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REVISANDO O CONCEITO DE LÍNGUA: IMPLICAÇÕES PARA O
ENSINO DO PORTUGUÊS
A revisão do conceito de língua e sua implicação para o ensino do português a que nos propomos neste trabalho tem o intuito de evidenciar o quão pertinente é a proposta do bidialetalismo na escola, defendida por Soares (1986) e endoçada por Bortoni-Ricardo (2004,2005), Faraco (2008) e Cyranka (2011). Assim, nossa motivação para essa abordagem vai muito além da busca por novas definições sobre “língua”. O que
queremos é esclarecer por que determinada forma de manifestação comunicativa é considerada como “língua”, enquanto as demais são tratadas como “dialetos”,
“variedades linguísticas”, “jeitos de falar”, “estilos”, “sotaques”, entre outros. Na busca
por respostas, nos deparamos com aspectos históricos, culturais, econômicos e políticos; e encontramos em Mufwene (2004), Myers-Scotton (2006), Trudgill (2000[1974]) e Tonkin (2003-2004) discussões pertinentes sobre o tema. A partir dos apontamentos desses autores, refletiremos sobre o ensino de língua portuguesa nas escolas de nosso país, procurando evidenciar em que medida a revisão do conceito de língua, de forma científica, afeta – ou deve afetar – o ensino de língua portuguesa nas escolas brasileiras, em consonância com a proposta do bidialetalismo. Acreditamos que através da reflexão teórica acerca da definição de “língua”, do esclarecimento da necessidade de se abrir
espaço para os dialetos nas práticas pedagógicas e da demonstração de que é possível tornar os alunos bidialetais, possamos contribuir para expansão do entendimento, principalmente entre os agentes escolares, de que o fracasso escolar de nossos alunos é fruto de um longo percurso histórico de má compreensão e equívocos com relação aos fenômenos linguísticos e, para reverter essa situação, é preciso se livrar dos enganos. É isso que pretendemos através deste trabalho. Palavras-chave: Língua; Dialeto; Ensino de língua portuguesa.
Introdução
Abordar o conceito de “língua” no âmbito da Linguística pode parecer, à primeira
vista, irrelevante ou desnecessário. Contudo, os discursos produzidos e reproduzidos
tendem a ser incorporados em nosso cotidiano e poucas vezes refletimos sobre o que
implica dizer e conceber o termo “língua”. Revisitar a(s) definição (ões) desse termo é
um dos nossos objetivos aqui.
De acordo com as posições teóricas, a língua pode ser definida por diversos
vieses: estruturalistas, cognitivistas, funcionalistas, cada qual com seus desdobramentos.
No entanto, discutir as definições de cada corrente seria um trabalho extenso e a
tentativa de síntese poderia causar equívocos. Por outro lado, restringir a apenas uma
concepção não seria suficiente, porque, talvez, ainda não se possa incluir o que traremos
sob um único rótulo teórico. Nosso intuito, assim, é mais abrangente: revisitar o
conceito de língua em sua relação com a sociedade e, por conseguinte, com a escola.
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Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002006
Patrícia Rafaela Otoni Ribeiro
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A motivação para essa reflexão vai muito além da busca por novas definições
sobre “língua”. O que queremos é entender por que definimos como língua determinada
forma de manifestação comunicativa, e tratamos as demais como dialetos, variedades
linguísticas, jeitos de falar, estilos, sotaques, entre outros.
Na busca por respostas, nos deparamos com aspectos históricos, culturais,
econômicos e políticos; e encontramos em Mufwene (2004), Myers-Scotton (2006),
Trudgill (2000[1974]) e Tonkin (2003-2004) discussões pertinentes sobre o tema. A
partir dos apontamentos desses autores, inevitavelmente, fomos levadas a refletir sobre
o ensino de “língua” nas escolas de nosso país e a compreender, como algo bastante
pertinente, a proposta do bidialetalismo na escola.
