Resumo Obras Unemat 2012 2

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1 RESUMO DAS OBRAS LITERÁRIAS- UNEMAT 2012/2 AUTO DA BARCA DO INFERNO - GIL VICENTE Por Márcia Lígia Guidin Antes de qualquer coisa, "auto" é uma designação genérica para peça, pequena representação teatral. Originário na Idade Média, tinha de início caráter religioso; depois tornou-se popular, para distração do povo. Foi Gil Vicente (1465-c. 1537) que introduziu esse tipo de teatro em Portugal. O "Auto da Barca do Inferno" (c. 1517) representa o juízo final católico de forma satírica e com forte apelo moral. O cenário é uma espécie de porto, onde se encontram duas barcas: uma com destino ao inferno, comandada pelo diabo, e a outra, com destino ao paraíso, comandada por um anjo. Ambos os comandantes aguardam os mortos, que são as almas que seguirão ao paraíso ou ao inferno. Chegam os mortos Os mortos começam a chegar. Um fidalgo é o primeiro. Ele representa a nobreza, e é condenado ao inferno por seus pecados, tirania e luxúria. O diabo ordena ao fidalgo que embarque. Este, arrogante, julga-se merecedor do paraíso, pois deixou muita gente rezando por ele. Recusado pelo anjo, encaminha- se, frustrado, para a barca do inferno; mas tenta convencer o diabo a deixá-lo rever sua amada, pois esta "sente muito" sua falta. O diabo destrói seu argumento, afirmando que ela o estava enganando. Um agiota chega a seguir. Ele também é condenado ao inferno por ganância e avareza. Tenta convencer o anjo a ir para o céu, mas não consegue. Também pede ao diabo que o deixe voltar para pegar a riqueza que acumulou, mas é impedido e acaba na barca do inferno. O terceiro indivíduo a chegar é o parvo (um tolo, ingênuo). O diabo tenta convencê-lo a entrar na barca do inferno; quando o parvo descobre qual é o destino dela, vai falar com o anjo. Este, agraciando-o por sua humildade, permite-lhe entrar na barca do céu. O frade e a alcoviteira A alma seguinte é a de um sapateiro, com todos os seus instrumentos de trabalho. Durante sua vida enganou muitas pessoas, e tenta enganar também o diabo. Como não consegue, recorre ao anjo, que o condena como alguém que roubou do povo. O frade é o quinto a chegar... com sua amante. Chega cantarolando. Sente-se ofendido quando o diabo o convida a entrar na barca do inferno, pois, sendo representante religioso, crê que teria perdão. Foi, porém, condenado ao inferno por falso moralismo religioso. Brísida Vaz, feiticeira e alcoviteira, é recebida pelo diabo, que lhe diz que seu o maior bem são "seiscentos virgos postiços". Virgo é hímen, representa a virgindade. Compreendemos que essa mulher prostituiu muitas meninas virgens, e "postiço" nos faz acreditar que enganara seiscentos homens, dizendo que tais meninas eram virgens. Brísida Vaz tenta convencer o anjo a levá-la na barca do céu inutilmente. Ela é condenada por prostituição e feitiçaria. De judeus e "cristãos novos" A seguir, é a vez do judeu, que chega acompanhado por um bode. Encaminha-se direto ao diabo, pedindo para embarcar, mas até o diabo recusa-se a levá-lo. Ele tenta subornar o diabo, porém este, com a desculpa de não transportar bodes, o aconselha a procurar outra barca. O judeu fala então com o anjo, porém não consegue aproximar-se dele: é impedido, acusado de não aceitar o cristianismo. Por fim, o diabo aceita levar o judeu e seu bode, mas não dentro de sua barca, e, sim, rebocados. Tal trecho faz-nos pensar em preconceito antissemita do autor, porém, para entendermos por que Gil Vicente deu tal tratamento a esse personagem, precisamos contextualizar a época em que o auto foi escrito. Durante o reinado de dom Manuel, de 1495-1521, muitos judeus foram expulsos de Portugal, e os que ficaram, tiveram que se converter ao cristianismo, sendo perseguidos e chamados de "cristãos novos". Ou seja, Gil Vicente segue, nesta obra, o espírito da época. Representantes do judiciário O corregedor e o procurador, representantes do judiciário, chegam, a seguir, trazendo livros e processos. Quando convidados pelo diabo para embarcarem, começam a tecer suas defesas e encaminham-se ao anjo. Na barca do céu, o anjo os impede de entrar: são condenados à barca do inferno por manipularem a justiça em benefício próprio. Ambos farão companhia à Brísida Vaz, revelando certa familiaridade com a cafetina - o que nos faz crer em trocas de serviços entre eles e ela... O próximo a chegar é o enforcado, que acredita ter perdão para seus pecados, pois em vida foi julgado e enforcado. Mas também é condenado a ir ao inferno por corrupção. Por fim, chegam à barca quatro cavaleiros que lutaram e morreram defendendo o cristianismo. Estes são recebidos pelo anjo e perdoados imediatamente. O bem e o mal

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RESUMO DAS OBRAS LITERÁRIAS- UNEMAT 2012/2

AUTO DA BARCA DO INFERNO - GIL VICENTE

Por Márcia Lígia Guidin

Antes de qualquer coisa, "auto" é uma designação genérica para peça, pequena representação

teatral. Originário na Idade Média, tinha de início caráter religioso; depois tornou-se popular, para

distração do povo. Foi Gil Vicente (1465-c. 1537) que introduziu esse tipo de teatro em Portugal.

O "Auto da Barca do Inferno" (c. 1517) representa o juízo final católico de forma satírica e com

forte apelo moral. O cenário é uma espécie de porto, onde se encontram duas barcas: uma com destino ao

inferno, comandada pelo diabo, e a outra, com destino ao paraíso, comandada por um anjo. Ambos os

comandantes aguardam os mortos, que são as almas que seguirão ao paraíso ou ao inferno.

Chegam os mortos

Os mortos começam a chegar. Um fidalgo é o primeiro. Ele representa a nobreza, e é condenado

ao inferno por seus pecados, tirania e luxúria. O diabo ordena ao fidalgo que embarque. Este, arrogante,

julga-se merecedor do paraíso, pois deixou muita gente rezando por ele. Recusado pelo anjo, encaminha-

se, frustrado, para a barca do inferno; mas tenta convencer o diabo a deixá-lo rever sua amada, pois esta

"sente muito" sua falta. O diabo destrói seu argumento, afirmando que ela o estava enganando.

Um agiota chega a seguir. Ele também é condenado ao inferno por ganância e avareza. Tenta

convencer o anjo a ir para o céu, mas não consegue. Também pede ao diabo que o deixe voltar para pegar

a riqueza que acumulou, mas é impedido e acaba na barca do inferno.

O terceiro indivíduo a chegar é o parvo (um tolo, ingênuo). O diabo tenta convencê-lo a entrar na

barca do inferno; quando o parvo descobre qual é o destino dela, vai falar com o anjo. Este, agraciando-o

por sua humildade, permite-lhe entrar na barca do céu.

O frade e a alcoviteira

A alma seguinte é a de um sapateiro, com todos os seus instrumentos de trabalho. Durante sua

vida enganou muitas pessoas, e tenta enganar também o diabo. Como não consegue, recorre ao anjo, que

o condena como alguém que roubou do povo.

O frade é o quinto a chegar... com sua amante. Chega cantarolando. Sente-se ofendido quando o

diabo o convida a entrar na barca do inferno, pois, sendo representante religioso, crê que teria perdão. Foi,

porém, condenado ao inferno por falso moralismo religioso.

Brísida Vaz, feiticeira e alcoviteira, é recebida pelo diabo, que lhe diz que seu o maior bem são

"seiscentos virgos postiços". Virgo é hímen, representa a virgindade. Compreendemos que essa mulher

prostituiu muitas meninas virgens, e "postiço" nos faz acreditar que enganara seiscentos homens, dizendo

que tais meninas eram virgens. Brísida Vaz tenta convencer o anjo a levá-la na barca do céu inutilmente.

Ela é condenada por prostituição e feitiçaria.

De judeus e "cristãos novos"

A seguir, é a vez do judeu, que chega acompanhado por um bode. Encaminha-se direto ao diabo,

pedindo para embarcar, mas até o diabo recusa-se a levá-lo. Ele tenta subornar o diabo, porém este, com a

desculpa de não transportar bodes, o aconselha a procurar outra barca. O judeu fala então com o anjo,

porém não consegue aproximar-se dele: é impedido, acusado de não aceitar o cristianismo. Por fim, o

diabo aceita levar o judeu e seu bode, mas não dentro de sua barca, e, sim, rebocados.

Tal trecho faz-nos pensar em preconceito antissemita do autor, porém, para entendermos por que

Gil Vicente deu tal tratamento a esse personagem, precisamos contextualizar a época em que o auto foi

escrito. Durante o reinado de dom Manuel, de 1495-1521, muitos judeus foram expulsos de Portugal, e os

que ficaram, tiveram que se converter ao cristianismo, sendo perseguidos e chamados de "cristãos novos".

Ou seja, Gil Vicente segue, nesta obra, o espírito da época.

Representantes do judiciário

O corregedor e o procurador, representantes do judiciário, chegam, a seguir, trazendo livros e

processos. Quando convidados pelo diabo para embarcarem, começam a tecer suas defesas e

encaminham-se ao anjo. Na barca do céu, o anjo os impede de entrar: são condenados à barca do inferno

por manipularem a justiça em benefício próprio. Ambos farão companhia à Brísida Vaz, revelando certa

familiaridade com a cafetina - o que nos faz crer em trocas de serviços entre eles e ela...

O próximo a chegar é o enforcado, que acredita ter perdão para seus pecados, pois em vida foi

julgado e enforcado. Mas também é condenado a ir ao inferno por corrupção.

Por fim, chegam à barca quatro cavaleiros que lutaram e morreram defendendo o cristianismo.

Estes são recebidos pelo anjo e perdoados imediatamente.

O bem e o mal

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Como você percebeu, todos os personagens que têm como destino o inferno possuem algumas

características comuns, chegam trazendo consigo objetos terrenos, representando seu apego à vida; por

isso, tentam voltar. E os personagens a quem se oferece o céu são cristãos e puros. Você pode perceber

que o mundo aqui ironizado pelo autor é maniqueísta: o bem e o mal, o bom e o ruim são metades de um

mundo moral simplificado.

O "Auto da Barca do Inferno" faz parte de uma trilogia (Autos da Barca "da Glória", "do

Inferno" e "do Purgatório"). Escrito em versos de sete sílabas poéticas, possui apenas um ato, dividido em

várias cenas. A linguagem entre os personagens é coloquial - e é através das falas que podemos classificar

a condição social de cada um dos personagens.

Valores de duas épocas

Escrita na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, a obra oscila entre os valores morais

de duas épocas: ao mesmo tempo que há uma severa crítica à sociedade, típica da Idade Moderna, a obra

também está religiosamente voltada para a figura de Deus, o que é uma característica medieval.

A sátira social é implacável e coloca em prática um lema, que é "rindo, corrigem-se os defeitos

da sociedade". A obra tem, portanto, valor educativo muito forte. A sátira vicentina serve para nos

mostrar, tocando nas feridas sociais de seu tempo, que havia um mundo melhor, em que todos eram

melhores. Mas é um mundo perdido, infelizmente. Ou seja, a mensagem final, por trás dos risos, é um

tanto pessimista.

MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS - MANUEL ANTÔNIO DE ALMEIDA

O romance de Manuel Antônio de Almeida, escrito no período do romantismo, retrata a vida do

Rio de Janeiro no início do século XIX e desenvolve pela primeira vez na literatura nacional a figura do

malandro

Memórias de um Sargento de Milícias surgiu como um romance de folhetim, ou seja, em

capítulos, publicados semanalmente no jornal Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, entre junho de 1852 e

julho de 1853. Os folhetins não indicavam quem era o autor. A história saiu em livro em 1854 (primeiro

volume) e 1855 (segundo volume), com autoria creditada a “Um Brasileiro”. O nome de Manuel Antônio

de Almeida aparecerá apenas na terceira edição, já póstuma, em 1863.

ENREDO

Por ser originariamente um folhetim, publicado semanalmente, o enredo necessitava prender a

atenção do leitor, com capítulos curtos e até certo ponto independentes, em geral contendo um episódio

completo. A trama, por isso, é complexa, formada de histórias que se sucedem e nem sempre se

relacionam por causa e efeito.

