revel_14_entrevista_perini.pdf

download revel_14_entrevista_perini.pdf

of 12

Transcript of revel_14_entrevista_perini.pdf

  • 8/14/2019 revel_14_entrevista_perini.pdf

    1/12

    ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 1

    PERINI, Mrio A. Sobre lngua, linguagem e Lingustica: uma entrevista com Mrio A. Perini. ReVEL.

    Vol. 8, n. 14, 2010. ISSN 1678-8931 [www.revel.inf.br].

    SOBRE LNGUA,LINGUAGEM E LINGUSTICA UMA ENTREVISTA COM MRIOA.PERINI1

    Mrio A. Perini

    Universidade Federal de Minas Gerais

    Entrevistadores O que lngua?2

    Perini Chamamos lngua um sistema programado em nosso crebro que,

    essencialmente, estabelece uma relao entre os esquemas mentais que formam

    nossa compreenso do mundo e um cdigo que os representa de maneira perceptvel

    aos sentidos. Os seres humanos utilizam um grande nmero de tais sistemas

    (lnguas), que diferem em muitos aspectos e tambm se assemelham em muitos

    outros aspectos. Tanto as diferenas quanto as semelhanas so altamente

    interessantes para o linguista.

    O sistema em questo de uma complexidade extrema: compreende regras (de

    pronncia, de formao de palavras, de formao de frases, de relacionamento das

    formas com os significados), itens lxicos (palavras e morfemas, com suas

    propriedades gramaticais e seus significados), expresses idiomticas (como pisar na

    bolaou me de santo) e clichs (comoficar sem falae tomar caf). Acredita-se hoje

    que o sistema em parte inato, pois todas as lnguas parecem seguir determinadas

    linhas, ou seja, no encontramos tudo o que seria possvel, mas apenas algumas das

    1 Ao contrrio das demais entrevistas publicadas periodicamente nas edies da ReVEL, estaentrevista foi originalmente preparada como contribuio para um livro, a segunda edio deConversas com linguistas, publicado pela Parbola Editorial em 2003 e organizado por AntonioCarlos Xavier (Universidade Federal de Pernambuco) e Suzana Cortez (PUC de Minas Gerais).Infelizmente, essa segunda edio no se concretizou. Por iniciativa dos organizadores desta entrevistae do entrevistado, este texto est sendo oportunamente publicado nesta edio n. 14 da ReVEL, cujotema , justamente, Histria e Filosofia da Lingustica.2 A entrevista foi organizada por Antonio Carlos Xavier e Suzana Cortez. Todas as perguntas forampropostas por eles. Cf. nota 1.

  • 8/14/2019 revel_14_entrevista_perini.pdf

    2/12

    ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 2

    possibilidades. A hiptese que as lnguas s se desenvolvem seguindo certas

    direes por que de outra forma no seriam utilizveis por crebros humanos. E parte

    do sistema, evidentemente, no inato, e precisa ser aprendido a partir de exemplos

    observados pela criana.

    O que chamamos uma lngua , assim, uma das realizaes histricas da capacidade

    humana para a linguagem. E cada lngua profundamente enraizada na cultura que

    serve por exemplo, no creio que em tibetano ou em amrico haja expresses

    exatamente paralelas apisar na bolaou me de santo. J houve (no sei se ainda h)

    quem sustentasse que a lngua que uma pessoa fala condiciona sua maneira de ver o

    mundo (a chamada hiptese de Sapir-Whorf). Suspeito que h um gro de verdade

    nessa hiptese, mas do modo como geralmente enunciada ela exagera a

    importncia da lngua nos nossos processos cognitivos.

    Entrevistadores Qual a relao entre lngua, linguagem e sociedade?

    Perini Posso comear dizendo que a relao entre lngua e linguagem que uma

    lngua uma das maneiras como se manifesta exteriormente a capacidade humana

    a que chamamos linguagem. Mas o termo linguagem tambm aplicado a outros

    tipos de sistemas de comunicao, que normalmente no so chamados lnguas,como o sistema de sinais de trnsito e a linguagem das abelhas. Assim, linguagem

    um conceito muito mais amplo do que lngua: a linguagem inclui as lnguas entre

    suas manifestaes, mas no apenas as lnguas.