Assim, organizamos este trabalho da seguinte maneira: no primeiro momento,
teceremos considerações sobre a definição de língua, a partir da sua relação com a
sociedade; em seguida, nos direcionaremos para as discussões sobre o tema no cenário
brasileiro. Após essa etapa, prosseguiremos para um esclarecimento teórico sobre os
dialetos, e, por fim, abordaremos em que medida “a revisão do conceito de língua” afeta
– ou deve afetar – o ensino de língua portuguesa nas escolas brasileiras, em consonância
com a proposta do bidialetalismo.
1. Em busca da definição de língua
A definição do que se entende ao se referir ao termo “língua”, conforme já
dissemos na introdução deste trabalho, depende do posicionamento teórico adotado e,
ainda assim, pode ser complicado encontrar uma unidade conceitual.
Por outro lado, desde o nascimento do interesse científico sobre o tema, isto é, da
Línguística, Ferdinand de Saussure (1906) definia língua como a parte social da
linguagem, como uma instituição social. Apesar de ter se centrado no sistema
linguístico, o “pai da linguística” abriu caminhos para futuros entendimentos sobre essa
“parte social”. Para Bakhtin, por exemplo,
a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato fisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui, assim, a realidade fundamental da língua. (BAKHTIN, 2006, p. 125)
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Assim como para Bakthin, a relação entre língua e sociedade também é
considerada por diversos pesquisadores, tais como Labov (1972, 1982, 1994, 2001),
Trudgil (2000[1974]), Chambers (1996), Fasold (1990), entre muitos outros. Tonkin
(2003-2004), de forma contundente, nos mostra que “as línguas não estão contidas nos
livros, mas nas mentes e nos lábios das pessoas que vivem”; e Calvet (2002, p.12), que
“as línguas não existem sem as pessoas que as falam”.
Nessa linha de concepção, Salikoko Mufwene, numa visão mais ecológica da
língua, diz:
proponho que uma língua é uma espécie lamarckiana, cuja composição genética pode mudar várias vezes em seu tempo de vida. É também uma espécie de parasita, cuja vida e vitalidade dependem (dos atos e disposições) de seus hospedeiros, ou seja, seus falantes, sobre a sociedade que formam, e sobre a cultura em que vivem. (MUFWENE, 2004, p.35).
Na dependência dos falantes, a língua está sujeita às mesmas normas e padrões
sociais que regem a sociedade e se constitui como um bem simbólico (BOURDIEU,
2002[1930]). A língua, como um bem, evidencia o seu potencial e é, também,
identidade: apenas pela produção de um ato de fala, conseguimos identificar diversas
características do locutor, ou seja, sua faixa etária, seu sexo, sua condição financeira,
seu nível de escolaridade, dentre outros aspectos identitários. Nesse processo, entram
em cena as relações de poder e, devido ao fato de a língua ser um fenômeno social e ter
uma relação intrínseca com a estrutura social e os sistemas de valor de uma sociedade,
as diferentes manifestações linguísticas são avaliadas de formas diferentes
(TRUDGILL, 2000 [1974]).
Nesse sentido, se há diferentes manifestações linguísticas ao redor do mundo e
dentro de um mesmo território (como no Brasil), ou ainda, dentro de um determinado
grupo de pessoas, por que razões determinadas manifestações são consideradas como
“língua” e outras não? Se “língua” é um fenômeno social, que depende dos falantes, da
sua cultura e das suas interações, por que não consideramos tudo como “língua”?
Para tentarmos responder a esse inquietante questionamento, faremos um
retrocesso histórico sobre o que se passou no cenário brasileiro no século XX com
relação à Língua Portuguesa e a “língua brasileira”.
1.1 A “língua” no Brasil
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A discussão sobre a definição de “língua” que se empreendeu no cenário
brasileiro na primeira década do século XX representa, em grande medida, as
deficientes concepções sobre as questões relacionadas à linguagem que ainda são
vigentes em nosso país. Por essa razão, julgamos interessante e conveniente relembrar
o debate travado entre críticos e teóricos no que tange à língua portuguesa, concentrado
na seguinte questão: Como se define o português do Brasil? É um dialeto do Português
do Portugal ou é uma língua independente?
