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AFRICANO PAI D’ÉGUA: Um convite lúdico à novos olhares1.
Ricardo Harada Ono (UFPA/Pará)2
RESUMO: O presente trabalho trata da elaboração, desenvolvimento e produção de uma História
em Quadrinhos sobre a África, especificamente sobre alguns dos países africanos que
possuem alunos inseridos no universo discente da Universidade Federal do Pará. Foram
mapeadas e sistematizadas as referências cognitivas, em particular de determinadas
situações etnográficas, que fazem parte do imaginário destes alunos africanos, para
desenvolver e produzir uma publicação sob a forma de Arte Sequencial. Através dos
Quadrinhos, o conhecimento e as vivências são apresentados enquanto produto de uma
poética artística e como objeto ativo na produção de saberes.
O objetivo proposto entretanto, não e a submissão à linguagem mas, principalmente, a
apropriação da mesma como forma de comunicação no que tange a produção imagética.
Para entender o reconhecimento que a linguagem adquiriu nos últimos anos, o trabalho
discorre a respeito da utilização da imagem enquanto ferramenta de estabelecimento ou
desconstrução de estereótipos e preconceitos e, sobre o papel dos Quadrinhos no
amoldamento destas ações.
Palavras-chave:
Histórias em Quadrinhos, Arte sequencial, África.
1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre
os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA 2 Docente da Universidade Federal do Pará (UFPA), vinculado ao Instituto de Letras e Comunicação
(ILC), na Faculdade de Comunicação (FACOM) e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em 2 Docente da Universidade Federal do Pará (UFPA), vinculado ao Instituto de Letras e Comunicação (ILC), na Faculdade de Comunicação (FACOM) e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES) do Instituto de Ciências da Arte (ICA), da UFPA.
INTRODUÇÃO
A Universidade Federal do Pará é uma das instituições de ensino superior
brasileiras que atendem ao programa federal de recepção de alunos estrangeiros
denominado de PEC-G ou Programa de Estudantes-Convênio de Graduação, que
oferece a oportunidade de formação superior, no Brasil, à cidadãos de diversos países
em desenvolvimento3. A UFPA é signatária do Programa, que já completou 50 anos,
desde a década de 70 e, atualmente, atende aproximadamente setenta alunos,
provenientes em sua grande maioria de países africanos4. Estes alunos, inseridos no
universo discente da UFPA, em suas mais diferentes Unidades e Subunidades,
observam de imediato o preconceito gerado contra quem possui uma origem étnica
diferente e revelam desconforto sobre a forma de como no Brasil, a cor da pele está
associada a padrões sociais e culturais, expondo igualmente que algumas crenças pré-
estabelecidas e visões estereotipadas sobre a África e sobre os africanos geram alguma
estranheza.
Com o intento de melhor recepcionar os alunos africanos e afro-brasileiros neste
espaço acadêmico, foram implantadas diversas ações. Uma das mais relevantes foi a
criação da Casa Brasil-África (CBA)5, espaço que possui o objetivo de provocar o
intercâmbio, difundir a cultura africana no Brasil (e vice-versa) e “abordar assuntos no
âmbito das relações étnico-raciais e das relações transatlânticas, contribuindo para a
eliminação de preconceitos e discriminações de todas as ordens.” (VAZ, 2016). A CBA
igualmente trabalha no sentido de promover o Estatuto da Igualdade Racial6 e também
de implementar a Lei 10.639/03, de 09 de janeiro de 2003, que estabelece e respalda a
necessidade da criação de projetos e produtos pedagógicos que tornem o currículo
escolar mais democrático. Foi objetivando a criação de um produto pedagógico, que
inicialmente foi idealizado o “Africano Pai d’égua”, como uma publicação que,
fornecendo informações sobre alguns países africanos – de preferência aqueles que
possuem um número expressivo de alunos inseridos na UFPA – contribuísse para
aumentar o conhecimento sobre o continente na comunidade universitária.
