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ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010 [www.revel.inf.br] 1
PERINI, Mrio A. Sobre lngua, linguagem e Lingustica: uma entrevista com Mrio A. Perini. ReVEL.
Vol. 8, n. 14, 2010. ISSN 1678-8931 [www.revel.inf.br].
SOBRE LNGUA,LINGUAGEM E LINGUSTICA UMA ENTREVISTA COM MRIOA.PERINI1
Mrio A. Perini
Universidade Federal de Minas Gerais
Entrevistadores O que lngua?2
Perini Chamamos lngua um sistema programado em nosso crebro que,
essencialmente, estabelece uma relao entre os esquemas mentais que formam
nossa compreenso do mundo e um cdigo que os representa de maneira perceptvel
aos sentidos. Os seres humanos utilizam um grande nmero de tais sistemas
(lnguas), que diferem em muitos aspectos e tambm se assemelham em muitos
outros aspectos. Tanto as diferenas quanto as semelhanas so altamente
interessantes para o linguista.
O sistema em questo de uma complexidade extrema: compreende regras (de
pronncia, de formao de palavras, de formao de frases, de relacionamento das
formas com os significados), itens lxicos (palavras e morfemas, com suas
propriedades gramaticais e seus significados), expresses idiomticas (como pisar na
bolaou me de santo) e clichs (comoficar sem falae tomar caf). Acredita-se hoje
que o sistema em parte inato, pois todas as lnguas parecem seguir determinadas
linhas, ou seja, no encontramos tudo o que seria possvel, mas apenas algumas das
1 Ao contrrio das demais entrevistas publicadas periodicamente nas edies da ReVEL, estaentrevista foi originalmente preparada como contribuio para um livro, a segunda edio deConversas com linguistas, publicado pela Parbola Editorial em 2003 e organizado por AntonioCarlos Xavier (Universidade Federal de Pernambuco) e Suzana Cortez (PUC de Minas Gerais).Infelizmente, essa segunda edio no se concretizou. Por iniciativa dos organizadores desta entrevistae do entrevistado, este texto est sendo oportunamente publicado nesta edio n. 14 da ReVEL, cujotema , justamente, Histria e Filosofia da Lingustica.2 A entrevista foi organizada por Antonio Carlos Xavier e Suzana Cortez. Todas as perguntas forampropostas por eles. Cf. nota 1.
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possibilidades. A hiptese que as lnguas s se desenvolvem seguindo certas
direes por que de outra forma no seriam utilizveis por crebros humanos. E parte
do sistema, evidentemente, no inato, e precisa ser aprendido a partir de exemplos
observados pela criana.
O que chamamos uma lngua , assim, uma das realizaes histricas da capacidade
humana para a linguagem. E cada lngua profundamente enraizada na cultura que
serve por exemplo, no creio que em tibetano ou em amrico haja expresses
exatamente paralelas apisar na bolaou me de santo. J houve (no sei se ainda h)
quem sustentasse que a lngua que uma pessoa fala condiciona sua maneira de ver o
mundo (a chamada hiptese de Sapir-Whorf). Suspeito que h um gro de verdade
nessa hiptese, mas do modo como geralmente enunciada ela exagera a
importncia da lngua nos nossos processos cognitivos.
Entrevistadores Qual a relao entre lngua, linguagem e sociedade?
Perini Posso comear dizendo que a relao entre lngua e linguagem que uma
lngua uma das maneiras como se manifesta exteriormente a capacidade humana
a que chamamos linguagem. Mas o termo linguagem tambm aplicado a outros
tipos de sistemas de comunicao, que normalmente no so chamados lnguas,como o sistema de sinais de trnsito e a linguagem das abelhas. Assim, linguagem
um conceito muito mais amplo do que lngua: a linguagem inclui as lnguas entre
suas manifestaes, mas no apenas as lnguas.
Agora, dito isso, podemos afirmar que as relaes entre a linguagem (em geral sob a
forma das lnguas) e a sociedade humana so muitas e muito importantes. Primeiro,
observemos que qualquer sociedade minimamente complexa s pode funcionar, e
mesmo surgir, atravs do uso intensivo da linguagem. A sociedade funciona atravsda cooperao e/ou conflito entre os homens, e a linguagem medeia esses processos
de maneira crucial.
