Revisitando o Ensino Tradicional de Língua Portuguesa

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  • Graziela Lucci de Angelo

    REVISITANDO O ENSINO TRADICIONAL DE LNGUA PORTUGUESA

    Tese apresentada ao curso de Lingstica Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Lingstica Aplicada na rea de Ensino-Aprendizagem de Lngua materna. Orientadora: Prof Dr Raquel Salek Fiad

    UNICAMP Instituto de Estudos da Linguagem

    2005

  • ii

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp

    An43r

    Angelo, Graziela Lucci de.

    Revisitando o ensino tradicional de lngua portuguesa / Graziela Lucci de Angelo. -- Campinas, SP : [s.n.], 2005.

    Orientadora : Prof Dr Raquel Salek Fiad Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto

    de Estudos da Linguagem.

    1. Lngua materna - Estudo e ensino. 2. Lngua portuguesa Anlise do discurso. 3. Lngua e educao. I. Fiad, Raquel Salek. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.

    Ttulo em ingls: Revisiting the traditional teaching of the Portuguese language.

    Palavras-chaves em ingls (Keywords): Mother language Study and teaching; Portuguese language Discourse analysis; Language and education.

    rea de concentrao: Ensino/Aprendizagem de lngua materna.

    Titulao: Doutorado.

    Banca examinadora: Profa. Dra. Magda Becker Soares, Prof. Dr. Rodolfo Ilari, Profa. Dra. Llian Lopes Martin Silva e Profa. Dra. Ludmila Thom de Andrade.

    Data da defesa: 13/12/2005.

  • iii

    Aos meus pais, Waldomiro De Angelo (in memoriam) e Therezinha Odette Lucci De Angelo; ao meu marido, Joo Carlos Gilli Martins; e aos meus filhos, Lgia De Angelo Gilli Martins e Bruno De Angelo Gilli Martins, sempre presentes...

  • iv

    Agradecimentos

    Raquel, orientadora e amiga, pelo incentivo dado, pela disponibilidade e

    pelas contribuies sempre pertinentes dadas a este trabalho.

    s professoras-colaboradoras Zilda Kaplan Rubinsky, Zenaide Carmona

    Pinto, Joaquina (Quinita) Elisa Ribeiro Sampaio de Melo Serrano, Ilka Brunhilde Laurito,

    Ana Maria Assis Rodrigues, Ana Helena Cizotto Belline e Maria Jos Teodora Carreira

    Rey, pela confiana em mim depositada e pela valiosa contribuio dada a este trabalho.

    Sem as suas palavras este trabalho no poderia acontecer...

    Ao grupo de amigos e colegas: Gilda Lcia Delgado de Souza, Paulo

    Roberto Almeida, Ana Lcia Almeida, Rosana Koerner, Carmi Ferraz, Mrcia Melo,

    Sandoval Nonato Gomes, merson de Pietri, pelas opinies e contribuies dadas e pelo

    carinho sempre presente.

    Aos professores Srio Possenti e Llian Lopes Silva pela orientao dada nos

    trabalhos de qualificao; Prof Ludmila Thom de Andrade e ao Prof. Rodolfo Ilari,

    pelas crticas e valiosas sugestes dadas durante o exame de qualificao da tese.

    Aos colegas, professores e servidor tcnico-administrativo, do Departamento

    de Letras Clssicas e Lingstica da Universidade Federal de Santa Maria, pelo

    companheirismo, apoio e incentivo sempre dados, sem os quais no poderia estar

    realizando meus estudos.

    Ao Gilli, pelo incentivo dado para que realizasse o doutorado, pelos

    conhecimentos que trocamos e pela imensa fora dada nas tarefas domsticas inadiveis,

    para que pudesse concluir mais essa etapa.

    Ao Gustavo De Angelo Andrade, pelo ajuda prestada na parte tcnica

    computacional.

    A toda minha famlia e meus amigos, pelo carinho e apoio constantes.

    CAPES-PICDT, pelo incentivo financeiro.

  • v

    ___________________________________

    Prof Dr Raquel Salek Fiad

    ___________________________________

    Prof Dr Magda Becker Soares

    ___________________________________

    Prof. Dr. Rodolfo Ilari

    ___________________________________

    Prof Dr Llian Lopes Martin Silva

    ___________________________________

    Prof Dr Ludmila Thom de Andrade

    ___________________________________

    Prof. Dr. merson de Pietri

    ___________________________________

    Prof Dr Maria Laura T. Mayrink-Sabinson

    ___________________________________

    Prof Dr Ana Lcia Horta Nogueira

    Campinas, 13 de dezembro de 2005.

  • vi

    Resumo

    Nos anos 1970 e 1980 foram publicados textos escritos por lingistas e documentos oficiais

    voltados ao ensino de lngua materna que apresentavam crticas ao ensino ento existente e

    propunham um novo direcionamento a ele. A imagem de ensino tradicional de Lngua

    Portuguesa construda nesses textos a de um todo homogneo, um ensino que se repetiu

    sem alteraes. Essa imagem foi se transformando, ao longo das ltimas dcadas, em um

    conhecimento definitivo e tem possibilitado escrever a histria desse ensino. O objetivo

    deste trabalho investigar que outros sentidos podem estar vinculados ao ensino tradicional

    de Lngua Portuguesa, alm da imagem construda pelo saber acadmico. Para recuperar

    essa imagem foram analisados seis textos de lingistas, dois documentos oficiais voltados

    ao ensino de lngua materna publicados nos anos 70 e 80. Para subsidiar a discusso, foram

    analisadas sete entrevistas realizadas com professoras de Lngua Portuguesa, hoje

    aposentadas, que trabalharam na cidade de Campinas (SP), para compor uma imagem do

    ensino tradicional a partir de uma outra posio enunciativa. A abordagem adotada neste

    trabalho, sempre procura dos pormenores, das singularidades, evidenciou que o ensino

    tradicional no pode ser compreendido como um lugar estvel nem nico. Sob a sua

    denominao geral se escondem etapas que se sucedem, cada uma delas trazendo pequenas

    alteraes em relao etapa anterior, que so acrscimos, ajustes para se adequar s

    exigncias vividas em cada perodo. Longe de invalidar ou afastar a imagem cientfica hoje

    consagrada sobre esse ensino, este trabalho pretendeu chegar a um outro entendimento

    sobre o ensino tradicional.

  • vii

    Abstract

    In the 70s and 80s texts written by linguists and official documents related to the teaching

    of Portuguese as a mother language have been published with some criticisms to the way

    teaching was held and proposing a new direction. The image of the traditional methodology

    of teaching presented in those texts is one that privileges homogeneity, a teaching process

    that has been repeated without modifications. In the last decades, this image has been

    transformed making possible to write the history of this teaching. The objective proposed in

    this thesis is to investigate which other meanings may be linked to the traditional

    Portuguese language teaching, beyond the one constructed by academic knowledge. To

    recover that image, the analysis covered six texts written by linguists and two official

    documents published in the 70s and 80s. To support the discussion, seven interviews with

    Portuguese language teachers, now retired, that worked in Campinas (SP) were analyzed in

    order to understand teaching from another enunciatory point of view. The approach of this

    work made possible to highlight the unusual and singular, understanding the traditional

    methodology not as a stable nor unique point of view. Under this general terminology

    different stages are hidden each one bringing into light few modifications which are

    considered adjustments to the requirements of each period. The point presented here is not

    to invalidate nor to ignore the scientific knowledge that supports this teaching but to arrive

    at another understanding about the traditional way of teaching.

  • viii

    ndice

    Introduo 01

    Captulo 1 Os referenciais terico-metodolgicos 19

    O referencial terico 19

    O referencial metodolgico 21

    Algumas convergncias 23

    O dilogo com outros textos acadmicos 25

    Metodologia de trabalho 41

    Refletindo sobre a natureza da fonte oral 55

    Captulo 2 A imagem construda pelos lingistas e documentos oficiais 61

    O que dizem alguns textos de lingistas 62

    Conhecendo o dizer de mais alguns lingistas 88

    O que dizem alguns documentos oficiais 110

    Captulo 3 A imagem construda pelas professoras - Parte I 137

    Captulo 4 A imagem construda pelas professoras Parte II 189

    Captulo 5 Consideraes finais 237

    Bibliografia 253

    Anexo 259

  • ix

    O ensino da lngua portuguesa a falantes de portugus, como se pratica normalmente nas escolas primria e secundria, se ressente de vrias deficincias, a principal das quais sem dvida o seu baixo rendimento mdio. As causas dessas deficincias so sobretudo de natureza pedaggica, mas tda pedagogia lingstica depende, para ser acertada, do conhecimento seguro de duas ordens de fatos referentes lngua: as caractersticas estruturais e as caractersticas scio-lingsticas. Estas ltimas so, no caso do ensino da lngua materna, muito mais importantes que as primeiras e certamente falta de seu conhecimento adequado, ou pelo menos sua desconsiderao, que se deve atribuir grande parte das deficincias do ensino de portugus nas escolas primrias e secundria. (Rodrigues, 1966: 9).