3 Países que mantém acordos educacionais e culturais com o Brasil. 4 Os alunos do PEC-G são provenientes de 11 países africanos. 5 A Casa Brasil-África é vinculada à Pró-Reitoria de Relações Internacionais (Prointer) e localizada no
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).
6 Lei nº 12.288/10, de 20 de julho de 2010.
Neste momento surgiu o primeiro desafio: Como produzir uma publicação que
atingisse, dentro de um universo acadêmico cada vez mais jovem, uma quantidade
razoável de pessoas? Pois, já é possível perceber uma boa parcela de rejeição e
questionamentos, por parte dos discentes, em relação aos tradicionais métodos de
ensino e de apresentação de informações, principalmente sob a forma impressa. Essa
inquietação é originada da adoção de novos meios e canais de comunicação, que
necessitam de uma percepção mais imediatista e de velocidade acentuada, formatadores
de um novo público, que prioriza a comunicação primária, por meio de imagens.
Os Quadrinhos por sua natureza lúdica vêm de encontro a este problema, sua
rápida perceptividade e sua grande aceitação dentro do público infanto-juvenil o
caracteriza como um poderoso meio de comunicação e difusão. Além disso, os
Quadrinhos podem ser veiculados de forma tradicional impressa mas também podem
ser distribuídos por meio eletrônico (internet), atingindo com maior expressividade a
parcela mais jovem7 de nosso universo acadêmico e também de fora da própria
universidade. A Arte Sequencial 8 , enquanto recurso comunicacional, oferece a
vantagem de ser de fácil acesso pois não exige mediadores técnicos para a sua
interpretação. Sua apresentação, simples e divertida, convida à leitura. Além disso, a
história nos mostra que não é recente a utilização de imagens para a construção de um
referencial cognitivo que gere conceitos (e preconceitos), estando os Quadrinhos, e a
Arte sequencial, igualmente inseridos neste hall.
1. A IMAGEM COMO FORMADORA DE CONCEITOS
A imagem nos auxilia na formação de conceitos que, por sua vez, nos
influenciam na produção de novas imagens, gerando um ciclo. É possível afirmar que as
raízes dos conceitos e, consequentemente do preconceitos que possuímos, da noção do
que para nós é considerado belo ou agradável e feio ou repugnante, se encontram na
exposição imagética sofrida quando formamos nosso referencial cognitivo dentro de um
espaço de coletividade social. Entretanto, é importante observar que cada um de nós
sofre uma construção cognitiva diferente, sob diferentes parâmetros: econômicos,
sociais, sexuais, locais, estéticos e com profundas influências pessoais. A imagem que 7 Segundo dados divulgados pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da Republica,
divulgados em 2015, “65% dos jovens com até 25 anos acessam internet todos os dias”. 8 Termo cunhado por Will Eisner no livro “Quadrinhos e arte Sequencial”, e que define o uso de
imagens e de seu encadeamento em sequência, como recurso para narrar histórias ou transmitir informações de maneira gráfica. As Histórias em Quadrinhos são o melhor exemplo de Arte Sequencial.
possuímos de nós mesmos e a imagem que construímos sobre o outro influencia
diretamente nosso julgamento, nossas ações e interações. Estas imagens permitem a
origem do preconceito, da prévia conceituação do outro, sem o devido conhecimento e
real julgamento de valores, a absorção dos atributos visuais, inconscientemente define o
que é virtuoso ou maléfico, agradável ou repugnante, belo ou grotesco, dando ao sentido
da visão importância impar na maneira como compreendemos o mundo. Mas, quem é o
outro? Como um preconceito sobre o mesmo pode ser gerado com base na imagem que
percebo?
1.1 O OLHAR SOBRE O “OUTRO”
Ordinariamente, definimos o “outro” como aquele que não faz parte da minha
coletividade, como alguém que possui natureza adversa do meio, daquilo que é, pela
sustentação de um grupo, considerado “normal”. O “outro” é o que difere, o que destoa,
socialmente, intelectualmente ou visualmente.