A lngua falada por um povo parte da imagem que esse povo tem de si mesmo, em
certos casos ainda mais significativa do que as unidades polticas em que o povo se
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organiza. Assim, embora a Alemanha e a Itlia s se tenham unificado como naes
nos meados do sculo XIX, havia muitos sculos j que os falantes das respectivas
lnguas se consideravam alemes e italianos. Pode-se mencionar tambm fatos
atuais como a atitude dos catales e dos bascos, que insistem em ser diferentes dos
demais espanhis, em grande parte por falarem outra lngua. Vemos a umatendncia a fazer coincidir as fronteiras lingusticas com as fronteiras nacionais. Isso
nem sempre acontece, como se pode ver pela persistncia das fronteiras entre os
pases hispano-americanos, mas mesmo assim um mexicano se sente culturalmente
mais prximo de um espanhol ou de um uruguaio do que de seus vizinhos
americanos falantes de ingls. A lngua , sintomaticamente, um dos instrumentos
mais importantes na mo de governantes que, para bem ou para mal, procuram
enfatizar a unidade de um povo ou de uma nao.
Entrevistadores H vnculos necessrios entre lngua, pensamento e
cultura?
Perini Entre lngua e pensamento certamente h. Apesar de a lngua ser
primariamente um instrumento de comunicao (ao contrrio do que dizem alguns,
ver a questo 5), ela tambm um instrumento de pensamento. Ou seja, podemos
utilizar a lngua para pensar, e constantemente o fazemos. No acredito que a lnguaque uma pessoa fala condicione em grande medida sua maneira de pensar
(contradizendo a chamada hiptese de Sapir-Whorf, mencionada na questo 1); mas
acho perfeitamente plausvel que haja alguma influncia da lngua sobre as categorias
atravs das quais compreendemos o mundo. J se fez algum trabalho sobre isso por
exemplo, sustenta-se que os falantes de certas lnguas categorizam as cores de
maneira diferente dos falantes do portugus, e isso se reflete em sua lngua. Os russos
distinguem duas cores no que chamamos de azul(goluboyazul claro, sinniyazul
escuro); isso no quer dizer que eles vejam essas cores diferentemente, mascertamente sugere que eles organizam diferentemente esse detalhe da realidade.
Mas o verdadeiro vnculo entre lngua e pensamento que o conhecimento e o uso da
lngua so tambm formas de pensamento. Ao usarmos uma lngua, lanamos mo de
conhecimentos no apenas lingusticos stricto sensu, mas de todo tipo de
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conhecimento sobre o mundo. Por exemplo, podemos dizer animal mamfero, mas
no mamfero animal, porque se entende que todo mamfero animal, e o termo
mais restritivo deve sempre aparecer depois do menos restritivo. Nesse caso, a ordem
das palavras no determinada apenas pelo nosso conhecimento da lngua, ou seja,
da gramtica, mas tambm pelo que sabemos sobre o mundo animal. Os exemplosso muitos, e mostram que no existe uma fronteira ntida entre nosso conhecimento
da lngua e nosso conhecimento do mundo. A meu ver, existe uma fronteira
aproximada entre esses dois tipos de conhecimento, o que nos autoriza a continuar
falando de conhecimento lingustico, de gramtica etc., mas no se trata de um limite
entre componentes estanques, porque os pontos de interrelao so muitos.
Quanto aos vnculos entre lngua e cultura, existem porque a cultura inclui
manifestaes de base lingustica, como a literatura (oral e escrita), o humor, asfrmulas e rituais para as diversas ocasies da vida (nascimento, funeral, casamento,
encontros na rua etc.), e todas essas manifestaes so marcadas por expresses
lingusticas especiais. A poesia, por exemplo, utiliza certos tipos de mtrica, rima,
aliterao etc., que so especficas de cada lngua. Alm disso, a poesia lana mo
constantemente de associaes que so especficas daquela cultura, e que deixam de
funcionar quando traduzidas: pode-se lembrar, por exemplo, como difcil para um
ocidental perceber a beleza potica dos hai-kais japoneses quando traduzidos. E me
lembro de um poema que dizia que a flor a casa do perfume, que um colega francsachou horrvel porque ele percebia a palavra maison (casa) como um termo
excessivamente concreto, terra-a-terra, que s lhe evocava tijolos, reboco, janelas e
portas.