  • Introduo

    Saber como os discursos funcionam colocar-se na encruzilhada de um duplo jogo da memria: o da memria institucional que estabiliza, cristaliza, e, ao mesmo tempo, o da memria constituda pelo esquecimento que torna possvel o diferente, a ruptura, o outro. (Orlandi, 2001:10)

    A partir dos anos 1970, comearam a ser publicados textos, escritos por

    lingistas, e tambm documentos oficiais provenientes da Secretaria de Estado da

    Educao de So Paulo voltados ao ensino de lngua materna, apresentando crticas a

    esse ensino e propondo-lhe um outro direcionamento, tendo por base os conhecimentos

    lingsticos disponveis quela poca.

    Nesse conjunto de publicaes, em que o novo se colocava, fazendo

    oposio ao ensino praticado, era divulgada, pela via acadmica e oficial, uma imagem do

    ensino tradicional de Lngua Portuguesa, que aos poucos foi se instalando e que se

    integrava e atendia proposta da mudana.

    Quando tomei conhecimento dessa imagem, atravs das leituras de textos de

    lingistas, nos anos 70, perodo em que ainda era estudante do curso de graduao, passei a

    absorv-la, sem objees, e por muitos anos a considerei inquestionvel.

    Com uma experincia docente maior, com um universo de leituras ampliado,

    essa imagem ultimamente passou a me incomodar. Tem-me preocupado, sobremaneira,

    estar levando meus alunos do curso de graduao em Letras, futuros professores de lngua

    materna, a terem informaes sobre o passado do ensino de Lngua Portuguesa a partir de

    uma s viso, aquela veiculada nos textos dos lingistas, nos documentos oficiais

    publicados principalmente nas dcadas de 1970 e 1980.

    Tenho em mente hoje que a imagem do ensino tradicional de lngua materna

    construda no interior desses textos foi se transformando, ao longo das ltimas dcadas, em

    um conhecimento consolidado, mais do que isso, definitivo, um saber sobre o qual parece

    no mais recair qualquer dvida. Inquieta-me perceber que tal imagem, que goza de crdito

    e prestgio, fruto do saber cientfico que lhe d sustentao, o lingstico , no s aponta

  • 2

    na direo das fragilidades, das limitaes do ensino tradicional de Lngua Portuguesa,

    como tambm deixa escrita a histria desse ensino, que passa a ser lida como a histria

    oficial, a histria de uma s verso.

    Nesse sentido, acreditei que valia a pena investir em conhecer mais a

    respeito desse ensino e resolvi buscar, em outras fontes, informaes adicionais que

    pudessem subsidiar a discusso dessa imagem e, principalmente, contribuir para que a

    escrita da histria desse ensino pudesse se fazer a mais mos, produzindo assim mais um

    texto a compor seu passado, sempre aberto, sempre incompleto.

    A idia de realizar essa investigao foi com o tempo sendo nutrida com

    algumas questes que foram me chegando e sobre as quais no tinha resposta a dar: que

    outros sentidos poderiam estar vinculados ao ensino tradicional de Lngua Portuguesa alm

    dos j conhecidos? Como se configurou esse ensino ao longo do tempo? Ele se manifestou

    sempre da mesma forma nas escolas? Ou, sob uma mesma denominao, encontram-se

    concepes e prticas de ensino variadas que se alteraram com os tempos? Em que medida

    essa imagem construda condiz com a viso que alguns professores de Lngua Portuguesa,

    hoje aposentados, tm a respeito desse ensino? Ou seja: que representaes so feitas sobre

    o ensino tradicional de Lngua Portuguesa pela voz acadmico-oficial e pela voz de alguns

    professores dessa disciplina? Como se articulam essas representaes?

    Movida por esses questionamentos, iniciei o caminho da

    investigao/interpretao, entendendo com Orlandi (2004) que

    Ler, como temos dito, saber que o sentido pode ser outro. Mesmo porque entender o funcionamento do texto enquanto objeto simblico entender o funcionamento da ideologia, vendo em todo texto a presena de um outro texto necessariamente excludo dele mas que o constitui. No havendo univocidade entre pensamento/mundo e linguagem, haver sempre o espao da interpretao e do equvoco.(p. 138).

    Abraando essa concepo, considero o trabalho que passo a apresentar

    como um exerccio de interpretao, como mais uma leitura na busca de outros sentidos

    que possam estar associados ao ensino tradicional de lngua materna, que possam estar

    silenciados na imagem construda. Essa leitura que pretendo trazer neste trabalho deve ser

  • 3

    vista, tambm ela, como provisria, pois se integra num processo inacabado, incompleto,

    mas sempre possvel, que o trabalho de interpretao.

    Sem saudosismo, o presente trabalho se coloca abrindo espao para que o

    ensino tradicional de Lngua Portuguesa seja revisitado, projetando nele algumas luzes

    sobre prticas e formas de conceb-lo.

    Esclareo que, para a realizao deste trabalho, parto da compreenso de que

    existe, presente em um grande nmero de textos das reas da Lingstica e tambm da

    Pedagogia, uma imagem, ou at mesmo um conceito associado expresso ensino

    tradicional de lngua materna. Com a experincia pessoal adquirida com a leitura de textos

    de lingistas, ao longo de muitos anos, na condio de aluna e professora, pude observar

    que esse conceito tem circulado socialmente h anos. No se trata, portanto, de fazer uso de

    um conceito que tenha sido por mim elaborado. No isso o que acontece. Na verdade,

    retomo um conceito j em circulao, indo a alguns textos de lingistas e a alguns

    documentos oficiais (embasados nos conhecimentos lingsticos da poca) dos anos 70 e

    80, para caracteriz-lo e ter subsdios para discutir a respeito dele, a partir de um conjunto

    de dados de fonte oral.

    Para a realizao deste trabalho, foi preciso proceder a uma delimitao

    cronolgica e espacial.

    Concentrei-me num espao de tempo que vai dos anos 1950 aos anos 1970,

    sem, entretanto, ter fixado o comeo e o fim desse perodo, ou seja, interessei-me por

    trabalhar com um perodo em que normalmente se reconhece ter ocorrido o ensino

    tradicional.

    Tomei como foco o ensino da rede pblica da cidade de Campinas, interior

    do Estado de So Paulo, pelo fato de essa cidade ser um plo educacional de grande

    importncia em mbito estadual e por ter sido, tambm, onde sempre realizei meus estudos.

    Esse recorte tem, certamente, efeitos sobre o trabalho, pois os dados orais obtidos dizem

    respeito a um contexto especfico, ou seja, referem-se a um determinado grupo de

    professoras que, em quase sua totalidade, so formadas pela nica instituio de ensino

    superior existente naquela poca, naquela cidade, a Universidade Catlica de Campinas.

    Nesse sentido, os dados tendem a refletir uma formao docente amparada nos mesmos

  • 4

    mestres, nas mesmas idias sobre o ensinar lngua materna, de uma determinada

    instituio1.

    A realizao deste trabalho muito se vincula ao interesse que tenho em

    conhecer a histria do ensino da Lngua Portuguesa, compondo-a no s pelo que dizem os

    textos acadmicos, os textos oficiais, mas tambm pelo que narram algumas pessoas que

    viveram o dia a dia da sala de aula, no caso, algumas professoras dessa disciplina.

    Procuro defender aqui a idia de que o ensino tradicional de Lngua

    Portuguesa no se esgota na imagem que nos dada a conhecer sobre ele, ou seja, a de um

    todo homogneo, um ensino que se repetiu sem alteraes ao longo dos tempos; entendo

    que essa apenas uma das imagens possveis, que, por advir da esfera cientfica e oficial,

    tem silenciado a emergncia de outros sentidos.

    Tem havido, nas ltimas dcadas, um grande desenvolvimento de uma das

    vertentes da Histria da Educao, denominada histria das disciplinas escolares.

    Certamente, por fora desse movimento, h hoje no meio acadmico uma preocupao na

    reconstruo da histria do ensino da Lngua Portuguesa, que, at o momento, tem

    resultado em algumas publicaes. O trabalho a que me proponho realizar, de certa forma,

    se vincula a essa linha de pesquisa.

    Fazendo um levantamento sobre textos que pudessem me colocar na direo

    dessa linha de pesquisa, deparei-me com os de Soares (1997) e Silveira (1991).

    No primeiro texto, que o prefcio do livro Aula de Portugus: discurso e

    saberes escolares, de Antonio Augusto G. Batista, publicado em 1997, encontrei

    importantes informaes sobre o percurso histrico dos estudos e pesquisas voltados ao

    ensino da lngua portuguesa, desenvolvidos no sculo XX, no Brasil.

    Segundo a autora, at os anos 70, os estudos e pesquisas nessa rea foram

    subsidirios da Didtica. Foi a partir dos anos 30, nas Faculdades de Filosofia, que se

    instalaram e se desenvolveram os estudos e pesquisas sobre o ensino da Lngua Portuguesa,

    na disciplina Didtica do Portugus, que era subordinada ctedra Didtica Geral e

    1 Ressalva deve ser feita a uma das professoras desse grupo que tem sua formao escolar feita na cidade de So Paulo e sua formao superior na Universidade de So Paulo.