A construção de uma coletividade portanto invoca questões visuais e imagéticas
inerentes a esta própria construção. Quando nos primeiros agrupamentos humanos,
indivíduos cobriram seus corpos com marcas, pinturas e até mesmo escarificações,
existia uma clara intenção de pertencimento à um grupo específico, comumente à um
grupo que apresenta, ou alega apresentar, qualidades diferenciadas de outros.
Da antiga Grécia, onde havia o culto da imagem ao corpo perfeito9 (ou
fisicamente cultivado e imaculado), a aplicação de marcas10 eram vezes impositivas e
representavam algo a ser cuidadosamente observado e muitas vezes evitado; aos estudos
sobre antropologia criminal, realizados no século XIX, pelo psiquiatra Cesare
Lombroso, que associavam traços físicos a uma possível tendência à delinquência, é
possível observar o relevante papel designado à imagem na construção do conceito
sobre o indivíduo.
Desta forma a sociedade (meio) foi estabelecendo critérios e parâmetros para
julgar, classificar e categorizar os indivíduos, ato que, até os dias atuais, constantemente
realizamos.
9 O conceito da perfeição corporal busca mais tarde raízes no eqilíbrio estético e nas proporções
matemáticas, a exemplo do homem vitruviano. 10 Onde “sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um
criminoso ou traidor uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares públicos.” (GOFFMAN, 1988, p. 11).
Quando nos encontramos frente a um estranho, geralmente utilizamos sua
aparência corporal para classificá-lo em alguma das categorias sociais
preexistentes e que conhecemos. Esta categorização da pessoa faz com que
deixemos de “substantiva-la” para passar a “adjetiva-la”. O que a caracteriza
não é um atributo pessoal (substantivo), senão seu adjetivo estigmatizador
(incapacidade, deformidade). (RIBERA, GARCÍA, RIVAROLA, 2008, p. 38
trad. do autor)
Segundo o sociólogo Erving Goffman (1988), todo elemento que pode ser
percebido no “outro” e que produz descrédito ou repulsa, caracterizado pela relação
entre o atributo real e o estereótipo que a sociedade lhe aplica, é classificado como
estigma. Ainda segundo Goffman, são três os tipos de estigmas produzidos por estes
mecanismos de relação social: As deformidades físicas e abominações do corpo; Os
defeitos de caráter e; Os estigmas tribais de raça, nação ou religião. Sendo o primeiro e
o último tipo, passíveis de uma análise primária meramente visual.
A visão, e portanto a imagem, pode definir aquilo que para cada um é incomum
e imperfeito, atrelado sempre à um estereótipo social. A feiúra é um bom exemplo de
estigma social vinculada à imagem-atributo. “A feiúra, por exemplo, tem seu efeito primário e inicial durante situações
sociais, ameaçando o prazer que, de outra forma, poderíamos ter em
companhia da pessoa que possui esse atributo. Percebemos, entretanto, que
sua condição não deve ter efeitos sobre a sua competência para realizar
tarefas solitárias, embora, é claro, só possamos discriminá-la devido ao que
sentimos quando olhamos para ela. A feiúra, então, é um estigma que é
focalizado em situações sociais.” (GOFFMAN, 1988. p. 50)
Platão definia que o disforme, o imperfeito e desarmônico, se contrapunha a
beleza, sábia e virtuosa11. A questão é que o conceito belo/feio, perfeito/imperfeito,
apresenta diferentes contornos, de acordo com a sociedade onde é aplicada. As
mulheres girafa são um exemplo extremo disso, deformam seus corpos em busca de
uma estética apreciada como bela somente em alguns recantos dos continentes Asiático
e Africano, enquanto para outros seu visual cause estranheza, uma curiosidade natural
diante do exótico12 e uma preocupação com a integridade física destas mulheres. Além
deste, poderíamos listar muitos outros, como a busca por pés femininos minúsculos na
China, a valorização da obesidade em determinadas culturas e até mesmo o
enaltecimento das intervenções cirúrgicas estéticas nos dias atuais. Em resumo, a