EntrevistadoresA linguagem tem sujeito?
Perini Sinceramente, no compreendo a pergunta. A palavra sujeito vemassumindo uma gama to extensa de significados que no vejo como responder sem
que pelo menos 50% dos leitores achem que estou fugindo ao tema. Vamos definir
direito o que se entende por sujeito, e a talvez eu possa responder.
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Entrevistadores O que lingustica?
Perini A lingustica uma tentativa de descrever e compreender um fenmeno
muito misterioso: uma pessoa pode comunicar a outra certas idias atravs de sinais
sensorialmente perceptveis. Em outras palavras, o estudo dos cdigos usados pelaspessoas para se comunicarem, e da capacidade inata que nos permite levar a efeito
essa atividade.
Alguns linguistas importantes, como Chomsky, sustentam que a funo comunicativa
da linguagem secundria, e que a linguagem existe principalmente para permitir o
pensamento. Isso cria uma dificuldade na base da metodologia lingustica: se nos
basearmos em enunciados observados para estudar as lnguas (e, da, a linguagem),
estaremos usando dados provenientes de um uso marginal do fenmeno estudado.Mas, se quisermos partir de dados relacionados com o uso essencial da linguagem
(segundo eles, o pensamento), teremos que nos limitar introspeco e acho que
nenhum linguista sustentaria seriamente essa alternativa.
O dilema, porm, s aparente, porque a linguagem mesmo, fundamentalmente,
um instrumento de comunicao. possvel pensar sem utilizar a linguagem, mas
no possvel se comunicar sem utilizar (algum tipo de) linguagem.
Devo acrescentar que a fonte principal dos dados do linguista, mesmo daqueles que
se ocupam da teoria geral da linguagem, est nas lnguas naturais (portugus,
caxinau, hngaro e alemo, por exemplo). O estudo das lnguas naturais,
consideradas em si mesmas, a base de todo o estudo lingustico. Digo isso porque j
ouvi linguistas afirmarem que o estudo das lnguas naturais relativamente pouco
interessante para o que entendem por lingustica. uma atitude que no apoio, e
que considero fora da realidade.
Alm desse estudo basicamente estrutural, a lingustica tambm estuda a evoluo
histrica das lnguas, as variantes que uma lngua mostra segundo seu uso pelas
diferentes classes sociais, as variantes regionais, o processo de aquisio da
linguagem pelas crianas e vrios outros aspectos da estrutura e do uso das lnguas.
H tambm um esforo no sentido de descobrir os traos comuns a todas as lnguas,
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com a idia de que eles so evidncia de aspectos da programao inata que nos
permite adquirir e utilizar uma lngua natural. Acrescente-se a tudo isso a procura de
aplicaes dos resultados da lingustica soluo de problemas prticos, em especial
ao ensino de lnguas.
Entrevistadores A lingustica cincia?
Perini Acho que sim, em princpio, mas tenho restries quanto maneira como
alguns linguistas entendem esse status de cincia. Talvez o melhor seria dizer: a
lingustica pode ser uma cincia, dependendo de como a praticarmos. Se uma
cincia, sem dvida uma cincia emprica, ou seja, empenhada em descrever um
aspecto do universo e em construir teorias que expliquem os fenmenos descritos.
Esses dois aspectos so fundamentais: no h cincia sem descrio sistemtica de
aspectos da realidade, e no h cincia emprica sem teorias que procurem explicar
esses aspectos em termos mais gerais sempre que possvel, relacionando-os com
teorias de outras cincias que se ocupam de aspectos correlacionados. So duas faces
de toda e qualquer cincia emprica, e uma no pode existir sem a outra, sob pena de
prejudicar o carter cientfico da atividade em questo.