  • 5

    Especial. Na Didtica Especial estavam includas as didticas de todos os contedos dos

    currculos do ensino elementar e mdio. Dessa forma, a produo intelectual sobre o ensino

    de Portugus, at os anos 70, guarda as mesmas caractersticas da produo da rea de

    conhecimento a que se subordinava, a Didtica.

    Sobre essa produo, Soares assim diz:

    ... de um lado, propostas de natureza normativa, prescritiva, conjunto de normas, recursos e procedimentos que deveriam informar e orientar a prtica dos professores; de outro lado, pesquisas, poucas e quase sempre de natureza experimental, que, em geral buscando de emprstimo fundamentos na Psicologia da Aprendizagem, procuram intervir no processo de ensino para verificar como melhor prescrever-lhe as sempre perseguidas e desejadas normas e procedimentos. (Soares, 1997: VIII).

    A autora cita como obras exemplares da produo intelectual sobre o ensino

    de Portugus dos anos 60 e 70 os livros: Manual de explicao de textos, de Fernando

    Lzaro Carreter e Ceclia de Lara (1962), e O ensino da literatura, de Nelly Novaes Coelho

    (1966), manuais muito usados, que diziam o que fazer e como fazer.

    Segundo Soares, j na dcada de 60 comearam a ocorrer novas situaes no

    panorama scio-poltico e educacional brasileiro que, na segunda metade dos anos 70,

    resultariam numa confluncia de fatores que provocariam alteraes na produo

    intelectual sobre o ensino de Portugus.

    Primeiramente, acentua-se nos anos 60 o movimento de democratizao do

    acesso educao. As camadas populares, que estavam fora dos bancos escolares, passam a

    ter direito de freqentar a escola, que estava quase exclusivamente a servio das camadas

    privilegiadas da sociedade brasileira. A inadequao da escola ao novo contingente de

    alunos levou, nos anos 70, configurao dos fenmenos denominados crise da escola e

    fracasso escolar.

    Nesse ambiente de crise, o ensino de Portugus no ficou de fora. Nele

    foram encontrados os principais indicadores da incompetncia escolar: o alto nvel de

    repetncia na primeira srie, demonstrando a incapacidade da escola em ensinar a ler e a

    escrever; e o pssimo desempenho da expresso escrita dos alunos concluintes do ensino

    mdio, submetidos a provas de redao nos vestibulares.

  • 6

    Segundo Soares, a produo acadmica sobre o ensino de Portugus, que se

    constitua at ento de normas e prescries, perante tal panorama de acentuada crise e

    fracasso da escola, assume outro carter: a denncia. Muitos trabalhos, pesquisas, no final

    dos anos 70 e incio dos 80, voltam-se para a falncia do processo de alfabetizao, as

    deficincias de expresso oral e escrita de crianas e jovens. Algumas obras so

    representativas desse momento de denncia, na produo intelectual, sobre o ensino de

    Portugus: Crise na linguagem: a redao no vestibular, de Maria Thereza Fraga Rocco

    (1981); Leitura em crise na escola: alternativas do professor, coletnea organizada por

    Regina Zilberman (1982); Invaso da catedral: literatura e ensino em debate, de Lgia

    Chiappini Leite (1983).

    Para a autora, um segundo fenmeno que tambm influenciou no

    redirecionamento da produo intelectual sobre o ensino de Portugus nos anos 70 foi a

    reforma do ensino superior, promulgada no fim dos anos 60. Uma das alteraes dessa

    reforma, ao eliminar a figura da ctedra, foi dar autonomia denominada Didtica do

    Portugus, cuja denominao passou a ser Prtica de Ensino de Portugus, uma

    disciplina especfica e independente.

    De acordo com Soares, se de incio tal independncia se deu apenas

    formalmente, posteriormente, com a influncia de um terceiro fenmeno, ela se deu de fato.

    Esse fenmeno foi a chegada dos conhecimentos construdos nas cincias lingsticas ao

    campo de ensino de Portugus, situao essa que provocou alteraes significativas na

    produo intelectual nessa rea.

    Embora a Lingstica tenha sido introduzida nos cursos superiores de Letras,

    no Brasil, nos anos 60, Soares diz que somente nos anos 80 que os efeitos do ensino e da

    pesquisa lingstica sobre a Lngua Portuguesa comeam a aparecer no ensino de

    Portugus. Afirma que, a partir de ento, tal ensino assume referencial prprio e pertinente

    e ganha, finalmente, estatuto prprio; tambm afirma que as cincias lingsticas permitem

    ao ensino de Portugus, nos anos 80, caminhos de compreenso e explicao para a

    chamada crise e o fracasso escolares. Mais do que isso, permitem propostas de soluo.

    Destaca Soares que, ainda nos anos 70, chegam ao Brasil duas obras

    traduzidas que tiveram grande impacto junto aos professores de Portugus e que foram

    pioneiras em apresentar as cincias lingsticas como referencial pertinente e necessrio

  • 7

    para a prtica do ensino de lngua materna. Uma delas Lingstica e ensino do Portugus,

    de mile Genouvrier e Jean Peytard, originalmente publicada em 1970, na Frana, e que

    chegou ao Brasil em 1974, traduzida por Rodolfo Ilari. Tambm no mesmo ano, foi

    publicada no Brasil a obra de Halliday, McIntosh e Stevens, intitulada As cincias

    lingsticas e o ensino de lnguas, editada dez anos antes na Inglaterra.

    Acrescenta a autora que uma outra publicao tambm pioneira na proposta

    de vinculao das cincias lingsticas ao ensino de Portugus, totalmente brasileira, foi o

    nmero 53/54 da revista Tempo brasileiro, publicada em 1978, que apresentou um nmero

    especial sobre Lingstica e Ensino do Vernculo.

    Alm dessas publicaes, Soares acrescenta que em 1982, houve uma

    iniciativa tambm pioneira na vinculao das cincias lingsticas ao ensino de Portugus:

    foi o seminrio Aprendizagem da lngua materna: uma abordagem interdisciplinar,

    promovido pelo INEP, cujos Anais revelam o surgimento de uma nova perspectiva de

    anlise da alfabetizao, leitura, redao.

    Para a autora, a partir dos anos 80 que as cincias lingsticas trazem aos

    estudos e pesquisas sobre o ensino de Portugus, formas de entender e explicar a sua crise e

    o seu fracasso, e propostas de soluo. Aponta que muitos so os livros publicados a partir

    de ento, todos representativos daquele momento que a reflexo se d luz das cincias

    lingsticas e a proposta de alternativas metodolgicas se baseia nessa reflexo.

    Dessa produo crescente, Soares faz, segundo ela mesma afirma, uma

    citao um pouco aleatria, de algumas obras: O texto na sala de aula, coletnea

    organizada por Joo Wanderley Geraldi, publicada em 1984; A lingstica e o ensino da

    Lngua Portuguesa, de Rodolfo Ilari, publicada em 1985; No mundo da escrita: uma

    perspectiva psicolingstica, de Mary Kato, de 1986; Linguagem e escola: uma perspectiva

    social, de Magda Soares, de 1986; Lingstica aplicada ao ensino de Portugus, organizada

    por Elvo Clemente, de 1987; Questes de linguagem, organizada por Maria Helena

    Martins, de 1991; Portos de passagem, de Joo Wanderley Geraldi, de 1991; Linguagem e

    ensino, tambm de Geraldi, de 1996.

    Segundo a autora, o quadro referencial, na ltima dcada, para a rea de

    conhecimento Ensino do Portugus tem sido calcado, sobretudo, nas cincias lingsticas.

    Adverte que, embora tenham sido muitos e inegveis os ganhos obtidos por ter sido

  • 8

    institudo esse referencial como base, corre-se o risco, com ele, de ver o ensino de

    Portugus apenas como um processo de transmisso ou construo de um conhecimento

    lingstico. Nesse sentido, aponta o trabalho de Batista (1997) como contribuio nova e

    original, pois altera o rumo das pesquisas sobre o ensino de Portugus, argumentando que

    ...o autor encontra muito mais que as cincias lingsticas, para compreender e explicar a aula de Portugus, porque verifica que a aula construda no apenas em funo de seu objeto a linguagem, mas tambm em funo das condies e constries histricas, sociais, institucionais que a ela se impem. (p. XIII).

    No texto de Silveira (1991), encontrei dados complementares que subsidiam

    a composio da histria do ensino de Lngua Portuguesa no Brasil, mais precisamente

    informaes voltadas dcada de 80. Enquanto Soares percorre, de forma breve um trajeto

    de vrias dcadas, Silveira, em seu artigo Leitura e produo textual: novas idias numa

    velha escola, detm-se na dcada de 80, perodo em que

    ...o ensino de lngua materna no Brasil foi sacudido por idias oriundas principalmente das instituies universitrias e veiculadas em alguns livros bsicos e inumerveis cursos de treinamento para professores. (Silveira, 1991:39).

    O perodo destacado por Silveira justamente aquele a que Soares alude

    como sendo a poca em que conhecimentos lingsticos chegam ao campo do ensino do

    Portugus, provocando alteraes significativas na produo intelectual dessa rea.