Sobre o tema, Pinto (1981) organizou uma coletânea de textos publicados entre
os anos de 1920 e 1945, e dela selecionamos alguns excertos. Os posicionamentos
presentes nessa obra são bastante interessantes e, apesar de se distanciarem
temporalmente da atualidade, não abordam algo antigo ou ultrapassado. Ao contrário,
dialogam com diversos autores contemporâneos que, ao redor do mundo, buscam
esclarecer os conceitos de “língua” e “dialeto”. Conforme aponta Myers-Scotton (2006,
p.32), os dois termos apresentam juízos de valor distintos, e é isso que vemos nos
excertos a seguir:
I. “As línguas deturpadas recebem o nome de dialetos” (NASCENTES,
1933 apud PINTO 1981, p. 119)
II. “A língua do Brasil, em que pese ao orgulho nacional, não passa de um dialeto ultramarino do português e a Europa assim o considera. (NASCENTES, 1933 apud PINTO, 1981, p.119)
III. “Só os dialetos são uma realidade na realidade na vida da linguagem.
(...) Por virtude apenas política deixa um dialeto de ser dialeto para ser considerado língua. Dialeto de nação soberana é língua. Da mesma sorte torna uma língua à condição de dialeto, quando a gente que a fala deixa de formar uma nação soberana (...). A nossa língua nacional é um dialeto do português. Mas o nosso dialeto é o idioma de um povo livre e soberano. Da nossa soberania política resulta a independência do nosso dialeto. O dialeto brasileiro é a língua brasileira” (SANCHES, 1940 apud PINTO 1981, p. 442)
IV. “Uma língua falada em vasta superfície geográfica não pode ter
uniformidade perfeita. De região para região se apresentam divergências de vária espécie, entre as quais sobrelevam as de caráter fonético, e as que resultam do vocabulário local. Concretamente, não há uma língua, e sim vários dialetos” (SILVEIRA, 1921 apud PINTO 1981, p. 26)
O que se observa nos quatro excertos acima, produzidos na primeira metade do
século XX, é uma divergência de opiniões em relação à consideração do português do
Brasil como “língua” ou como “dialeto” do português de Portugal. Obviamente, o que
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está por detrás desse debate não é, de fato, uma questão linguística, mas, sem dúvida,
uma discussão político-ideológica. De qualquer sorte, o enfoque dado aos termos
“língua” e “dialeto” é o que nos permite tecer algumas considerações.
Em primeiro lugar, cabe destacar o teor pejorativo que o termo “dialeto”
carregava – e ainda carrega. Para Nascentes (excertos I e II), o rótulo de dialeto era dado
a línguas deturpadas e, ao afirmar que a língua do Brasil “não passa de” um dialeto,
evidenciava a subalternidade do “brasileiro” de fronte ao “português”. Contudo, a
soberania do termo “língua” não se fundamenta em nenhuma noção linguística. De
acordo com Elia (1987, p.148-149), na noção de dialeto – termo de origem grega que
significa “‘falar”, “dizer” – não há nenhuma apreciação pejorativa. Trata-se apenas de
um modo de falar próprio de uma região, apenas diferente e não superior ou inferior.
Na definição de Leite de Vasconcelos (1901, p.16), “o dialeto é um modo de falar
próprio e particular de uma língua nas diferentes partes do mesmo reino: o que consiste
no acento, ou na pronunciação, ou em certas palavras, ou no modo de declinar e
conjugar”.
Nesse sentido, as opiniões de Sanches (excerto III) e Silveira (excerto IV)
apresentam uma perspectiva mais linguística do fenômeno que circunda os conceitos de
“língua” e “dialeto”. A pretensa unidade da “língua” não se justifica e, como Silveira
(1921 apud PINTO 1981, p. 26) afirma, “de região para região se apresentam
divergências de vária espécie, entre as quais sobrelevam as de caráter fonético, e as que
resultam do vocabulário local”. Assim, sendo “dialeto” os modos de falar, logo “só os
dialetos são uma realidade na realidade na vida da linguagem” (SANCHES, 1940 apud
PINTO 1981, p. 442).