Alguns linguistas atuais, entretanto, parecem convencidos de que mais importante
criar teorias do que descrever fatos de maneira sistemtica, precisa e
escrupulosamente fiel aos dados da observao. O resultado, a meu ver, uma no-
cincia (para no ser malvado e dizer uma pseudo-cincia). Mas o problema no
est no carter da lingustica; est na compreenso a meu ver falha que alguns
linguistas tm do trabalho cientfico.
Uma atitude deletria que observo na lingustica atual a de enfatizar a produo,discusso, crtica e releitura de textos tericos (sejam recentes, sejam clssicos), sem
uma nfase paralela na sua validao frente a dados reais. Isso tende a reduzir a
atividade lingustica a uma crtica textual sem contedo emprico, e portanto no
cientfica. No estou dizendo que no se deva ler Saussure, Chomsky ou Pnini; mas
fundamental reconhecer que esses autores, e todos os outros, s tm relevncia para
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a lingustica moderna se puderem sugerir novos meios de abordar o estudo da
realidade das lnguas naturais.
Para resumir, a lingustica uma cincia na medida em que se ocupa sempre, em
ltima anlise, do estudo de dados reais, tirados do uso normal das lnguas.
Entrevistadores Para que serve a lingustica?
Perini A lingustica, como toda cincia, serve para aumentar nosso conhecimento
e nossa compreenso de alguns aspectos do mundo.
Por outro lado, ela pode ter aplicaes (ver questo 8), mas estas no fazem parte desua fisionomia fundamental; so decorrncias acidentais. Mal comparando, ficamos
muito felizes em saber que a qumica permite a criao de medicamentos; mas no se
pode dizer que a qumica tem como objetivo a fabricao de remdios. O que a
lingustica faz, e o que faz dela uma cincia, descrever e (na medida do possvel)
explicaro fenmeno da linguagem.
Entrevistadores A lingustica teria algum compromisso necessrio coma educao?
Perini A lingustica, como cincia, no tem compromisso com a educao. J os
linguistas, como cidados, devem ter, e geralmente tm, um grande compromisso
com a educao. As principais aplicaes do conhecimento lingustico se voltam para
questes educacionais. Por isso, na prtica, a lingustica e a educao se ligam bem de
perto. mais ou menos como a relao que existe entre a fsica e a engenharia
mecnica: a fabricao de mquinas no faz parte do objeto da fsica, mas conhecerfsica essencial para um engenheiro mecnico.
Muitos linguistas se preocupam com as aplicaes de sua disciplina a problemas
educacionais, e podem mostrar alguns resultados importantes, notadamente na rea
do ensino de lnguas estrangeiras. J no que diz respeito ao conjunto de habilidades
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que se tenta transmitir sob o rtulo de lngua portuguesa, as contribuies esto em
grande parte ainda no reino das potencialidades. Acho que poderamos dar uma
contribuio significativa ao desenvolvimento de reas como a aquisio da leitura
fluente, o ensino de gramtica, o conhecimento da realidade lingustica do Brasil e o
desenvolvimento das habilidades de redao (produo de textos, no jargo atual).Mas acho que pouca gente tem se dedicado intensivamente a esses problemas em
oposio lingustica aplicada ao ensino de lnguas estrangeiras, que uma rea bem
estabelecida, com seus especialistas prprios, revistas especializadas, programas de
ps-graduao etc.
preciso observar que quando se pensa em aplicao da lingustica educao
indispensvel pensar em termos interdisciplinares. Digo isso porque tenho visto
ocasionais tentativas de aplicao direta e crua de conceitos tericos ao ensino, comresultados desastrosos. Posso citar, em tempos idos, a tentativa de criar uma
metodologia transformacional de ensino de lnguas, e atualmente a aplicao
indevida dos estudos de universais lingusticos a problemas de sala de aula. No se
pode perder de vista que o ensino uma questo didtica, pedaggica, no
lingustica; e que o valor de uma metodologia se mede em termos de resultados, e no
de insero nas teorias do momento.