    Segundo Silveira, o ensino de lngua materna no Brasil foi abalado por

    idias provenientes principalmente das universidades que trouxeram muitas interrogaes

    nas concepes j bem sedimentadas sobre objetivos e mtodos de ensino. Para a autora,

    possvel identificar duas razes que, juntas, parece terem sido, segundo ela, as mais

    determinantes para o aparecimento de novas concepes no ensino de lngua materna.

    Uma delas, mais terica, fruto das modificaes ocorridas no interior dos

    prprios estudos lingsticos, com a emergncia de reas como Anlise do Discurso,

    Pragmtica, Teorias da Enunciao, e tambm com o impacto de estudos sobre o hbito e o

    processo de leitura.

  • 9

    Uma outra razo citada que contribuiu para a ecloso das novas idias, foi a

    chamada crise do ensino brasileiro, caracterizada, segundo a autora, claramente por

    Soares (1986). Silveira coloca que a confluncia de tais fatores abre caminho para que

    sejam propostas uma reconceptualizao dos objetivos, dos pressupostos tericos

    subjacentes e estratgias de ao docente no ensino de lngua materna. Nesse perodo, so

    rediscutidas questes da correo lingstica, das prticas de leitura escolar, das prticas de

    produo textual e tambm a problemtica da gramtica escolar.

    Acrescenta Silveira que nessa dcada aconteceram encontros entre a

    comunidade de professores universitrios e a de professores de Portugus do ensino

    fundamental e mdio, principalmente, os da rede pblica. Eram cursos de treinamento -

    com patrocnio de rgos pblicos ou particulares, ou at mesmo sem patrocnio - sobre

    temas tericos cuja transposio ficava a cargo dos professores em exerccio que l iam

    aprender as novidades (Silveira,1991:39). Da srie de idias que passaram a influenciar o

    ensino de lngua materna de forma a renov-lo a partir dos anos 80, Silveira detm-se nos

    enfoques relativos produo textual e leitura.

    Com relao produo textual, diz a autora que o binmio

    redao/criatividade, em voga na poca, no tinha conseguido solucionar o baixo

    desempenho da escrita dos alunos. As dificuldades dos alunos de primeiro e segundo graus

    ficaram ainda mais evidente quando, a partir dos fins dos anos 70, a redao reintroduzida

    nos vestibulares.

    Muitos pesquisadores se debruaram sobre conjuntos dessas redaes,

    trazendo contribuies valiosas para repensar a produo textual, como o caso de Pcora

    (1983) que, em seu livro Problemas de redao, aponta o divrcio entre a interlocuo, que

    est na origem do processo legtimo da escrita, e as condies artificiais de produo da

    escrita escolar.

    Um ano aps a publicao desse livro publicado O texto na sala de aula,

    organizado por Joo Wanderley Geraldi, que, segundo Silveira, viria a se transformar num

    brevirio para o professor de Portugus atualizado dos anos 80. Tambm nele, a

    interlocuo torna-se o conceito chave para a anlise da questo da produo textual

    escolar. Igualmente ressaltam-se as condies artificiais de produo da redao escolar, a

  • 10

    importncia das diferenas entre a lngua oral e a lngua escrita, a necessidade de redefinir a

    avaliao da redao do aluno.

    Alm da forte influncia exercida por esses livros, tambm o artigo de Ilari

    (1985), Uma nota sobre redao escolar favoreceu a reconceptualizao da redao,

    considerando a produo do aluno como texto, com nfase nos aspectos de coeso,

    anteriormente no considerados em favor da correo ortogrfica e gramatical.

    Segundo Silveira, esse conjunto de idias lanadas veio a constituir o

    esquema terico de maior presena em grande nmero de cursos de treinamento para

    professores do ensino fundamental e mdio e, tambm, em projetos de reformulao do

    ensino de lngua materna.

    Ao mesmo tempo que ocorreram alteraes nas concepes vigentes sobre a

    redao escolar, comearam, segundo a autora, a ser questionados os princpios

    pedaggicos referentes leitura e substitudos por novo paradigma. Para a autora, a

    traduo do livro de Bamberger, Como incentivar o hbito de leitura, de 1977, talvez seja o

    precursor das idias que so propostas, na dcada de 80, no processo da reconceptualizao

    da leitura.

    Nesse processo, defende-se a primazia da concepo da leitura como hbito,

    atividade que, mesmo na escola, no deve se restringir leitura clssica escolar a dos

    bons autores nem ser objeto de avaliao escrita padronizada como o caso das

    famosas fichas de leitura, e deve ser dirigida para a formao do leitor.

    Silveira acrescenta que, a partir dessas idias, comea a se despontar um

    movimento terico ligado produo universitria das reas de Letras e Pedagogia. Em

    1982, o primeiro Congresso Brasileiro de Leitura (COLE) realiza-se na Unicamp,

    constituindo-se, a partir de ento, no grande evento de mbito nacional que, a cada dois

    anos, possibilita discutir questes tericas, apresentar experincias e, eventualmente,

    questionar o papel institucional sobre questes de leitura no Brasil. Tambm em 1982, no

    mesmo evento, funda-se a Associao de Leitura do Brasil, que passa a publicar

    semestralmente, a revista Leitura: Teoria e Prtica.

    Nesse processo de reconceptualizao da leitura escolar no Brasil, muitos

    livros foram publicados na dcada de 80 por professores pesquisadores das instituies

    universitrias, como Leitura em crise na escola: as alternativas do professor, coletnea

  • 11

    organizada por Regina Zilberman, publicada em 1982. Para Silveira, tal livro apresentou

    alguns trabalhos inovadores, como o de Marisa Lajolo, O texto no pretexto, em que a

    autora alm de analisar qual tem sido o uso do texto em sala de aula na escola brasileira,

    destaca a necessidade de o professor ser ele tambm, um leitor, e mais, um bom leitor.

    Mais uma vez, Silveira aponta o livro O texto na sala de aula, pela forte

    influncia que exerceu na reformulao didtica no Brasil, nesse caso, em relao s

    questes da leitura. Segundo a autora, o iderio do professor atualizado, sintonizado com

    as novas idias sobre leitura no ensino de lngua materna, nos anos 80, previa a importncia

    do prazer como ponto bsico para a recuperao da leitura na escola, a variedade de

    materiais para leitura em sala de aula, a busca de uma socializao das leituras feitas,

    condenando a avaliao tradicional e a procura de obras a serem oferecidas aos alunos para

    fugir do esteretipo do livro infantil, at ento muito marcado por determinados temas e por

    uma viso moralista e educativa.

    Os textos de Soares e de Silveira destacam a forte influncia que a rea do

    ensino de Portugus recebeu dos estudos lingsticos a partir dos anos 80, influncia essa

    que permitiu no s caminhos para compreender e explicar a crise e o fracasso escolares

    como tambm formular propostas que pudessem alterar o quadro do ensino de Portugus no

    Brasil.

    Tambm a leitura do artigo de Geraldi, Silva & Fiad (1996) permite verificar

    que foi grande a influncia das idias lingsticas sobre a elaborao de documentos

    oficiais voltados ao ensino de Lngua Portuguesa, como Planos, Programas ou Propostas

    Curriculares na dcada de 80. Esses autores, aps terem examinado catorze propostas

    curriculares de Lngua Portuguesa, de vrios estados brasileiros, escritos na dcada de 80 e

    incio dos anos 90, assim se pronunciam:

    A leitura dos documentos, que nos parecem representativos de uma poca, revela a presena constante de quatro aportes da Lingstica para o ensino da lngua materna: a concepo scio-interacionista ou scio-histrica de linguagem inspirando as atividades de ensino; a noo de texto, como um produto do trabalho interativo com vnculos s suas condies de produo; a noo de variedade lingstica como prpria de qualquer lngua, deslocando a noo de certo/errado e definindo-se pelo ensino da chamada lngua padro; e a organizao das prticas de sala de aula em torno da leitura, da produo de textos e da anlise lingstica.(Geraldi, Silva & Fiad, 1996: 325).

  • 12

    Certamente o ensino da lngua materna, a partir da dcada de 80, no ficou

    inclume a todas as propostas de renovao que surgiram, veiculadas pelas vrias

    publicaes na rea do ensino da Lngua Portuguesa, pelas propostas curriculares oficiais,

    pelas inmeras reunies e cursos de treinamento realizados entre professores universitrios

    e professores do ensino fundamental e mdio.

    Que modificaes foram efetivamente levadas a cabo no conjunto de

    propostas de reconceptualizao de objetivos, pressupostos tericos e procedimentos

    didticos para a rea de Lngua Portuguesa no sabemos at hoje precisar. H a necessidade

    de estudos que possam revelar a extenso e o grau de aprofundamento com que foram ou

    esto ainda sendo acolhidas as propostas de mudana no ensino de lngua materna. O que

    de certo se sabe que a histria do ensino da Lngua Portuguesa iniciou uma nova etapa,

    ainda em construo, a partir dos anos 80.