    Agora, dito isso, podemos afirmar que as relaes entre a linguagem (em geral sob a

    forma das lnguas) e a sociedade humana so muitas e muito importantes. Primeiro,

    observemos que qualquer sociedade minimamente complexa s pode funcionar, e

    mesmo surgir, atravs do uso intensivo da linguagem. A sociedade funciona atravsda cooperao e/ou conflito entre os homens, e a linguagem medeia esses processos

    de maneira crucial.

    A lngua falada por um povo parte da imagem que esse povo tem de si mesmo, em

    certos casos ainda mais significativa do que as unidades polticas em que o povo se

  • 8/14/2019 revel_14_entrevista_perini.pdf

    3/12

    ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 3

    organiza. Assim, embora a Alemanha e a Itlia s se tenham unificado como naes

    nos meados do sculo XIX, havia muitos sculos j que os falantes das respectivas

    lnguas se consideravam alemes e italianos. Pode-se mencionar tambm fatos

    atuais como a atitude dos catales e dos bascos, que insistem em ser diferentes dos

    demais espanhis, em grande parte por falarem outra lngua. Vemos a umatendncia a fazer coincidir as fronteiras lingusticas com as fronteiras nacionais. Isso

    nem sempre acontece, como se pode ver pela persistncia das fronteiras entre os

    pases hispano-americanos, mas mesmo assim um mexicano se sente culturalmente

    mais prximo de um espanhol ou de um uruguaio do que de seus vizinhos

    americanos falantes de ingls. A lngua , sintomaticamente, um dos instrumentos

    mais importantes na mo de governantes que, para bem ou para mal, procuram

    enfatizar a unidade de um povo ou de uma nao.

    Entrevistadores H vnculos necessrios entre lngua, pensamento e

    cultura?

    Perini Entre lngua e pensamento certamente h. Apesar de a lngua ser

    primariamente um instrumento de comunicao (ao contrrio do que dizem alguns,

    ver a questo 5), ela tambm um instrumento de pensamento. Ou seja, podemos

    utilizar a lngua para pensar, e constantemente o fazemos. No acredito que a lnguaque uma pessoa fala condicione em grande medida sua maneira de pensar

    (contradizendo a chamada hiptese de Sapir-Whorf, mencionada na questo 1); mas

    acho perfeitamente plausvel que haja alguma influncia da lngua sobre as categorias

    atravs das quais compreendemos o mundo. J se fez algum trabalho sobre isso por

    exemplo, sustenta-se que os falantes de certas lnguas categorizam as cores de

    maneira diferente dos falantes do portugus, e isso se reflete em sua lngua. Os russos

    distinguem duas cores no que chamamos de azul(goluboyazul claro, sinniyazul

    escuro); isso no quer dizer que eles vejam essas cores diferentemente, mascertamente sugere que eles organizam diferentemente esse detalhe da realidade.

    Mas o verdadeiro vnculo entre lngua e pensamento que o conhecimento e o uso da

    lngua so tambm formas de pensamento. Ao usarmos uma lngua, lanamos mo de

    conhecimentos no apenas lingusticos stricto sensu, mas de todo tipo de

  • 8/14/2019 revel_14_entrevista_perini.pdf

    4/12

    ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 4

    conhecimento sobre o mundo. Por exemplo, podemos dizer animal mamfero, mas

    no mamfero animal, porque se entende que todo mamfero animal, e o termo

    mais restritivo deve sempre aparecer depois do menos restritivo. Nesse caso, a ordem

    das palavras no determinada apenas pelo nosso conhecimento da lngua, ou seja,

    da gramtica, mas tambm pelo que sabemos sobre o mundo animal. Os exemplosso muitos, e mostram que no existe uma fronteira ntida entre nosso conhecimento

    da lngua e nosso conhecimento do mundo. A meu ver, existe uma fronteira

    aproximada entre esses dois tipos de conhecimento, o que nos autoriza a continuar

    falando de conhecimento lingustico, de gramtica etc., mas no se trata de um limite

    entre componentes estanques, porque os pontos de interrelao so muitos.

    Quanto aos vnculos entre lngua e cultura, existem porque a cultura inclui

    manifestaes de base lingustica, como a literatura (oral e escrita), o humor, asfrmulas e rituais para as diversas ocasies da vida (nascimento, funeral, casamento,

    encontros na rua etc.), e todas essas manifestaes so marcadas por expresses

    lingusticas especiais. A poesia, por exemplo, utiliza certos tipos de mtrica, rima,

    aliterao etc., que so especficas de cada lngua. Alm disso, a poesia lana mo

    constantemente de associaes que so especficas daquela cultura, e que deixam de

    funcionar quando traduzidas: pode-se lembrar, por exemplo, como difcil para um

    ocidental perceber a beleza potica dos hai-kais japoneses quando traduzidos. E me

    lembro de um poema que dizia que a flor a casa do perfume, que um colega francsachou horrvel porque ele percebia a palavra maison (casa) como um termo

    excessivamente concreto, terra-a-terra, que s lhe evocava tijolos, reboco, janelas e

    portas.

