norma e porque se deve passar a obedecer a uma outra norma em determinadas circunstâncias, como a revogação da norma em questão. A Estática Jurídica é a análise do Direito enquanto um sistema de normas postas, cristalizadas, por assim dizer, deixando de lado a questão da validade destas normas, ou melhor, tendo por aceite a validade delas. A teoria da construção escalonada da ordem jurídica apreende o Direito no seu movimento, no processo, constantemente a renovar-se, da sua auto- criação. É uma teoria dinâmica do Direito, em contraposição a uma teoria estática do Direito que procura conceber este apenas como ordem já criada, a sua validade, o seu domínio de validade, etc., sem ter em conta sua criação. (Kelsen, 2000: 309) Diferentemente de Kelsen, apresentarei a princípio a Dinâmica Jurídica, por entender que é de mais fácil apreensão e porque é a ela que se dirigem a totalidade das críticas apresentadas até então. Quanto à Dinâmica Jurídica, serão tratadas as questões do fundamento de validade e da estrutura escalonada da ordem jurídica. Já quanto à Estática Jurídica as questões da norma, do direito subjetivo, da pessoa, da organicidade e da relação jurídica. Dinâmica Jurídica. 1- A norma fundamental. Kelsen entende o Direito como uma ordem normativa, ou um sistema coercitivo de normas reguladoras da conduta humana. Uma ordem normativa, por sua vez, é entendida como um conjunto de normas que derivam sua validade de uma mesma norma fundamental. Colocada a questão de por que razão uma norma é válida, chega-se a uma Dinâmica Jurídica. A validade de uma norma é sua existência. Tal existência é a vinculação da conduta humana à norma, ou melhor é o caráter de objetividade do dever ser que constitui a norma. Dizer que uma dada norma é válida significa dizer que se deve obedece-la. Leve-se em conta aqui que ao afirmar que uma

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II Teoria Pura do Direito.

Neste captulo ser apresentada a Teoria Pura do Direito e, em seguida ser mostrado como essa teoria no apenas relativa ao direito, e sim s ordens normativas em geral, ao menos em grande parte.

A Teoria Pura do Direito divide-se em duas partes: a Esttica Jurdica e a Dinmica Jurdica. H ainda, claro, outras idias que so pressupostos ou conseqncias destas dimenses do Direito, mas que, ou j foram tratadas quando se apresentou a viso de Kelsen no captulo anterior, ou no foram consideradas de interesse imediato.

Esta diviso que Kelsen faz entre Esttica e Dinmica Jurdica remete anlise do Direito envolvendo ou no seu processo de criao e/ou validao. A Dinmica Jurdica seria a anlise do Direito enquanto algo em transformao, ou melhor, seria a anlise da validao de uma norma. Enfim, a Dinmica Jurdica busca responder questo de porque se deve obedecer a uma determinada norma e porque se deve passar a obedecer a uma outra norma em determinadas circunstncias, como a revogao da norma em questo. A Esttica Jurdica a anlise do Direito enquanto um sistema de normas postas, cristalizadas, por assim dizer, deixando de lado a questo da validade destas normas, ou melhor, tendo por aceite a validade delas.

A teoria da construo escalonada da ordem jurdica apreende o Direito no seu movimento, no processo, constantemente a renovar-se, da sua auto-criao. uma teoria dinmica do Direito, em contraposio a uma teoria esttica do Direito que procura conceber este apenas como ordem j criada, a sua validade, o seu domnio de validade, etc., sem ter em conta sua criao. (Kelsen, 2000: 309)

Diferentemente de Kelsen, apresentarei a princpio a Dinmica Jurdica, por entender que de mais fcil apreenso e porque a ela que se dirigem a totalidade das crticas apresentadas at ento.

Quanto Dinmica Jurdica, sero tratadas as questes do fundamento de validade e da estrutura escalonada da ordem jurdica. J quanto Esttica Jurdica as questes da norma, do direito subjetivo, da pessoa, da organicidade e da relao jurdica.

Dinmica Jurdica.

1- A norma fundamental.

Kelsen entende o Direito como uma ordem normativa, ou um sistema coercitivo de normas reguladoras da conduta humana. Uma ordem normativa, por sua vez, entendida como um conjunto de normas que derivam sua validade de uma mesma norma fundamental.

Colocada a questo de por que razo uma norma vlida, chega-se a uma Dinmica Jurdica.

A validade de uma norma sua existncia. Tal existncia a vinculao da conduta humana norma, ou melhor o carter de objetividade do dever ser que constitui a norma. Dizer que uma dada norma vlida significa dizer que se deve obedece-la. Leve-se em conta aqui que ao afirmar que uma norma vlida deve ser obedecida no se prescreve tal obedincia, mas, antes, assume-se o carter de objetividade de uma ordem normativa, da qual a norma referida faz parte. Ou seja, dizer que uma norma vlida significa que, segundo a ordem normativa levada em considerao, deve-se obedece-la.

Assim, "dizer que uma norma que se refere conduta de um indivduo vale ( vigente), significa que ela vinculativa, que o indivduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma" (Kelsen, 2000: 215).

Kelsen assume o pressuposto de que uma norma s pode ser validade, ou seja, ser considerada objetiva, em relao a outra norma. Em verdade o autor admite que doserno decorre odever ser. "Do fato de algoserno pode seguir-se que algodeve ser, assim como do fato de algodever serse no pode seguir que algo" (Kelsen, 2000: 215).

Portanto, se uma norma (um dever ser) tida como vlida, o porque decorre sua validade de uma outra norma, por exemplo: O indivduo "A" deve fazer "" segundo a norma "a". Por que o indivduo deve comportar-se conforme "a"? Porque a norma "b" prescreve que ele deva se portar como prescreva "a".

Mesmo quando fundamentamos determinada norma na autoridade de algum ou algo, como Deus, por exemplo, pressupomos uma norma segundo a qual devamos obedecer a Deus, e no simplesmente o fato de Deus ter ordenado determinada conduta.

Dois pontos importantes no pensamento kelseniano acerca da norma fundamental: 1) uma norma s pode fundamentar-se em uma outra norma. 2) Uma srie de imputao h de ter um incio e um fim.

O primeiro ponto j foi tratado. Quanto ao segundo, Kelsen no admite uma srie imputativa infinita, como uma srie causal. No entanto, toda norma s vlida, considerada objetiva, se fundamentada em outra norma, ou melhor, se h uma norma considerada objetiva que prescreva sua observncia. Da que, se quisermos aceitar qualquer norma como objetiva, temos de pressupor uma norma cuja objetividade no se pe em questo.

Assim, o fundamento de validade de uma ordem normativa uma norma, mas uma norma pressuposta.

Afirma o autor:

Na verdade, parece que se poderia fundamentar a validade de uma norma como fato de ela ser posta por qualquer autoridade, por um ser humano ou supra-humano: assim acontece quando se fundamenta a validade dos Dez Mandamentos com o fato de Deus, Jeov, os ter dado no Monte Sinai, ou quando se diz que devemos amar os nossos inimigos porque Jesus, o Filho de Deus, o ordenou no Sermo da Montanha. Em ambos os casos, porm, o fundamento de validade, no expresso mas pressuposto, no o fato de Deus ou o Filho de Deus ter posto uma determinada norma num certo tempo e lugar, mas uma norma: a norma segundo a qual devemos obedecer s ordens ou mandamentos de Deus, ou aquela outra segundo a qual devemos obedecer aos mandamentos de Seu Filho.

- Em todo caso, no silogismo cuja premissa maior a proposio de dever-ser que enuncia a norma inferior: devemos obedecer aos Dez Mandamentos (ou ao mandamento que nos ordena que amemos os inimigos), a proposio que verifica (afirma) um fato da ordem do ser: Deus estabeleceu os Dez Mandamentos (ou o Filho de Deus ordenou que amssemos os inimigos), constitui, como premissa menor, um elo essencial. Premissa maior e premissa menor, ambas so pressupostos da concluso. Porm apenas a premissa maior que uma proposio de dever ser, uma conditio per quam relativamente concluso, que tambm uma proposio de dever-ser. Quer dizer, a norma afirmada na premissa maior o fundamento de validade da norma afirmada na concluso. A proposio de ser que funciona como premissa menor apenas conditio sine qua non relativamente concluso. Quer dizer: o fato da ordem do ser verificado (afirmado) na premissa menor no o fundamento de validade da norma afirmada na concluso. (Kelsen, 2000: 215 e 216).

Uma norma considerada superior ou inferior a outra conforme seja a que empresta ou a que receba da outra, respectivamente, a validade.

Do que ficou dito resulta que a norma fundamental entendida como aconditio per quam, ou condio pela qual se considera vlida uma ordem normativa, ou melhor, o elemento que confere validade ordem. A norma fundamental pressuposta, e no posta por ato humano e, claro, norma. Enquanto norma de dever-ser, se presta a validar outras normas de dever ser. Esta norma, portanto, o fundamento de validade de uma ordem jurdica. A constatao ftica de uma autoridade haver posto uma norma em conformidade com uma norma condiosine qua nonde sua validade, e se constitui, juntamente com a norma fundamental, em condio de validade da ordem jurdica.

Esta distino entre condio de validade e fundamento de validade importante para a compreenso da relao que Kelsen entende haver entre eficcia e validade(27).

Tanto a conformidade norma fundamental como a eficcia so condies de validade de uma ordem normativa. No entanto a validade no decorre da eficcia. No o fato de uma determinada ordem jurdica ser eficaz que a torna vlida. "Tal eficcia condio no sentido de que uma ordem jurdica como um todo e uma norma jurdica singular j no so considerados como vlidas quando cesso de ser eficazes" (Kelsen, 2000: 236).

A questo que o fundamento de validade de uma ordem jurdica estabelece que se deva conduzir da forma como estabelece a Constituio, com um fator condicionante: tal Constituio deve ser eficaz(28). Desta forma, assim como na questo entre o ato de uma autoridade que pe uma norma e o seu fundamento de validade, cabe colocar a questo das diferentes condies de validade.

A eficcia condiosine qua nonda validade, mas no seu fundamento. Tal como antes, pode-se conceber o silogismo normativo como contendo, na premissa maior, o fundamento de validade, e na menor, a eficcia.

No silogismo normativo que fundamenta a validade de uma ordem jurdica, a proposio de dever-ser que enuncia a norma fundamental: devemos conduzir-nos de acordo com a Constituio efetivamente posta e eficaz, constitui a premissa maior; a proposio de ser que afirma o fato: a Constituio foi efetivamente posta e eficaz, quer dizer, as normas postas de conformidade com ela so globalmente aplicadas e observadas, constitui a premissa menor; e a proposio de dever-ser: devemos conduzir-nos de conformidade com a ordem jurdica positiva valem (so vlidas) porque a norma fundamental que forma a regra basilar da sua produo pressuposta como vlida, e no porque so eficazes; mas elas somente valem se esta ordem jurdica eficaz. Logo que a Constituio e, portanto, a ordem jurdica que sobre ela se apoia, como um todo, perde a sua eficcia, a ordem jurdica, e com ela cada uma de suas normas perdem a validade (vigncia). (Kelsen, 2000: 237).