    Nesse processo de renovao, de busca para atingir e se alinhar ao novo

    paradigma de ensino da lngua materna, encontra-se fazendo contraponto, a todo instante,

    mesmo que como pano de fundo, o ensino tradicional de Portugus. pela sua existncia,

    sua prtica, seus resultados que pde e pode ser proposta a inovao, a reforma. A ele, o

    ensino tradicional de Portugus, tm sido atribudos determinados valores sem os quais o

    novo no pode se constituir. Melhor dizendo, o discurso do novo s deslancha na existncia

    do velho, da tradio a que possa se contrapor. Essa certamente a lgica que sustenta

    qualquer introduo da novidade. Para que o novo se qualifique sobre o tradicional, se

    projete, se afirme, fundamental apresentar suas falhas, seus pontos frgeis, sua

    inviabilidade, seus efeitos negativos. Parece ter sido essa a forma utilizada para que o

    conjunto de idias lanadas no ensino de Portugus, em contraposio ao ensino ento

    praticado, pudesse se colocar como novo, na dcada de 80.

    Esse esquema fica explcito naquilo que Geraldi, Silva & Fiad (1996)

    revelam do exame das catorze propostas curriculares:

    Todos os documentos tm em comum a crtica ao ensino tradicional de lngua portuguesa e a proposta de mudana desse ensino. (Geraldi, Silva & Fiad, 1996: 315).

  • 13

    Sem querer invalidar as muitas crticas pertinentes feitas ao ensino

    tradicional de lngua materna, e sem deixar de reconhecer a validade das propostas de

    renovao em contraposio ao ensino ento existente, intriga-me o fato de existir um

    permanente desinteresse, por parte das pesquisas acadmicas voltadas ao ensino da lngua

    materna, em revisitar o ensino tradicional de Lngua Portuguesa de dcadas atrs, de forma

    a obter mais informaes sobre ele, a caracteriz-lo em mais detalhes, a lanar luzes sobre

    concepes vigentes e sobre prticas escolares que se encontram apagadas, silenciadas, a

    complementar a reconstruo da memria desse ensino.

    A partir dos anos 1980, parece que tudo se passa como tendo sido creditada

    a palavra final sobre o ensino tradicional da lngua materna ao que a Lingstica nos diz

    sobre ele. A memria desse ensino passou a se constituir em algo homogneo, onde a

    dvida inexiste: o seu sentido est determinado. Parece que se deve dar crdito ao que se

    diz dele, pois, afinal, tal memria foi construda por uma cincia que j deu sinais de sua

    respeitabilidade: a cincia lingstica. Isso seria suficiente ?

    Tais dvidas tm me povoado a mente. Elas no surgiram toa, sem que

    algumas leituras tivessem me despertado, me influenciado.

    A primeira delas o texto de Pcheux (1999), denominado Papel da

    memria, apresentado pelo autor em uma sesso temtica de mesmo nome, num colquio

    realizado na Escola Normal Superior de Paris em 1983. Tal encontro, que reuniu

    especialistas de diversas reas, envolvidos na relao entre lngua e histria, enfocou o

    tema memria sob diferentes aspectos. O que particularmente me chamou a ateno nesse

    artigo foi o comentrio feito por Pcheux, no final das discusses da sesso, em que se pode

    observar como o autor concebe a memria:

    A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse debate que uma memria no poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais histricos e cujo contedo seria um sentido homogneo, acumulado ao modo de um reservatrio: necessariamente um espao mvel de divises, de disjunes, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularizao... Um espao de desdobramentos, rplicas, polmicas e contra-discursos. (Pcheux, 1999:56).

    As palavras de Pcheux so significativas, pois me possibilitam conceber a

    memria numa nova viso, e, ao mesmo tempo, so provocadoras, pois me incitam a rever

  • 14

    as posies que trago sobre a memria do ensino da lngua materna, o chamado ensino

    tradicional da Lngua Portuguesa.

    Tal concepo impe uma alterao de perspectiva: deixar de ver a memria

    como um espao onde predominam a estabilidade e a homogeneidade de sentido para

    entend-la como um espao em movimento, constitudo pela heterogeneidade de sentido,

    um espao de divises, de disjunes, desdobramentos, rplicas, polmicas e contra-

    discursos.

    Assumindo conceber a memria dessa forma, parece-me que falar do ensino

    de lngua materna de dcadas atrs, ou seja, falar da sua memria, exigiria entend-la na

    sua mobilidade, na sua heterogeneidade de sentidos, jamais numa nica forma. Entretanto,

    o que comumente se propaga a existncia de um ensino/passado marcado pela

    homogeneidade, pela regularidade, pela previsibilidade de prticas. O panorama

    delineado de forma nica, sem qualquer referncia possibilidade de prticas outras

    poderem ter coexistido.

    Alm do texto de Pcheux, o texto de Kramer (1998) tambm me despertou.

    Resultado de uma pesquisa que teve por objetivo ir ao passado para compreender as

    relaes que antigos professores, que atuaram nos anos 20/30, no Rio de Janeiro, tm com a

    leitura e a escrita, a autora situa sua pesquisa, que trabalha com a memria, histrias de

    vida e autobiografias, como fazendo

    frente s polticas de formao que passam uma borracha nas prticas construdas ao longo da histria do pas e da educao brasileira e no decorrer das inmeras histrias de professores, escolas e projetos. (Kramer, 1998: 97).

    Ressalta, no mesmo artigo, que

    Pensar e seguir um projeto de formao em tal linha significa ir no sentido contrrio ao apagamento da histria, presente em toda reforma educacional que considera o momento da sua implementao como o incio de tudo, atribuindo ao que veio antes a idia de atraso, conservadorismo, resistncia ou reao que precisaria ser superada, colocando a educao em ponto morto, que s seria alavancado por propostas pedaggicas inditas ou mirabolantes. (Kramer, 1998: 97).

  • 15

    A fala de Kramer me soa forte. Referindo-se s reformas educacionais em

    geral, suas observaes me fazem assim pensar: em que medida as alteraes que tm sido

    propostas no ensino de Lngua Portuguesa, ao longo das ltimas dcadas, no tm, atravs

    de propostas curriculares, planos de melhoria, parmetros curriculares, ou outros textos

    oficiais dirigidos aos professores, provocado o efeito de normatizar a histria do ensino,

    apagando aes docentes passadas, conferindo a todo o ensino praticado e vivenciado de

    Lngua Portuguesa de dcadas anteriores um rebaixamento geral de qualidade para que o

    novo possa ser (melhor) aceito? Kramer ainda coloca sobre esse assunto mais algumas

    questes:

    ... no ser estereotipado o conhecimento que temos das prticas pedaggicas daquele tempo? No teriam sido tambm mltiplas ? At que ponto os estudos histricos tm considerado a diversidade que possivelmente existia nas prticas educativas? (Kramer, 1998: 111).

    A possibilidade levantada por Kramer de se imaginar um passado onde as

    prticas pedaggicas de dcadas atrs possam ter sido mltiplas, diversas, me desloca da

    posio da certeza que antes tinha, para a posio da dvida, do desconforto, do incmodo

    sobre o que pensar a respeito do passado do ensino de Lngua Portuguesa.

    Se a leitura de Kramer conseguiu retirar de mim a estabilidade em que me

    achava, mais ainda me perturbou o consagrado texto de Franchi (1987), intitulado

    Criatividade e gramtica. Organizado em quatro partes, chamou-me a ateno

    especialmente a parte 3 Indicaes para uma renovao dos estudos gramaticais em

    que o autor, aps fazer um resumo dos problemas referentes ao ensino gramatical, passa a

    substituir os aspectos negativos por indicaes mais positivas.

    Nessa exposio Franchi inicia rememorando um antigo professor seu, de

    Portugus, Padre Jos de Matos, cuja prtica muito interferiu no seu aprendizado de

    produo de textos e da gramtica. Embora aquele professor desenvolvesse prticas

    pedaggicas no recomendadas pelo autor, ele organizava procedimentos de trabalho muito

    especiais e seus, no ensino da lngua. Tal trabalho, avaliado muito positivamente por

    Franchi, consistia em levar

    ... na prtica, seus alunos a uma intensa e rica ao sobre seu prprio texto e a um exerccio gramatical bem mais amplo do que a teoria gramatical que possua. (Franchi, 1987:30).

  • 16

    A atividade praticada pelo Padre Matos com seus alunos, que no texto de

    Franchi retomada, melhorada e desenvolvida em detalhes, uma alternativa de trabalho,

    proposta pelo autor, ao ensino gramatical. um exemplo de uma intensa atividade

    denominada epilingstica, provocada pelo professor.

    A rememorao trazida por Franchi um indcio que pode estar sinalizando

    para a existncia, no passado, de prticas diversificadas no ensino de lngua materna,

    desenvolvidas por outros professores, que conviviam ao lado das chamadas prticas

    tradicionais. Na nota de nmero 15, no referido artigo, Franchi faz um alerta:

    bom entender-se que essa lembrana agradecida no se deve confundir com saudosismo. Trata-se de insistir em um aspecto fundamental que tem sido esquecido por muitos lingistas que se ocupam do ensino da lngua: devemos aprender a refletir teoricamente sobre a prtica de muitos professores que, no trabalho de sala de aula, conseguem resultados surpreendentes com base sobretudo em atitudes e intuies adequadas sobre a natureza da linguagem e o carter da atividade pedaggica, mesmo quando suas concepes explcitas ficam longe do que essa reflexo terica suporia mais acertado. ( Franchi, 1987:45).