    EntrevistadoresA linguagem tem sujeito?

    Perini Sinceramente, no compreendo a pergunta. A palavra sujeito vemassumindo uma gama to extensa de significados que no vejo como responder sem

    que pelo menos 50% dos leitores achem que estou fugindo ao tema. Vamos definir

    direito o que se entende por sujeito, e a talvez eu possa responder.

  • 8/14/2019 revel_14_entrevista_perini.pdf

    5/12

    ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 5

    Entrevistadores O que lingustica?

    Perini A lingustica uma tentativa de descrever e compreender um fenmeno

    muito misterioso: uma pessoa pode comunicar a outra certas idias atravs de sinais

    sensorialmente perceptveis. Em outras palavras, o estudo dos cdigos usados pelaspessoas para se comunicarem, e da capacidade inata que nos permite levar a efeito

    essa atividade.

    Alguns linguistas importantes, como Chomsky, sustentam que a funo comunicativa

    da linguagem secundria, e que a linguagem existe principalmente para permitir o

    pensamento. Isso cria uma dificuldade na base da metodologia lingustica: se nos

    basearmos em enunciados observados para estudar as lnguas (e, da, a linguagem),

    estaremos usando dados provenientes de um uso marginal do fenmeno estudado.Mas, se quisermos partir de dados relacionados com o uso essencial da linguagem

    (segundo eles, o pensamento), teremos que nos limitar introspeco e acho que

    nenhum linguista sustentaria seriamente essa alternativa.

    O dilema, porm, s aparente, porque a linguagem mesmo, fundamentalmente,

    um instrumento de comunicao. possvel pensar sem utilizar a linguagem, mas

    no possvel se comunicar sem utilizar (algum tipo de) linguagem.

    Devo acrescentar que a fonte principal dos dados do linguista, mesmo daqueles que

    se ocupam da teoria geral da linguagem, est nas lnguas naturais (portugus,

    caxinau, hngaro e alemo, por exemplo). O estudo das lnguas naturais,

    consideradas em si mesmas, a base de todo o estudo lingustico. Digo isso porque j

    ouvi linguistas afirmarem que o estudo das lnguas naturais relativamente pouco

    interessante para o que entendem por lingustica. uma atitude que no apoio, e

    que considero fora da realidade.

    Alm desse estudo basicamente estrutural, a lingustica tambm estuda a evoluo

    histrica das lnguas, as variantes que uma lngua mostra segundo seu uso pelas

    diferentes classes sociais, as variantes regionais, o processo de aquisio da

    linguagem pelas crianas e vrios outros aspectos da estrutura e do uso das lnguas.

    H tambm um esforo no sentido de descobrir os traos comuns a todas as lnguas,

  • 8/14/2019 revel_14_entrevista_perini.pdf

    6/12

    ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 6

    com a idia de que eles so evidncia de aspectos da programao inata que nos

    permite adquirir e utilizar uma lngua natural. Acrescente-se a tudo isso a procura de

    aplicaes dos resultados da lingustica soluo de problemas prticos, em especial

    ao ensino de lnguas.

    Entrevistadores A lingustica cincia?

    Perini Acho que sim, em princpio, mas tenho restries quanto maneira como

    alguns linguistas entendem esse status de cincia. Talvez o melhor seria dizer: a

    lingustica pode ser uma cincia, dependendo de como a praticarmos. Se uma

    cincia, sem dvida uma cincia emprica, ou seja, empenhada em descrever um

    aspecto do universo e em construir teorias que expliquem os fenmenos descritos.

    Esses dois aspectos so fundamentais: no h cincia sem descrio sistemtica de

    aspectos da realidade, e no h cincia emprica sem teorias que procurem explicar

    esses aspectos em termos mais gerais sempre que possvel, relacionando-os com

    teorias de outras cincias que se ocupam de aspectos correlacionados. So duas faces

    de toda e qualquer cincia emprica, e uma no pode existir sem a outra, sob pena de

    prejudicar o carter cientfico da atividade em questo.