Eu gostaria de ver um nmero maior de linguistas de primeira linha ativamenteengajados no desenvolvimento de aplicaes da nossa cincia a questes educacionais
e gostaria igualmente de ver maior receptividade da comunidade escolar s
inevitveis inovaes que da resultaro.
Entrevistadores Como a lingustica se insere na ps-modernidade?
Perini O que ps-modernidade? J vi esse termo empregado em diversossentidos, nenhum deles realmente interessante. Vou selecionar os trs que me
parecem mais comuns, para tentar relacionar cada um com a lingustica de hoje.
Em um sentido, ps-modernidade se refere a um movimento que, me parece, tem
como objetivo subordinar o trabalho cientfico a consideraes de ordem ideolgica,
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com o interesse de faz-lo politicamente correto. Por exemplo, criticou-se o uso da
noo de comando em sintaxe porque se trata de uma relao assimtrica, de base
autoritria e no-democrtica no estou brincando, vi isso em um artigo na revista
Natural language and linguistic theory, se no me engano de 1992. Ou podem negar
a prpria relevncia do estudo da fonologia por ser desvinculado de aplicaespolticas. Tudo isso seria apenas ridculo se no fosse levado a srio por algumas
pessoas bem intencionadas. Essa atitude, se levada adiante, destrutiva, eu diria
mesmo anti-intelectual. Posies polticas, por mais defensveis que sejam, no so
um substituto para o trabalho cientfico, baseado no respeito aos fatos e na tentativa
de organiz-los dentro de teorias coerentes. Nesse sentido, a lingustica (a que eu
pratico e defendo) no se insere de maneira nenhuma na ps-modernidade.
No segundo sentido, parece que ps-modernidade se refere tendncia deabandonar a ideia de cincias autnomas para concentrar ateno nas reas
limtrofes, nas chamadas interfaces, negando-se s vezes a possibilidade de
estabelecer limites. Isso no me parece novidade: provavelmente uma consequncia
inevitvel do avano do conhecimento. As reas antes consideradas marginais vo se
integrando, medida que produzem resultados apreciveis; por isso, hoje se estuda
coisas como a psicolingustica, a sociolingustica, a anlise do discurso, a pragmtica
etc., que eram muito pouco presentes nos programas quando fiz minha ps-
graduao, nos anos 70. Acredito que os limites ainda esto a, mas alguns deles estomenos ntidos, e pelo menos alguns podem no subsistir por muito tempo; isso s o
tempo vai dizer.
Como disse, no h nada de realmente novo nesse processo: aconteceu sempre, e vai
continuar acontecendo. preciso encarar essa integrao com esprito crtico, pois h
uma tendncia a aceit-la sem exame pelo simples fato de estar na moda: a pesquisa
lingustica seria submetida a uma clusula de interdisciplinariedade compulsria.
Essa uma posio ingnua, e alis acontece que a maior parte do trabalho relevanteem lingustica ainda se faz dentro das reas e subreas tradicionais. Mas no h
dvida de que o processo de integrao real; para dar um exemplo que afeta o meu
trabalho, hoje difcil justificar um trabalho em sintaxe e semntica sem levar em
conta os resultados da cincia cognitiva. S gostaria de enfatizar que para isso
preciso saber muito bem sintaxe, semntica e cincia cognitiva.
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Um terceiro sentido de ps-modernidade eu detecto na tendncia, mais observvel
no campo da anlise do discurso, de adaptar lingustica certas ideias sobre cincia
em geral, s vezes conhecidas sob o rtulo de construtivismo social. Em princpio,
essa vertente enfatiza o componente pessoal da atividade cientfica, e varia em graude radicalismo. Alguns autores apenas apontam que o cientista um ser humano, e
que suas crenas e desejos podem influenciar seu trabalho; j outros autores chegam
a posies extremas, como a de negar que o conhecimento objetivo seja possvel,
porque (segundo eles) a realidade no acessvel cognio humana ou mesmo
que a realidade no tem existncia objetiva, sendo um construto da mente humana. A
primeira dessas posies , a meu ver, verdadeira, mas bastante bvia. J quanto
segunda, o mnimo que posso dizer que auto-destrutiva: se a realidade no existe,
ento as ideias desses autores (assim como os prprios autores) tambm no existem,e onde que vamos parar?