    Alm da leitura desses textos, tambm acrescento aqui algumas informaes

    que se mostraram de interesse para o trabalho obtidas a partir de um levantamento

    bibliogrfico que realizei em 2002. Objetivando conhecer a produo acadmica no Brasil,

    dos anos 1990 a 2001, voltada ao ensino de lngua materna, utilizando a metodologia de

    pesquisa denominada histria de vida, consultei resumos de teses e dissertaes defendidas

    e li artigos de revistas especializadas das reas da Lingstica e da Educao.

    A consulta foi feita em trs universidades paulistas: Unicamp, USP e PUC-

    SP. Na Unicamp, examinei os arquivos do Instituto de Estudos da Linguagem e da

    Faculdade de Educao e do Centro de Memria. Na USP e na PUC-SP, tambm examinei

    os arquivos de teses e dissertaes das reas de Lingstica e Educao.

    A consulta feita permitiu constatar que h um nmero extremamente baixo

    de publicaes que colocam o professor de Lngua Portuguesa como sujeito da pesquisa,

    havendo um maior nmero de trabalhos com a participao do professor das sries iniciais

    do que com o das sries seguintes.

  • 17

    Embora tenha surgido, a partir dos anos 90, nas pesquisas educacionais, o

    lema dar voz e vez ao professor, o levantamento realizado possibilitou constatar que as

    narrativas dos professores de Lngua Portuguesa ainda no tomaram seu lugar nos trabalhos

    voltados ao ensino de lngua materna. Esse sujeito-narrador, que certamente tem o que

    dizer, ainda um ausente; suas narrativas na pesquisa acadmica parecem continuar,

    usando palavras de Goodson (1992:71), dados irrelevantes.

    Essa situao tem permitido a formao de uma lacuna: faltam trabalhos que

    dem espao palavra do professor de lngua materna, seja a dos que se encontram ainda

    desenvolvendo suas funes junto s escolas, seja a daqueles que j se encontram

    aposentados; ao longo do tempo, tal lacuna vai, aos poucos, permitindo que se construa a

    memria do ensino de Lngua Portuguesa na ausncia da palavra de quem efetivamente

    atuou ou atua nessa disciplina.

    Acredito que o presente trabalho, apoiado numa perspectiva scio-histrica,

    um passo na tentativa de dar ao professor dessa disciplina, de dcadas atrs, o espao de

    dizer e, principalmente, de ser ouvido. uma forma de preencher um pouco a lacuna

    existente com a palavra do professor de Lngua Portuguesa. Retomando Bourdieu, que, em

    La misre du monde, faz da compreenso um preceito do pesquisador de temas de natureza

    social, Soares assim diz:

    Ao falar sobre o ensino de Portugus, temos sempre deplorado, s vezes temos mesmo rido, quase sempre temos detestado, e muitas poucas vezes temos compreendido. (Soares, 1997: XIV).(grifos no texto)

    Talvez o presente trabalho, acolhendo a palavra das professoras, possa

    trazer subsdios para que o ensino tradicional de lngua materna seja compreendido, no

    ficando seu sentido exclusivamente determinado por aquilo que o discurso acadmico e

    oficial nos tem falado a seu respeito. Se isso ocorrer, este trabalho ter cumprido seu papel.

    Para antecipar o percurso da pesquisa, apresento, a seguir, a sua

    organizao.

  • 18

    No captulo 1, so expostos os referenciais terico-metodolgicos e so

    apresentadas linhas gerais de alguns textos acadmicos que dialogam com o presente

    trabalho. Tambm so acrescidas informaes sobre a metodologia de trabalho e alguns

    esclarecimentos relativos natureza da fonte oral.

    No captulo 2, so analisados seis textos escritos por lingistas brasileiros,

    publicados nos anos 1970 e 1980, alm de dois documentos oficiais da Secretaria de Estado

    da Educao de So Paulo, voltados ao ensino de lngua materna, tambm publicados nos

    anos 70 e 80, tendo por objetivo caracterizar a imagem do ensino tradicional que esses

    profissionais veiculam a seus leitores.

    No captulo 3 feita uma descrio das entrevistas das professoras idosas e

    no captulo 4, das mais jovens, a partir de tpicos de interesse que nortearam a realizao

    desses encontros; nesses mesmos captulos so acrescidos comentrios que a descrio

    suscita em relao ao que dizem os textos dos lingistas e pesquisas acadmicas afins.

    No captulo 5, procedo a uma interpretao do discurso acadmico-oficial e

    do discurso das professoras, estabelecendo possveis pontos de articulao entre eles e

    procurando compreender que (outros) sentidos podem advir dessas imagens construdas a

    partir de diferentes fontes e de posies enunciativas diferentes.

  • 19

    Captulo 1

    Os referenciais terico-metodolgicos O referencial terico

    A perspectiva terica adotada na pesquisa aquela que focaliza a interao

    verbal como o lugar da produo da linguagem e da constituio dos sujeitos. Isso implica

    em conceber a lngua no como um sistema previamente pronto de que o sujeito se

    apropriaria para atender suas necessidades numa interao, mas entend-la como um

    sistema que continuamente se refaz, se reconstri pelo prprio processo interativo, na

    atividade de linguagem.

    Nessa perspectiva, os sujeitos, ao produzirem linguagem, vo se construindo

    e se constituindo, ao mesmo tempo que constituem a prpria linguagem, concebida no

    como uma entidade abstrata, neutra, pasteurizada, mas como o lugar em que o ideolgico se

    manifesta, de forma objetiva e material, na palavra, signo ideolgico por excelncia, na

    viso bakhtiniana.

    Pensar a linguagem nessa direo leva a entend-la como um trabalho social

    e histrico, como lugar de conflitos, de concesses, de intencionalidades, de interesses, de

    acordos, de confrontos ideolgicos, que se do no interior de qualquer grupo social. Pensar

    a linguagem na articulao dos processos ideolgicos e dos fenmenos lingsticos

    entend-la como discurso, saber que, estando na linguagem, estamos sujeitos a seus

    equvocos, sua opacidade, saber que estamos no mundo do simblico, que nos

    compromete necessariamente com os sentidos, com a no-neutralidade no uso mais

    cotidiano dos signos: diante de qualquer fato, de qualquer objeto simblico somos instados

    a interpretar, havendo uma injuno a interpretar. Ao falar interpretamos. (Orlandi,

    2001:10).

    Considerar a linguagem na viso interativa, perpassada pela articulao

    lingstico-ideolgica, conceber que nem sujeitos nem sentidos esto completos,

    constitudos de forma definitiva, ou seja, entender que o processo de significao

    aberto. nesse sentido que se pode dizer que ler um texto saber que o sentido pode ser

    outro. (Orlandi, 2004: 138).

  • 20

    Entretanto, ao mesmo tempo, preciso tambm considerar que o processo

    de significao est tambm sujeito determinao, estabilizao. Tanto os homens

    quanto os sentidos esto, ao mesmo tempo, sujeitos lngua e histria, e, por isso, esto

    continuamente num processo de estabilizao e movimento. Mesmo se se considera a

    variao (o movimento) como inerente ao sentido, h historicamente sedimentao

    (estabilizao) de processos de significao: a partir de certas condies, o sentido que se

    cristaliza o que ganha estatuto dominante, o sentido que passa a se fixar como o sentido

    oficial, o literal, o legtimo:

    De um lado, na movncia, na provisoriedade, que os sujeitos e os sentidos se estabelecem, de outro, eles se estabilizam, se cristalizam, permanecem. Paralelamente, se, de um lado, h imprevisibilidade na relao do sujeito com o sentido, da linguagem com o mundo, toda formao social, no entanto, tem formas de controle da interpretao, que so historicamente determinadas: h modos de interpretar, no todo mundo que pode interpretar de acordo com a sua vontade, h especialistas, h um corpo social a quem se delegam poderes de interpretar (logo de atribuir sentidos), tais como o juiz, o professor, o advogado, o padre, etc. Os sentidos esto sempre administrados, no esto soltos. (Orlandi, 2001: 10).

    Considerando a linguagem em sua incompletude e em sua no-transparncia,

    no seu processo contnuo de estabilizao e movimento de sentidos, a tarefa de leitura de

    um texto, a partir da, deixa de ser pensada como aquela que busca extrair o verdadeiro

    sentido de um texto, que visa a saber o que o texto quer dizer, pois nessa abordagem no h

    espao para o sentido em si, como se ele existisse a priori. Ao contrrio, o que se defende

    que o sentido definido como relao a, construdo no processo de interlocuo.