11 ECO, 2014, p. 33. 12 Esquisito, excêntrico, extravagante.
sociedade (maioria) define o que é belo e desejado, estando a produção de discursos
imagéticos diretamente atrelados a essa definição. Isso se configura em um problema
social (gerador de estigmas) quando suscitada a dicotomia platônica do belo perfeito x
feio imperfeito, ou seja aquilo que não é belo para mim, necessariamente é feio e o que
não é virtuoso, há de ser nefasto. Reside nesta dicotomia a raiz de todo preconceito.
1. 2 O OLHAR DO “OUTRO”
“Deus fez do homem a sua imagem!”, esta afirmação é provavelmente a mais
emblemática na construção do “eu cognitivo” do mundo ocidental-cristão13. Se sou a
imagem de Deus, sou a imagem da perfeição e todo aquele que difere de mim
provavelmente é imperfeito e deve ser evitado ou combatido. A ampla difusão dos
conceitos religiosos (em especial do cristianismo) refletiu diretamente no julgamento
das aparências, no surgimento e na perpetuação de preconceitos. É mais fácil
percebermos isso quando nos submetemos ao olhar do outro. Para um ocidental, uma máscara ritual africana poderia parecer horripilante -
enquanto que para o nativo poderia representar uma entidade benévola. Em
compensação, para alguém pertencente a alguma religião não europeia,
poderia parecer desagradável a imagem de um Cristo flagelado,
ensanguentado e humilhado, cuja aparente feiura corpórea inspira simpatia e
comoção a um cristão. (ECO, 2014, p. 10)
Minha imagem, sob o olhar do “outro” é fruto de seu referencial cognitivo e o
preconceito sempre existirá, ainda que sob a ótica de pré-conceber a imagem sobre o
outro, sem qualquer julgamento de valores. O julgamento imagético entretanto, é quase
sempre equivocado, seja o que recai sobre mim ou o que recai sobre o “outro”. Os
atributos físicos não devem ser considerados quando adjetivamos algo e devemos nos
abster da adoção de estereótipos nas relações interpessoais ou pelo menos agir no
sentido da ressignificação destes estereótipos, fazer com que o “outro” enxergue o que
eu enxergo, não induzindo-o a enxergar a da forma que eu enxergo.
13 Diversas crenças e religiões teístas apresentam suas entidades e divindades com características
humanas. Fomos criados a sua imagem ou os representamos segundo nosso ideal imagético?
2. AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Muitos estudiosos de quadrinhos consideram o “Yellow Kid” de 1895,
personagem de Richard Outcault, como a primeira manifestação em formato de
quadrinhos (GOIDANICH, KLEINERT, 2011), talvez pelo fato de que os elementos
próprios da linguagem, como enquadramento, balões e outros elementos gráficos se
fizessem presentes pela primeira vez em conjunto nesta obra. Dizer que quadrinhos são uma forma de literatura é uma maneira de usar um
rótulo social e academicamente prestigiado – o literário - para validá-los ou
de chancelar ao interlocutor a presença ou o uso das histórias em quadrinhos.
Quadrinhos são uma manifestação artística autônoma, assim como o são a
literatura, o cinema, a dança, a pintura, o teatro e tantas outras formas de
expressão. Esse entendimento é corroborado por diferentes autores, como
Moacy Cirne (1977, 200) Will Eisner (1989) e Daniele Barbieri (1998), para
quem os quadrinhos já teriam se “emancipado” e constituído recursos
próprios de linguagem. (VERGUEIRO, RAMOS, 2013, p. 37)
Entretanto, a arte sequencial, uma definição mais ampla onde estão inseridos os
Quadrinhos, remonta à um passado bem mais distante, manuscritos pré-colombianos,
descobertos por Cortés14 em torno de 1519, já apresentavam a estrutura de uma
narrativa conduzida de forma imagética e anterior a isto, na França do século XI já
havia sido produzido um trabalho de características semelhantes a “Bayeaux Tapestry”,
uma peça de tapeçaria de 70 metros que narrava com detalhes a conquista normanda da
Inglaterra. De vitrais contendo cenas bíblicas ordenadas até a pintura em série de Monet
existe uma infinidade de exemplos de quadrinhos se considerarmos esta definição.