O condicionante que Kelsen pe na norma fundamental, que exige a eficcia do ordenamento jurdico , em verdade, a condio de que o mesmo seja o direito atualmente posto, em vigor, eficaz. De fato, se supormos um ordenamento normativo no eficaz ainda o podemos analisar como um sistema coerente de normas. Estas no sero, porm, vlidas no sentido de vinculantes ou existentes. Pode-se estudar uma ordem normativa no eficaz como um conjunto sistmico de normas, mas tais normas seriam mera fico. Se tomarmos, por exemplo, o ordenamento da antiga repblica romana poderemos fundamentar sua validade do mesmo modo, ou seja, recorrendo norma fundamental que prescreva a observncia da Constituio (em termos kelsenianos) daquela repblica. Neste caso a eficcia continua, mesmo a, como condio de validade, apenas o limite temporal de validade foi alterado. Mas o raciocnio que levou norma fundamental pode ser aplicado mesmo a um ordenamento normativo fictcio que regule, por exemplo, a vida de determinados personagens em uma histria de fico, apenas no se pode afirmar que tal ordenamento seria vlido, uma vez que dizer que uma norma vlida dizer que vinculante, e uma norma ineficaz no pode s-lo.

A razo, a meu ver, que leva Kelsen a colocar a eficcia da Ordem como uma condio de validade a seguinte: o autor est preocupado em explicar o Direito Positivo, ou seja o Direito atualmente vigente, e no simplesmente um ordenamento normativo qualquer. Sua condio de validade , tambm, uma condio de interesse, no sentido de que para analisar qualquer ordenamento normativo necessria a assuno de uma norma pressuposta que confira objetividade ao contedo subjetivo de sentido de sua Constituio, mas para que Kelsen tenha interesse nesta anlise, uma vez que lhe interessa o Direito, uma ordem vlida, cumpre que tal ordenamento seja eficaz.

A validade, como j se pde notar, tem limitaes. Estas podem ser temporais, espaciais ou pessoais, conforme refiram-se ao tempo, espao ou pessoas que so submetidas ao ordenamento. Assim que se pode conceber como vlido o Direito da antiga repblica romana ou mesmo o Direito cannico nos dias de hoje. O primeiro tem um limite temporal de validade que no abrange os dias atuais, e o segundo tem um limite pessoal de validade que no abrange toda a populao de qualquer territrio, seno, talvez, do Vaticano.(29)

Kelsen denomina por "princpio da legitimidade" aquele segundo o qual "uma ordem jurdica validada at a sua validade terminar por um modo determinado atravs desta mesma ordem jurdica, ou at ser substituda por uma outra norma desta ordem jurdica" (Kelsen, 2000: 233). Denomina, por outro lado, "princpio da eficcia" aquele segundo o qual "a norma fundamental refere-se apenas a uma Constituio que efetivamente estabelecida por um ato legislativo ou pelo costume e que eficaz" (Kelsen, 2000: 234). Para Kelsen "o princpio da legitimidade limitado pelo princpio da efetividade".

enquanto condio de validade que a eficcia no pode ser excluda da concepo de um ordenamento normativo. Por isto, odesuetudo sempre, ainda que o ordenamento afirma o contrrio, fator que revoga a norma, e at mesmo a Constituio, como j foi exposto.

Do que precede podemos entender que um ordenamento normativo pode ser alterado, revogado ou substitudo tanto de acordo com as normas por ele mesmo estabelecidas como pela perda de sua eficcia. Esta segunda forma , por Kelsen, denominada "revoluo" se, de uma forma no prevista na constituio, estabelecem-se normas gerais com eficcia duradoura, ou seja, as normas passam a ser postas de modo alheio ao estabelecido na constituio e, portanto, a norma fundamental segundo a qual devemos nos conduzir conforme a constituio deixa de ter eficcia.

Antes, porm, de tratar deste tema, cumpre definir o conceito de Constituio e apresenta as noes de "princpio dinmico" e "princpio dinmico" alm de mostrar como a norma fundamental pode ser uma norma "pensada".

O "princpio esttico" e o "princpio dinmico" no correspondem Esttica e Dinmica Jurdica, uma vez que ambos inscrevem-se nesta ltima. So princpio utilizados para derivar uma norma de outra Estes princpios permitem classificar o ordenamento jurdico de acordo com "a natureza do fundamento de validade".

Sucintamente podemos definir estes princpios da seguinte forma: segundo o princpio esttico as normas do ordenamento so consideradas vlidas pela conformidade do seu contedo com o contedo da norma fundamental. J conforme o princpio dinmico as normas do ordenamento so consideradas vlidas por terem sido postas de acordo com a maneira determinada pela norma fundamental. Neste princpio, a norma fundamental apenas confere autoridade, ou seja pe como devida a obedincia a outra norma, naquele, a norma fundamental alm de conferir autoridade, estabelece certo contedo para as demais normas.

Os ordenamentos cujo fundamento de validade das normas segue um princpio esttico tm, contido na norma fundamental, o contedo de todas as normas do ordenamento e estas so deduzidas por uma operao lgica.(30)O autor oferece um exemplo:

Assim, por exemplo, as normas: no devemos mentir, no devemos fraudar, devemos respeitar os compromissos tomados, no devemos prestar falsos testemunhos, podem ser deduzidas de uma norma que prescreva a veracidade. (Kelsen, 2000: 218).

No entanto, Kelsen no parece crer que um ordenamento normativo possa se apoiar em uma norma fundamental segundo o princpio esttico. Diz o autor:

S que a norma de cujo contedo outras normas so deduzidas, como o particular do geral, tanto quanto ao seu fundamento de validade como quanto ao seu teor de validade, apenas pode ser considerada como norma fundamental quando o seu contedo seja havido como imediatamente evidente (...) Dizer que uma norma imediatamente evidente significa que ela dada na razo, com a razo, (...) pressupe o conceito de razo prtica, que dizer, de uma razo legisladora; e este conceito insustentvel, pois a funo da razo conhecer e no querer, e o estabelecimento de normas um ato de vontade. (Kelsen, 2000: 218)

Kelsen pretende que a norma fundamental pressuposta, dessa forma, prescreveria a obedincia a uma vontade que prescreveria a norma que permite a deduo segundo o princpio esttico. No entanto, no h razo para dizer que para considerar uma norma fundamental com contedo diverso da delegao de autoridade como sendo o fundamento de validade de uma ordem normativa devamos tomar tal contedo como imediatamente evidente. De fato, um ecologista pode tomar como regra fundamental de conduta a norma segundo a qual no se deve destruir a natureza. A norma fundamental seria a de que deve-se obedecer referida norma. E dela decorreriam, por exemplo, as normas: deve-se evitar acender fogueiras ao acampar, deve-se evitar o uso de automveis, etc. Por certo que a maioria dos preceitos que valem-se do princpio esttico fundamentam sua validade em vontades supra-humanas, mas disto no decorre que no se possa pressupor a validade de uma norma sem teor de delegao de autoridade.

Os ordenamentos normativos cujo fundamento de validade das normas segue um princpio dinmico tm, como norma fundamental, uma norma que meramente delega a autoridade.

O tipo dinmico caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta no ter por contedo seno a instituio de um fato produtor de normas, a atribuio de poder a uma autoridade legisladora ou o que significa o mesmo uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental. (Kelsen, 2000: 219)

Assim, ao delegar autoridade a uma entidade legisladora, a norma fundamental delega autoridade a um conjunto de regras que estabelecem regras, como se ver adiante. As normas postas por tal autoridade ou em conformidade com tais regras no tm, com relao ao seu contedo, qualquer vnculo com a norma fundamental. Eis um exemplo:

Um pai ordena ao filho que v escola. pergunta do filho: por que devo eu ir escola, a resposta pode ser: porque o pai assim o ordenou e o filho deve obedecer s ordens do pai. Se o filho continua a perguntar: por que devo eu obedecer s ordens do pai, a resposta pode ser: porque Deus ordenou a obedincia aos pais e ns devemos obedecer s ordens de Deus. Se o filho pergunta por que devemos obedecer s ordens de Deus, quer dizer, se ele pe em questo a validade desta norma, a resposta que no podemos sequer pr em questo tal norma, quer dizer, que no podemos procurar o fundamento de sua validade, que apenas a podemos pressupor. O contedo da norma que constitui o ponto de partida: o filho deve obedecer s ordens do pai, no pode ser deduzido desta norma fundamental. Com efeito, a norma fundamental limita-se a delegar numa autoridade legisladora, quer dizer, a fixar uma regra em conformidade com a qual devem ser criadas as normas deste sistema. (Kelsen, 2000: 219)

Apesar de no estar, de forma alguma, vinculada norma fundamental quanto ao contedo, as normas que so postas de conformidade com ela segundo um princpio dinmico compe uma unidade. "Uma norma pertence a um ordenamento que se apoia numa norma fundamental porque criada pela forma determinada atravs dessa norma fundamental" (Kelsen, 2000: 220).

Ambos os princpios, esttico e dinmico, podem ser encontrados em um e mesmo ordenamento. O exemplo dado por Kelsen o de que os Dez Mandamentos, ao mesmo tempo em que proscrevem a confeco de imagens (ou dolos), estabelecem os pais como autoridade legisladora.

O princpio esttico e o princpio dinmico esto reunidos numa e na mesma norma quando a norma fundamental pressuposta se limita, segundo o princpio dinmico, a conferir poder a uma autoridade legisladora e esta mesma autoridade ou outra por ela instituda no s estabelecem normas pelas quais delegam noutras autoridades legisladoras mas tambm normas pelas quais se prescreve uma determinada conduta dos sujeitos subordinados s normas e das quais como o particular do geral podem ser deduzidas novas normas atravs de uma operao lgica. (Kelsen, 2000: 220)

Para Hans Kelsen, o ordenamento jurdico tem "essencialmente um carter dinmico" (Kelsen, 2000: 221). Portanto o contedo de uma norma no qualquer empecilho para que figure em um tal ordenamento. "Por isso, todo e qualquer contedo pode ser Direito" (Kelsen, 2000: 221), desde que a norma que o prescreve tenha sido "produzida atravs de um ato especial de criao" (Kelsen, 2000: 221).

O termo Constituio tem dois sentidos em Kelsen. O primeiro o de uma regra que estabelece como sero produzidas as normas de um ordenamento. O segundo o de uma norma pressuposta que confere validade a outras, ou seja, a norma fundamental. Diferenciam-se estes conceitos chamando aquela de Constituio jurdico-positiva e esta de Constituio lgico-jurdica. "Neste sentido, a norma fundamental a instaurao do fato fundamental da criao jurdica e pode, nestes termos, ser designada como constituio no sentido lgico-jurdico, para a distinguir da Constituio em sentido jurdico-positivo." (Kelsen, 2000: 222).

Ao tomar a constituio como a norma que determina o processo de formao de normas de um ordenamento, temos que a norma fundamental, segundo o princpio dinmico, prescreve a obedincia constituio.