“Filho de uma pisadela e de um beliscão” (referência à maneira como seus pais flertaram, ao se

conhecer no navio que os conduz de Portugal ao Brasil), o pequeno Leonardo é uma criança intratável,

que parece prever as dificuldades que irá enfrentar. E não são poucas: abandonado pela mãe, que foge

para Portugal com um capitão de navio, é igualmente abandonado pelo pai, mas encontra no padrinho seu

protetor. Esse é dono de uma barbearia e tem guardada boa soma em dinheiro.

A origem pouco digna desse capital – o barbeiro desviou a herança que um capitão moribundo

deixara à sobrinha – só será revelada posteriormente. A fórmula “arranjei-me” sintetiza, no romance, a

explicação dada pelo barbeiro para a posse do dinheiro. O autor acaba por dizer que muitos “arranjei-me”,

equivalentes ao atual “jeitinho brasileiro”, se explicam assim, e estende essa representação de sua história

a toda a sociedade da época.

As aventuras e desventuras de Leonardo, que o autor faz desfilar diante dos leitores com

dinamismo, conduzem o protagonista a apuros dos quais ele sempre se salva, graças a seus protetores.

Leonardo é um personagem fixo no romance, suas características básicas não mudam.

O romance inicia-se no começo do século XIX, quando D. João VI estava no Brasil. Em uma

viagem do navio, Leonardo-Pataca conhece Maria das Hortaliças. Em meio a "pisadelas e beliscões", os

dois se apaixonam e chegando no Brasil se casam. Desse relacionamento, eles tem um filho: Leonardo.

Porém, Leonardo o Pataca acaba flagrando Maria com outro homem. Ela acaba sendo expulsa de casa.

Com a separação, Leonardo sai de casa e vai ser criado pelo padrinho . O padrinho de Leonardo era um

barbeiro.

Ele queria que Leonardo fosse padre, mas o menino não tinha a menor vocação, ao contrário, ele

era muito travesso. O tempo se passava, e Leonardo se tornava um típico malandro carioca: Não possui

emprego, fica vadiando. Porém a sua vida muda quando conhece Luizinha, sobrinha de D. Maria, uma

antiga amiga do padrinho. Ele se apaixona por Luizinha, porém ele tem um rival José Manuel, que está

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interessado em sua herança. Com a ajuda de sua madrinha, a comadre, eles afastam o José Manuel de

Luizinha.

Porém, o padrinho de Leonardo morre, e ele tem que voltar a viver com o pai. Ele acaba não se

dando bem com sua nova madrasta, e em uma discussão ele acaba fugindo de casa. Leonardo vai viver

com um antigo amigo. Em uma casa bastante agitada e com muita gente, ele acaba se apaixonando por

Vidinha e o amor é recíproco. Porém esse namoro não agrada os dois primos de Vidinha, que têm

intenções de se casar com ela. Para tirar Leonardo do caminho, eles vão até Vidigal, respeitado chefe de

polícia, e acusam Leonardo de vadiagem.

Vidigal prende Leonardo quando ele, Vidinha e seus dois primos saem para curtir a noite. Mas

no caminho até a delegacia ele consegue fugir. Mais tarde ele arranja um emprego na Ucharia Real.

Assim, Vidigal não pode o prender. Porém ele se envolve com a mulher do "toma-largura". E com isso

ele é demitido, e preso por Vidigal. Enquanto isso José Manuel e Luizinha se casam. E ele a trata muito

mal. Vidinha, possessa de ciúmes, vai tomar satisfações com a mulher do "toma-largura". Mas, o que

acaba acontecendo é que o "toma-largura" se interessa por Vidinha. Enquanto isso, por saber muito sobre

a vida marginal, Leonardo vira policial.

Porém, Leonardo, pelo seu gosto por travessuras e muitas vezes pelo seu bom coração, ele acaba

protegendo e ajudando os bandidos. Vidigal o pune com chibatadas e o prende. A comadre em desespero,

tenta de todas as formas conseguir a libertação de Leonardo, mas tudo em vão. Até ela conhecer Maria-

Regalada, velho amor de Vidigal. Juntas não só conseguem a libertação de Leonardo como sua promoção

a sargento. E isso tudo vem em boa hora, já que com a morte de José Manuel, Luizinha agora viúva, se

casa com Leonardo. E tudo termina em um final feliz.

TEMPO

A história se passa no começo do século XIX, ocasião em que a família real portuguesa se

refugiou no Brasil. Por isso, o romance tem início com a expressão “Era no tempo do rei”, referindo-se ao

rei português dom João VI. Essa fórmula também faz referência – e isso é mais relevante para entender a

estrutura do romance – aos inícios dos contos de fada: “Era uma vez...”

NARRADOR

Apesar do título de “memórias”, o romance não é narrado pelo personagem Leonardo, e sim por

um narrador onisciente em terceira pessoa, que tece comentários e digressões no desenrolar dos

acontecimentos. O termo “memórias” refere-se à evocação de um tempo passado, reconstruído por meio

das histórias por que passa o personagem Leonardo.

ORDEM E DESORDEM

Duas forças de tensão movem os personagens do romance: ordem e desordem, que se revelarão

características profundas da sociedade colonial de então.

A figura do major Vidigal representa o polo que, na história, cuida da ordem: “O major Vidigal

era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz

que dava e distribuía penas e, ao mesmo tempo, o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua

justiça não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processos; ele resumia tudo em si (...)”.

A estabilidade social representa a ordem, enquanto a instabilidade se refere à desordem. Dessa

forma, o barbeiro, completamente adequado à sociedade, ao revelar as origens pouco recomendáveis de

sua estabilidade financeira, evoca no seu passado a desordem.

Personagens como o major Vidigal, a comadre, dona Maria e o compadre pertencem ao lado da

ordem. Mas os personagens desse polo nada têm de retidão, apenas estão em uma situação social mais

estável.

O polo da desordem é formado pelo malandro Teotônio, o sacristão da Sé e Vidinha. A

acomodação dos personagens, tanto na ordem como na desordem, está sujeita a uma mudança repentina

de polo, ou seja, não existe quem esteja totalmente situado no campo da ordem nem no da desordem. Não

há, portanto, uma caracterização maniqueísta dos tipos apresentados.

O major Vidigal, por exemplo, um típico mantenedor da ordem, transgride o código moral ao

libertar e promover Leonardo em troca dos favores amorosos de Maria Regalada.

ROMANCE MALANDRO

Nos estudos sobre a obra, houve uma linha de interpretação que, seguindo as indicações de

Mário de Andrade, e tendo como base o enredo episódico do livro, classificou o romance como uma

manifestação tardia do “romance picaresco”, gênero popular espanhol medieval dos séculos XVII e

XVIII.

O gênero picaresco – do qual o mais ilustre representante é o romance Lazareto de Tormes –

caracteriza-se por narrar, em primeira pessoa, os infortúnios de um pícaro, um garoto inocente e puro que

se torna amargo à medida que entra em contato com a dureza das condições de sobrevivência. Por isso

procura sempre agradar a seus superiores. O pícaro tem geralmente um destino negativo, acaba por aceitar

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a mediocridade e acomodar-se na lamentação desiludida, na miséria ou num casamento que não lhe dá

prazer algum.

Nenhuma dessas características está presente em Memórias de um Sargento de Milícias.

Leonardo não é inocente. Ao contrário, parece já ter nascido com “maus bofes”, como afirma a vizinha

agourenta. Também não é totalmente abandonado, tendo sempre alguém que toma seu partido e procura

favorecê-lo.

Ele ainda desafia seus superiores, como o mestre-de-cerimônias e o Vidigal. Por fim, Leonardo

não encontra um destino negativo, pois se casa com o objeto de sua paixão (Luisinha, a sobrinha de dona

Maria), acumulando cinco heranças e granjeando uma promoção com o major Vidigal.

Existem, de fato, algumas semelhanças entre Leonardo e os personagens picarescos. Uma é a

atitude inconsequente do protagonista, que o leva, por exemplo, a esquecer-se rapidamente de Luisinha ao

conhecer Vidinha. Depois, o amor antigo retorna, mas nada dá a entender que não possa acabar

novamente. Essas semelhanças, porém, são superficiais, por isso é problemática a classificação de

Memórias de um Sargento de Milícias como romance picaresco.

O que se vê é que Manuel Antônio de Almeida foge completamente ao idealismo romântico de

sua época. Se há traços românticos em sua obra, eles estão no tom irônico e satírico que assume o

narrador.

A conclusão possível é que estamos diante de um novo gênero nacional, que se constrói em torno

da figura do malandro, personagem que tem influências popularescas, como Pedro Malasarte; mas é

urbano e relaciona- se socialmente com as esferas da ordem e da desordem, já citadas.

É mais apropriado, por isso, classificar essa obra como um “romance malandro”, de cunho

satírico e com elementos de fábula. Esse gênero frutificará em vários romances posteriores, como

Macunaíma, de Mário de Andrade, e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade.

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS - MACHADO DE ASSIS

Ao criar um narrador que resolve contar sua vida depois de morto, Machado de Assis muda

radicalmente o panorama da literatura brasileira, além de expor de forma irônica os privilégios da elite da

época

Publicado em 1881, o livro aborda as experiências de um filho abastado da elite brasileira do

século XIX, Brás Cubas. Começa pela sua morte, descreve a cena do enterro, dos delírios antes de morrer,

até retornar a sua infância, quando a narrativa segue de forma mais ou menos linear – interrompida

apenas por comentários digressivos do narrador.

NARRADOR

A narração é feita em primeira pessoa e postumamente, ou seja, o narrador se autointitula um

defunto-autor – um morto que resolveu escrever suas memórias. Assim, temos toda uma vida contada por

alguém que não pertence mais ao mundo terrestre. Com esse procedimento, o narrador consegue ficar

além de nosso julgamento terreno e, desse modo, pode contar as memórias da forma como melhor lhe

convém.

FOCO NARRATIVO

Com a narração em primeira pessoa, a história é contada partindo de um relato do narrador-

observador e protagonista, que conduz o leitor tendo em vista sua visão de mundo, seus sentimentos e o

que pensa da vida. Dessa maneira, as memórias de Brás Cubas nos permitirão ter acesso aos bastidores da

sociedade carioca do século XIX.

TEMPO

A obra é apoiada em dois tempos. Um é o tempo psicológico, do autor além-túmulo, que, desse

modo, pode contar sua vida de maneira arbitrária, com digressões e manipulando os fatos à revelia, sem

seguir uma ordem temporal linear. A morte, por exemplo, é contada antes do nascimento e dos fatos da

vida.

No tempo cronológico, os acontecimentos obedecem a uma ordem lógica: infância, adolescência,

ida para Coimbra, volta ao Brasil e morte. A estranheza da obra começa pelo título, que sugere as

memórias narradas por um defunto. O próprio narrador, no início do livro, ressalta sua condição: trata-se

de um defunto-autor, e não de um autor defunto. Isso consiste em afirmar seus méritos não como os de

um grande escritor que morreu, mas de um morto que é capaz de escrever.

O pacto de verossimilhança sofre um choque aqui, pois os leitores da época, acostumados com a

linearidade das obras (início, meio e fim), veem-se obrigados a situar-se nessa incomum situação.

ENREDO

A infância de Brás Cubas, como a de todo membro da sociedade patriarcal brasileira da época, é

marcada por privilégios e caprichos patrocinados pelos pais. O garoto tinha como “brinquedo” de

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estimação o negrinho Prudêncio, que lhe servia de montaria e para maus-tratos em geral. Na escola, Brás

era amigo de traquinagem de Quincas Borbas, que aparecerá no futuro defendendo o humanitismo, misto

da teoria darwinista com o borbismo: “Aos vencedores, as batatas”, ou seja: só os mais fortes e aptos

devem sobreviver.

Na juventude do protagonista, as benesses ficam por conta dos gastos com uma cortesã, ou

prostituta de luxo, chamada Marcela, a quem Brás dedica a célebre frase: “Marcela amou-me durante

quinze meses e onze contos de réis”. Essa é uma das marcas do estilo machadiano, a maneira como o

autor trabalha as figuras de linguagem. Marcela é prostituta de luxo, mas na obra não há, em nenhum

momento, a caracterização nesses termos. Machado utiliza a ironia e o eufemismo para que o leitor capte

o significado. Brás Cubas não diz, por exemplo, que Marcela só estava interessada nos caros presentes

que ele lhe dava. Ao contrário, afirma categoricamente que ela o amou, mas fica claro que, naquela

relação, amor e interesse financeiro estão intimamente ligados.