Por que, então, não consideramos todos os “modos de falar” como dialeto?
Sanches, já em 1940, nos respondia: “por virtude apenas política deixa um dialeto de ser
dialeto para ser considerado língua” (SANCHES, 1940 apud PINTO 1981, p. 442); e o
autor ainda aprofunda, relacionando a soberania da língua à soberania do povo, da
“gente que a fala” (“Da mesma sorte torna uma língua à condição de dialeto, quando a
gente que a fala deixa de formar uma nação soberana.” (SANCHES, 1940 apud PINTO
1981, p. 442)).
Dialogando com Sanches, Tonkin (2003-2004) destaca que “língua” é um termo
político; e Trudgill reforça que, do ponto de vista científico, “todas as línguas e,
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correspondentemente, todos os dialetos, são igualmente bons como sistemas
linguísticos” (TRUGILL, 2000 [1974], p.8).
Diante disso, devemos refletir sobre o “dialeto” (ou dialetos), com uma visão mais
científica, a fim de entender aquilo que foi colocado em lugar de subalternidade e,
assim, descobrir – ou melhor, redescobrir – o que é a língua e como a escola deve se
situar em meio a essa questão.
2. Língua e dialeto: implicações para o ensino
Conceber a língua como um conjunto de dialetos desencadeia uma melhor
compreensão sobre a noção de dialeto, conforme vimos anteriormente. Todavia, se no
âmbito cientifico podemos considerar essas discussões ainda incipientes, no censo
comum prevalece um ideário bem parecido com a opinião de Rubens do Amaral: recrudesce por ai, atualmente, o clamor contra as deficiências do ensino do português (...). O que se dá nas escolas é o que verificamos diariamente cá fora, na vida prática (...) por toda a parte, é quase sempre um torneio de mau português. (...) E tudo atesta que os brasileiros, em geral, não sabem português (AMARAL, 1939 apud PINTO 1981, p. 417)
O entendimento da língua como uma coisa una, acabada e homogênea, cuja
materialidade se encontra nos livros e gramáticas, condiciona a crença de que “os
brasileiros, em geral, não sabem português”, mesmo sendo escolarizados.
Na sociedade atual, a maior parte dos brasileiros – se não todos – tem acesso à
escola e, em geral, passam mais de oito anos estudando a “sua” língua, isto é, a língua
portuguesa. Em contrapartida, além de julgamentos externos (como o de Amaral, acima
citado), os alunos, falantes nativos do português, saem da escola com um sentimento de
que, realmente, não sabem a língua. Tal situação culmina no estabelecimento de crenças
negativas sobre as manifestações linguísticas pelos próprios falantes e ocasiona o
fracasso escolar.
Assim, parece intrigante compreender por que razões prevalece, ainda hoje, a
crença de que os brasileiros não dominam a língua portuguesa. Ora, se essa é a sua
língua, porque a necessidade de passar anos de sua vida estudando-a, e, ainda assim, não
conseguir aprendê-la?
A resposta para essa indagação, a nosso ver, está diretamente relacionada com o
conceito de língua, que, conforme já apresentamos, tem gerado confusões desde o
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século passado. Apesar de o debate, naquele momento, ter girado em torno das
diferenças linguísticas entre Brasil e Portugal, hoje podemos compará-lo, tomando as
devidas proporções, com a “língua da escola” e a “língua do povo”.
Na escola, a língua se apresenta de forma abstrata, através de conceitos e regras.
As atividades linguísticas, na maior parte do tempo, se limitam ao conhecimento ou
reconhecimento das estruturas, à depreensão de formas e significados. Desse modo, o
ensino de língua se respalda na “norma curta” (FARACO, 2008) e os usos linguísticos,
de fato, são dispensados da abordagem escolar.