Se por Constituio de uma comunidade se entende a norma ou as normas que determinam como, isto , por que rgos e atravs de que processos ou atravs de uma criao consciente do Direito, especialmente o processo legislativo, ou atravs do costume devem ser produzidas as normas gerais da ordem jurdica que constitui a comunidade, a norma fundamental aquela norma que pressuposta quando o costume, atravs do qual a Constituio surgiu, ou quando o ato Constituinte (produtos da Constituio) posto conscientemente por determinados indivduos so objetivamente interpretados como fatos produtores de normas. (Kelsen, 2000: 221)

O termo Constituio apresenta ainda um nuana importante, que h de ser levado em conta quando, a seguir, passarmos a tratar da estrutura escalonada da ordem jurdica. O conceito de Constituio em sentido jurdico-positivo foi o de uma ou vrias normas que regulam o processo de criao de normas (instituindo rgos, procedimentos, etc.). Ou seja, quando tratarmos de Constituio, salvo afirmao expressa em contrrio, no estamos tratando do documento a que se d esse nome. Kelsen distingue, ento, a Constituio em sentido material da Constituio em sentido formal. Aquela so as normas, figurantes ou no do documento a que se atribui o termo, que regulam o processo de produo normativa (e tambm, como se ver, de "aplicao" do Direito) e esta so as normas contidas no documento Constitucional, sejam ou no materialmente constitucionais. (cf. Kelsen, 2000:247).

Por fim, registre-se que a norma fundamental no uma prescrio propriamente dita, mas antes um construto da cincia jurdica. uma norma pensada, e no posta. uma condio de validade da ordem sobre a qual se debrua a cincia.

Afirma o autor:

Como uma cincia jurdica positivista considera o autor da Constituio que foi historicamente a primeira como a autoridade jurdica mais alta e, por isso, no pode afirmar que a norma: devemos obedecer s ordens do autor da Constituio o sentido subjetivo do ato de vontade de uma instncia supra-ordenada ao autor da Constituio v.g. Deus ou a natureza , ela no pode fundamentar a validade desta norma num processo silogstico. (Kelsen, 2000: 227).

O processo silogstico , em suma, o seguinte:

A fundamentao da validade de uma norma positiva (isto , estabelecida atravs de um ato de vontade) que prescreve uma determinada conduta realiza-se por um processo silogstico. Neste silogismo a premissa maior uma norma considerada objetivamente vlida (melhor, a afirmao de uma tal norma), por fora da qual devemos obedecer aos comandos de determinada pessoa, quer dizer, nos devemos conduzir de harmonia com o sentido subjetivo destes atos de comando; a premissa menor a afirmao do fato de que essa pessoa ordenou que nos devemos conduzir de determinada maneira. A norma cuja validade afirmada na premissa maior legitima, assim, o sentido subjetivo do ato de comando, cuja existncia afirmada na premissa menor, como seu sentido objetivo. Por exemplo: devemos obedecer s ordens de Deus. Deus ordenou que obedeamos s ordens dos nossos pais. Logo, devemos obedecer s ordens de nossos pais. (...) A norma afirmada como objetivamente vlida na premissa maior, que opera a fundamentao, uma norma fundamental se a sua validade objetiva j no pode ser posta em questo. Ela j no mais posta em questo se a sua validade no pode ser fundamentada em um processo silogstico. (Kelsen, 2000: 226).

A norma fundamental , assim, um artifcio lgico, utilizado por ser uma conseqncia da necessidade que um comando subjetivo tem de fundamentar-se em uma norma considerada objetiva para ser considerado vlido, aliado recusa em fundamentar este comando em uma instncia supra-ordenada.

Portanto, a norma fundamental uma norma pressuposta que estabelece como devida (devendo ser), ou melhor, que delega autoridade numa constituio.(31)

2- A estrutura escalonada da Ordem Jurdica

A Teoria Pura do Direito no se resume teoria da norma fundamental. necessrio que se destaque que um ordenamento normativo no , pura e simplesmente um conjunto de normas justapostas umas s outras, mas sim um sistema de normas unidas por um mesmo fundamento de validade. As normas esto vinculadas norma fundamental de uma maneira sistemtica, de forma que tambm entre si guardam uma relao. Este vnculo est precisamente em que uma norma confere validade a outra e decorre sua validade ainda de uma outra norma, at que, no extremo (os juristas gostam de representar tal situao como uma pirmide onde no topo est a norma fundamental, mas as normas mais abaixo a ela so ligadas mediatamente) encontremos a norma fundamental.

As normas de uma ordem jurdica cujo fundamento de validade comum esta norma fundamental no so como o mostra a reconduo norma fundamental anteriormente descrita um complexo de normas vlidas colocadas umas ao lado das outras, mas uma construo escalonada de normas supra e infra ordenadas umas s outras. (Kelsen, 2000: 224)

Desta forma, uma norma pode estar em relao de superioridade, inferioridade ou de igualdade hierrquica com relao s demais.

Outra caracterstica do ordenamento normativo a de que os princpios lgicos podem ser aplicados para analisa-lo. O princpio da imputao liga um fato a outro como sano, ou melhor liga um fato a outro da forma se A, ento B deve ser. Se, como Kelsen, pressupomos como vlida uma norma fundamental, a entendamos como objetiva, podemos aplicar os princpios lgicos proposies acerca desse ordenamento. Assim, se uma norma em correspondncia com o fundamento de validade diz que se A, ento deve ser B, e uma outra norma, afirma, em desconformidade com o mesmo fundamento de validade que se A, ento deve ser no-B, pode-se, logicamente, dizer que segundo o ordenamento em questo a segunda norma invlida. impossvel que algo deva e no deva ser ao mesmo tempo e sob as mesmas condies dentro de um mesmo ordenamento normativo.

Consideremos, em primeiro lugar, que para Kelsen um juzo de valor no , de qualquer forma, subjetivo, uma vez que qualquer juzo objetivo. O valor pode ser subjetivo, mas o juzo da realidade que assuma este valor como sendo objetivo, feito de forma objetiva.

Se designarmos como juzo de valor o juzo atravs do qual determinamos a relao de um objeto domo desejo ou vontade de um ou vrios indivduos dirigida a esse mesmo objeto e, desse modo, considerarmos bom o objeto quando corresponde quele desejo ou vontade, e mau, quando contradiz aquele desejo ou vontade, este juzo de valor no se distingue de um juzo de realidade, pois que apenas estabelece a relao entre dois fatos da ordem do ser. (...) Quando designamos os juzos de valor que exprimem um valor objetivo como objetivos, e os juzos de valor que exprimem um valor subjetivo como subjetivos, devemos notar que os predicados "objetivo" e "subjetivo" se referem aos valores expressos e no ao juzo como funo do conhecimento. Como funo do conhecimento tem um juzo de ser sempre objetivo, isto , tem de formular-se independentemente do desejo e da vontade do sujeito judicante. Isto bem possvel. Podemos, com efeito, determinar a relao de uma determinada conduta humana com um ordenamento normativo, ou seja, afirmar que esta conduta est de acordo ou no est de acordo com o ordenamento, sem ao mesmo tempo tomarmos emocionalmente posio em face dessa ordem normativa (...) A resposta questo de saber se, de acordo com a Moral crist, bom amar o inimigo, e o juzo de valor que da resulta, pode e dar-se sem ter em conta se aquele que tem de responder e formular o juzo de valor aprova ou desaprova o amor dos inimigos (...)Ento, e somente ento, objetivo este juzo de valor. (Kelsen, 2000: 22 e 23).

Assim, o juzo segundo o qual uma determinada norma no corresponde quanto ao contedo com uma outra norma, um juzo objetivo, no sentido de que no implica na aprovao ou reprovao do sujeito judicante, temos, to somente, um esclarecimento lgico.

sabido que no pode haver contradio lgica entre norma e fato. Uma norma que mande no matar no se contradiz com um assassinato, mas com uma outra norma que prescreva o assassinato.

Na medida em que aceitamos que em um ordenamento jurdico de tipo dinmico as normas so consideradas vlidas por haver sido postas de acordo com determinado processo, temos de acatar a possibilidade de normas que entrem em "conflito". Tal conflito , basicamente, uma contradio lgica. Por exemplo, possvel que em um determinado ordenamento jurdico, o rgo competente elabore uma norma que proscreva o adultrio, vinculando a tal ato a pena de priso. possvel ainda que o mesmo, ou outro rgo, estabelea, ao mesmo ou em outro tempo, que o adultrio no deve ser punido.

Os ordenamentos normativos, em geral, e o Direito em particular, so produtos da ao humana e nada impede que esta tenha um sentido contraditrio. A cincia do Direito, porm procura descrever o direito em proposies jurdicas isentas de contradio. Distinguem-se as normas jurdicas das proposies jurdicas no sentido de que aquelas so postas por autoridades legislativas e tm carter prescritivo e estas so apresentadas pela cincia jurdica e tm carter descritivo.

possvel que o legislador prescreva normas contraditrias. Uma norma no verdadeira ou falsa, mas vlida ou invlida. Se o legislador pe duas normas contraditrias em conformidade com a Constituio, ambas seriam vlidas. No entanto, uma proposio acerca destas normas pode ser verdadeira ou falsa e, portanto, pode valer-se dos princpios lgicos, em especial o da no contradio. Deixo que as palavras do prprio autor esclaream:

Com efeito, os princpios lgicos, e particularmente o princpio da no-contradio, so aplicveis a afirmaes que podem ser verdadeiras ou falsas; e uma contradio lgica entre duas afirmaes consiste em que apenas uma ou outra pode ser verdadeira; em que se uma verdadeira, a outra tem de ser falsa. Uma norma, porm, no verdadeira nem falsa, mas vlida ou invlida. Contudo, a assero (enunciado) que descreve uma ordem normativa afirmando que, de acordo com esta ordem, uma determinada norma vlida, e, especialmente, a proposio jurdica, que descreve a ordem jurdica afirmando que, de harmonia com esta mesma ordem jurdica, sob determinados pressupostos deve ser ou no deve ser posto um determinado ato coercivo, podem, - como se mostrou ser verdadeiras ou falsas. Por isso, os princpios lgicos em geral e o princpio da no contradio em especial podem ser aplicados s proposies jurdicas que descrevem normas de Direito e, assim, indiretamente, tambm podem ser aplicados s normas jurdicas. No , portanto, inteiramente descabido dizer-se que duas normas jurdicas se "contradizem" uma outra. E, por isso mesmo, somente uma delas pode ser tida como objetivamente vlida. Dizer que A deve ser e que no deve ser ao mesmo tempo to sem sentido como dizer que A e que A no ao mesmo tempo. Um conflito de normas representa, tal como uma contradio lgica, algo de sem sentido (...) Como, porm, o conhecimento do Direito como todo conhecimento procura apreender o seu objeto como um todo de sentido e descreve-lo em proposies isentas de contradio, ele parte do pressuposto de que os conflitos de normas no material normativo que lhe dado podem e devem necessariamente ser resolvidos pela via da interpretao. (Kelsen, 2000: 229)

Importante notar que a interpretao de que aqui se fala no a interpretao de um juiz, mas de um estudioso do direito. O juiz, ao interpretar uma norma, cria norma nova. O estudioso descreve-a como parte de um ordenamento. Esta interpretao mera aplicao dos princpios lgicos, enquanto aquela a busca de um ideal de justia.

Tratemos da interpretao do cientista. O Direito um sistema de normas supra e infra-ordenadas no sentido de que uma norma deriva sua validade da outra. Assim, a deciso judicial vlida porque posta conforme as normas que regem o procedimento judicirio e porque conforme uma determinada norma geral. Ou seja, se uma norma supra-ordenada a uma outra, o porque esta deriva daquela sua validade. Em caso, portanto, de conflito de normas de escales diferentes, prevalece a de escalo superior, uma vez que condio de validade da outra e que, se considerada invlida por chocar-se com a norma inferior, tambm deveria ser (por deficincia de condio de validade) a prpria norma inferior, donde j no haveria razo para tomar como invlida a norma superior.