(McCLOUD, 2004, p. 12)
A invenção da imprensa contribuiu para popularizar esta nova forma de
expressão, onde a imagem não estava impregnada apenas de conceitos, mas também de
narrativas, alçando-a a uma nova forma de linguagem que viria, nos séculos seguintes
apresentar diversos expoentes – cujo o presente trabalho não tem como foco listar – e
conquistar cada vez mais espaço, visibilidade e reconhecimento acadêmico.
No Brasil, esse reconhecimento atinge seu ápice quando os Quadrinhos foram
inseridos nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, onde são reconhecidos
formalmente no âmbito didático como gênero15 representativo e comunicacional. Outro
14 Hernán Cortés de Monroy y Pizarro Altamirano, conquistador espanhol, conhecido por ter destruído
o Império Asteca de Moctezuma II e conquistado o centro do atual território do México para a Espanha.
15 Gênero na concepção de Mikhail Bakthin (enquanto gênero do discurso)
importante momento para o reconhecimento do potencial didático da linguagem ocorre
em 2006, quando os Quadrinhos são incluídos na lista do Programa Nacional Biblioteca
na Escola – PNBE, responsável pela aquisição de obras de diferentes autores e editoras
para distribuição a escolas de ensino fundamental e médio (VERGUEIRO, RAMOS,
2013, p. 10~12).
2.1 O PODER DE INFLUÊNCIA DAS HQ’S
Segundo McCloud (1995), uma das formas de expressão imagética comumente
utilizada nos quadrinhos, o cartum, apresenta o potencial de exercer grande influência
sobre nós. A forma cartunizada ou simplificada permite um auto reconhecimento e uma
complementação das situações e dos personagens através da incorporação mental do
próprio leitor à narrativa (Fig. 1), isto faz com que nossas identidades e consciências
seja atraídas para o cartum, não apenas como espectadores mas como parte dele.
Figura 1: A percepção do cartum e o convite ao auto reconhecimento.
Fonte: Desvendando os Quadrinhos
Esse convite a inserção é um poderoso mecanismo na difusão de conceitos
imagéticos e consequentemente na formatação de estereótipos visuais, mecanismo este
que reforça a condição dos Quadrinhos como linguagem e como objeto ativo na
produção de saberes e, devido a sua natureza conceitual, também adiciona-lhe um
caráter de produto fruto de uma poética artística.
Historicamente, o poder deste mecanismo não passou despercebido e vem sendo
utilizado para apresentar as mais diferentes narrativas, de histórias humorísticas de
caráter meramente lúdico à biografias e recortes históricos16, com intenção educativa; da
inclusão icônica de elementos fictícios como super-heróis, que atendem ao anseio
inspiracional do mito definido por Campbell17 à manipulação através da inserção de
conceitos ideológicos e estereótipos manipulados de toda natureza18.
O curioso é que, sob certa ótica, ironicamente a utilização de estereótipos nos
quadrinhos municia tanto a construção de conceitos e preconceitos quanto a
desconstrução/reformulação dos mesmos. Para melhor “ilustrar” esta afirmação,
podemos citar diversos exemplos, com diferentes características. Chico Bento19(Fig. 2)
e Ferdinando20 são exemplos do campesino que, embora conceitualmente e visualmente
estereotipados e caricatos, conseguem transmitir ao mesmo tempo a simplicidade e a
sabedoria do morador rural. O Homem-aranha21 e os X-men22, super-heróis dotados de
fantásticos poderes revelam seu lado humano ao se confrontar com problemas
cotidianos como pagar o aluguel, prestar um exame acadêmico, ou sofrer discriminação
por carregar estigmas físicos nitidamente percebíveis23.