Apaixonado por Marcela, Brás Cubas gasta enormes recursos da família com festas, presentes e

toda sorte de frivolidades. Seu pai, para dar um basta à situação, toma a resolução mais comum para as

classes ricas da época: manda o filho para a Europa estudar leis e garantir o título de bacharel em

Coimbra.

Brás Cubas, no entanto, segue contrariado para a universidade. Marcela não vai, como

combinara, despedir-se dele, e a viagem começa triste e lúgubre.

Em Coimbra, a vida não se altera muito. Com o diploma nas mãos e total inaptidão para o

trabalho, Brás Cubas retorna ao Brasil e segue sua existência parasitária, gozando dos privilégios dos

bem-nascidos do país.

Em certo momento da narrativa, Brás Cubas tem seu segundo e mais duradouro amor. Enamora-

se de Virgília, parente de um ministro da corte, aconselhado pelo pai, que via no casamento com ela um

futuro político. No entanto, ela acaba se casando com Lobo Neves, que arrebata do protagonista não

apenas a noiva como também a candidatura a deputado que o pai preparava.

A família dos Cubas, apesar de rica, não tinha tradição, pois construíra a fortuna com a

fabricação de cubas, tachos, à maneira burguesa. Isso não era louvável no mundo das aparências sociais.

Assim, a entrada na política era vista como maneira de ascensão social, uma espécie de título de nobreza

que ainda faltava a eles.

NÃO-REALIZAÇÕES

O romance não apresenta grandes feitos, não há um acontecimento significativo que se realize

por completo. A obra termina, nas palavras do narrador, com um capítulo só de negativas. Brás Cubas não

se casa; não consegue concluir o emplasto, medicamento que imaginara criar para conquistar a glória na

sociedade; acaba se tornando deputado, mas seu desempenho é medíocre; e não tem filhos.

A força da obra está justamente nessas não-realizações, nesses detalhes. Os leitores ficam sempre

à espera do desenlace que a narrativa parece prometer. Ao fim, o que permanece é o vazio da existência

do protagonista. É preciso ficar atento para a maneira como os fatos são narrados. Tudo está mediado pela

posição de classe do narrador, por sua ideologia. Assim, esse romance poderia ser conceituado como a

história dos caprichos da elite brasileira do século XIX e seus desdobramentos, contexto do qual Brás

Cubas é, metonimicamente, um representante.

O que está em jogo é se esses caprichos vão ou não ser realizados. Alguns exemplos: a hesitação

ao começar a obra pelo fim ou pelo começo; comparar suas memórias às sagradas escrituras; desqualificar

o leitor: dar-lhe um piparote, chamá-lo de ébrio; e o próprio fato de escrever após a morte. Se Brás Cubas

teve uma vida repleta de caprichos, em virtude de sua posição de classe, é natural que, ao escrever suas

memórias, o livro se componha desse mesmo jeito.

O mais importante não é a realização ou não dessas veleidades, mas o direito de tê-las, que está

reservado apenas a uns poucos da sociedade da época. Veja-se o exemplo de Dona Plácida e do negro

Prudêncio. Ambos são personagens secundários e trabalham para os grandes. A primeira nasceu para uma

vida de sofrimentos: “Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou

não comer, andar de um lado pro outro, na faina, adoecendo e sarando…”, descreve Brás. Além da vida

de trabalhos e doenças e sem nenhum sabor, Dona Plácida serve ainda de álibi para que Brás e Virgília

possam concretizar o amor adúltero numa casa alugada para isso.

Com Prudêncio, vê-se como a estrutura social se incorpora ao indivíduo. Ele fora escravo de

Brás na infância e sofrera os espancamentos do senhor. Um dia, Brás Cubas o encontra, depois de

alforriado, e o vê batendo num negro fugitivo. Depois de breve espanto, Brás pede para que pare com

aquilo, no que é prontamente atendido por Prudêncio. O ex-escravo tinha passado a ser dono de escravo e,

nessa condição, tratava outro ser humano como um animal. Sua única referência de como lidar com a

situação era essa, afinal era o modo como ele próprio havia sido tratado anteriormente. Prudêncio não

hesita, porém, em atender ao pedido do ex-dono, com o qual não tinha mais nenhum tipo de dívida nem

obrigação a cumprir.

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CONCLUSÃO

Machado alia nesse romance profundidade e sutileza, expondo muitos problemas de nossa

sociedade que existem até hoje. Daí o prazer da leitura e a importância de seu texto, pois atualiza, de

forma irônica, os processos em que nosso país foi formado, suas contradições e os desmandos que ainda

estão presentes.

O CORTIÇO - ALUÍSIO DE AZEVEDO

Tendo como cenário uma habitação coletiva, o romance difunde as teses naturalistas, que

explicam o comportamento dos personagens com base na influência do meio, da raça e do momento

histórico

Ao ser lançado, em 1890, O Cortiço teve boa recepção da crítica, chegando a obscurecer

escritores do nível de Machado de Assis. Isso se deve ao fato de Aluísio de Azevedo estar mais em

sintonia com a doutrina naturalista, que gozava de grande prestígio na Europa. O livro é composto de 23

capítulos, que relatam a vida em uma habitação coletiva de pessoas pobres (cortiço) na cidade do Rio de

Janeiro.

O romance tornou-se peça-chave para o melhor entendimento do Brasil do século XIX.

Evidentemente, como obra literária, ele não pode ser entendido como um documento histórico da época.

Mas não há como ignorar que a ideologia e as relações sociais representadas de modo fictício em O

Cortiço estavam muito presentes no país.

RIGOR CIENTÍFICO

Essa criação de Aluísio de Azevedo tem como influência maior o romance L’Assommoir, do

escritor francês Émile Zola, que prescreve um rigor científico na representação da realidade. A intenção

do método naturalista era fazer uma crítica contundente e coerente de uma realidade corrompida. Zola e,

neste caso, Aluísio combatem, como princípio teórico, a degradação causada pela mistura de raças.

Por isso, os dois romances naturalistas são constituídos de espaços nos quais convivem

desvalidos de várias etnias. Esses espaços se tornam personagens do romance.

É o caso do cortiço, que se projeta na obra mais do que os próprios personagens que ali vivem.

Um exemplo pode ser visto no seguinte trecho:

“E durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente.

E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte

daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e

mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela,

rachando o solo e abalando tudo.”

O narrador compara o cortiço a uma estrutura biológica (floresta), um organismo vivo que cresce

e se desenvolve, aumentando as forças daninhas e determinando o caráter moral de quem habita seu

interior.

NARRADOR

A obra é narrada em terceira pessoa, com narrador onisciente (que tem conhecimento de tudo),

como propunha o movimento naturalista. O narrador tem poder total na estrutura do romance: entra no

pensamento dos personagens, faz julgamentos e tenta comprovar, como se fosse um cientista, as

influências do meio, da raça e do momento histórico.

O foco da narração, a princípio, mantém uma aparência de imparcialidade, como se o narrador se

apartasse, à semelhança de um deus, do mundo por ele criado. No entanto, isso é ilusório, porque o

procedimento de representar a realidade de forma objetiva já configura uma posição ideologicamente

tendenciosa.

TEMPO

Em O Cortiço, o tempo é trabalhado de maneira linear, com princípio, meio e desfecho da

narrativa. A história se desenrola no Brasil do século XIX, sem precisão de datas. Há, no entanto, que

ressaltar a relação do tempo com o desenvolvimento do cortiço e com o enriquecimento de João Romão.

ESPAÇO

São dois os espaços explorados na obra. O primeiro é o cortiço, amontoado de casebres mal-

arranjados, onde os pobres vivem. Esse espaço representa a mistura de raças e a promiscuidade das

classes baixas. Funciona como um organismo vivo. Junto ao cortiço estão a pedreira e a taverna do

português João Romão.

O segundo espaço, que fica ao lado do cortiço, é o sobrado aristocratizante do comerciante

Miranda e de sua família. O sobrado representa a burguesia ascendente do século XIX. Esses espaços

fictícios são enquadrados no cenário do bairro de Botafogo, explorando a exuberante natureza local como

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meio determinante. Dessa maneira, o sol abrasador do litoral americano funciona como elemento

corruptor do homem local.

ENREDO

O livro narra inicialmente a saga de João Romão rumo ao enriquecimento. Para acumular capital,

ele explora os empregados e se utiliza até do furto para conseguir atingir seus objetivos. João Romão é o

dono do cortiço, da taverna e da pedreira. Sua amante, Bertoleza, o ajuda de domingo a domingo,

trabalhando sem descanso.

Em oposição a João Romão, surge a figura de Miranda, o comerciante bem estabelecido que cria

uma disputa acirrada com o taverneiro por uma braça de terra que deseja comprar para aumentar seu

quintal. Não havendo consenso, há o rompimento provisório de relações entre os dois.

Com inveja de Miranda, que possui condição social mais elevada, João Romão trabalha

ardorosamente e passa por privações para enriquecer mais que seu oponente. Um fato, no entanto, muda a

perspectiva do dono do cortiço. Quando Miranda recebe o título de barão, João Romão entende que não

basta ganhar dinheiro, é necessário também ostentar uma posição social reconhecida, freqüentar

ambientes requintados, adquirir roupas finas, ir ao teatro, ler romances, ou seja, participar ativamente da

vida burguesa.

No cortiço, paralelamente, estão os moradores de menor ambição financeira. Destacam-se Rita

Baiana e Capoeira Firmo, Jerônimo e Piedade. Um exemplo de como o romance procura demonstrar a má

influência do meio sobre o homem é o caso do português Jerônimo, que tem uma vida exemplar até cair

nas graças da mulata Rita Baiana. Opera-se uma transformação no português trabalhador, que muda todos

os seus hábitos.

A relação entre Miranda e João Romão melhora quando o comerciante recebe o título de barão e

passa a ter superioridade garantida sobre o oponente. Para imitar as conquistas do rival, João Romão

promove várias mudanças na estalagem, que agora ostenta ares aristocráticos.

O cortiço todo também muda, perdendo o caráter desorganizado e miserável para se transformar

na Vila João Romão.

O dono do cortiço aproxima-se da família de Miranda e pede a mão da filha do comerciante em

casamento. Há, no entanto, o empecilho representado por Bertoleza, que, percebendo as manobras de

Romão para se livrar dela, exige usufruir os bens acumulados a seu lado.

Para se ver livre da amante, que atrapalha seus planos de ascensão social, Romão a denuncia a

seus donos como escrava fugida. Em um gesto de desespero, prestes a ser capturada, Bertoleza comete o

suicídio, deixando o caminho livre para o casamento de Romão.

ALEGORIA DO BRASIL

Mais do que empregar os preceitos do naturalismo, a obra mostra práticas recorrentes no Brasil

do século XIX. Na situação de capitalismo incipiente, o explorador vivia muito próximo ao explorado, daí

a estalagem de João Romão estar junto aos pobres moradores do cortiço. Ao lado, o burguês Miranda, de

projeção social mais elevada que João Romão, vive em seu palacete com ares aristocráticos e teme o

crescimento do cortiço. Por isso pode-se dizer que O Cortiço não é somente um romance naturalista, mas

uma alegoria do Brasil.

O autor naturalista tinha uma tese a sustentar sua história. A intenção era provar, por meio da

obra literária, como o meio, a raça e a história determinam o homem e o levam à degenerescência.

A obra está a serviço de um argumento. Aluísio se propõe a mostrar que a mistura de raças em

um mesmo meio desemboca na promiscuidade sexual, moral e na completa degradação humana. Mas,

para, além disso, o livro apresenta outras questões pertinentes para pensar o Brasil, que ainda são atuais,

como a imensa desigualdade social.

A CIDADE E AS SERRAS - EÇA DE QUEIRÓS

Publicado em 1901, no ano seguinte ao da morte de Eça de Queirós, o romance A Cidade e as

Serras foi desenvolvido a partir da idéia central contida no conto Civilização, datado de 1892. É um

romance denso, belo, ao longo do qual Eça de Queirós ironiza ferrenhamente os males da civilização,

fazendo elogio dos valores da natureza.