No encontrei, na literatura lingustica, tentativas sistemticas de aplicar essas ideias
radicais de construtivismo social; em geral, o que se encontra apenas uma leitura e
releitura infindvel de textos, um dilogo inteiramente intraterico e, como
inevitvel, empiricamente estril. O texto lingustico degenera em um exerccio de
estilo, com uma procura constante de palavras e construes inusitadas, com o
objetivo evidente de causar efeito; o contedo totalmente secundrio. O apelo aosdados espordico e puramente ornamental, e as concluses so atingidas sem
argumentao verdadeira. Como j foi apontado, esses textos tm mais em comum
com a pregao religiosa do que com a argumentao cientfica. Aqui no posso
deixar de citar um comentrio de Peter Medawar (bilogo britnico mas nascido
em Petrpolis! , prmio Nobel de Medicina) que viu no estilo desses autores uma
certa semelhana com um bal, em que se faz uma pequena pausa de tempos em
tempos, em poses bem estudadas, espera de uma exploso de aplausos. [in
Dawkins, R. O capelo do diabo, p. 90]
interessante observar que esses autores, que negam explicitamente a possibilidade
do conhecimento cientfico tal como se entende usualmente, no deixam de utilizar
(em geral inadequadamente) noes e termos da cincia estabelecida. Vm da as
frequentes aluses fsica quntica e as crticas ao paradigma newtoniano noes
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que no se aplicam lingustica, e que parecem ser utilizadas sem conhecimento de
seu significado nas reas originais.
Como disse, a anlise do discurso, alis uma rea perfeitamente respeitvel da
lingustica, a que tem sido mais seriamente afetada por esse tipo de problema. Emvez de estudar as condies de produo do sentido no discurso, as eventuais
interaes entre as estruturas gramaticais e as condies de uso das mesmas, a coeso
e coerncia dos textos, as regras de retomada anafrica e outros temas que s podem
ser abordados no mbito do discurso, algumas pessoas se desviam para estudos
literrios (novamente uma rea respeitvel, mas profundamente infectada por ideias
no-cientficas), ou para a verborreia pura e simples.
Entrevistadores Quais os desafios da lingustica para o sculo XXI?
Perini Aqui eu sou jogado em um exerccio de previso do futuro; e, como todo
mundo, vou responder dizendo o que eu gostariaque a lingustica fizesse no sculo
XXI.
Distingo dois aspectos nessa pergunta: de um lado, os desafios terico-
metodolgicos; e, de outro, a questo da relao da lingustica com reas limtrofes.
Do ponto de vista terico-metodolgico, o grande desafio deve ser uma reavaliao
rigorosa e impiedosa das teorias luz dos dados da experincia. Isso implica em
valorizar mais o trabalho descritivo frente elaborao de teorias e modelos de
anlise. O trabalho cientfico se compe de observao e teorizao, e nenhum desses
aspectos dispensvel. Mas nem a observao sem teoria nem a teorizao sem
dados tem utilidade. No momento, acredito que se tem teorizado excessivamente, e
em certos setores percebo quase que um desprezo pelo trabalho descritivo. Noacredito que nosso conhecimento da linguagem esteja avanado a ponto de permitir a
elaborao de teorias abrangentes e detalhadas como algumas das teorias atualmente
correntes; acho que a lingustica est, em grande parte, no estgio da histria
natural, em que a prioridade o levantamento de dados confiveis e sua
sistematizao segundo princpios rigorosos. Vou repetir: o problema no a
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teorizao, mas a teorizao prematura, isto , sem fundamentao suficiente nos
dados.
J do ponto de vista da relao da lingustica com as reas limtrofes, creio que a
tendncia que se observa hoje vai continuar: cada vez mais, ser necessrio levar emconta a relevncia da informao de ordem psicolgica, cognitiva e sociolgica para a
descrio das lnguas, e muito em especial para a construo da teoria. Ou seja, a
lingustica, tal como tantas outras disciplinas, dever se redefinir em parte,
progressivamente, medida que avana o sculo.