    Alguns linguistas atuais, entretanto, parecem convencidos de que mais importante

    criar teorias do que descrever fatos de maneira sistemtica, precisa e

    escrupulosamente fiel aos dados da observao. O resultado, a meu ver, uma no-

    cincia (para no ser malvado e dizer uma pseudo-cincia). Mas o problema no

    est no carter da lingustica; est na compreenso a meu ver falha que alguns

    linguistas tm do trabalho cientfico.

    Uma atitude deletria que observo na lingustica atual a de enfatizar a produo,discusso, crtica e releitura de textos tericos (sejam recentes, sejam clssicos), sem

    uma nfase paralela na sua validao frente a dados reais. Isso tende a reduzir a

    atividade lingustica a uma crtica textual sem contedo emprico, e portanto no

    cientfica. No estou dizendo que no se deva ler Saussure, Chomsky ou Pnini; mas

    fundamental reconhecer que esses autores, e todos os outros, s tm relevncia para

  • 8/14/2019 revel_14_entrevista_perini.pdf

    7/12

    ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 7

    a lingustica moderna se puderem sugerir novos meios de abordar o estudo da

    realidade das lnguas naturais.

    Para resumir, a lingustica uma cincia na medida em que se ocupa sempre, em

    ltima anlise, do estudo de dados reais, tirados do uso normal das lnguas.

    Entrevistadores Para que serve a lingustica?

    Perini A lingustica, como toda cincia, serve para aumentar nosso conhecimento

    e nossa compreenso de alguns aspectos do mundo.

    Por outro lado, ela pode ter aplicaes (ver questo 8), mas estas no fazem parte desua fisionomia fundamental; so decorrncias acidentais. Mal comparando, ficamos

    muito felizes em saber que a qumica permite a criao de medicamentos; mas no se

    pode dizer que a qumica tem como objetivo a fabricao de remdios. O que a

    lingustica faz, e o que faz dela uma cincia, descrever e (na medida do possvel)

    explicaro fenmeno da linguagem.

    Entrevistadores A lingustica teria algum compromisso necessrio coma educao?

    Perini A lingustica, como cincia, no tem compromisso com a educao. J os

    linguistas, como cidados, devem ter, e geralmente tm, um grande compromisso

    com a educao. As principais aplicaes do conhecimento lingustico se voltam para

    questes educacionais. Por isso, na prtica, a lingustica e a educao se ligam bem de

    perto. mais ou menos como a relao que existe entre a fsica e a engenharia

    mecnica: a fabricao de mquinas no faz parte do objeto da fsica, mas conhecerfsica essencial para um engenheiro mecnico.

    Muitos linguistas se preocupam com as aplicaes de sua disciplina a problemas

    educacionais, e podem mostrar alguns resultados importantes, notadamente na rea

    do ensino de lnguas estrangeiras. J no que diz respeito ao conjunto de habilidades

  • 8/14/2019 revel_14_entrevista_perini.pdf

    8/12

    ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 8

    que se tenta transmitir sob o rtulo de lngua portuguesa, as contribuies esto em

    grande parte ainda no reino das potencialidades. Acho que poderamos dar uma

    contribuio significativa ao desenvolvimento de reas como a aquisio da leitura

    fluente, o ensino de gramtica, o conhecimento da realidade lingustica do Brasil e o

    desenvolvimento das habilidades de redao (produo de textos, no jargo atual).Mas acho que pouca gente tem se dedicado intensivamente a esses problemas em

    oposio lingustica aplicada ao ensino de lnguas estrangeiras, que uma rea bem

    estabelecida, com seus especialistas prprios, revistas especializadas, programas de

    ps-graduao etc.

    preciso observar que quando se pensa em aplicao da lingustica educao

    indispensvel pensar em termos interdisciplinares. Digo isso porque tenho visto

    ocasionais tentativas de aplicao direta e crua de conceitos tericos ao ensino, comresultados desastrosos. Posso citar, em tempos idos, a tentativa de criar uma

    metodologia transformacional de ensino de lnguas, e atualmente a aplicao

    indevida dos estudos de universais lingusticos a problemas de sala de aula. No se

    pode perder de vista que o ensino uma questo didtica, pedaggica, no

    lingustica; e que o valor de uma metodologia se mede em termos de resultados, e no

    de insero nas teorias do momento.