É uma obra das mais significativas de Eça de Queirós. Nela o escritor relata a travessia de

Jacinto de Tormes, um ferrenho adepto do progresso e da civilização - da cidade para as serras. Ele troca

o mundo civilizado, repleto de comodidades provenientes do progresso tecnológico, pelo mundo natural,

selvagem, primitivo e pouco confortável, no sentido dos bens que caracterizam a vida urbana moderna,

mas onde encontra a felicidade, mudando radicalmente de opinião.

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A Cidade e as Serras preconiza uma relação entre as elites e as classes subalternas na qual

aquelas promovessem estas socialmente, como faz Jacinto ao reformar sua propriedade no campo e

melhorar as condições vida dos trabalhadores.

Por meio do personagem central, Jacinto de Tormes, que representa a elite portuguesa, a obra

critica-lhe o estilo de vida afrancesado e desprovido de autenticidade, que enaltece o progresso urbano e

industrial e se desenraiza do solo e da cultura do país.

Na obra, a apologia da natureza não pode ser confundida com o elogio da mesmice e da

mediocridade da vida campestre de Portugal. Ao contrário, trata-se de agigantar o espírito lusitano, em

seu caráter ativo e trabalhador. Assim, podemos afirmar que depois da tese (a hipervalorização da

civilização) e da antítese (a hipesvalorização da natureza), o protagonista busca a síntese, ou seja, o

equilíbrio, que vem da racionalização e da modernização da vida no campo.

Um argumento para tal interpretação está no fato de que, quando se desloca para a serra, Jacinto

sente uni irresistível ímpeto empreendedor, que luta inclusive contra as resistências dos empregados ao

trabalho.

Concluindo, Jacinto de Tormes, ao buscar a felicidade, empreendeu uma viagem que o

reencontrou consigo mesmo e com o seu país. Tal viagem, que concomitantemente é exterior e interior,

abarca a pátria portuguesa e se reveste de uma significação particular, pode ser lida como um processo de

auto-conhecimento: um novo Portugal e um novo português se percebem nas serras que querem utilizam

da cidade o necessário para se civilizarem sem se corromperem.

Podemos considerar A Cidade e as Serras um romance no qual se destaca a categoria espaço, na

medida em que os ambientes são fundamentais para a compreensão da história, destacando-se os

contrastes por meio dos quais se contrapõem. Assim, a amplidão da quinta de Tormes contrasta com a

estreiteza do universo tecnológico do 202, o que aponta para a oposição entre o espaço civilizado e o

espaço natural, presente em todo o romance.

Foco narrativo

Escrito em primeira pessoa, A Cidade e as Serras, como a maioria dos romances de Eça de

Queirós, há um narrador-personagem, José Fernandes, o qual não se confunde com o protagonista da

obra, Jacinto de Tormes. Este narrador coloca-se como menos importante do que o protagonista, como

podemos perceber, por exemplo, no início da obra.

Nos primeiros parágrafos do livro o narrador, em vez de apresentar-se ao leitor, coloca-se em

segundo plano para apresentar toda a descendência dos de Tormes, até aparecer a figura de Jacinto. Além

disso, dá-lhe tratamento diferenciado, parecendo idealizar Jacinto, na medida em que o chama de

"Príncipe da Grã-Ventura", conforme apelido estudantil do protagonista.

Personagens

Uma particularidade da personagem José Fernandes, está na importância que dá aos instintos,

sobrepondo-os à sua capacidade de sentir ou de pensar. Assim, tanto desilusões amorosas quanto

preocupações sociais são tratadas com almoços extraordinários. Ao longo do romance ele procura provar

o engano que as crenças civilizatórias de seu amigo, Jacinto de Tormes, podem conduzir, embora o

admire exageradamente.

Jacinto de Tormes é filho de uma família de fidalgos portugueses, mas nascido e criado em Paris.

Se cerca de artefatos da civilização e de tudo o que a ciência produz de mais moderno. Entretanto, o

excesso de ócio e conforto o entedia, a ponto de fazê-lo perder o apetite, a sede lendária, a robustez física

e a disposição intelectual da juventude. Levado pelas circunstâncias a conhecer suas propriedades nas

serras portuguesas, apaixona-se pelo campo, lá introduzindo algumas inovações.

Mesmo em contato com a natureza, Jacinto não abandona alguns de seus hábitos urbanos.

Desenha futuras hortas, planeja bibliotecas na quinta, traz banheiras e vidros desconhecidos dos

habitantes do lugar. Por fim, manda instalar uma linha telefônica nas serras, o que comprova que no

fundo não houve grandes modificações em suas crenças.

Ele representa não apenas uma crítica do escritor à ultracivilização, mas também a utopia de um

novo Portugal, uma nova pátria, capaz de modernizar-se, sem perder as tradições e as particularidades

nacionais.

Trata-se, enfim, de um D. Sebastião atualizado pelo socialismo e pelo positivismo. A trajetória

percorrida pelo protagonista Jacinto de Tormes deve-se em grande parte, às instâncias e insistências de

José Fernandes, que ao mesmo tempo é contador da história e um de seus personagens principais.

Os personagens ligados à vida no campo caracterizam-se por atitudes simples e transparentes,

embora tradicionalistas. Um exemplo pode ser o avó de Jacinto, Gatão, cuja ligação ancestral com o

referido ambiente manifesta-se pela total devoção à realeza absolutista, que o leva a abandonar Portugal

depois da expulsão de D. Miguel.

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Entretanto, a melhor representação desse grupo de personagens da obra pode ser atribuída a

Joaninha, a mulher por quem Jacinto se apaixona, graças a seus atributos naturais e sua simplicidade de

espírito.

Enredo

O narrador centraliza seu interesse na figura de um certo Jacinto, descrevendo-o como um

homem extremamente forte e rico, que, embora tenha nascido em Paris, no 202 dos Campos Elíseos, tem

seus proventos recolhidos de Portugal, onde a família possui extensas terras, desde os tempos de D. Dinis,

com plantações e produção de vinho, cortiça e oliveira, que lhe rendem bem.

O avô de Jacinto, também Jacinto, gordo e rico, a quem chamavam D. Galeão, era um fanático

miguelista. Quando D. Miguel deixou o poder, Jacinto Galeão exilou-se voluntariamente em Paris, lá

morrendo de indigestão. D. Angelina Fafes, após a morte do marido, não regressou a Portugal, e, em

Paris, criou seu filho, o franzino e adoentado Cintinho que se casou com a filha de um desembargador,

nascendo desta união nosso protagonista.

Desde pequeno Jacinto brilhara, quer por sua inteligência, quer por sua capacidade. Aos 23 anos

tornou-se um soberbo rapaz, vestido impecavelmente, cabelos e bigodes bem tratados, e feliz da vida.

Tudo de melhor acontecia com ele, sendo chamado pelos companheiros de “Príncipe da Grã-Ventura”.

Positivista animado, Jacinto defendia a idéia de que “o homem só é superiormente feliz quando é

superiormente civilizado”. A maior preocupação de Jacinto era defender a tese de que a civilização é

cidade grande, é máquina e progresso que chegavam através do fonógrafo, do telefone cujos fios cortam

milhares de ruas, barulhos de veículos, multidões... Civilização é enxergar à frente.

Com estes olhos que recebemos da Madre Natureza, lestos e sãos, nós podemos apenas distinguir

além, através da Avenida, naquela loja, uma vidraça alumiada. Nada mais! Se eu porém aos meus olhos

juntar os dois vidros simples de um binóculo de corridas, percebo, por trás da vidraça, presuntos, queijos,

boiões de geléia e caixas de ameixa seca. Concluo, portanto, que é uma mercearia.

Obtive uma noção: tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês só o luzir da vidraça, uma

vantagem positiva. Se agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os de meu telescópio, de

composição mais científica, poderia avistar além, no planeta Marte, os mares, as neves, os canais, o

recorte dos golfos, toda a geografia de um astro que circula a milhares de léguas dos Campos Elísios. É

outra noção, e tremenda!

Tens aqui, pois, o olho primitivo, o da natureza, elevado pela Civilização à sua máxima potência

da visão. E desde já, pelo lado do olho, portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque

descubro realidades do universo que ele não suspeita e de que está privado. Aplica esta prova a todos os

órgãos e compreende o meu princípio.

Enquanto à inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável acumulação das noções, só

te peço que compares Renan e o Grilo... Claro é, portanto, que nos devemos cercar de Civilização nas

máximas proporções para gozar nas máximas proporções a vantagem de viver.

Em fevereiro de 1880, José Fernandes foi chamado pelo tio e parte para Guiães e, somente após

sete anos de vida na província, retorna e reencontra Jacinto no 202 dos Campos Elíseos.

O narrador presenciou coisas espantosas: um elevador para ligar dois andares do palacete; no

gabinete de trabalho havia aparelhos mecânicos cheios de artifício; e, enquanto Jacinto escreve para

Madame d’Oriol, José Fernandes visita uma enorme biblioteca de trinta mil títulos, os mais diversos

possíveis, dos mais renomados autores às mais diferentes ciências. A visita termina com uma refeição em

que foram servidas as mais sofisticadas iguarias e um convite de Jacinto ao narrador que ele se hospede

no 202.

Primeiros desencantos

José Fernandes, a partir daí, pôde observar com maior atenção o amigo; suas intensas atividades

o desgastavam e, com o passar do tempo, constatou que Jacinto foi perdendo a credulidade, percebendo a

futilidade das pessoas com quem convivia, a inutilidade de muitas coisas da sua tão decantada civilização.

Nos raros momentos em que conseguiam passear, confessava ao amigo que o barulho das ruas o

incomodava, a multidão o molestava: ele atravessava um período de nítido desencanto.

Alguns incidentes contribuíram sobremaneira para afetar o estado de ânimo de Jacinto: o

rompimento de um dos tubos da sala de banho, fazendo jorrar água quente por todo o quarto, inundando

os tapetes, foi o bastante para aparecer uma pilha de telegramas, alguns inclusive com um riso sarcástico,

com o do Grão-duque Casimiro, dizendo que não mais apareceria pelo 202 sem que tivesse uma bóia de

salvação.

As reuniões sociais estavam ficando maçantes. Em uma recepção ao Grão-Duque, Jacinto já não

agüentava o farfalhar das sedas das mulheres quando lhes explicava o uso dos diferentes aparelhos, o

tetrafone, o numerador de páginas, o microfone...

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O criado veio lhe informar que o peixe a ser servido ficara preso no elevador e os convidados

puseram-se a pescá-lo, inutilmente, porque o peixe acabou não indo para a mesa, fato que deixou ainda

mais aborrecido o anfitrião.

Claramente percebia eu que o meu Jacinto atravessava uma densa névoa de tédio, tão densa, e

ele tão afundado na sua mole densidade, que as glórias ou os tormentos de um camarada não o comoviam,

como muito remotas, inatingíveis, separadas da sua sensibilidade por imensas camadas de algodão.

Pobre Príncipe Grã-Ventura, tombado para o sofá de inércia, com os pés no regaço do pedicuro!

Em que lodoso fastio caíra, depois de renovar tão brava mente todo o recheio mecânico e erudito do 202,

na sua luta contra a força e a matéria!

Preocupado, Zé Fernandes consulta o fiel criado Grilo sobre o que está ocorrendo com Jacinto. O

homem respondeu com tamanho conhecimento de causa que espantou o narrador. Uma simples palavra

poderia definir todo o tédio de que era acometido: o patrão sofria de “fartura”.

Era fartura! O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris; e na Cidade, na simbólica

Cidade, fora de cuja vida culta e forte (como ele outrora gritava, iluminado) o homem do século XIX

nunca poderia saborear plenamente a "delícia de viver", ele não encontrava agora forma de vida,

espiritual ou social, que o interessasse, lhe valesse o esforço de uma corrida curta numa tipóia fácil.

Pobre Jacinto! Um jornal velho, setenta vezes relido desde a crônica até aos anúncios, com a

tinta delida, as dobras roídas, não enfastiaria mais o solitário, que só possuísse na sua solidão esse

alimento intelectual, do que o parisianismo enfastiava o meu doce camarada!