    Ancorada nessas noes tericas, a tarefa de ler textos que me proponho a

    realizar neste trabalho, orienta-se no sentido de procurar saber como cada um deles (a

    materialidade discursiva) significa, como os sentidos e os interlocutores nele se constituem,

    que efeitos de sentido ele provoca ao organizar-se da forma como se organiza. Ou seja, ler

    textos interpret-los, considerando-os como unidades no-fechadas (embora cada texto

    como unidade de anlise possa ser considerado uma unidade inteira, com comeo, meio e

    fim), relacionados com outros textos, sujeitos de suas condies de produo e ligados a

    sua exterioridade constitutiva (a memria do dizer).

  • 21

    O referencial metodolgico

    O referencial metodolgico que utilizado nesta investigao foi aos poucos

    se firmando durante o percurso de realizao do trabalho.

    Uma das situaes iniciais postas pela pesquisa, aps levantamento

    bibliogrfico realizado, foi a constatao da falta de registro oral ou escrito que trouxesse a

    palavra do professor de Lngua Portuguesa narrando suas experincias profissionais de

    dcadas passadas, no ensino pblico de Campinas.

    Como o presente trabalho centraliza boa parte da discusso sobre o ensino

    tradicional de Lngua Portuguesa a partir do que dizem os professores dessa disciplina,

    ficou logo colocada a necessidade de construir um corpus oral (entrevistas), que pudesse

    registrar a palavra do professor de lngua materna (quase sempre ausente dos textos da

    esfera acadmica), cujos depoimentos orais passariam a ser documentos sobre os quais me

    debruaria para anlise.

    Nesse momento, as leituras de Meihy (1996), Garnica (2004) e Guedes-

    Pinto (2000) foram esclarecedoras, pois trouxeram informaes sobre uma determinada

    metodologia de trabalho, a Histria Oral, que avaliei como adequada para responder s

    demandas colocadas pela investigao.

    Segundo Meihy, a Histria Oral se apresenta como uma opo de mudana

    ao estudo historiogrfico tradicional, uma alternativa histria oficial, que se apia quase

    sempre na documentao escrita e cartorial e que considera personagens histricos apenas

    as grandes figuras que deixaram marcas arquivadas em espaos oficiais:

    Atualmente, a histria oral j se constitui parte integrante do debate sobre a funo do conhecimento histrico e atua em uma linha que questiona a tradio historiogrfica centrada em documentos oficiais. Sem dvida, a histria oral hoje parte inerente dos debates sobre tendncias da histria contempornea.(Meihy, 1996:10).

    Mesmo recebendo acolhida junto ao meio acadmico atualmente, acrescenta

    Meihy que Histria Oral so feitas vrias cobranas, so dirigidas crticas

    representatividade dos testemunhos, ao alcance histrico das impresses e

  • 22

    relatividade dos casos narrados, esquecendo-se, segundo o autor, de que as mesmas

    fronteiras imputadas a ela se ajustam aos documentos, escritos ou iconogrficos, que

    tambm guardam as mesmas limitaes.(id. ibid.).

    Trazendo espao palavra oral, o que, para Meihy, representa um

    avano no conceito de documento e na possibilidade de anlise social , e incluindo

    histrias e verses de segmentos populacionais antes silenciados ou que tenham

    interpretaes prprias, no-oficiais a respeito de acontecimentos que se manifestam na

    sociedade contempornea,

    a histria oral implica uma percepo do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo histrico no est acabado. A presena do passado no presente imediato das pessoas razo de ser da histria oral. Nesta perspectiva, a histria oral no s oferece uma mudana para o conceito de histria, mas, mais do que isto, garante sentido social vida de depoentes e leitores que passam a entender a seqncia histrica e a sentirem-se parte do contexto em que vivem. (Meihy, 1996:10).

    Ampliando o quadro de informaes sobre a Histria Oral, Garnica (2004),

    defendendo a idia de que nos impossvel constituir a histria, concebe a Histria Oral

    como a perspectiva metodolgica que possibilita (re)constituir algumas de suas vrias

    verses, a partir de atores sociais que vivenciaram certas situaes e contextos que so

    trazidos tona pela memria desses atores,

    via de regra negligenciados pelas abordagens sejam oficiais ou mais clssicas sem desprestigiar, no entanto, os dados oficiais, sem negar a importncia das fontes primrias, dos arquivos, dos monumentos, dos tantos registros possveis, os quais consideramos uma outra verso, outra face dos fatos. (Garnica, 2004:155).(grifos nossos)

    Para esse autor, o interesse pela Histria Oral cresce nos dias de hoje

    exatamente pelo fato de nos questionarmos sobre a prpria concepo de Histria, no

    momento em que parece haver um interesse generalizado nos processos que envolvem as

    memrias, individuais ou coletivas, voluntrias ou no; no momento em que a sociedade

    dos meios de massificao pretende homogeneizar todas as formas de saber e de

    comunicao social.

    Nas palavras de Garnica, a reflexo metodolgica trazida pela Histria Oral,

    surgida nas dcadas de 1960/70, trata de

  • 23

    abordar o acontecimento social sem classificaes prvias, sem procurar coisific-lo ou factualiz-lo, mas tentando abrir os vrios planos discursivos de memrias vrias, considerando as tenses entre as histrias particulares e a cultura que as contextualiza. O sujeito, que se constitui a si prprio no exerccio de narrar-se, explica-se e d indcios, em sua trama interpretativa, para a compreenso do contexto no qual ele est se constituindo. (Garnica, 2004:157).

    Embora percebendo que os pressupostos da metodologia da Histria Oral se

    adequavam s necessidades da pesquisa, procurei utilizar dela procedimentos que se

    mostravam compatveis com o referencial terico assumido na pesquisa. Essa seleo de

    procedimentos ocorreu simultaneamente ao desenvolvimento do prprio trabalho

    constituindo-se numa metodologia em trajetria, fortemente inspirada na Histria Oral.

    Algumas convergncias

    Passo a apresentar, a seguir, alguns pontos de contato entre os referenciais

    terico e metodolgico que me parecem significativos.

    Um primeiro aspecto a considerar diz respeito importncia, ao peso

    atribudo linguagem. Na abordagem discursiva, ela entendida como caminho de entrada

    aos sentidos, como mediao necessria entre a realidade natural e social

    (Orlandi,2001:15). pelo uso da linguagem em situao interativa que se constroem textos

    e sentidos, que se estabelecem vnculos, compromissos entre sujeitos que se constituem na

    prpria interao. A linguagem vista como o lugar onde se instalam conflitos, acordos,

    confrontos ideolgicos, o lugar que serve para comunicar e para no comunicar: ela o

    posto da instalao do discurso. Na Histria Oral, em que a palavra oral privilegiada, o

    dilogo considerado como ponto nodal da construo de textos e, conseqentemente, de

    sentidos: da interao face a face que se produz o texto, fruto de um processo de co-

    construo entre entrevistador e entrevistado, e que nas mos do oralista se consubstancia

    em documento histrico, impregnado de sentidos a serem analisados.

    Um outro aspecto que aproxima a Histria Oral de uma abordagem

    discursiva diz respeito percepo do passado como algo que tem continuidade hoje e

    cujo processo histrico no est acabado. A presena do passado no presente imediato das

  • 24

    pessoas razo de ser da histria oral. (Meihy, 1996:10); na abordagem discursiva, a

    existncia de um texto se d na relao com o repertrio de textos j produzidos (a memria

    do dizer), ou seja, cada texto mantm vnculos com o passado de interlocues j ocorridas,

    retomando posies ou dando novas respostas, numa cadeia dialgica e histrica sem fim.

    Na Histria Oral como na perspectiva discursiva da linguagem, o objeto

    sobre o qual o analista e o oralista se debruam para processar a anlise o texto. Enquanto

    o oralista se preocupa em, a partir dele, transform-lo em documento e disponibiliz-lo em

    arquivos, podendo tambm vir a analis-lo, o analista do discurso se volta tambm para o

    texto (a materialidade discursiva), no para trabalh-lo como uma ilustrao ou um

    exemplo de algo de que j se sabia, mas para produzir, a partir do prprio texto, um

    conhecimento: saber como ele significa. (Orlandi, 2001:17).

    Tanto a Histria Oral como a perspectiva discursiva da linguagem tm

    posturas aproximadas no que diz respeito a como entender a leitura de um texto: para

    ambas ler no apreender no texto (oral ou escrito) a verdade dos fatos, no buscar nem

    encontrar o sentido escondido nos documentos; em vez disso, ler tomar contato sempre

    com uma parcialidade, com apenas uma das mltiplas verses que constituem a narrao de

    um fato, entender que cada verso carrega o olhar daquele que fala, carrega as condies

    que deram surgimento quele texto.

    Tambm um outro aspecto que aproxima a Histria Oral e a perspectiva

    discursiva da linguagem diz respeito ao fato de ambas terem se colocado nas ltimas

    dcadas como alternativas de um saber especfico j sedimentado: no caso da Histria Oral,

    questionando a tradio historiogrfica centrada em documentos oficiais escritos, propondo

    uma mudana no prprio conceito de histria, de documento e uma mudana na

    possibilidade de anlise social; no caso da perspectiva discursiva da linguagem,

    questionando a tradio das cincias sociais de trabalhar o texto atravs da anlise de

    contedo que procura detectar o que o texto quer dizer, a partir da idia da transparncia

    da linguagem ; interpelando a lingstica pelo apagamento da historicidade nas questes

    de linguagem; abandonando o objeto da lingstica a lngua fechada nela mesma e

    propondo em seu lugar o discurso, objeto scio-histrico em que o lingstico intervm

    como pressuposto.(Orlandi, 2001:16).