    Eu gostaria de ver um nmero maior de linguistas de primeira linha ativamenteengajados no desenvolvimento de aplicaes da nossa cincia a questes educacionais

    e gostaria igualmente de ver maior receptividade da comunidade escolar s

    inevitveis inovaes que da resultaro.

    Entrevistadores Como a lingustica se insere na ps-modernidade?

    Perini O que ps-modernidade? J vi esse termo empregado em diversossentidos, nenhum deles realmente interessante. Vou selecionar os trs que me

    parecem mais comuns, para tentar relacionar cada um com a lingustica de hoje.

    Em um sentido, ps-modernidade se refere a um movimento que, me parece, tem

    como objetivo subordinar o trabalho cientfico a consideraes de ordem ideolgica,

  • 8/14/2019 revel_14_entrevista_perini.pdf

    9/12

    ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 9

    com o interesse de faz-lo politicamente correto. Por exemplo, criticou-se o uso da

    noo de comando em sintaxe porque se trata de uma relao assimtrica, de base

    autoritria e no-democrtica no estou brincando, vi isso em um artigo na revista

    Natural language and linguistic theory, se no me engano de 1992. Ou podem negar

    a prpria relevncia do estudo da fonologia por ser desvinculado de aplicaespolticas. Tudo isso seria apenas ridculo se no fosse levado a srio por algumas

    pessoas bem intencionadas. Essa atitude, se levada adiante, destrutiva, eu diria

    mesmo anti-intelectual. Posies polticas, por mais defensveis que sejam, no so

    um substituto para o trabalho cientfico, baseado no respeito aos fatos e na tentativa

    de organiz-los dentro de teorias coerentes. Nesse sentido, a lingustica (a que eu

    pratico e defendo) no se insere de maneira nenhuma na ps-modernidade.

    No segundo sentido, parece que ps-modernidade se refere tendncia deabandonar a ideia de cincias autnomas para concentrar ateno nas reas

    limtrofes, nas chamadas interfaces, negando-se s vezes a possibilidade de

    estabelecer limites. Isso no me parece novidade: provavelmente uma consequncia

    inevitvel do avano do conhecimento. As reas antes consideradas marginais vo se

    integrando, medida que produzem resultados apreciveis; por isso, hoje se estuda

    coisas como a psicolingustica, a sociolingustica, a anlise do discurso, a pragmtica

    etc., que eram muito pouco presentes nos programas quando fiz minha ps-

    graduao, nos anos 70. Acredito que os limites ainda esto a, mas alguns deles estomenos ntidos, e pelo menos alguns podem no subsistir por muito tempo; isso s o

    tempo vai dizer.

    Como disse, no h nada de realmente novo nesse processo: aconteceu sempre, e vai

    continuar acontecendo. preciso encarar essa integrao com esprito crtico, pois h

    uma tendncia a aceit-la sem exame pelo simples fato de estar na moda: a pesquisa

    lingustica seria submetida a uma clusula de interdisciplinariedade compulsria.

    Essa uma posio ingnua, e alis acontece que a maior parte do trabalho relevanteem lingustica ainda se faz dentro das reas e subreas tradicionais. Mas no h

    dvida de que o processo de integrao real; para dar um exemplo que afeta o meu

    trabalho, hoje difcil justificar um trabalho em sintaxe e semntica sem levar em

    conta os resultados da cincia cognitiva. S gostaria de enfatizar que para isso

    preciso saber muito bem sintaxe, semntica e cincia cognitiva.

  • 8/14/2019 revel_14_entrevista_perini.pdf

    10/12

    ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 10

    Um terceiro sentido de ps-modernidade eu detecto na tendncia, mais observvel

    no campo da anlise do discurso, de adaptar lingustica certas ideias sobre cincia

    em geral, s vezes conhecidas sob o rtulo de construtivismo social. Em princpio,

    essa vertente enfatiza o componente pessoal da atividade cientfica, e varia em graude radicalismo. Alguns autores apenas apontam que o cientista um ser humano, e

    que suas crenas e desejos podem influenciar seu trabalho; j outros autores chegam

    a posies extremas, como a de negar que o conhecimento objetivo seja possvel,

    porque (segundo eles) a realidade no acessvel cognio humana ou mesmo

    que a realidade no tem existncia objetiva, sendo um construto da mente humana. A

    primeira dessas posies , a meu ver, verdadeira, mas bastante bvia. J quanto

    segunda, o mnimo que posso dizer que auto-destrutiva: se a realidade no existe,

    ento as ideias desses autores (assim como os prprios autores) tambm no existem,e onde que vamos parar?