Se eu nesse verão capciosamente o arrastava a um café-concerto, ou ao festivo Pavilhão

d'Armenonville, o meu bom Jacinto, colado pesadamente à cadeira, com um maravilhoso ramos de

orquídeas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o castão da bengala, conservava toda a noite uma

gravidade tão estafada, que eu, compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em abalar, a

sua fuga de ave solta... Raramente (e então com veemente arranque como quem salta um fosso) descia a

um dos seus clubes, ao fundo dos Campos Elíseos.

Não se ocupara mais das suas sociedades e companhias, nem dos telefones de Constantinopla,

nem das religiões esotéricas, nem do bazar espiritualista, cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a

mesa de ébano, de onde o Grilo as varria tristemente como o lixo de uma vida finda.

Também lentamente se despegava de todas as sua convivências. As páginas da agenda cor-de-

rosa murcha andavam desafogadas e brancas. E se ainda cediam a um passeio de mail-coach, ou a um

convite para algum castelo amigos dos arredores de Paris, era tão arrastadamente, com um esforço

saturado ao enfiar o paletó leve, que me lembrava sempre um homem, depois de um gordo jantar de

província, a estalar, que, por polidez ou em obediência a um dogma, devesse ainda comer uma lampreia

de ovos!

Jazer, jazer em casa, na segurança das portas bem cerradas e bem fendidas contra toda a intrusão

do mundo, seria uma doçura para o meu Príncipe se o seu próprio 202, com todo aquele tremendo recheio

de Civilização, não lhe desse uma sensação dolorosa de abafamento, de atulhamento!

Certo dia, enquanto esperavam ser recebidos por Madame d'Oriol, José Fernandes e Jacinto

subiram à Basílica do Sacré-Coeur, em construção no alto de Montmartre. Ao se recostarem na borda do

terraço, puderam contemplar Paris envolta em uma nuvem cinzenta e fria, motivando profunda reflexões,

pois a cidade - tão cheia de vida, de ouro, de riquezas, de cultura e resplandecência, incluindo o soberbo

202, com todas as suas sofisticações - estava agora sucumbida sob as nuvens cinzentas, a cidade não

passava de uma ilusão.

(...) uma ilusão! E a mais marga, porque o homem pensa ter na cidade a base de toda a sua

grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza

harmoniosa do corpo e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto de ossos

moles como trapos, de nervos trêmulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentauros de

chumbo sem sangue, sem febre, sem viço, torto, corcunda - esse ser em que Deus, espantado , mal pôde

reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão!

Na Cidade findou a sua liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada

necessidade o arremessa para uma dependência; pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar,

adular, vergar, rastejar, aturar: rico e superior como um Jacinto, a sociedade logo o enreda em tradições,

preceitos, etiquetas, cerimônias, prazer, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um

quartel... A sua tranqüilidade (bem tão alto que Deus com ele recompensa os santos) onde está, meu

Jacinto?

Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo

gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que

tumultuam na arquejante ocupação de desejar - e que, nunca fartando o desejo, incessantemente padecem

de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na cidade se

desumanizam!

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Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com

serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar

com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquietada da

defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao

menor embate da rivalidade ou do orgulho.

E o amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos; onde a

nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel, como a de vaca! Contempla esse velho deus do himeneu,

que circula trazendo em vez do ondeante facho da paixão a apertada carteira do dote!

(...) Mas o que a Cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta

dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de idéias e

fórmulas que constitui a atmosfera mental das cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa

todos os pensamentos já pensados só exprime todas as expressões já exprimidas; ou então, para se

destacar na pardacenta e chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente

esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão. (...)

Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e

alcatrão, e o carvão tapa o céu, e agente vive acamada nos prédios com o paninho nas lojas, e a claridade

vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames - o homem aparece como uma criatura

anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si uma

espírito que é passivo como um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que

é a bela Cidade!

Zé Fernandes continuou a filosofar, acrescentando preocupações de caráter pessoal, indagando a

posição dos pequenos que, como vermes, se arrastavam pelo chão, enquanto os poderosos os

massacravam; eles iam às óperas aquecidos, lançando aos pobres não mais que algumas migalhas.

Religiosamente, acreditava ser necessário um novo Messias que ensinasse às multidões a humildade e a

mansidão.

Só uma estreita e reluzente casta goza na Cidade e os gozos especiais que ele a cria. O resto, a

escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimento especiais, que só nela existem! (...) A tua

Civilização reclama incansavelmente regalos e pompas, que só obterá, nesta amarga desarmonia social, se

o capital der ao trabalho, por cada arquejante esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável é, pois, que

incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada miséria é a condição do esplendor sereno da

Cidade. (...)

Pensativamente deixou a borda do terraço, como se a presença da Cidade, estendida na planície,

fosse escandalosa. E caminhamos devagar, sob a moleza cinzenta da tarde, filosofando - considerando

que para esta iniqüidade não havia cura humana, trazida pelo esforço humano.

Ah, os Efrains, os Trèves, os vorazes e sombrios tubarões do mar humano, só abandonarão ou

afrouxarão a exploração das plebes, se uma influência celeste, por milagre novo, mais alto que os

milagres velhos, lhes converter as almas! O burguês triunfa, muito forte, todo endurecido no pecado - e

contra ele são impotentes os prantos dos humanitários, os raciocínios dos lógicos, as bombas dos

anarquistas. Para amolecer tão duro granito só uma doçura divina. Eis pois a esperança da Terra

novamente posta num Messias!...

SAGARANA - GUIMARÃES ROSA

Primeira obra de Guimarães Rosa a sair em livro, traz nove contos, nos quais o universo do

sertão, com seus vaqueiros e jagunços, surge no estilo marcante que o escritor iria aprofundar em textos

posteriores

O livro de estreia de João Guimarães Rosa foi publicado em sua versão final em 1946. Os contos

começaram a ser escritos em 1937, e até o lançamento definitivo, a obra foi reduzida de 500 para 300

páginas, composta de nove contos / novelas. Nesse processo, o autor filtrou o que havia de melhor no

texto, utilizando em seu peculiar processo de invenção de palavras o hibridismo – que consiste na

formação de palavras pela junção de radicais de línguas diferentes. O título do livro é composto dessa

forma. Saga, radical de origem germânica, quer dizer “canto heróico”; rana, na língua indígena, significa

“espécie de”.

Entre os contos que escreve em Sagarana, merece destaque especial “A Hora e a Vez de Augusto

Matraga”. Tido pela crítica como um dos mais importantes contos de nossa literatura, condensa os vários

temas presentes no livro: o sertão, o povo, a jagunçagem, a religiosidade e o amor.

ELEMENTOS ESTRUTURAIS

Os narradores de Sagarana têm o estilo marcante criado por Guimarães Rosa, cuja principal

característica é a oralidade. No entanto, esse traço ainda não está tão acentuado como em obras

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posteriores, como Grande Sertão: Veredas e Primeiras Estórias, entre outras. Considerando que a

oralidade acentuada é um dos principais obstáculos para a leitura de Guimarães Rosa, o livro Sagarana é

uma excelente opção para iniciar-se na obra do autor.

Em relação ao foco narrativo, com exceção dos contos “Minha Gente” e “São Marcos” – que são

narrados em primeira pessoa –, os demais possuem narradores em terceira pessoa. Quanto ao tempo e ao

espaço de Sagarana, pouco há o que ser dito. Sobre o primeiro elemento, vale destacar a linearidade da

narrativa, que se desenvolve na maior parte sob o tempo psicológico dos personagens.

O espaço é quase sempre Minas Gerais. Mais especificamente, o interior do estado. Vale uma

atenção maior para o nome dos povoados e vilarejos dos contos. Os estados de Goiás e do Rio de Janeiro

são mencionados no livro, mas têm pouca relevância na narrativa.

O BURRINHO PEDRÊS

Enredo – Sete-de-Ouros é um burrinho decrépito que já fora bom e útil para seus vários donos.

Esquecido na fazenda do Major Saulo, tem o azar de ser avistado numa travessia pelo dono da fazenda,

que o escala para ajudar no transporte do gado. Na travessia do Córrego da Fome, todos os cavalos e

vaqueiros morrem, exceto dois: Francolim e Badu; este montado e aquele agarrado ao rabo do Burrinho

Sete-de-Ouros.

Principais personagens – Sete-de- Ouros (burrinho pedrês), Major Saulo, Francolim e Badu.

A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO

Enredo – Lalino é um típico malandro que não aprecia o trabalho, apenas a boa vida. Abandona

o serviço na estrada de ferro e vai para o Rio de Janeiro, largando sua mulher, Maria Rita, a Ritinha, na

região. No retorno, a encontra casada com o espanhol Ramiro. Torna-se cabo eleitoral do Major Anacleto,

que, graças a ele, ganha a eleição. Laio, como também é conhecido, reconcilia-se com Maria Rita no fim

do conto.

Principais personagens – Lalino Salathiel, Maria Rita, Ramiro e Major Anacleto.

SARAPALHA

Enredo – a história de dois primos, Ribeiro e Argemiro, contagiados pela malária que se

espalhou no vau de Sarapalha. Os dois estão solitários na região, já que parte da população morrera e os

demais fugiram, entre os quais a mulher de Ribeiro, Luísa. Argemiro, percebendo a iminência da morte e

desejando ter a consciência tranqüila, confessa o interesse pela esposa do primo. Ribeiro reage à confissão

de forma agressiva e expulsa Argemiro de suas terras, sem nenhuma complacência.

Principais personagens – Primo Ribeiro e Primo Argemiro.

DUELO

Enredo – Turíbio flagra sua mulher, Silvana, com o ex-militar Cassiano Gomes. Ao procurar

vingar sua honra, confunde-se e acaba matando o irmão de Cassiano Gomes. Turíbio foge para o sertão e

é perseguido pelo ex-militar. Nessa disputa, os dois alternam os papéis de caça e de caçador. Cassiano

adoece e, antes de morrer, ajuda um capiau chamado Vinte-e-um, que passava por dificuldades

financeiras. Turíbio volta para casa e é surpreendido por Vinte-e-um, que o executa para vingar seu

benfeitor.

Principais personagens – Turíbio Todo, Cassiano Gomes, Silvana e Vinte-e-um.

MINHA GENTE

Enredo – Emílio visita a fazenda de seu tio, candidato às eleições, e apaixona-se por sua prima

Maria Irma, mas não é correspondido. Ela se interessa por Ramiro, noivo de outra moça. Emílio finge-se

enamorado de outra mulher. O plano falha, mas a prima apresenta-lhe sua futura esposa, Armanda. Maria

Irma casa-se com Ramiro Gouveia.

Principais personagens – Emílio (narrador), Maria Irma, Ramiro Gouveia e Armanda.

SÃO MARCOS

Enredo – José, narrador-personagem, é supersticioso, mas mesmo assim zomba dos feiticeiros do

Calango-Frito, em especial de João Mangolô. Izé, como é conhecido o protagonista, recita por zombaria a

oração de São Marcos para Aurísio Manquitola e é duramente repreendido por banalizar uma prece tão

poderosa.

Certo dia, caminhando no mato, Izé fica subitamente cego e passa a se orientar por cheiros e

ruídos. Perdido e desesperado, recita a oração de São Marcos. Guiando-se pela audição e pelo olfato,

descobre o caminho certo: a cafua de João Mangolô. Lá, irado, tenta estrangular o feiticeiro e, ao retomar

a visão, percebe que o negro havia colocado uma venda nos olhos de um retrato seu para vingar-se das

constantes zombarias.

Principais personagens – José, ou Izé (narrador), Aurísio Manquitola e João Mangolô.

CORPO FECHADO

Enredo – Manuel Fulô, falastrão que se faz de valente, é dono de uma mula cobiçada pelo

feiticeiro Antonico das Pedras-Águas. Este, por sua vez, tem uma sela cobiçada por Manuel. Enquanto o

protagonista se gaba de pretensas valentias, o verdadeiro valentão Targino aparece e anuncia que dormirá

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com sua noiva. Desesperado, Manuel recebe a visita do feiticeiro, que promete fechar-lhe o corpo em

troca da mula. Após o trato, há o duelo entre os dois personagens; o feitiço parece funcionar e Manuel

vence a porfia.

Principais personagens – Manuel Fulô, feiticeiro Antonico das PedrasÁguas e Targino.