O que ocorre com a “língua da escola” pode ser comparado, de forma metafórica,
com o esporte: um indivíduo não aprende a jogar voleibol apenas através das regras do
jogo. Portanto, se o professor passasse horas explicando as regras sem que o aluno não
pudesse pegar a bola para jogar, sem que tivesse colegas para jogar junto com ele, o
aluno não aprenderia a “jogar voleibol”. Da mesma forma, nas aulas de língua
portuguesa, de nada adianta o aluno estudar por horas e anos as regras da língua sem
vislumbrar a sua aplicação, sem “pegar” a língua para usar, sem interagir com seus
colegas. A língua, assim como um jogo, só se aprende jogando, só se aprende
utilizando. Obviamente, não estamos dizendo que as regras são desnecessárias, porque,
se não as houvesse, seria um caos; mas as regras se tornam sem valor quando não há
necessidade de aplicá-las e, em alguns casos (ou na maioria deles), as regras emergem
da prática.
Essa comparação, em síntese, evidencia que a “língua da escola” é aquela que
ainda não foi “jogada”. Está no ideário e não no dia-a-dia do povo. Em contrapartida, a
“língua do povo” é aquela que está em “jogo”, antes mesmo da consciência dos
jogadores para as regras necessárias. Como falta consciência, foco e entendimento, essa
“língua do povo” parece caótica, errada, confusa. Mas não o é. Ao contrário, possui
regras e sistematicidade tão quanto à “língua da escola”, só que poucos sabem disso e,
destes, muitos resistem em admitir.
Nos documentos oficiais, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a
recomendação é que se ensine a norma culta da língua portuguesa, ou seja, a “língua da
escola”, com o argumento de que “não faz sentido propor aos alunos que aprendam o
que já sabem” (PCN, 1998, p.30), ou seja, a “língua do povo”. Porém, apesar de todos
saberem usá-la, a ausência de um tratamento didático e de um espaço de legitimidade
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faz com não haja consciência desse saber e, mais ainda, a depender das estratégias
pedagógicas adotadas, há um aniquilamento da “língua do povo”, da língua dos alunos.
Tendo isso em vista, e retomando as discussões iniciais deste trabalho,
poderíamos considerar o que chamamos como “língua da escola” como “língua” e a
“língua do povo” como “dialeto”. Nas palavras de Tonkin (2003-2004, p.4), “língua é
um dialeto com armas” e, no âmbito escolar, poderíamos dizer, em uma simplória
paródia, que “língua é um dialeto com quadro e giz”.
Na verdade, o que está por detrás desse reconhecimento de “língua” é o prestigio
adquirido ao longo da história social e política do português, ou melhor, dos seus
falantes. Pelo prestígio dos falantes – e não das características intralinguísticas –, um
dos dialetos que compunham a língua portuguesa foi selecionado como standard, como
padrão a ser ensinado nas escolas, numa tentativa homogeneizante da língua no
território brasileiro. Como consequência, os demais dialetos foram deixados fora da
escola e, longe do quadro e giz, ficaram sem prestígio: os dialetos e seus falantes.
Devido a esse processo histórico das escolas brasileiras, até os dias atuais os
alunos têm o sentimento de que vão para a escola para aprender uma “língua nova” nas
aulas de língua portuguesa. Porém, essa “língua da escola”, na verdade, é um dos
dialetos da língua portuguesa, da mesma forma que a “língua do povo” também o é.
Assim, a instituição “escola”, a qual é pautada nas tradições elitistas e pouco
científicas, engana o aluno, o professor e a si mesma no que tange ao ensino de “língua
portuguesa”. Se o objetivo fosse, realmente, ensinar a “língua portuguesa”, todos os
dialetos que a compõem seriam levados em conta. Mas não é isso que ocorre: só se
ensina um dos dialetos, o padrão, e esquece-se dos demais.