Assim, digamos que a constituio estabelea que o rgo legislativo por ela institudo deva, de acordo com determinados procedimentos, prescrever normas que vinculem penas ao ato de contrabando, vedada apenas a pena de morte. Suponhamos ento que o rgo legislativo, sem respeitar aqueles procedimentos estabelea como pena para o contrabando, nica e exclusivamente, a morte. Ora, segundoeste ordenamentotal norma invlida porque entre suas condies de validade figura a conformidade constituio. Assumir a validade da norma inferior equivaleria a declarar invlida a constituio. Se a norma inferior vlida porque foi posta de acordo com uma constituio tida como vlida, e esta constituio no tida como vlida, ento tampouco o a norma inferir. De fato, a no ser que se aceite uma nova constituio (aquela segundo a qual o rgo legislativo est autorizado a estabelecer sob qualquer procedimento, qualquer pena ao ato de contrabando) e se pressuponha uma nova norma fundamental que prescreva a observncia a esta nova constituio, simplesmente impossvel admitir logicamente a prevalncia da norma inferior sobre a superior.

Pode haver, porm, conflitos entre normas de mesmo escalo, ou seja, entre normas que no estejam supra e infra ordenadas umas s outras. Em casos assim o raciocnio precedente no se aplica. No entanto, se h um rgo legislador que recebeu autoridade, segundo o princpio dinmico, para estabelecer normas gerais, ou um rgo que haja recebido autoridade para, conforme o princpio esttico, deduzir de uma norma, como do geral para o particular, outras normas, deve-se admitir que uma norma posteriormente posta ou deduzida por tal rgo revogue uma norma anteriormente posta em sentido contrrio pelo mesmo rgo. o princpio que os juristas chamam "lex posterior derrogat priori".

Se se trata de normas gerais que foram estabelecidas por um e mesmo rgo mas em diferentes ocasies, a validade da norma estabelecia em ltimo lugar sobreleva da norma fixada em primeiro lugar e que a contradiz, segundo o princpio lex posterior derrogat priori. Como o rgo legislativo v.g. o monarca ou o parlamento normalmente competente para produo de normas modificveis e, portanto, derrogveis, o princpio lex posterior derrogat priori pode ser considerado como includo, co-envolvido, na atribuio da competncia. Este princpio tambm encontra aplicao quando as normas que esto em conflito so estabelecidas por dois rgos diferentes, quando, por exemplo, a Constituio atribua ao monarca e ao parlamento poder (competncia) para regular o mesmo objeto atravs de normas gerais, ou a legislao e o costume so institudos como fatos produtores de normas. (Kelsen, 2000: 230).

H, aqui, duas situaes possveis: quando a Constituio confira competncia para produo de normas revogveis e quando o faa para a de normas irrevogveis. No primeiro caso, considerando duas normas postas conforme constituio em momentos diferentes, desaparece o conflito de normas de mesmo escalo. A norma constitucional revogou a norma geral inferior. A questo se resolve como no caso do conflito de normas de diferente escales. Lembre-se aqui que por "norma constitucional" entendem-se as normas que regulam a produo e aplicao de normas, sejam escritas ou no.

Por outro lado, pode ser o caso de que a Constituio estabelea autoridade para a produo de normas irrevogveis. Exemplo disto seria a autoridade que detm o Papa da Igreja Catlica para a produo de dogmas, ou melhor, de normas que prescrevem crenas. Como Deus perfeito e imutvel, e o Papa recebe de Deus inspirao para estabelecer dogmas perfeitos e imutveis, seria invlido qualquer dogma contrrio a um j posto. Digamos, por exemplo, que um Papa pronuncieex-cathedraum dogma segundo o qual no se deve crer que Maria foi assunta ao cu. Ora, anteriormente foi posto um dogma em sentido contrrio, e a constituio deste ordenamento no confere competncia para revogar dogmas postos, portanto, o novo dogma no est de acordo com a constituio, por isso invlido.

Pode ainda ocorrer que o legislador, a um s tempo, ponha duas normas em conflito, ou que o conflito se d no interior de uma e mesma norma.

As normas que esto em conflito umas com as outras podem ser postas ser postas ao mesmo tempo, isto , com um ato do mesmo rgo, por tal forma que o princpio da lex posterior no possa ser aplicado. Assim sucede quando nume e mesma lei se encontram duas disposies que contrariem uma outra (...) Ento haveria as seguintes possibilidade de resolver o conflito: ou se entendem as duas disposies no sentido de que deixada ao rgo competente a aplicao da lei, um tribunal, por exemplo, a escolha entre as duas normas; ou quando como no segundo exemplo as duas normas s parcialmente se contradizem, que uma norma limita a validade da outra (Kelsen, 2000: 230).

Temos aqui os seguintes casos: em um primeiro, h duas normas que so postas simultaneamente, havendo conflito entre elas, e em um segundo h duas normas conflituosas entre si que so postas no mesmo momento, mas uma delas mais especfica do que a outra.

Tomemos o primeiro caso. Ambas as normas so vlidas por haver sido postas de conformidade com a Constituio vlida. No h, portanto, como o estudioso do Direito afirmar que, segundo este ordenamento, qualquer delas prevalea. Ambas so, portanto, vlidas. Se ambas so vlidas ambas atitudes previstas nas normas so aceitas. Se as normas prescrevem que o adultrio deve e no deve ser punido, ao aplicar a norma, o rgo aplicador, seguindo qualquer delas estabeleceria uma lei individual vlida. Uma proposio jurdica portanto afirmaria que cabe ao rgo aplicador a deciso acerca de aplicar ou no uma pena a um indivduo que este mesmo rgo entenda que cometeu adultrio.

No segundo caso, pelas mesmas razes, no possvel ao estudioso afirmar que uma das normas vlida, segundo o ordenamento, em detrimento da outra. Ambas so vlidas. Ocorre, porm, que neste caso possvel entend-las ambas como vlidas sem ter de fazer opo entre elas, ou melhor, ambas podem ser aplicadas simultaneamente e, como tm a mesma validade, ambas devem ser aplicadas simultaneamente. O exemplo que nos oferece Kelsen o de uma norma que prescreva uma pena ao que comete um delito previsto e uma que vede a punio de pessoas com menos de catorze anos mesmo que tenham cometido delitos. Neste caso, tomando-se ambas as normas como vlidas, temos que aquele que comete um delito deve ser punido e aquele que o faa mas no tenha ainda completado catorze anos no o deve. Ou seja, pune-se o que comete o delito, a exceo dos que tenham menos de catorze anos. Em um caso especfico a lei especfica prevalece, mas no revoga, a lei mais geral.

Por fim, possvel que nenhuma das interpretaes apresentadas dirima o conflito. Em tal caso, o legislador prescreveu algo sem sentido. Uma norma um contedo de sentido subjetivo, entendido como objetivo, orientado conduta de outrem. No h sentido, logo no h norma.

Quando nem uma nem outra interpretao sejam possveis, o legislador prescreve algo sem sentido, temos um ato legislativo sem sentido e, portanto, algo que no , sequer um ato cujo sentido possa ser interpretado como seu sentido objetivo. Logo, no existe qualquer norma jurdica objetivamente vlida. Isto, embora o ato tenha sido posto em harmonia com a norma fundamental. Com efeito, a norma fundamental no empresta a todo e qualquer ato o sentido objetivo de uma norma vlida, mas apenas ao ato que tem um sentido, a saber, o sentido subjetivo de que os indivduos se devem conduzir de determinada maneira. O ato tem de neste sentido normativo ser um ato com sentido. Quando ele tem um outro sentido, por exemplo, o sentido de um enunciado (v.g. de uma teoria consagrada na lei) ou no tem qualquer sentido quando a lei contm palavras sem sentido ou disposies inconciliveis umas com as outras , no h qualquer sentido subjetivo a ter em conta que possa ser pensado como sentido objetivo, no existe qualquer ato cujo sentido seja capaz de uma legitimao pela norma fundamental. (Kelsen, 2000: 231)

Na concepo kelseniana, portanto h situaes em que no possvel qualquer interpretao de uma norma. Pode bem ser que o legislador prescreva algo rigorosamente sem sentido e, neste caso, a cincia jurdica no capaz de descrever de maneira lgico o contedo de sentido de sua prescrio. Segundo Kelsen no haveria a qualquer sentido.

Autores como Dworkin, quando falam de interpretao da lei referem-se a algo bastante distinto daquilo que Kelsen tratou e que tentei apresentar acima. Dworkin pensa na interpretao de uma lei geral pelo juiz que deve aplic-la ao caso concreto e Kelsen na interpretao que o cientista faz do sentido de uma norma, sem pretender aplica-la a qualquer ato. Kelsen no oferece uma hermenutica jurdica no sentido em que o faz Dworkin. O juiz, para Kelsen, com sua deciso a respeito de um caso qualquer, prescreve uma norma nova, uma norma individual e no simplesmente interpreta o direito. O que ele faz no uma interpretao cientifica, mas uma ao poltica.

Importante salientar que "interpretao", para Kelsen, no passa de conseqncias lgicas da definio de lei fundamental e do ordenamento normativo. "A norma fundamental torna possvel interpretar (pensar) o material que se apresenta ao conhecimento jurdico como um todo com sentido, o que quer dizer, decrev-lo em proposies que no so logicamente contraditrias" (Kelsen, 2000: 232). Toda a "interpretao" kelseniana do Direito est assentada na norma fundamental, e no fato de que se consideramos tal norma como objetiva, qualquer contedo de sentido normativo em conflito no pode ser seno subjetivo, e, ainda, uma transgresso norma considerada objetiva.

Desta forma a norma mais especfica prevalece sobre a geral porque ambas so vlidas e ambas aplicam-se, considerando-se a especfica mera limitao geral. A norma mais recente prevalece sobre a mais antiga quando a constituio confere competncia para a produo de normas revogveis. E a norma superior prevalece sobre a inferior porque a validade desta mediada por aquela e, se aquela fosse invlida, tambm o seria esta. Enfim, a interpretao aqui mera aplicao de princpios lgicos para uma descrio coerente. Enquanto que em Dworkin a interpretao a aplicao de princpios e valores para a obteno de um Direito justo.

Este o primeiro aspecto que considero crucial para a compreenso da teoria da estrutura escalonada das normas: a ordem normativa, graas norma fundamental e dinmica jurdica, uma unidade lgica e, portanto, pode ser pensada e descrita com a utilizao dos princpios lgicos.

O segundo aspecto, que bastante irnico se lembrarmos de Lyra Filho, o de que "lei" e "direito" no so sinnimos. Se entendermos por "lei" as leis gerais consuetudinrias ou criadas por via legislativa, o Direito, j o disse, um ordenamento normativo. Este um sistema de normas. Normas so contedos subjetivos de sentido que so tidos por objetivos. Tais definies, aliadas estrutura escalonada das normas (uma norma vlida porque conforme a uma norma imediatamente superior), nos permite tomar como direito todos os contedos de sentido orientados conduta humana de uma srie de imputao, ou seja, desde a norma fundamental, que prescreve sem ser prescrita, passando pela constituio (em sentido material), a lei geral federal, estadual , municipal, o decreto administrativo que regulamenta a lei, a deciso do juiz sobre determinado caso, sua sentena, as determinaes administrativas com vistas a implementar a sentena e, por fim, o ato que cumpre a sentena, ou melhor, que cumpre a prescrio sem nada prescrever.