CONVERSA DE BOIS

Enredo – conta a viagem de um carro de bois que leva uma carga de rapadura e um defunto. Vai

à frente Tiãozinho, o guia, chorando a morte do pai, ali transportado, e Didico. Tiãozinho, que se tornara

dependente de Soronho, angustiava- se com este por dois motivos: ele maltratava os bois e havia

desfrutado os amores de sua mãe durante a doença do pai.

Paralelamente, o boi Brilhante conta aos outros a história do boi Rodapião, que morrera por ter

aprendido a pensar como os homens. Há uma indignação entre os animais em relação aos maus-tratos que

os humanos lhes infligem. Agenor, para exibir a Tiãozinho seus talentos como carreiro, obriga, de forma

cruel, os bois a superar a ladeira onde a carroça de João Bala havia tombado. Superado o obstáculo, os

bois aproveitam-se do cochilo de Agenor e puxam bruscamente a carroça, matando seu algoz.

Principais personagens – Tiãozinho, Didico, Agenor, Soronho e o boi Brilhante.

A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA

Enredo – Augusto Estêves manda e desmanda no pequeno povoado em que vive. Pródigo, com a

morte do pai perde todos os seus bens. Certo dia, Quim Recadeiro dá-lhe dois recados que alterarão sua

vida: perdera os capangas para seu inimigo, o Major Consilva, e a mulher e a filha, que fugiram com

Ovídio Moura.

Augusto Estêves vai sozinho à propriedade do major para tomar satisfação com seus ex-

capangas. O Major Consilva ordena que Nhô Augusto seja marcado a ferro e depois morto. Ele é

espancado à exaustão; depois os homens esquentam o ferro usado para marcar o gado do major e

queimam o seu glúteo. Augusto, desesperado, salta de um despenhadeiro.

Quase morto, o protagonista é encontrado por um casal de pretos, que cuida dele e chama um

padre para seu alívio espiritual. Nhô Augusto decide que sua vida de facínora chegara ao fim.

Recuperado, foge com os pretos para a única propriedade que lhe restara, no Tombador. Trabalha de sol a

sol para os habitantes e para o casal que o salvara, em retribuição a tudo que fizeram por ele. Leva uma

vida de privações e árduo trabalho, com a finalidade de purgar seus pecados e, assim, ir para o céu.

Um dia, aparece na cidade o bando de Joãozinho Bem-Bem, o mais temido jagunço do sertão.

Nhô Augusto e o famigerado jagunço tornam-se amigos à primeira vista e, depois da breve estada,

despedem-se com pesar. Com o tempo, Nhô Augusto resolve sair do Tombador, pressentindo a chegada

da “sua hora e vez”. Encontra-se por acaso com Joãozinho Bem-Bem, que está prestes a executar uma

família, como forma de vingança. Nhô Augusto pede a Joãozinho Bem-Bem que não cumpra a execução.

O jagunço encara essa atitude de Nhô Augusto como uma afronta e os dois travam o duelo final, no qual

ambos morrem.

NEM MOCINHOS NEM BANDIDOS

Por meio de vários elementos simbólicos, “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” trata de um

tema muito presente na obra de Guimarães Rosa: o maniqueísmo, ou seja, a visão dualista de mundo que

o separa em dois polos opostos: o bem e o mal. Na literatura, essa visão tende a criar tipos opostos de

personagens: o mocinho e o bandido; a virgem casta e pura e a prostituta devassa; o trabalhador pai de

família e o bandido; e assim por diante. Nesse conto, a transformação por que passa Augusto Matraga

entre o começo e o fim da história não permite seu enquadramento em um polo único.

No início do conto, Nhô Augusto é uma figura típica do universo sertanejo: um coronel que dá

ordens em todos na região, abusando de seu poder e humilhando a população. Nesse ponto da narrativa, o

narrador dá ao nome completo de Nhô Augusto um significado interessante. Augusto pode ser lido como

um adjetivo, que significa majestoso, imponente. Basta lembrar que era o título dado aos imperadores

romanos. Estêves, por outro lado, pode ser entendido como a conjugação do verbo “estar” no passado.

Assim, o narrador anuncia desde o começo, pelo nome do personagem, que sua condição de soberano no

sertão está fadada ao insucesso. O nome Matraga, uma espécie de apelido de Nhô Augusto, tem

claramente uma conotação pejorativa (má + traga, de tragar ou do verbo trazer).

Uma análise do nome Joãozinho Bem-Bem é ainda mais reveladora. Joãzinho, um nome comum,

e no diminutivo, parece indicar um lado afetivo, quase infantil, do personagem que é um jagunço. O

advérbio Bem confirma o caráter inofensivo do primeiro nome, e sua repetição (Bem-Bem) gera uma

sonoridade cara ao povo sertanejo e cristão. Esse efeito é a onomatopéia do badalo do sino de uma igreja.

Tantas referências cristãs e benévolas que o nome Joãzinho Bem-Bem sugere, no entanto, parecem

absolutamente opostas ao caráter do personagem.

Na narrativa, diferentemente de Nhô Augusto, não se sabe nada sobre a vida de Joãozinho Bem-

Bem antes que ele se encontre com o protagonista. Porém, é possível supor que o nome e, sobretudo, o

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apelido revelem algo da origem do personagem. Assim, pode-se interpretar que os primeiros anos do

jagunço foram marcados por uma bondade intensa, da mesma intensidade que seu nome sugere.

A maldade de Joãozinho Bem-Bem foi incorporada no decorrer de sua vida. Outro dado que

comprova essa análise é o fato de ele “não ter fraco por mulheres”. Um homem que não aprecia a

companhia feminina na cultura sertaneja não goza de grande prestígio social. Apenas um tipo de homem

no sertão tem o direito de não cobiçar as mulheres sem ser tratado como efeminado: um padre. Assim

como Nhô Augusto nasce mau e se torna bom, Seu Joãozinho Bem-Bem parece tornar-se mau depois de

ter sido bom.

Essa transformação radical dos personagens tem fim com a chegada da “hora e vez” de Matraga,

o confronto final com Joãozinho Bem- Bem. Nesse duelo fatal, os conceitos de bem e mal caem por terra,

pois o “bom” Augusto Estêves e o “mau” Joãozinho Bem-Bem envolvem-se em uma ação que supera o

maniqueísmo: o primeiro faz o bem à família cometendo assassinato, enquanto o segundo, ao assassinar o

protagonista, dá-lhe sua redenção.

ALGUMA POESIA - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Publicado em 1930, o volume apresenta 49 poesias, reunindo produções de Carlos Drummond de

Andrade de 1925 a 1930, e está dedicado ao poeta e amigo Mário de Andrade, que publica, no mesmo

período, Remate dos Males, obra que viria a dar uma nova conformação à poética do Papa do

Modernismo.

Alguma Poesia é volume escrito sob o ímpeto da modernidade de 1922, pratica o poema-piada,

utiliza os coloquialismos apregoados pela estética, cultiva a poesia do cotidiano, repudiando as tendências

parnasiano-simbolistas que dominaram a poesia até então.

No entanto, o poema-piada de Drummond é antes um desabafo de um tímido que procura afogar

(disfarçar) no humor os sentimentos que o amarguram. No prosaísmo esconde a procura de uma

expressão poética autêntica e autônoma e, ao se voltar para o cotidiano, transcende o tempo e o espaço em

busca do perene e universal.

Dos supostos acima enunciados, pode-se traçar uma espécie de linha temática que Drummond

seguirá em Alguma Poesia e que permanecerá durante sua trajetória poética, que, grosso modo, pode ser

identificada como se segue, a partir do que o próprio autor sugere como condução temática de sua obra:

1. O indivíduo – "um eu todo retorcido"

Seção que investiga a formação do poeta e sua visão acerca do mundo. Sempre lúcido, discorre

com amargor, pessimismo, ironia e humor o que ele, atento observador, capta de si mesmo e das coisas

que o rodeiam. Alguns poemas sintetizam a visão do indivíduo, como o poema de abertura "Poema de

sete faces" em que vaticina seu destino

2. A família – "a família que me dei"

Uma das constantes temáticas de Drummond, presente desde Alguma Poesia até seus versos

finais, é a família, sua vivência interiorana em Minas Gerais, a paisagem que marca sua memória.

Contrariando o lugar-comum, ao invés de se referir à família como algo que lhe foi atribuído por Deus, o

poeta coloca um "que me dei" a analisa suas relações pessoais, consciente de que se assentam na

perspectiva pessoal. De modo muito individual, retrata o escoar do tempo, como é possível observar em

"Infância", "Família", "Sesta", alguns dos mais significativos poemas de Alguma Poesia.

3. O conhecimento amoroso – "amar-amaro"

Com o jogo de palavras amar-amaro, título emprestado de um poema do livro Lição de Coisas, o

poeta acrescenta ao substantivo "amar" o adjetivo "amargo", sentimento recorrente em alguns de seus

poemas e livros escritos posteriormente. Em Alguma Poesia o tema é tratado com boas doses de humor,

sátira ou pitadas de idealismo, como em "Toada do amor", "Sentimental", "Quero me casar",

"Quadrilha"..

4. Paisagem e viagens

Um grupo de poesias faz anotações sobre viagens, retratando paisagens vistas e vividas, mas

também recuperando as influências recebidas da sempre subserviente postura brasileira ante as

supercivilizações, como em "Lanterna mágica", "Europa, França e Bahia ".

5. O social e a evolução dos tempos

Drummond constrói poemas em que contempla a mudança dos tempos, o progresso chegando e

invadindo a antiga paisagem, como em "A rua diferente" ou "Sobrevivente".

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Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu

coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do -bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

AUTO DA COMPADECIDA - ARIANO SUASSUNA

O ESTILO DO AUTOR

Entende-se por estilo do Autor a modalidade de manipulação criadora através da qual o escritor

cria sua obra. O estilo do Autor, portanto, é a linguagem através da qual o texto alcança sua forma final e

definitiva.

Quando se faz a interpretação de uma peça teatral, o estilo do Autor deve ser analisado dentro de

uma perspectiva totalmente diferente daquela que adotaríamos para a interpretação do romance, do conto,

da novela, do poema – da Literatura, enfim.

Isso acontece porque a concepção do texto teatral baseia-se na finalidade do mesmo: a

representação por atores. Já o texto literário é concebido para ser lido e meditado pelo leitor, assumindo,

portanto, outra feição.

Feita essa observação, vamos reparar que Ariano Suassuna procura definir a forma final de seu

texto através dos seguintes elementos:

1- O Autor não propõe, nas indicações que servem de base para a representação, nenhuma atitude de

linguagem oral que seja regionalista.

2- O Autor busca encontrar uma expressão uniforme para todas a personagens, na presunção de que a

diferença entre os atores estabeleça a diferença nos chamados registros da fala.

3- A composição da linguagem é a mais próxima possível da oralização, isto, é, o texto serve de caminho

para uma via oral de expressão.

4- Os únicos registros diferentes correm, com indicados no próprio texto, por conta:

a) do Bispo, "personagem medíocre, profundamente enfatuado" (p.72), como se nota nesta passagem:

"Deixemos isso, passons, como dizem os franceses" (p.74).

b) de Manuel (Jesus Cristo) e da Compadecida (Nossa Senhora), figuras desataviadas, embora divinas,

porque são concebidas como encarnadas em pessoas comuns, como o próprio João Grilo:

"MANUEL: Foi isso mesmo, João. Esse é um dos meus nomes, mas você pode me chamar de Jesus, de

Senhor, de Deus... Ele / isto é, o Encourado, o Diabo / `gosta de me chamar Manuel ou Emanuel, porque

pensa pode persuadir de que sou somente homem. Mas você, se quiser, pode me chamar de Jesus".

(p.147)

A COMPADECIDA: Não, João, por que iria eu me zangar? Aquele é o versinho que Canário Pardo

escreveu para mim e que eu agradeço. Não deixa de ser uma oração, um invocação. Tem umas graças,

mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo (p.171).

5- Quatro denominações de personagens referem-se a determinados condicionamentos regionais: João

Grilo, Severino do Aracaju, o Encourado (o Diabo) e Chicó. Quanto ao Encourado, o Autor dá a seguinte

explicação:

Este é o diabo, que, segundo uma crença do sertão do Nordeste, é um homem muito moreno, que se veste

como um vaqueiro. (p.140)

6- Na estrutura da peça, isto é, na forma final do texto é que se revela o estilo do Autor, concebido com o

a linguagem através da qual ele cria e comunica sua mensagem fundamental.