    No encontrei, na literatura lingustica, tentativas sistemticas de aplicar essas ideias

    radicais de construtivismo social; em geral, o que se encontra apenas uma leitura e

    releitura infindvel de textos, um dilogo inteiramente intraterico e, como

    inevitvel, empiricamente estril. O texto lingustico degenera em um exerccio de

    estilo, com uma procura constante de palavras e construes inusitadas, com o

    objetivo evidente de causar efeito; o contedo totalmente secundrio. O apelo aosdados espordico e puramente ornamental, e as concluses so atingidas sem

    argumentao verdadeira. Como j foi apontado, esses textos tm mais em comum

    com a pregao religiosa do que com a argumentao cientfica. Aqui no posso

    deixar de citar um comentrio de Peter Medawar (bilogo britnico mas nascido

    em Petrpolis! , prmio Nobel de Medicina) que viu no estilo desses autores uma

    certa semelhana com um bal, em que se faz uma pequena pausa de tempos em

    tempos, em poses bem estudadas, espera de uma exploso de aplausos. [in

    Dawkins, R. O capelo do diabo, p. 90]

    interessante observar que esses autores, que negam explicitamente a possibilidade

    do conhecimento cientfico tal como se entende usualmente, no deixam de utilizar

    (em geral inadequadamente) noes e termos da cincia estabelecida. Vm da as

    frequentes aluses fsica quntica e as crticas ao paradigma newtoniano noes

  • 8/14/2019 revel_14_entrevista_perini.pdf

    11/12

    ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 11

    que no se aplicam lingustica, e que parecem ser utilizadas sem conhecimento de

    seu significado nas reas originais.

    Como disse, a anlise do discurso, alis uma rea perfeitamente respeitvel da

    lingustica, a que tem sido mais seriamente afetada por esse tipo de problema. Emvez de estudar as condies de produo do sentido no discurso, as eventuais

    interaes entre as estruturas gramaticais e as condies de uso das mesmas, a coeso

    e coerncia dos textos, as regras de retomada anafrica e outros temas que s podem

    ser abordados no mbito do discurso, algumas pessoas se desviam para estudos

    literrios (novamente uma rea respeitvel, mas profundamente infectada por ideias

    no-cientficas), ou para a verborreia pura e simples.

    Entrevistadores Quais os desafios da lingustica para o sculo XXI?

    Perini Aqui eu sou jogado em um exerccio de previso do futuro; e, como todo

    mundo, vou responder dizendo o que eu gostariaque a lingustica fizesse no sculo

    XXI.

    Distingo dois aspectos nessa pergunta: de um lado, os desafios terico-

    metodolgicos; e, de outro, a questo da relao da lingustica com reas limtrofes.

    Do ponto de vista terico-metodolgico, o grande desafio deve ser uma reavaliao

    rigorosa e impiedosa das teorias luz dos dados da experincia. Isso implica em

    valorizar mais o trabalho descritivo frente elaborao de teorias e modelos de

    anlise. O trabalho cientfico se compe de observao e teorizao, e nenhum desses

    aspectos dispensvel. Mas nem a observao sem teoria nem a teorizao sem

    dados tem utilidade. No momento, acredito que se tem teorizado excessivamente, e

    em certos setores percebo quase que um desprezo pelo trabalho descritivo. Noacredito que nosso conhecimento da linguagem esteja avanado a ponto de permitir a

    elaborao de teorias abrangentes e detalhadas como algumas das teorias atualmente

    correntes; acho que a lingustica est, em grande parte, no estgio da histria

    natural, em que a prioridade o levantamento de dados confiveis e sua

    sistematizao segundo princpios rigorosos. Vou repetir: o problema no a

  • 8/14/2019 revel_14_entrevista_perini.pdf

    12/12

    ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 12

    teorizao, mas a teorizao prematura, isto , sem fundamentao suficiente nos

    dados.

    J do ponto de vista da relao da lingustica com as reas limtrofes, creio que a

    tendncia que se observa hoje vai continuar: cada vez mais, ser necessrio levar emconta a relevncia da informao de ordem psicolgica, cognitiva e sociolgica para a

    descrio das lnguas, e muito em especial para a construo da teoria. Ou seja, a

    lingustica, tal como tantas outras disciplinas, dever se redefinir em parte,

    progressivamente, medida que avana o sculo.