O termo "lei" geralmente se refere a um a lei geral, posta por um rgo legislativo. Por isto mais preciso que se afirme acerca do Direito que um sistema de normas. As normas podem ser gerais ou individuais, referindo-se conduta de um ou vrios homens. Podem tambm ser normas de "Direito material" ou de "Direito formal", dependendo se o seu contedo determina um processo de criao e aplicao de normas ou uma determinada conduta humana alheia a tais fins.

A distino entre Direito material e formal importante precisamente porque durante toda a srie imputativa eles se imiscuem.

Como o Direito formal designam-se as normas gerais atravs das quais so regulados a organizao e o processo das autoridades judiciais e administrativas, os chamados processo civil e penal e o processo administrativo. Por Direito material entendem-se as normas gerais que determinam o contedo dos atos judiciais e administrativos e que so em geral designados como Direito Civil, Direito Penal e Direito Administrativo, muito embora as normas que regulam o processo dos tribunais e das autoridades administrativas no sejam menos Direito Civil, Direito Penal e Direito Administrativo.(...) As normas gerais a aplicar pelos rgos jurisdicionais e administrativos tm, portanto, uma dupla funo: 1a a determinao destes rgos e do processo a observar por eles; 2o a determinao do contedo das normas individuais a produzir neste processo judicial ou administrativo. (Kelsen, 2000: 256).

Quando um determinado rgo aplica ou cria uma lei, geral ou individual, est a aplicar uma norma de Direito material e uma norma de Direito formal. Assim, quando o juiz determina a execuo forada nos bens de um devedor, est aplicando a um s tempo a norma que estipula determinada pena para aquele ato como a que pe o juiz como autoridade para, segundo o procedimento dado, criar a norma individual em questo. Assim tambm quando o legislador pe uma norma geral, aplica a norma formal acerca do processo legislativo e a norma material que impe sanes estipulao de determinado contedo na norma geral a ser criada. possvel que no haja, na constituio, qualquer norma material acerca da produo legislativa. Neste caso a constituio aceita qualquer contedo para as normas gerais e o legislador, ao criar uma norma geral, ainda assim aplica a norma material constitucional que lhe permite pr qualquer contedo quando legislar.

O Direito material e o Direito formal esto inseparavelmente ligados. Somente na sua ligao orgnica que eles constituem o Direito, o qual regula a sua prpria criao e aplicao. Toda proposio jurdica que pretenda descrever perfeitamente este Direito deve contar tanto o elemento formal como o elemento material. (Kelsen, 2000: 257).

Assim, a proposio jurdica que descreve o direito seria incompleta se apresentasse apenas o direito material ou o formal.

Uma disposio de direito penal por mais simplificada que seja tem de ser formulada da seguinte maneira: (...) se um rgo, cuja constituio e funo se encontram reguladas por uma norma geral [Direito formal], verificou, por um processo determinado tambm por uma norma geral [Direito formal], que existe um fato a que uma outra norma geral liga uma determinada sano [Direito material], esse rgo deve aplicar, pelo processo prescrito por uma norma geral [Direito formal], a sano determinada pela norma jurdica geral j mencionada [Direito material]. (Kelsen, 2000: 257).

Com a distino entre as noes de Direito material e formal e, a um s tempo, percepo de que s podem ser aplicados simultaneamente, torna-se mais clara a idia da construo escalonada da Ordem jurdica.

Nem todas as normas em um mesmo ordenamento so fundamentadas diretamente pela constituio, que fundamentada pela norma fundamental. Em um ordenamento jurdico, as normas esto escalonadas, supra e infra ordenadas, de modo a que uma norma fundamente a norma imediatamente inferior, segundo o princpio esttico ou dinmico e, mediatamente todas elas se fundem na norma fundamental segundo o princpio dinmico.

Como j anteriormente verificamos, uma ordem jurdica um sistema de normas gerais e individuais que esto ligadas entre si pelo fato de a criao de toda e qualquer norma que pertena a este sistema ser determinada por uma outra norma do sistema e, em ltima linha, pela sua norma fundamental. (Kelsen, 2000: 260).

Isto posto, necessrio que se destaque que, exceto nos dois extremos de uma srie imputativa, a norma fundamental e a execuo de um ato coercitivos, todos os demais elos aplicam e criam direito simultaneamente. Com efeito, ao criar a norma geral, aplica-se a constituio; ao regulamentar a norma geral, especificando-a, tambm se aplica a constituio e cria-se novas normas; ao aplicar a norma geral "ao caso concreto", o juiz cria uma norma individual; ao aplicar a sano, extremo da srie imputativa, tem-se o termo final da imputao.

Aplicar uma norma no , portanto, apenas julgar e afirmar se houve ou no incidncia. Aplicar uma norma realizar um ato de coao ou criar uma norma mais especfica. "A aplicao do Direito , por conseguinte, criao de uma norma inferior com base numa norma superior ou execuo do ato coercitivo estatudo por uma norma." (Kelsen, 2000: 261).

Kelsen demora-se em explicar que a deciso judicial um ato de produo de normas, mas creio poder passar apenas brevemente por tal questo, uma vez que aquela discusso se devia mais idia da separao dos poderes do que propriamente questo do que a aplicao de uma norma.

Uma norma geral no uma norma individual. Dizer que quem cometer um crime deve ser punido no sinnimo de dizer que Joo cometeu um crime e, por isso, deve ser punido. mesmo possvel separar por uma lado a constatao do fato e por outro a criao da norma individual. Este o caso quando o Jri decide pela culpa ou inocncia do ru, ou seja, sobre se Joo cometeu de fato ou no a ao qual a lei comina uma sano, e o juiz aplica a sentena. A norma individual s passa a existir depois que o juiz ou outro rgo autorizado, a ponha. A norma individual que estatui que deve ser dirigida contra um determinado indivduo uma sano perfeitamente determinada s criada atravs da deciso judicial. Antes dela, no tinha vigncia." (Kelsen, 2000: 265).

A ordem jurdica confere ao juiz autoridade para criar normas jurdicas individuais. Geralmente esta autoridade conferida de maneira limitada, no sentido de que a norma individual a ser criada deve corresponder a uma norma jurdica geral criada por um parlamentar ou um outro rgo legislativo. Ou seja, a norma jurdica individual, enquanto contedo de direito material, deve fundamentar-se segundo o princpio esttico em uma norma geral.

Por vezes o rgo legislativo estabelecido o costume, o que pouco altera a situao dada. Pode ser, porm, que nesta ordem jurdica no haja limitao material ao contedo da norma individual a ser formulada. Neste caso o juiz cria uma norma jurdica individual que se fundamenta imediatamente na constituio.

Resulta, por isso, que no ordenamento jurdico no h "lacunas". As chamadas "lacunas do direito" dizem respeito ausncia de uma norma aplicvel ao caso especfico. Ora, se o juiz , segundo o ordenamento em questo, competente para estabelecer uma norma individual sem que esta fundamente-se segundo o princpio esttico em uma norma geral superior, ento pode ele estipular ou no uma sano ao atosub judice. Se, ao contrrio, o ordenamento no lhe confere tal competncia, no pode o juiz, segundo o ordenamento, estipular qualquer sano.

Uma ordem jurdica pode sempre ser aplicada por um tribunal ao caso concreto, mesmo na hiptese de esta ordem jurdica, no entender do tribunal, no conter qualquer norma geral atravs da qual a conduta do demandado ou acusado seja regulada de modo positivo, isto , por forma a impor-lhe o dever de uma conduta que ele, segundo a alegao do demandante privado ou do acusador pblico, no realizou. Com efeito, neste caso, a sua conduta regulada pela ordem jurdica negativamente, isto , regulada pelo fato de tal conduta no lhe ser juridicamente proibida e, neste sentido, lhe ser permitida. (Kelsen, 2000: 273).

Kelsen considera a afirmao de que o Direito possui certas "lacunas" como uma afirmao "poltico-jurdica" (idem: 274), uma vez que no pretende dizer que o Direito no normatizou o fato em questo, mas sim que no normatizou como deveria ter normatizado.

Resta destacar por fim que, tal como o termo constituio, em Kelsen, no se refere ao documento que leva esse nome, mas sim ao conjunto de regras que normatizam a produo normativa, assim tambm o autor no percebe a criao de normas apenas nos "rgos legislativos, executivos e judicirios". De fato o prprio conceito de "rgos" , como se mostrar na parte em que se tratar da Esttica Jurdica", bastante mais amplo.

A produo de normas jurdicas tambm se d pelo que se denomina "negcio jurdico".

Num contrato, as partes contratantes acordam em que devem conduzir-se de determinada maneira, uma em face da outra... Este dever-ser o sentido subjetivo do ato jurdico-negocial. Mas tambm o seu sentido objetivo. Quer dizer: este um fato produtor de Direito se e na medida em que a ordem jurdica confere a tal ato esta qualidade; ela confere esta qualidade tornando a prtica do fato jurdico-negocial, juntamente com a conduta contrria ao negcio jurdico, pressuposto de uma sano civil. (Kelsen, 2000: 284).

Desta forma, o negcio jurdico, cuja forma mais comum o contrato, fundamenta sua validade na ordem jurdica estatal. As partes contratantes so, ao realizar tal ato, rgos da "comunidade jurdica" (ou ordem normativa" a que se chama Estado.

Esta postura de Kelsen acerca do negcio jurdico coerente com sua teoria e seria quase sem interesse para o presente trabalho no fosse a denncia que Kelsen faz a partir destas concluses. Segundo o autor o negcio jurdico valida-se pela mesma norma fundamental, sendo mediado pelo direito civil, pelo direito processual civil e pela constituio. As normas individuais ou coletivas postas por um negcio jurdico so, portanto, parte do ordenamento jurdico estatal, portanto, apenas tem validade enquanto e na medida em que corresponda a este ordenamento. Neste sentido, no h qualquer distino entre Direito Pblico e Privado. Esta distino, que vincula aquele ao poltico e este ao "propriamente jurdico", visa tanto fazer crer que os rgos governamentais esto de alguma forma acima do Direito quanto que o Direito privado alheio poltica.

Representando-nos, na verdade, a oposio entre Direito Publico e Direito Privado como a oposio absoluta entre poder do Estado e Direito, cria-se a idia de que no domnio do Direito constitucional e administrativo que tm especial importncia poltica , o princpio da legalidade no vale com o mesmo sentido e com a mesma intensidade que no domnio da Direito Privado, que se considera, por assim dizer, o domnio propriamente jurdico (...) cria tambm a impresso de que s o domnio do Direito Pblico, ou seja, sobretudo, o Direito constitucional e administrativo, seria o setor da dominao poltica e que esta estaria excluda no domnio do Direito Privado. (Kelsen, 2000: 313).