A ESTRUTURA DO AUTO DA COMPADECIDA

O estudo do Auto da Compadecida pode ser feito de dois ângulos que se completam:

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a) a técnica de composição teatral

b) a estrutura propriamente dita, ou a forma final do texto.

1- TÉCNICA DE COMPOSIÇÃO. Aqui faremos as seguintes observações:

A- A peça não se apresenta dividida em atos. Como o autor dá plena liberdade ao encenador e ao diretor

para definirem o estilo da representação, convém anotar que são por ele sugeridos três atos, cuja divisão

ou não por conta dos responsáveis pela encenação:

Aqui o espetáculo pode ser interrompido, a critério do ensaiador, marcando-se o fim do primeiro

ato. E pode-se continuá-lo, com a entrada do Palhaço (p.71).

Se se montar a peça em três atos ou houver mudança de cenário, começará a aqui a cena do

Julgamento, com o pano abrindo e os mortos despertando(p.137).

B- Do ponto de vista técnico, o Autor concebe a peça como uma representação dentro de outra

representação.

/.../ o Autor gostaria de deixar claro que seu teatro é mais aproximado dos espetáculos de circo e da

tradição popular do que do teatro moderno (p.22).

A representação dentro da representação caracteriza-se:

a) pela apresentação do Auto da Compadecida como parte de um espetáculo circense, espetáculo esse

simbolizado no Palhaço, que faz a apresentação da peça e dos atores.

b) pela apresentação do Auto propriamente dito, com sua personagens.

Como a representação ocorre num circo, o Palhaço marca as situações técnicas e estabelece a ligação

entre o circo e a representação no circo.

C- Ariano Suassuna dá plena liberdade ao diretor, no que respeita à definição do cenário, que poderá

"apresentar uma entrada de igreja à direita, com um apequena balaustrada ao funda /../. Mas tudo isso fica

a critério do ensaiador e do cenógrafo, que podem montar a peça com dois cenário /.../" (p.21).

D- Percebe-se, portanto, que a técnica de composição da peça segue uma linha simplista, solicitada pelo

próprio Autor, o que faz residir a importância da mesma apenas na proposição dos diálogos e no decurso

da ação conseqüente.

2- A ESTRUTURA propriamente dita, isto é, a forma final do texto é o elemento fundamental par a

compreensão da peça.

A – Personagens. A peça apresenta quinze personagens de cena e uma personagem de ligação e comando

do espetáculo.

PRINCIPAL: João Grilo

OUTRAS: Chicó, Padre João, Sacristão, Padeiro, Mulher do Padeiro, Bispo, Cangaceiro, o Encourado,

Manuel, A Compadecida, Antônio Morais, Frade, Severino do Aracaju, Demônio.

LIGAÇÃO: Palhaço

As personagens são colocadas em primeiro lugar na análise da estrutura da peça porque ela

assumem uma posição simbólica, e é desse simbolismo que deriva a importância do texto.

· João Grilo é a personagem principal porque atua como criador de todas as situações da peça.

· As demais personagens compõem o quadro de cada situação.

· O Palhaço, representando o Autor, liga o circo à representação do Auto da Compadecida.

Organizado o quadro desses personagens, vejamos agora as características de cada uma delas.

a) JOÃO GRILO. A dimensão de sua importância surge logo no início da peça quando as personagens

são apresentadas ao público pelo Palhaço. Apenas duas personagens se dirigem ao público. Uma, a

chamado do Palhaço, a atriz que vai representar a Compadecida, e João Grilo.

"PALHAÇO: Auto da Compadecia! Umas história altamente moral e um apelo à misericórdia.

JOÃO GRILO: Ele diz "à misericórdia", porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação

seria condenada" (p.24).

Mas a importância inequívoca de João Grilo na estrutura da peça define-se a partir do fato de que as

situações do Auto da Compadecida são todas desenvolvidas por essa personagem:

1ª) a benção do cachorro, e o expediente utilizado: o Major Antônio Morais. JOÃO GRILO: "Era o único

jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major que se péla. Não viu a diferença?

Antes era " Que maluquice, que besteira!", agora "Não veja mal nenhum em se abençoar as criatura de

Deus!" (p.33).

2ª) a loucura do Padre João, como justifica para o Major Antônio Morais. JOÃO GRILO: /.../ "É que eu

queria avisar para Vossa Senhoria não ficar espantado: o padre está meio doido".(p.40). "Não sei, é a

mania dele agora. Benzer tudo e chama a gente de cachorro"(p.41).

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MENINO DO MATO – MANOEL DE BARROS

Por Ana Lucia Santana

Manoel de Barros, após um intervalo de três anos, durante o qual nenhuma obra sua foi

publicada, lança Menino do Mato, seu 20º livro de poemas. É praticamente seu presente de aniversário,

quando o autor atinge os 93 anos. Seu livro mais recente, anterior a este, é Memórias Inventadas III,

lançado em 2007, no qual constam ilustrações de sua filha Martha Barros.

Esta nova obra poética está configurada em duas metades – ‘Menino do Mato’ e ‘Caderno de

Aprendiz’. O leitor tem diante de si 96 páginas da mais pura poesia e suavidade, nas quais ele tem um

encontro marcado com o dom de encantar deste poeta único. A segunda parte do livro é estruturada

essencialmente por versos concisos, mas nem por isso desprovidos de energia imagética e de riqueza de

sentidos.

A idade não é em momento algum um obstáculo para Manoel de Barros, que se mantém em

pleno vigor criativo. Adotando o estilo tradicional, ele elabora seus poemas à mão, tendo com sua

caligrafia o mesmo zelo que o move quando traz à luz seus versos. Este livro resgata a figura do Menino,

presente em obras anteriores, o qual sempre ressurge a cada criação do poeta.

As figuras desconexas e plurais de Manoel de Barros circulam mais uma vez por Menino do

Mato. Ao se ler este volume de poesias, a primeira questão que intriga o leitor é compreender de que

fonte provém toda a inspiração deste autor. Ele a credita aos seus tempos de meninice, vividos em uma

fazenda em Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Neste período ele construiu a sua famosa ‘oficina de

desregular a natureza’, que continua ativa até hoje.

Setenta e três anos após o lançamento de Poemas Concebidos sem Pecado, em 1937, seus

recursos poéticos continuam em ação. Os temas selecionados pelo poeta são ainda os mesmos do início –

os tolos, os pássaros, o crepúsculo, Bernardo, as pedras, os cantos melodiosos dos passarinhos, o rio, os

recantos despovoados, a quietude, o avô, o isolamento.

A sensação que se tem, ao ler este livro, mesmo quando já se conhece sua obra anterior, é que o

Menino é um novo personagem, recém-nascido na extremidade de seu lápis. Em janeiro de 2010 esta

figura surgiu também nas telas do cinema, no documentário Só Dez por Cento É Mentira, de Pedro Cezar,

que tem como protagonista a região do Pantanal, mostrando de que forma ela é inserida na produção

poética do poeta. Ele também revela o processo de criação de seus personagens.

Seu volume Poesia Completa, que engloba toda a elaboração poética de Manoel de Barros, é

lançado também junto com Menino do Mato, pela mesma editora, a Leya. Ele compila desde os versos

presentes em seu primeiro livro, até os que estão inscritos em Menino do Mato.

Estilo de Manoel de Barros: O poeta universal de Mato Grosso do Sul

Por Edna Menezes

“Ao fazer vadiagem com letras posso ver o quando

é branco o silêncio do orvalho.”

O Movimento Modernista de 1922 operou uma transformação profunda na poesia brasileira,

mudando-lhe a estrutura, alterando-lhe a temática e o sentido, imprimindo-lhe um caráter nacionalista e,

acima de tudo, conferindo-lhe uma nova linguagem. Essa renovação jamais vista na literatura se fez notar

em Mato Grosso do Sul por meio dos poetas Lobivar Mattos e Manoel de Barros.

Dessa forma, apesar de a palavra poética de Manoel de Barros não aceitar enquadramentos,

cronologicamente ele pertence ao grupo dos poetas modernistas. Utilizando-se de uma linguagem

inovadora, o poeta sul-mato-grossense maneja a palavra de forma tal que o leitor mediano não está

habituado: o universo do chão. Este universo é composto por coisas, caramujos, lesmas, formigas, trastes,

jacarés, cigarras e outros seres insignificantes aos olhos do atarefado homem social.

O poeta Manoel de Barros nasceu em Cuiabá (MT), em 1916. Mudou-se para Corumbá (MS),

onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumbaense. Atualmente mora em Campo

Grande (MS). Escreveu seu primeiro poema aos 19 anos, mas sua revelação poética ocorreu aos 13 anos

de idade quando ainda estudava no Colégio São José dos Irmãos Maristas, no Rio de Janeiro, cidade onde

residiu até terminar seu curso de Direito, em 1949. Mais tarde tornou-se fazendeiro e assumiu de vez o

Pantanal.

Seu primeiro livro foi publicado no Rio de Janeiro, há mais de sessenta anos, e se chamou

Poemas concebidos sem pecado. Foi feito artesanalmente por 20 amigos, numa tiragem de 20 exemplares

e mais um, que ficou com ele.

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Nos anos 80, Millôr Fernandes começou a mostrar ao público, em suas colunas nas revistas Veja

e Isto é e no Jornal do Brasil, a poesia de Manoel de Barros. Outros fizeram o mesmo: Fausto Wolff,

Antônio Houaiss, entre eles. Os intelectuais iniciaram, através de tanta recomendação, o conhecimento

dos poemas que a Editora Civilização Brasileira publicou, em quase a sua totalidade, sob o título de

Gramática expositiva do chão.

Hoje, o poeta é reconhecido nacional e internacionalmente como um dos poetas mais originais

do século e mais importantes do Brasil. Tal originalidade foi observada por Guimarães Rosa, escritor

mineiro que fez a maior revolução na prosa brasileira. Segundo ele, os textos de Manoel de Barros eram

como a um "doce de coco". Foi também comparado a São Francisco de Assis pelo filólogo Antonio

Houaiss, “na humildade diante das coisas. (...) Sob a aparência surrealista, a poesia de Manoel de Barros é

de uma enorme racionalidade.”

Segundo o escritor João Antônio, a poesia de Manoel vai além: “Tem a força de um estampido

em surdina. Carrega a alegria do choro”. Millôr Fernandes afirmou que a obra do poeta é “'única,

inaugural, apogeu do chão”. E Geraldo Carneiro afirma: “Viva Manoel violer d'amores violador da última

flor do Lácio inculta e bela. Desde Guimarães Rosa a nossa língua não se submete a tamanha

instabilidade semântica”. Manoel, o tímido Nequinho, se diz encabulado com os elogios que “agradam

seu Coração”(Castello, 1999:109-128)

O poeta foi agraciado com o “Prêmio Orlando Dantas” em 1960, conferido pela Academia

Brasileira de Letras ao livro Compêndio para uso dos pássaros. Em 1969 recebeu o Prêmio da Fundação

Cultural do Distrito Federal pela obra Gramática expositiva do chão e, em 1997, o Livro sobre nada

recebeu o Prêmio Nestlé, de âmbito nacional. Em 1998, recebeu o Prêmio Cecília Meireles (literatura/

poesia), concedido pelo Ministério da Cultura e ainda o título de Doutor Honoris Causa, título máximo de

uma Universidade, concedido pela Universidade Católica Dom Bosco, em 2000.. Diz que o anonimato foi

"por minha culpa mesmo. Sou muito orgulhoso, nunca procurei ninguém, nem freqüentei rodas, nem

mandei um bilhete.Uma vez pedi emprego a Carlos Drummond de Andrade no Ministério da Educação e

ele anotou o meu nome. Estou esperando até hoje."