16 A exemplo das obras “MAUS”, do americano Art Spiegelman e “GEN: pés descalços”, do japonês
Keiji Nakazawa. 17 Joseph John Campbell, estudioso americano que desenvolveu importantes trabalhos a respeito dos
mitos e de sua constituição. 18 Os quadrinhos servem(iram) de veículo para difusão de uma ampla gama de ideias e ideais, do
combate ao consumo de entorpecentes à propaganda nazista na Segunda Guerra. 19 “Chico Bento” é o apelido de Francisco Antônio Bento, personagem criado pelo quadrinhista
brasileiro Maurício de Sousa, em 1961 e que retrata a vida do interiorano paulistano. O que nos chama atenção no Chico não é o chapéu de palha, nem seus pés descalços e tampouco a calça de barra poida do personagem mas seu caráter simples, puro e ingênuo.
20 “Ferdinando Buscapé” ou “Li’l Abner” (seu nome original), é um personagem que representa de forma caricata o montanhês americano. Foi criado em 1934 pelo ilustrador Al Capp (Alfred Gerald Caplln).
21 Super-herói criado em 1962, pelo escritor Stan Lee e pelo desenhista Steve Ditko. O personagem foi concebido como um jovem órfão criado pelos tios e que desenvolve seus poderes após acidentalmente ser picado por uma aranha radioativa.
22 Criados por Stan Lee e Jack Kirby em 1963, o X-men é uma equipe de super-heróis formada por seres humanos que possuem uma mutação genética, fruto de um salto evolucionário, que lhe concede poderes geralmente manifestados na puberdade.
23 Em relação à constituição de estereótipos, os X-men são particularmente interessantes pois, junto com os poderes, muitos apresentam estigmas físicos e psicológicos. Estigmas estes que servem de “gancho” para remeter a discussões mais amplas, como questões raciais por exemplo.
Figura 2: A evolução do Chico Bento.
fonte: Site da Turma da Mônica
3. O “AFRICANO PAI D’ÉGUA” Selecionada a linguagem, surgiu a necessidade de buscar e sistematizar as
referencias que serviriam de base para a construção do “Africano Pai d’égua”.
A apresentação de situações étnicas pelas quais os alunos passaram ou que
temiam passar e também de sua própria identidade através de uma breve apresentação
de sua terra natal foi o principal foco da publicação. Para tanto foi realizada uma
pesquisa oral, através de entrevistas com alunos africanos, estudantes da UFPA. A
intenção inicial era mapear elementos representativos de seus países de origem, suas
vivências frente ao espaço que se configura como sua nação e traduzir essas
informações de forma ilustrada (fig. 3), para a constituição de um material que
atendesse tanto às necessidades formais como a criação de material pedagógico
respaldada pela lei 10.639/03, quanto às informais como o aumento da autoestima dos
alunos africanos e afro-brasileiros e a desconstrução de um estereótipo equivocado, que
tipicamente possuímos, sobre o continente africano e sobre os africanos.
Figura 3: Exemplos de página de “Africano Pai d’égua”.
Fonte: Acervo do autor.
Os personagens, ainda que fictícios, foram criados baseados nas entrevistas
realizadas com os alunos, e estes apresentam seus respectivos países de origem. A
surpresa na construção do trabalho foi perceber que o preconceito equivocado – termo
novamente evocado aqui como pré–concepção, isenta de julgamentos – se dá por parte
dos alunos africanos também, quando estes revelaram, em suas entrevistas, quais as suas
expectativas em relação a nossa região.
Entender que algumas das crenças estabelecidas não correspondem com a
realidade e, sempre que possível, agir no sentido de desconstruir estereótipos e
preconceitos e, com sabedoria e discernimento, contribuir para a constituição de novos
saberes. Isto é ser Pai d’égua, seja você africano ou brasileiro.
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São Paulo: Martins Fontes, 1995
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www.portal.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=11802. Acessado em 10.set.2016.
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