Como o Direito Privado, que se radica em torno do estabelecimento da propriedade privada (caracterstica essencial do sistema econmico capitalista) visto como um domnio alheio dominao poltica e, portanto, auto-determinado, pretende-se que a seja o "reino" da liberdade, em contraposio a outros sistemas econmicos, onde vige a dominao. Alm disso, enquanto alheio poltica e campo propriamente jurdico, a criao do Direito natural independe do Estado e, portanto, no pode ser alterado arbitrariamente por ele, abolindo, por exemplo, a propriedade privada dos chamados "meios de produo".

Segundo Kelsen este pensamento ideolgico, no no sentido de socialmente condicionado, mas no de politicamente orientado, ou melhor, Kelsen no afirma expressamente que as ideologias sejam condicionadas por fatores sociais, mas apenas que sejam volitivamente orientadas, por isto, prefiro no afirmar que o autor, ao qualificar um pensamento de ideolgico, esteja pensando em que este seja condicionado por fatores sociais ou materiais de qualquer tipo.

Na viso de Kelsen o pensamento segundo o qual o capitalismo mais propcio democracia e o socialismo ao autoritarismo uma crena ideolgico. Para ele pode o capitalismo ser democrtico ou autocrtico(32), bem como o socialismo.

Porm, ao nvel da produo de Direito geral, este sistema econmico [capitalismo] tanto pode ter carter democrtico como autocrtico. Os mais importantes Estados capitalistas do nosso tempo tm, na verdade, constituies democrticas, mas o instituto da propriedade privada e uma produo de normas jurdicas individuais baseada no princpio da autodeterminao tambm so possveis nas monarquias absolutas e tm de fato existido nelas. Dentro da ordem jurdica de um sistema econmico socialista, na medida em que este s permite a propriedade coletiva, pode a produo de normas jurdicas individuais ter carter autocrtico enquanto, no lugar do contrato de Direito privado, surge o ato administrativo de Direito pblico. Mas tambm este sistema compatvel, tanto com uma produo democrtica, como com uma produo autocrtica de normas jurdicas gerais, quer dizer, tanto com uma Constituio democrtica como com uma Constituio autocrtica do Estado. (Kelsen, 2000: 314).(33)

Esttica Jurdica.

A Dinmica Jurdica o estudo do Direito enquanto uma estrutura escalonada de normas, em seu processo de criao, de transformao, ou melhor, o estudo do modo como o ordenamento jurdico vlido e confere validade s normas que o compe, tornando-as, de sentidos subjetivos de certos atos, em sentidos objetivos. Em contraposio, a Esttica Jurdica o estudo do Direito enquanto um sistema de normas dado, deixando parte a questo da dinmica jurdica. Tomaremos aqui apenas alguns temas da Esttica Jurdica, suficientes, a meu ver, para uma viso geral do pensamento sistemtico do positivismo jurdico e para buscar um paralelo com a sociedade entendida como ordem normativa. Deste modo, questes como a distino entre o Direito Civil e o Direito penal, por exemplo, no sero levadas em considerao, por irrelevantes ao problema aqui tratado.

Nesta parte, sero tratados os conceitos de "norma", "direito reflexo (subjetivo)", personalidade jurdica, organicidade e relao jurdica.

Norma.

J aqui se tratou de definir o conceito de "norma", quando afirmou-se que uma norma um contedo subjetivo de sentido (um comando) dirigido conduta de outrem e que entendido como objetivo por ser conforme a uma norma, por sua vez tambm entendida como vlida por se fundamentar em outra norma at que, enfim se chegue a uma norma cujo contedo de sentido entendido como vlido por fora de uma norma pressuposta, ou norma fundamental.

H, porm, uma outra caracterstica essencial no conceito de "norma" da qual no nos ocupamos em razo da preocupao em descrever a dinmica jurdica. Tomemos o exemplo fornecido por Kelsen acerca de uma criana que indaga por que deve ir escola. A esta pergunta, Kelsen fornece a resposta de que deveria faz-lo porque devia obedecer s ordens de seu pai, e este o havia ordenado ir escola. Esta resposta visava legitimar o comando de ir escola. No entanto, h outra resposta possvel e, talvez, mais evidente. Deve ir o menino escola porque se no for receber um castigo de seu pai. O dever dado pela sano.

Percebe-se assim claramente a distino entre a esttica e a dinmica jurdica, que no se confunde com aquela outra distino entre princpio esttico e dinmico, uma vez que estes, ambos, fazem parte da dinmica jurdica.

Isto posto, passemos apresentao da Esttica Jurdica.

Uma ordem normativa cria, segundo o princpio da imputao, ligaes entre elementos, de acordo com a frmula: se A ento B deve ser. Neste sentido, a conseqncia por esta ordem estipulada pode ser entendida seja como uma recompensa seja como uma punio. O Direito uma ordem coercitiva e prevalece a pena como conseqncia do ato definido por ele (prevalece a pena como sano). De fato, segundo Kelsen, a maioria das ordens normativas vale-se mais da pena que da recompensa, por exemplo, a idia de inferno costuma ser mais presente que a de paraso.

Conforme o modo pelo qual as aes humanas so prescritas ou proibidas, podem distinguir-se diferentes tipos tipos ideais, no tipos mdios. A ordem social pode prescrever uma determinada conduta humana sem ligar observncia ou no observncia deste imperativo quaisquer conseqncias. Tambm pode, porm, estatuir uma determinada conduta humana e, simultaneamente, ligar esta conduta a concesso de uma vantagem, de um prmio, ou ligar conduta oposta uma desvantagem, uma pena (no sentido mais amplo da palavra). O princpio que conduz a reagir a uma determinada conduta com um prmio ou uma pena o princpio retributivo (Vergeltung). O prmio e o castigo podem compreender-se no conceito de sano. No entanto, usualmente designa-se por sano somente a pena, isto , um mal a privao de certos bens como a vida, a sade, a liberdade, a honra, valores econmicos a aplicar como conseqncia de uma determinada conduta, mas no j o prmio e a recompensa. (Kelsen, 2000: 26).

Desta forma, as ordens normativas podem ser classificadas de acordo com a espcie de sanes que pe ou se, simplesmente, no o faz. Apesar de concordar com Kelsen que cognitivamente pode-se falar em uma ordem normativa sem sanes, penso ser difcil que tal possa, de fato, existir.

Com relao ordem jurdica, Kelsen afirma que esta prescreve uma conduta ao estipular, para a conduta oposta, a sano.

Finalmente, uma ordem social pode e este o caso da ordem jurdica prescrever uma determinada conduta precisamente pelo fato de ligar conduta oposta uma desvantagem (...) Desta forma, uma determinada conduta apenas pode ser considerada, no sentido dessa ordem social, como prescrita , na medida em que a conduta oposta pressuposto de uma sano (no sentido estrito). (Kelsen, 2000: 26).

Assim, a norma existe apenas se h sano. No caso da ordem jurdica, as sanes so atos de coero. Atos de coero "so atos a executar mesmo contra a vontade de quem por eles atingido e, em caso de resistncia, com o emprego da fora fsica". (Kelsen, 2000: 121).

Note-se que o conceito de norma se torna bem mais elaborado e j no se confunde com o conceito de "dever". Se o dever ser pode ser definido como um "comando" (contedo de sentido dirigido conduta), a norma jurdica entendida em duas partes: um comando e uma sano, ou seja, o indivduo A deve-se comportar da forma , esse no o fizer, o indivduo B deve agir da forma , que um ato de coero. A norma jurdica no se dirige quele que pode ser atingido pelo ato de coero, mas quele que, caso outro indivduo se comporte de determinada maneira, aplicar a sano.

Podemos conceber a norma jurdica em duas partes, que por vezes so expressamente postas em separado. A primeira: A deve fazer . A segunda: se A no fizer , C far .

A norma "A deve fazer " apenas vale em decorrncia da outra.

J num outro contexto fizemos notar que, quando uma norma prescreve uma determinada conduta e uma segunda norma estatui uma sano para a hiptese da no-observncia da primeira, estas duas normas esto essencialmente interligadas. Isto vale particularmente para a hiptese em que um ordenamento normativo como o ordenamento jurdico prescreve uma determinada conduta pelo fato de ligar conduta oposta um ato coercitivo a ttulo de sano, de tal forma que a conduta somente se pode considerar como prescrita, nos termos desse ordenamento (...); se a conduta pressuposto de uma sano. (...) E, quando a segunda norma determina positivamente o pressuposto a que liga a sano, a primeira torna-se suprflua do ponto de vista da tcnica jurdica legislativa. (Kelsen, 2000: 60).

A norma no autnoma, ou secundria, til para a descrio do Direito, mas irrelevante, ou melhor, dispensvel. Uma ordem normativa, e o Direito em especial, pode ser descrita apenas por proposies jurdicas primrias, ou seja, que enunciem que no caso de um determinado comportamento previsto na ordem, determinado rgo aplicar determinada sano. Ou seja, a norma jurdica estabelece como "dever ser", a sano e, como reflexo disto, dizemos haver o "dever jurdico" de se conduzir de modo a evitar a sano. (cf. Kelsen, 2000b: 86).

Assim sendo, o delito no uma conduta contrria ordem jurdica, mas uma conduta feita pressuposto de uma sano.

E, ento, mostra-se que o ilcito no um fato que esteja fora do Direito e contra o Direito, mas um fato que est dentro do Direito e por este determinado, que o Direito, pela sua prpria natureza, se refere precisa e particularmente a ele. (Kelsen, 2000: 127).

O indivduo cuja conduta pode ser o pressuposto da sano, diz-se que tem o dever jurdico de agir da forma contrria quela que constitui pressuposto da sano. Disto percebemos duas coisas: a primeira que "dever ser" e "dever jurdico" no so sinnimos. A ordem estabelece o dever ser da sano, e o dever jurdico mero reflexo disto, ou o sentido de uma norma no autnoma, referente a uma determinada conduta. A segunda que o indivduo do qual se diz que tem o dever jurdico no aquele que pode sofrer o ato coercitivo previsto no ordenamento, mas aquele cuja conduta pode "evitar" ou "provocar" a sano. Isto porque o conceito de "dever jurdico" distinto, tambm, do conceito de "responsabilidade".

Conceito essencialmente ligado com o conceito de dever jurdico, mas que dele deve ser distinguido, o conceito de responsabilidade. Um indivduo juridicamente obrigado a determinada conduta quando uma oposta conduta sua tornada pressuposto de um ato coercitivo (como sano). Mas este ato coercitivo, isto , a sano como conseqncia do ilcito, no tem de ser necessariamente dirigida como j se fez notar contra o indivduo obrigado, quer dizer, contra o indivduo cuja conduta o pressuposto do ato coercitivo. (...) O indivduo contra quem dirigida a conseqncia do ilcito responde pelo ilcito, juridicamente responsvel por ele. (Kelsen, 2000: 133).

Cabe ressaltar que a responsabilidade pode ser individual (por exemplo a pena de priso) ou coletiva (como a guerra) e, em geral, supe que o indivduo cuja conduta pode "evitar" a sano receba como um mal a imposio da sano ao responsvel.