O poeta costuma passar dois meses por ano no Rio de Janeiro, ocasião em que vai ao cinema,

revê amigos, lê e escreve livros. Não perdeu o orgulho, mas a timidez parece cada vez mais diluída.Ri de

si mesmo e das glórias que não teve. "Aliás, não tenho mais nada, dei tudo para os filhos. Não sei guiar

carro, vivo de mesada, sou um dependente", fala "Os rios começam a dormir pela orla, vaga-lumes

driblam a treva. Meu olho ganhou dejetos, vou nascendo do meu vazio, só narro meus

nascimentos...”(fragmentos de jornais) [2]

Considerado hoje, como um dos mais importantes poetas brasileiros em atividade. Sua poesia,

extremamente pessoal, tem como ambiente, ou pano de fundo – o Pantanal – não sua exuberância

ecológica e turística, mas sim seus pequenos seres. Suas obras, cujos títulos são verdadeiros versos são:

Poemas concebidos sem pecado; Face imóvel, Poesias, Compêndio para uso de pássaros; Gramática

expositiva do chão; Matéria de poesia; Arranjos para assobio; Livro de pré-coisas; O guardador de águas;

Poesia quase toda; Concerto a céu aberto pra solo de aves; O livro das ignorãças; Livro sobre nada;

Retrato do artista quando coisa; Ensaios fotográficos, Exercício de ser criança, Fazedor de amanhecer.

No que se refere ao estilo, a poética de Manoel de Barros distancia-se do padrão estético e

estilístico da literatura moderna e contemporânea de maneira que o universo é transfigurado por

intermédio de uma linguagem que se desvela em imagens inusitadas. Nesse contexto, a idealização dos

elementos banais retirados do cotidiano mediante o uso da temática telúrico-pantaneira, permite que o

poeta reinvente o mundo por ele contemplado através da palavra criadora. O estilo de Manoel de Barros

sustenta-se na combinação dos vocábulos de maneira inédita, fato que acarreta numa linguagem

inovadora com expressões insólitas e distantes ao lugar comum. Essa linguagem, muitas vezes

aproveitada do dialeto pantaneiro, se junta a uma temática que ultrapassa o regionalismo e vai a busca da

palavra em sua essência profunda e primitiva. Assim, a obra barreana caracteriza-se como um verdadeiro

artesanato da palavra, ou, às vezes, como um grande laboratório vocabular em que o artista opera cada

significado verbal e continua “re-buscando” novas dimensões lingüísticas. Com efeito, o leitor depara-se

com uma realidade fragmentada e marcada pela utilização de neologismos (invenção da linguagem).

Conhecer a obra de Manoel de Barros é se deixar levar pela magia de um mundo novo, um mundo no

qual as coisas possuem um sentido inusitado e deixam emanar a essência vital do universo. Em um de

seus poemas o bardo do pantanal escreve: “No remexer do cisco adquire experiência de restolho”

(AA:35) [3].

Esse verso traz em si o ideal de rastreamento da realidade do chão da poética barreana, a qual

busca as insondáveis nobrezas no ínfimo. Utilizando-se de uma linguagem inovadora, Manoel de Barros

maneja a palavra de forma tal que o leitor mediano não está habituado: o universo do chão. Este universo

é composto por elementos basicamente telúricos, tais como caramujos, lesmas, formigas, trastes, jacarés,

pedras e outros seres insignificantes aos olhos do atarefado homem social.

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Com o intuito de encontrar o verbo criador, em sua dimensão pura e livre das contaminações

sociais, é que o poeta busca redimensionar o universo das Letras através do uso “não acostumado” das

novas palavras. Por conseqüencia, procura e descobre no caos moderno, a raiz da fala que está no

recomeçar da palavra, que está no primeiro anseio de dizer alguma coisa.

É possível vislumbrar essa busca da palavra “...antesmente verbal” nas próprias palavras do

poeta em entrevistas concedidas, como por exemplo, em dezembro de 1997, na editoria Mais da Folha de

São Paulo, o poeta disse: “Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira” e

acrescenta, “Eu não tenho inspiração. Não sei o que é isso e não espero por ela para escrever. Escrevo

religiosamente todo dia das 7 h às 12 h. Fecho-me no meu escritório e não saio de lá para nada. Não

atendo telefone, não ouço música.” E sobre as palavras ele afirma que: “Pesquiso muitas palavras que

perderam seu uso, sofreram mutações morfológicas ou morreram no tempo. Utilizo esse dicionário para

que as pessoas pensem que sou um sujeito culto”.

Nesse contexto, a professora Goiandira Camargo, em sua leitura da obra barreana, afirma que

Manoel de Barros expõe a sua poética se escrevendo, se reescrevendo e se inscrevendo na busca de uma

linguagem que recupere a relação original do homem com a natureza. Conjugando, assim, no mesmo

espaço, o arcaico e as imagens remotas, com a reflexão em torno da poesia, que é a condição fundante da

modernidade na literatura (Camargo, 1997:240).

Ao dizer que o poeta reflete em torno de sua poesia alcança-se uma das características fundantes

da poética de Manoel de Barros: a metalinguagem, traço que assinala a modernidade de um texto, é o

desvelamento do mistério, colocando em cena o esforço do emissor na sua luta com o código. Assim, o

que o poeta quer é subtrair a linguagem à força do seu uso cotidiano. Na poesia de Manoel de Barros a

palavra retorna à fonte original para recuperar a linguagem perdida. No entanto, para chegar à linguagem

perdida ou primordial, o poeta necessita proceder a demolição ou fragmentação do universo do qual faz

parte. Nesse ato de subtração da linguagem ao lugar comum o poeta diz que, também ele, “Será arrancado

de dentro dele pelas palavras a torquês” (rac, 17) ]

Neste verso, as palavras refletem sobre si mesmas e sobre sua relação com o poeta, pois, ao dizer

que as “palavras” vão arrancar o “poeta de dentro dele”, o verso manifesta o poeta na lida de tirar as

palavras quotidianas de seu estado de inércia. E para tal, por vezes se faz necessário ser “arrancado” de

dentro de si mesmo de forma violenta. Ao analisarmos a palavra “torquês” e o verbo “arrancar”, que são

noções que remetem à violência, podemos perceber a veemência de ser extraído pelas palavras. Assim, o

termo “torquês” que é um instrumento de ferro à maneira de alicate, e o verbo “arrancar”, ou seja, tirar ou

fazer sair com força, remetem a algo conseguido à força e com grande sacrifício. Portanto, no ato de se

arrancar algo com violência, o senso empírico nos leva à imagem de destruição ou demolição, visto que,

normalmente, a “torquês” é usada para fragmentar materiais. Se, conforme o poeta, as palavras têm o

poder de “arrancar” alguém de dentro dele, com certeza, é através da manipulação destas palavras que o

poeta instaura a fragmentação do universo, e inclinado sobre o seu labor ele nos diz que: “Bom é

corromper o silêncio das palavras”(rac,2)

O verso traz em si um diálogo reflexivo entre as palavras, induzindo a fragmentação do universo

pela fragmentação da palavra, da linguagem, pois, “corromper” é induzir algo ou alguém a realizar atos

contrários, perverter, decompor. Com isto podemos dizer que as palavras, após serem arrancadas do lugar

comum, passam a ser induzidas pelo poeta a realizar atos contrários, ou seja, dizer o que normalmente

não dizem. E assim, corrompidas pelo poeta, as palavras conseguem “corromper o silêncio”, ou seja, elas

rompem o sigilo e, refletindo sobre si mesmas, trazem à tona a obstinação do poeta diante do poema. Por

conseguinte, no seu percurso de fragmentação do universo, a palavra, segundo o poeta:

“...Tem que chegar enferma de suas dores, de seus limites, de suas derrotas.”

Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de

Enxergar no olho de uma garça os perfumes do Sol. (rac, 53)

As “dores” são imagens metonímicas da fragmentação, logo, a palavra fragmenta-se, decompõe-

se, quer romper-se para ir além de seus limites, e assim além de seus limites chegar pura para conseguir o

retrato das imagens do poeta. Portanto, ele assevera que: “As palavras têm que adoecer de mim para que

tornem mais saudáveis.” (rac, 17)

Neste verso, o poeta completa as imagens metonímicas da fragmentação, pois a palavra que já

trazia em si os sintomas de alteração, que são “as dores”, agora necessita “adoecer”, e só assim,

impregnada do poeta, desdobrar-se em palavras que, refletindo sobre si mesmas, buscam dizer o indizível.

Seguindo o caminho até a raiz da palavra na busca do absoluto o poeta diz: “...Palavra de um artista tem

que escorrer substantivo escuro dele”. (rac, 17)

Aqui, de forma consciente, o poeta continua na elaboração do discurso auto-reflexivo, o qual traz

o artista visto como um filtro, e o filtro tem a função de desagregar, separar elementos invisíveis,

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fragmentar. No poema, o poeta é o filtro que desagrega e fragmenta o universo. Assim, em seu trajeto de

fragmentação do universo pela palavra, o poeta quer retroceder até ao início, a uma época que ele diz que

é:

“O antesmente verbal: a despalavra mesmo”. (rac, 53)

”Agora só espero a despalavra: a palavra nascida

Para o canto – desde os pássaros.

A palavra sem pronúncia, ágrafa.

Quero o som que ainda não deu liga.

Quero o som gotejante das violas de cocho

A palavra que tenha um aroma ainda cego.

Até antes do murmúrio.

Que fosse nem um risco de voz.

Que só mostrasse a cintilância dos escuros.

A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem.

O antesmente verbal: a despalavra mesmo.”

Portanto, o poeta pretende retornar ao antes do verbo, ou seja, voltar ao estado anterior àquele

descrito pelo verbo cotidiano. E o retorno torna-se possível pelo rompimento da palavra habitual, como

indica o prefixo “des”, cujo sentido é negação. Assim, “despalavra” é a palavra primitiva, o murmúrio, o

gungunar (som emitido pelos recém-nascidos), é o som puro, livre das contaminações do vocabulário.

Assim, o verso, ao sugerir seu processo de retorno a um tempo anterior ao princípio, revela-se como

linguagem. E tal fato remete à idéia de que o objeto do poema é a palavra, aqui, voltada sobre si mesma,

da qual permanece inseparável o processo de fragmentação do universo, pois para alcançar o “antesmente

verbal” o poeta vai causando a fragmentação da estrutura da linguagem.

Visto que, a palavra em seu decurso de fragmentação vai emergindo o ato poético, podemos

dizer que através de um processo metalingüístico a poética nos guia até à fragmentação total no verso em

que o poeta refere-se a si dizendo que: “...Tenho que laspear verbo por verbo até alcançar o meu aspro.”(

rac, 21)

Neste verso, somos conduzidos ao ápice do processo de fragmentação, pois, se partirmos do

preceito que “laspear” é um verbo que significa “conquistar” e que o termo “aspro’ é apenas a corruptela

de áspero, conforme afirma o professor Marcelo Marinho, em sua leitura de Guimarães Rosa, o qual

também faz uso do termo “aspro”. E ainda em entrevista, o próprio poeta Manoel de Barros esclareceu ao

referido professor que, quando diz “aspro”, é áspero que quer dizer. Então, podemos deduzir que o poeta

tem que conquistar com violência, “verbo por verbo”, até atingir o rígido, o duro, e o exato da linguagem

(Marinho, 1999 –Tese).

Todavia, se considerarmos que “aspro”, pode ser a corruptela do termo “asporo”, (do grego

asporos), que quer dizer, em botânica, “sem semente”, ou seja, sem a parte central do fruto ou da flor. E

se é na parte central que deveria estar a semente, parte reprodutiva que permite a renovação da vida, então

podemos dizer que o termo “asporo” remete à parte central, ao núcleo. Ora, se é do núcleo que se origina

a vida, logo, em Manoel de Barros “aspro” é a afirmação de que a fragmentação do universo deve visar ao

núcleo das coisas, para a partir daí atingir e reiniciar o movimento de recriação.

A arte literária de Manoel de Barros é intrigante, suas definições não são limitadoras nem únicas.

A ambigüidade com que o poeta reveste o signo instiga e provoca inúmeros modos e tentativas de

apreensão de sua essência. Conhecer a obra de Manoel de Barros é, então, deixar-se levar pela magia de

um mundo novo, um mundo no qual as coisas possuem sentido e deixam emanar a essência vital do

universo. Em um de seus poemas Manoel de Barros escreve: “No remexer do cisco adquire experiência

de restolho” (AA, p. 35) [4]. Esse verso traz em si o ideal de rastreamento da realidade do chão da poética

barreana, que se pode dizer que é buscar as insondáveis nobrezas no ínfimo.

[1] As informações aqui, além de Castello, são

fragmentos de jornais anteriores a 1990.

[2] Idem – fragmentos de jornais.

[3] Obs: O livro Arranjos para Assobio é aqui designado

AA.

[4] Obs.: O livro Arranjos para Assobio é aqui designado

AA.