Abrindo as cortinas e revisitando o conceito de “língua”, nos deparamos com a
seguinte constatação: o aluno, antes de entrar na escola, já sabe um dos dialetos da
“língua portuguesa”, o qual lhe é vernacular, aprendido no seio da sua família. Ao
chegar à escola, o que ocorre não é a aprendizagem da “língua” e muito menos de uma
“nova língua”, mas sim de um outro dialeto. Logo, através da escolarização, o aluno
deveria se tornar bidialetal.
No entanto, para que isso ocorra na escola, é necessária uma profunda mudança de
concepções das instituições, dos docentes e da sociedade como um todo. É preciso se
livrar do pensamento de que não é preciso ensinar o que os alunos já sabem, para que
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um espaço se abra no contexto escolar para a “língua do povo” e haja sentido na
aprendizagem da “língua da escola”.
Poderíamos dizer, de forma otimista, que esse espaço começa a se abrir. Nos
PCN, por exemplo, encontramos, de modo explícito, a orientação dada à escola para
ensinar o dialeto “padrão” e respeitar as mais diversas variedades linguísticas existentes
no território brasileiro, alertando a escola a se livrar de vários mitos, tais como:
o de que existe uma forma “correta” de falar, o de que a fala de uma região é
melhor da que a de outras, o de que a fala “correta” é a que se aproxima da
língua escrita, o de que o brasileiro fala mal o português, o de que o português é uma língua difícil, o de que é preciso consertar” a fala do aluno
para evitar que ele escreva errado. (PCN, 1998,p. 31)
Em contrapartida, sabemos também que, na prática, “a tradição escolar,
frequentemente reforçada pelas outras agências como a mídia, continua inculcando no
falante comum a vergonha e o peso de falar errado, porque é diferente do que a
conhecida ‘variedade padrão’ reconhece como única forma correta” (CYRANKA, 2011,
p.2).
Portanto, há que se percorrer um caminho de desconstrução de concepções
arraigadas na sociedade, oriundas de pensamentos elitistas e equivocados, e construção
de uma visão, e consequentemente, de um tratamento mais coerente do ensino de língua
portuguesa nas escolas, pautado em bases científicas.
Isso é possível?
Há mais de vinte anos, Magda Soares (1986) apresentava a proposta de se
transformar a escola para que, assim, também pudesse transformar os alunos na luta
contra a desigualdade social. Soares, assim, defendia que o domínio do dialeto de
prestígio era fundamental, mas que deveria ser acrescentado ao dialeto de classe – em
nossos termos, à “língua do povo”. A autora defendia, portanto, o bidialetalismo para a
transformação.
De igual modo, Bagno (1999) buscou demonstrar como era infundada a
perspectiva de que havia variedades linguísticas erradas e tentou desmitificar questões
acerca do preconceito linguístico.
Com influência dos estudos sociolinguísticos e socioculturais, Bortoni-Ricardo
(2004, 2005) apontou a Sociolinguística Educacional como uma direção para o ensino
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de língua portuguesa baseado na realidade linguística; e Faraco (2008) propôs a
Pedagogia da Variação.
Todos esses teóricos, e outros não aqui citados, conscientes da heterogeneidade
linguística no território brasileiro e da riqueza presente nas vivências dos alunos que
ocupam as escolas, lutaram (e ainda lutam) por uma “pedagogia culturalmente sensível”
(ERICKSON, 1987). Nesse sentido, evidenciam, cada qual a sua maneira, que é
necessário e importante tratar da “língua do povo” na escola, a fim de que também
aprendam, de forma satisfatória, a “língua da escola”.
Porém, a resposta à questão de se é possível tornar o aluno bidialetal só pode ser
dada quando as discussões e propostas saem dos livros e derrubam os muros da escola,
penetrando na sala de aula, de fato.