Do que ficou dito acerca da norma, e da norma jurdica em especial, ressalta a importncia dos conceitos de "bem" e "mal". A sano "sentida como um mal pelo indivduo que atinge" (Kelsen, 2000: 123) ou ao menos assim se espera. Kelsen, ao propor uma teoria pura do Direito isenta de moral, no entende que tal teoria seja alheia aos conceitos de bem e mal, mas sim que esta teoria no prescrever qualquer norma. Em verdade, o autor define "bem" como conformidade normas e "mal" como desconformidade s mesmas, entendendo-se a norma como um sentido volitivo. Desta feita, a bondade e a maldade dependem da vontade.

Para Kelsen um juzo de valor perfeitamente objetivo na medida em que toma como referncia uma ordem normativa, que em caso extremo pode ser a vontade de um nico indivduo, e se determine como bem e mal, segundo a ordem normativa, aquilo que respectivamente conforme e desconforme mesma ordem. Alertemo-nos para o fato de que uma norma no tem, necessariamente, a conduta humana por objeto. H, de fato, uma tendncia nas ordens jurdicas a apenas tomar como objeto de normas a conduta humana, mas no tem de ser assim. A sociedade, como o autor a define, um conjunto dos mesmos elementos da natureza, porm vinculados por elos normativos, e no causais. (cf. Kelsen, 1945).

Assim, segundo Kelsen, animais e objetos inanimados poder ser objeto de imputao. Quando isto ocorre, em geral, os animais tm um papel de rgos aplicadores de sanes. Ou seja, se um homem faz determinado ato, um animal ou um objeto lhe dever impingir determinada pena. Assim, Kelsen afirma que os esquims crem que todos os animais de que se servem tm almas imortais, e que podem, caso no se observem determinados tabus, "vingar-se" dos humanos. Neste caso, os animais esto sujeitos lei de Talio, o princpio retributivo. Assim tambm entre os Hebreus, se um boi reincidisse em matar um homem, deveria sofrer pena de morte. No primeiro caso os animais tm o direito de que os homens respeitem certos tabus, no segundo, tm o dever de no matar um homem.(34)

Para Kelsen o conceito de bem sinnimo de conformidade a normas. Algo bom, segundo um determinado ordenamento se em conformidade com suas normas, e mau se em desconformidade com as mesmas. Kelsen no escreve uma Teoria do Direito sem fazer recurso ao bem e ao mal, mas uma que no diga o que o Direito deveria entender ou estabelecer como bem e mal. Assim, ao afirmar que a sano "sentida como um mal", ou que em geral o , ou ainda que o legislador assim sups, apenas insere o Direito em uma ordem normativa mais ampla que coloca a propriedade, a vida, a liberdade, etc, como valores e, na medida em que o legislador e o sujeito do dever jurdico compartilhem tais valores, razovel aceitar que o legislador tenha uma noo mais ou menos clara daquilo que ser "sentido como um mal", como a pena de priso, de morte ou mesmo de flagelao.

A norma definida pela sano na medida em que a parte da norma que afirma o dever ser dispensvel se se afirma simplesmente que a conduta oposta objeto de sano. Assim, sem sano no h norma.

Direito Reflexo ou Direito subjetivo.

O conceito de "dever jurdico" tal como apresentado na "Teoria Geral do Direito e do Estado" guarda semelhana com o que se costuma denominar "direito subjetivo". Kelsen demora-se em debates acerca deste conceito, opondo suas formulaes s teorias de seu tempo, que alis, continuam bastante em voga. Entretanto, tal debate ser deixado de lado e trataremos apenas da definio que o prprio autor d de direito subjetivo, ou, em sua terminologia, direito reflexo. Segundo o autor os conceitos de Direito reflexo, bem como o de Dever jurdico, so meros conceitos auxiliares cincia jurdica, que bem pode descrever seu objeto sem fazer recurso eles. Sua utilidade, porm, radica em facilitarem a apreenso do conceito de "pessoa jurdica" e este, por sua vez, o de "relao jurdica" que, em Kelsen, bastante curioso.

Vimos que a norma jurdica estabelece um "dever ser", que se constitui em um ato coercitivo a ser posto como conseqncia de uma conduta humana. Como "uma hipostatizao" deste "dever ser" tem-se o "dever jurdico", que pode ou no ser expresso numa norma.

Um exemplo: no se deve roubar; se algum roubar ser punido. Caso se admita que a primeira norma, que probe o roubo, vlida apenas se a segunda norma vincular uma sano ao roubo, ento, numa exposio jurdica rigorosa, a primeira norma , com certeza, suprflua. A primeira norma, se que ela existe, est contida na segunda, a nica norma jurdica genuna. Contudo, a representao do Direito grandemente facilitada se nos permitirmos admitir tambm a existncia da primeira norma. (Kelsen, 2000b: 86)

Fala-se de direito subjetivo, de forma anloga, quando a Ordem jurdica confere a um indivduo autoridade para determinada ao. No entanto este conceito usado de vrias formas distintas e, segundo Kelsen, apresentado como o principal fenmeno jurdico, o que seria um equvoco.

No cotidiano utiliza-se a expresso "tenho um direito" da forma como os juristas usaria o termo "direito subjetivo". Subjetivo porque prprio de um sujeito. Este direito subjetivo, na viso kelseniana, no entanto, no seno reflexo de um dever jurdico.(35)

Em Kelsen "dever" pode significar permisso, atribuio de competncia ou obrigao,(36)por isso tambm a situao em que a ordem jurdica confere competncia pode ser descrita como dever.

Quando se fala em um direito subjetivo propriedade, por exemplo, tem-se em mente um sentido diferente daquele da autorizao. Diz-se geralmente que o direito subjetivo a pretenso ou interesse, de um indivduo, juridicamente protegido. No entanto o direito subjetivo propriedade no seno um reflexo do dever jurdico de abster-se de determinados bens que foram de certa forma definidos no ordenamento. O direito subjetivo de um mero reflexo do dever jurdico dos demais. E este dever jurdico no seno o reflexo de um dever ser, que a norma, ou melhor, a aplicao de uma sano sob determinados pressupostos.

Esta situao designada como "direito" ou "pretenso" de um indivduo, no porm, outra coisa seno o dever do outro ou dos outros. Se, neste caso, se fala de um direito subjetivo ou de uma pretenso de um indivduo, como se este direito ou esta pretenso fosse algo diverso do dever do outro (ou dos outros), cria-se a aparncia de duas situaes juridicamente relevantes onde s existe uma. (...) Se se designa a relao do indivduo , em face do qual uma determinada conduta devida, como o indivduo obrigado a esta conduta como "direito", este direito apenas o reflexo daquele dever. (Kelsen, 2000: 142 e 143).

Distingue a Teoria do Direito entre direitos subjetivos de personalidade e direito subjetivos reais (sobre coisas). Segundo Kelsen no h direitos sobre coisas, vez que o direito subjetivo reflexo de uma obrigao e no se obrigam coisas, mas apenas pessoas. Segundo ele essa distino tem como objetivo legitimar a propriedade privada, apresentando esta instituio como o domnio de um homem sobre uma coisa e no, como de fato, a excluso de todos os demais, o que ainda segundo ele, particularmente grave com relao propriedade dos meios de produo.

A funo ideolgica desta conceituao do sujeito jurdico como portador (suporte) do direito subjetivo, completamente contraditria em si mesma, fcil de penetrar: serve para manter a idia de que a existncia do sujeito jurdico como portador do direito subjetivo, quer dizer, da propriedade privada, uma categoria transcendente em confronto do Direito objetivo positivo, de criao humana e mutvel, uma categoria transcendente em confronto do Direito objetivo positivo, de criao humana e mutvel, uma instituio na qual a elaborao de contedo da ordem jurdica encontra um limite insupervel. O conceito de um sujeito jurdico independente do Direito objetivo, como portador do Direito subjetivo, redobra de importncia quando a ordem jurdica que garante a instituio da propriedade privada reconhecida como uma ordem mutvel e sempre em transformao , criada pelo arbtrio humano e no fundada sobre a vontade eterna de Deus, sobre a razo ou sobre a natureza e, particularmente, quando a criao desta ordem operada atravs de um processo democrtico. A idia de sujeito jurdico independente, na sua existncia, de um direito objetivo, como portador de um direito subjetivo que no menos "Direito", mas at mais, do que o Direito objetivo, tem por fim defender a instituio da propriedade privada da sua destruio pela ordem jurdica. No difcil compreender por que a ideologia da subjetividade jurdica se liga com o valor tico da liberdade individual, da personalidade autnoma, quando nesta liberdade est tambm includa sempre a propriedade. Um ordenamento que no reconhea o homem como personalidade livre neste sentido, ou seja, portanto, um ordenamento que no garanta o direito subjetivo da propriedade um tal ordenamento nem tampouco deve ser considerado como ordem jurdica. (Kelsen, 2000: 190/191).

O conceito de direito subjetivo, no entanto no de todo intil pois pode servir como um conceito auxiliar, dispensvel, mas que pode facilitar a descrio de certas situaes juridicamente relevantes.

Este conceito de direito subjetivo que apenas o simples reflexo de um dever jurdico, isto , o conceito de um direito reflexo, pode, como conceito auxiliar facilitar a representao da situao jurdica. , no entanto, suprfluo do ponto de vista de uma descrio cientificamente exata da situao jurdica. (Kelsen, 2000: 143).

Este conceito especialmente til na construo de um outro conceito auxiliar da cincia jurdica, o de personalidade.

Personalidade Jurdica

A teoria pura do Direito costuma distinguir os conceitos de "pessoa fsica" e "pessoa jurdica", conforme o detentor dos direitos e deveres seja um indivduo humano ou uma corporao. O debate travado por Kelsen com tal teoria, novamente, no nos interessa aqui, mas sim a definio do prprio autor.

Ora, a premissa fundamental da teoria Pura do Direito afastar tudo aquilo que no compe seu objeto de estudo, e este uma ordem normativa, ou melhor, a ordem jurdica. No pode, portanto, esta teoria definir como pessoa fsica "o homem, enquanto sujeito de direitos e deveres" (cf. Kelsen, 2000: 191), nem mesmo a relao jurdica como uma relao entre homens juridicamente regulamentada.

Num conhecimento dirigido s normas jurdicas no so tomadas em considerao nunca demais acentuar isso os indivduos como tais, mas apenas as aes e omisses dos mesmos, pela ordem jurdica determinadas, que formam o contedo das normas jurdicas. (Kelsen, 2000: 189).

Portanto, coerente com seu pensamento, Kelsen define a pessoa em funo da Ordem jurdica:

A pessoa fsica ou jurdica que "tem" como sua portadora deveres e direitos subjetivos estes deveres e direitos subjetivos, um complexo de deveres jurdicos e direitos subjetivos cuja unidade figurativamente expressa no conceito de pessoa. A pessoa to-somente a personificao desta unidade. (Kelsen, 2000: 192).

Uma pessoa um conjunto de normas, ou melhor, um subconjunto de normas. Como a distino entre pessoa fsica e jurdica refere-se a ter ou no um homem como o "suporte" de determinados direitos e deveres, a distino torna-se irrelevante.

na definio de pessoa jurdica que, a meu ver, ganha em importncia os conceitos, que Kelsen denomina de "auxiliares", de direito subjetivo e dever jurdico. De fato, para descrever o ordenamento eles no so necessrios, mas, como a pessoa jurdica determinada como um subconjunto de normas que tm em comum o fato de que incidem sobre a conduta de um mesmo indivduo ou sobre uma mesma corporao, torna-se mais simples determinar quais normas constituem esta pessoa valendo-se de tais conceitos "auxiliares".

Poderamos dizer que, se uma ordem normativa um conjunto de normas vinculadas por um fundamento de validade comum, ou melhor o mesmo ponto inicial da srie imputativa, uma pessoa jurdica um conjunto de normas vinculadas por incidirem sobre uma mesma conduta, ou melhor, por compartilharem o mesmo ponto terminal na srie imputativa.(37)

No seria possvel, entretanto, determinar a pessoa jurdica como um conjunto de normas que incidem sobre um mesmo elemento, j que direitos subjetivos so normas que incidem sobre o comportamento dos outros, constituindo um dever para estes e sendo um reflexo de dever referente pessoa em questo. O dever jurdico reflexo de uma norma ou dever ser, e, por sua vez, o direito subjetivo reflexo de tal reflexo. No seria possvel, sequer, desprezar o direito subjetivo sob o argumento de que faz parecer haver duas normas onde, de fato s h uma porque, no estudo da relao jurdica importa conhecer a pessoa jurdica e, se deixar de lado o direito subjetivo na esperana de que se apresentar como dever jurdico de uma outra pessoa, corremos o risco de essa outra pessoa no fazer parte da relao, de modo que o referido direito (a norma) seja desprezada.

Assim como o direito subjetivo no um interesse protegido pelo Direito , mas a proteo jurdica de um interesse, assim tambm a pessoa fsica no o indivduo que tem direitos e deveres mas uma unidade de deveres e direitos que tem por contedo a conduta de um indivduo. (...) O que em ambos os casos tanto o da pessoa fsica como o da pessoa jurdica realmente existe so deveres jurdicos e direitos subjetivos tendo por contedo a conduta humana e que formam uma unidade. Pessoa jurdica (pessoa em sentido jurdico) a unidade de um complexo de deveres e direitos subjetivos. Como estes deveres jurdicos e direitos subjetivos so estatudos por normas jurdicas melhor: so normas jurdicas , o problema da pessoa , em ltima anlise, o problema de um complexo de normas. A questo a de saber qual , num caso e no outro, o fator que produz essa unidade. (Kelsen, 2000: 193/194).

No h, na descrio do Direito realizada pela teoria pura, indivduos concretos, fatos sociais ou quaisquer outros fatores que no seja contedos de sentido normativos. A pessoa jurdica um complexo de normas, no um indivduo ou uma instituio social. As normas que compe uma pessoa jurdica tem por vnculo no um mesmo fundamento de validade, mas a referncia conduta de um mesmo indivduo ou corporao.

A unidade de deveres e direitos subjetivos, quer dizer, a unidade das normas jurdicas em questo, que forma uma pessoa fsica resulta do fato de ser a conduta de um e o mesmo indivduo que constitui o contedo desses deveres e direitos, do fato de ser a conduta de um e o mesmo indivduo a que determinada atravs destas normas jurdicas. A chamada pessoa fsica no , portanto, um indivduo, mas a unidade personificada das normas jurdicas que obrigam e conferem poderes a um e mesmo indivduo, mas a unidade personificada das normas jurdicas que obrigam e conferem poderes a um e mesmo indivduo. No uma realidade natural, mas uma construo jurdica criada pela cincia do Direito, um conceito auxiliar na descrio de fatos juridicamente relevantes. Neste sentido, a chamada pessoa fsica uma pessoa jurdica (juristiche person). (Kelsen, 2000: 194).

Cumpre esclarecer o que seria, portanto, uma corporao. Kelsen afirma que tradicionalmente se entende a corporao como uma comunidade de indivduos a que a ordem jurdica estabelece direitos e deveres. A personificao desta comunidade costuma ser definida como pessoa jurdica, em contraposio pessoa fsica. Este entendimento no cabvel para a teoria Pura do Direito, uma vez que direitos e deveres s o so da conduta humana, e no de entidades personificadas. "Como os deveres e direitos apenas podem ter por contedo a conduta humana, a ordem jurdica pode conferir direitos somente a indivduos". (Kelsen, 2000: 196).

Quando se diz que determinada corporao tem um "direito" ou um "dever", diz-se de fato que um indivduo determinado pela mesma corporao tem tal dever. Para compreender esta situao convm ter em mente o que, precisamente esta corporao. Ela no um conjunto de indivduos, unidos por um fim em comum, ela algo criado por alguns indivduos. Mais precisamente, uma corporao um conjunto de regras de conduta postas por determinados indivduos. Estas regras, no caso de esta corporao ser parte de um estado so consideradas vlidas por estarem de conformidade (segundo os princpios esttico e dinmico) com determinadas normas estatais, em geral, o cdigo civil. A corporao , portanto, um ordenamento normativo particular, dentro de uma ordem normativa mais ampla.

Quando dois ou mais indivduos querem perseguir em comum, por qualquer motivo, certos fins econmicos, polticos, religiosos, humanitrios ou outros, dentro do domnio de validade de uma ordem jurdica estadual, formam uma comunidade na medida em que subordinam a sua conduta cooperante endereada realizao destes fins, em conformidade com a ordem estadual, a uma ordem normativa particular que regula esta conduta, e, assim, constitui a comunidade. (Kelsen, 2000: 196).

A corporao, enquanto ordem normativa, sujeito de direitos e deveres, ou seja, pessoa jurdica. Ora, se definirmos ordem normativa como conjunto de normas e pessoa jurdica da mesma forma, isto nada mais seria que uma tautologia. Convm, portanto, esclarecer a diferena entre uma corporao (ordem normativa) e uma pessoa jurdica, alm de explicitar em que medida aquela pode ser sujeito de direitos e deveres.

Definiu-se, anteriormente, o que seria uma Constituio em sentido material: o conjunto de normas que regulamenta a produo de normas. Uma corporao um conjunto de normas, ou ordenamento normativo, dotado de Constituio em sentido material, normas gerais, normas individuais e sanes, tal como o ordenamento jurdico(38). Diferencia-se deste, porm, porque decorre dele sua validade. Poderamos, portanto, fazendo uma analogia com os conceitos de norma superior e inferior, designar a corporao como um ordenamento normativo inferior. De um modo mais preciso, a corporao uma ordem normativa e no uma pessoa jurdica porque o vnculo das normas que a compe esto no incio da srie imputativa (se pressupusermos sua constituio), enquanto que a pessoa jurdica um conjunto de normas vinculadas por um mesmo termo final na srie imputativa, ou seja, por incidirem sobre a mesma conduta humana.

Isto posto, como aceitar que uma ordem normativa seja sujeito de direitos e deveres? Na medida em que a ordem normativa em questo deriva sua validade de uma ordem normativa superior (a ordem jurdica), pode esta determinar certa forma ou contedo para as normas e para a constituio da ordem inferior. Tambm pode a ordem jurdica determinar sanes para o caso de normas postas em desacordo, lembrando que o indivduo cuja conduta pode evitar a sano no necessariamente o mesmo que "responder" por tal conduta. Em geral, a ordem jurdica estabelece sanes corporao quando atribui a ela os atos cometidos por determinados indivduos. Esta atribuio feita por considerar-se tal indivduo como um rgo da corporao, ou melhor, aquela conduta especfica como conduta deste rgo, o que ficar melhor explicitado quando, adiante, tratar-se da teoria da organicidade.

A pessoa jurdica ficou definida como um conjunto de normas que incidem sobre a conduta de um mesmo indivduo ou corporao, ou melhor, um conjunto de deveres jurdicos e direitos subjetivos. Neste sentido no h qualquer diferena essencial entre a pessoa jurdica e a chamada pessoa fsica, sendo ambas tratadas aqui como pessoas jurdicas.

Organicidade

No linguajar cotidiano, bem como em textos cientficos, encontramos com facilidade a atribuio de certas aes a corporaes ou, em geral, "comunidades de indivduos" (especialmente ao Estado). No entanto, "h a uma fico, pois no a comunidade, mas um indivduo humano, quem exerce a funo." (Kelsen, 2000: 142). Afirmar que uma certa empresa realizou determinada obra, ou cometeu determinado delito uma figura de linguagem. Determinados indivduos que trabalhavam em uma dada situao cometeram tais atos.

Quando deixamos de lado a personificao, por assim dizer, animstica da corporao, assumimos uma postura que permite descrever de forma mais precisa as situaes nas quais uma certa conduta humana atribuda a uma entidade, ou melhor, a uma ordem social.

Retomemos, portanto, a definio de comunidade, aqui ,sinnimo de corporao:

A comunidade consiste na ordem normativa que regula a conduta de uma pluralidade de indivduos. Diz-se, na verdade que a Ordem constitui a comunidade. Mas ordem e comunidade no so dois objetos distintos. Uma comunidade de indivduos, quer dizer, aquilo que a estes indivduos comum, consiste apenas nesta ordem que regula a sua conduta. (Kelsen, 2000: 168).

Se atribumos determinados atos humanos a determinadas ordens normativas , basicamente, porque o tomamos como determinado por esta mesma ordem. Se dizemos que a empresa A construiu uma ponte, ou que despediu determinados funcionrios, ou mesmo que superfaturou uma obra e desviou recursos governamentais, afirmamos de fato que certos indivduos humanos, agindo de conformidade com a ordem em questo, ou agindo como rgos dessa ordem, realizaram tais atos.

Atribuir comunidade um ato de conduta humana no significa absolutamente nada mais que referir esse ato ordem que constitui a comunidade, conceb-lo como um ato que a ordem normativa autoriza (no sentido mais amplo da palavra). (Kelsen, 2000: 168).

Uma ordem normativa (uma comunidade) pode estabelecer que determinados atos, inclusive de produo de normas, podero ser realizados por determinados indivduos de uma forma dada e vedar esses mesmos atos a todos os demais, ou seja, uma comunidade pode funcionar segundo o princpio da diviso do trabalho.(39)

A ao humana, ou funo, determinada pela ordem normativa pode ser entendida como ao ou funo e um rgo da mesma ordem e, portanto, a ao feita em conformidade com ela ser atribuvel comunidade. O indivduo pode ser caracterizado como rgo apenas na medida em que sua ao seja determinada pela ordem. De qualquer forma, importa distinguir o indivduo em si de sus aes realizadas segundo o sentido posto pela ordem normativa, ou realizadas em desconformidade com tal sentido.

Como j se acentuou acima, estes indivduos no pertencem como tais, mas apenas com as suas aes e omisses reguladas pelo estatuto, comunidade constituda pelo estatuto e designada como corporao. Somente uma ao ou omisso regulada no estatuto pode ser atribuda corporao. Com efeito, na atribuio de um ato de conduta humana corporao nada mais se exprime seno a referncia deste ato ordem normativa que o determina e constitui a comunidade que, atravs desta atribuio, personificada. (Kelsen, 2000: 197)

Diz-se de uma comunidade ou corporao que organizada. "As comunidades que tm rgos chamam-se comunidades organizadas; e por comunidades organizadas entendem-se aquelas que tm rgos funcionando segundo o princpio da diviso do trabalho". (Kelsen, 2000: 171).

O conceito de rgo e o de comunidade organizada servem para facilitar a descrio do Direito(40). No so, tambm, conceitos rigorosamente necessrios, mas teis para identificar com celeridade quando uma ao atribuvel a uma ordem normativa.

Os conc