Nesse cenário, temos visto no trabalho de Cyranka (2011) uma preocupação em
mostrar que, através de uma abordagem adequada e coerente, é possível, sim, fazer com
que os alunos se tornem bidialetais, i.e, de que aprendam o dialeto prestigiado da língua
portuguesa sem que se sintam envergonhados por causa da sua língua vernacular,
devido ao processo de legitimação e reconhecimento dos dois dialetos nas atividades
escolares. Como a própria autora afirma, em sua proposta de pesquisa-ação, os alunos não deveriam abandonar, nem sequer subestimar sua variedade linguística. Ao contrário, passariam a reconhecer a legitimidade de seu vernáculo, juntamente com a possibilidade de enriquecer sua competência linguística com o domínio de outra variedade, mais prestigiada na sociedade.(CYRANKA, 2011, p.7)
Na prática, Cyranka mostrou que é possível que isso ocorra e, mais do que isso, é
desejável. A pesquisadora adverte que, para que o bidialetalismo se torne uma realidade
na vida escolar, há que se trabalhar não com a imposição dessa variedade ( a culta), muito menos através de ensino prescritivo à base de regras e classificações, mas com a expansão de competências, isto é, conservando, e valorizando o desempenho linguístico desses alunos - e juntamente com ele, a expressão dos valores culturais de sua rede social e familiar- mas convidando-o a adquirir também competência de uso do outro dialeto. (CYRANKA, op.cit.p.13)
Em sua pesquisa, Cyranka utilizou-se da metodologia de análise contrastiva
entre as variedades que os alunos já sabiam – a “língua do povo” – e aquelas que a
escola lhe desejava ensinar – a “língua da escola”. Esse procedimento foi considerado
eficaz e pode ser aplicado a qualquer língua, já que todas possuem dialetos.
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Diante dessas discussões acerca dos dialetos e da necessidade de se ter um
tratamento escolar sobre a questão, entendemos que a principal implicação para o
ensino do português que há de ocorrer é a implementação da proposta do bidialetalismo,
seja sob os rótulos de “pedagogia da variação”, “pedagogia culturalmente sensível”,
“sociolinguística Educacional” ou qualquer outro. O importante é levar os alunos, e a
sociedade em geral, a se conscientizar de que todos nós somos falantes de dialetos, e
não há dialetos melhores ou piores: todos têm o mesmo papel na constituição da
“língua”.
3. Considerações finais
A revisão do conceito de língua e sua implicação para o ensino do português teve
o intuito de evidenciar o quão pertinente é a proposta de tornar os alunos bidialetais.
O termo “dialeto”, ainda carregado de valores negativos em nossa sociedade, deve
ser desmistificado e revisitado com olhares científicos. As concepções adotadas por
Mufwene (2004), Myers-Scotton (2006), Trudgill (2000[1974]) e Tonkin (2003-2004)
corroboram com a proposta de se desenvolver o bidialetalismo na escola, endoçada por
Soares (1986), Bortoni-Ricardo (2004,2005), Faraco (2008) e Cyranka (2011).
Sabemos que não estamos falando de coisas novas e inéditas. Ao contrário, tratamos
de um “problema” educacional que, sob nosso olhar, é fruto de um longo percurso
histórico de má compreensão e equívocos com relação aos fenômenos linguísticos.
Contudo, pelo menos para nós, parece claro que a justificativa para se valorizar os
dialetos e trabalhá-los na escola não deve estar relacionada a lutas políticas, à defesa das
minorias pobres e desfavorecidas, ao compromisso social e/ou cidadão daquele que se
engaja nessa jornada. Para aqueles que ensinam a “língua portuguesa”, a justificativa
deve, seguramente, ser apenas uma: o que se ensina não é a “língua”, mas as partes que
a ela compõe. Ensinamos dialetos – ainda que seja só o padrão.
A partir dessa compreensão teórica acerca de “língua” e “dialeto”, do esclarecimento
da necessidade de se abrir espaço para os dialetos nas práticas pedagógicas e da
demonstração de que é possível trabalhar o bidialetalismo na escola, parece-nos que,
agora, só falta expandir e divulgar que só os dialetos são uma realidade na realidade na
vida da linguagem.
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Referências
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