  • 25

    Ciente de que outras convergncias possam ser estabelecidas entre o

    referencial terico adotado e a metodologia da Histria Oral, atenho-me aqui aos pontos

    abordados, entendendo que eles indicam uma compatibilidade entre esses referenciais.

    O dilogo com outros trabalhos acadmicos

    Como foi apontado na introduo, o interesse desse trabalho conhecer

    como os textos escritos por lingistas e documentos oficiais, dos anos 70 e 80, constroem

    aos leitores/professores a imagem do ensino tradicional de Lngua Portuguesa e como

    professoras aposentadas dessa disciplina, ao falarem de sua vida profissional, reconstroem

    hoje a imagem desse ensino em situao de entrevista. Alm desse conhecimento, o

    trabalho pretende entender como esses discursos sobre o ensino tradicional de Lngua

    Portuguesa, a partir de posies enunciativas diferentes, se articulam. Para me aproximar

    desse quadro, realizei leituras que pudessem abordar questes que so tambm colocadas

    neste trabalho e, dessa forma, servir-lhe de suporte: o caso de estudos voltados histria

    do ensino de Lngua Portuguesa, histria de textos escolares, prticas de leitura escolares

    no incio do sculo XX, estudos sobre o professorado dos anos 1950 e 1960, estudos sobre

    o discurso construdo pelos lingistas e o ensino de lngua materna, dentre vrios outros.

    Do conjunto de textos acadmicos a que tive acesso, alguns me chamaram

    particularmente a ateno, pois dialogam com este trabalho e, certamente, podem contribuir

    com a discusso a ser realizada.

    Alguns dialogam por tratarem de questes relativas ao ensino de Lngua

    Portuguesa pelo vis histrico: Soares (2002,1998) trazem informaes sobre a histria do

    ensino da disciplina Lngua Portuguesa no Brasil; Mortatti (2000) aborda o problema da

    alfabetizao, explorando os sentidos que lhe foram sendo atribudos, na provncia/ Estado

    de So Paulo, de 1876 a 1994; Batista et alii (2002), Batista (1999), Vidal (1999) e Soares

    (1996) trazem subsdios pesquisa histrica de textos escolares, como livros didticos e de

    leitura, produzidos no Brasil; Vidal (2000) discute estratgias de formao docente a partir

    de prticas em torno de livros e leituras, entre 1927 e 1935 na cidade do Rio de Janeiro.

  • 26

    Outros, por tratarem de questes que articulam a cincia lingstica ou a

    produo de textos de lingistas ao ensino de Lngua Portuguesa a partir da perspectiva

    discursiva: Batista (1997) traa um retrato da aula de Portugus, alm de um processo de

    transmisso ou de construo de um conhecimento lingstico; De Pietri (2003) caracteriza

    a emergncia de um novo discurso, denominado por ele o discurso da mudana, produzido

    em funo do interesse da Lingstica pelas questes relacionadas ao ensino de Lngua

    Portuguesa no Brasil; Andrade (2004) discute, entre outros temas, as imagens de professor

    presentes nos textos sobre lngua materna e ensino de Portugus, escritos por lingistas.

    Tambm Cordeiro (2002), mesmo sem tratar especificamente do ensino de

    Lngua Portuguesa, dialoga com o presente trabalho por examinar e analisar o uso muito

    freqente da oposio novo e tradicional nos discursos sobre educao no Brasil durante as

    dcadas de 1970 e 1980, oposio que serviu de base para numerosas anlises e propostas

    pedaggicas nesse perodo de vinte anos.

    Para uma tomada de conhecimento, mesmo que bem superficial, exponho-

    os, a seguir, em suas linhas gerais2.

    Soares (2002)3 um artigo que tenta uma aproximao histria da

    constituio da rea de conhecimento lngua portuguesa em disciplina escolar, em saber

    escolar, com o intuito de, por meio dessa aproximao, explicar e compreender a natureza

    e os objetivos dessa disciplina na escola brasileira dos dias de hoje. (Soares, 2002:157).

    Expe a autora que, no Brasil Colonial, a lngua portuguesa no fazia parte

    do currculo escolar nem, de certa forma, do prprio intercurso social. Somente com as

    reformas que o Marqus de Pombal implantou em Portugal e suas colnias nos anos 50 do

    sculo XVIII que se tornou obrigatrio o uso da lngua portuguesa, ficando proibida a

    utilizao de quaisquer outras lnguas. Embora haja controvrsias em relao s

    repercusses dessas reformas, inegvel, segundo a autora, a significativa contribuio de

    suas medidas para a consolidao da lngua portuguesa no Brasil e para a sua incluso e

    valorizao na escola.

    2 No retomo aqui todos os textos citados anteriormente, mas apenas alguns deles. 3 No exponho aqui as idias do artigo de Soares (1998), pelo fato de suas informaes estarem contidas no artigo de Soares (2002), que as retoma e amplia.

  • 27

    Com essa reforma, alm do aprender a ler e a escrever em portugus, foi

    introduzido o estudo da gramtica portuguesa ao lado da gramtica do latim, que j tinha

    seu lugar como componente curricular. Com a perda gradual de uso e de valor social do

    latim, a gramtica portuguesa foi ganhando autonomia em relao latina.

    At o fim do Imprio as disciplinas que compunham o ensino da lngua

    portuguesa foram a retrica, a potica e a gramtica, fundidas numa s disciplina portugus

    somente nas dcadas finais do sculo XIX. Apesar dessa fuso, persistiram, de fato, essas

    disciplinas convivendo com individualidade e autonomia, o que pode ser comprovado,

    segundo a autora, pela convivncia de dois manuais didticos diferentes e independentes

    durante as cinco primeiras dcadas do sculo XX: as gramticas e as coletneas de textos.

    A partir dos anos 1950, com a transformao progressiva das condies

    sociais e culturais e das possibilidades de acesso escola no pas comea a ocorrer uma

    transformao no contedo da disciplina portugus: gramtica e texto comeam a constituir

    uma disciplina com um contedo articulado: Assim, nos anos 1950 e 1960, ou se estuda a

    gramtica a partir do texto ou se estuda o texto com os instrumentos que a gramtica

    oferece. (Soares, 2002:167). Entretanto, tal articulao ou fuso progressiva no deixou,

    na verdade, que a gramtica perdesse a sua primazia sobre o texto, talvez explicada pela

    fora da tradio que vem desde os tempos do sistema jesutico ou pelo espao vazio que o

    abandono da retrica e potica deixou.

    Nos anos 1970 e incio dos anos 1980, com a implantao da Lei 5692/71, a

    educao foi posta a servio do desenvolvimento do pas e a lngua passou a ser

    considerada instrumento para esse desenvolvimento. Coincidentemente nos anos 70 surge

    como quadro referencial para anlise da lngua a teoria da comunicao, transposta da rea

    dos meios eletrnicos da comunicao:

    A concepo da lngua como sistema, prevalente at ento no ensino da gramtica, e a concepo da lngua como expresso esttica, prevalente inicialmente no ensino da retrica e da potica e, posteriormente, no estudo de textos, so substitudos pela concepo da lngua como comunicao. (Soares, 2002: 169).

    Os objetivos passam a ser utilitrios, pragmticos e o ensino se volta ao

    desenvolvimento do uso da lngua. J na segunda metade dos anos 80, a concepo de

    lngua como comunicao sofre muitas crticas e o ensino de lngua nela inspirado no

    encontra mais apoio no contexto poltico e ideolgico do pas nem nas teorias que comeam

  • 28

    a chegar ao campo do ensino de lngua materna, vindas da Lingstica e da Psicologia da

    aprendizagem. Passa ento a ser defendida a concepo de lngua como enunciao, como

    discurso.

    Para Soares, alm das contribuies das cincias lingsticas, trs reas

    recentes vm trazendo novas orientaes para a disciplina portugus: a histria da leitura e

    da escrita, a sociologia da leitura e da escrita e a antropologia da leitura e da escrita, que

    introduzem a necessidade de o estudo da lngua portuguesa se orientar tambm por

    perspectivas histricas, sociolgicas e antropolgicas. Segundo a autora, talvez sejam essas

    contribuies numerosas e diversificadas que estejam configurando a disciplina portugus

    na escola brasileira dos dias de hoje.

    Por fim, Soares conclui que em cada momento histrico a constituio da

    disciplina portugus determinada tanto por fatores externos condies sociais,

    econmicas, culturais que determinam a escola e o ensino quanto por fatores internos

    a natureza dos conhecimentos disponveis sobre a lngua, o nvel de desenvolvimento em

    que se encontram esses conhecimentos, a formao dos profissionais que atuam na rea.

    Nesse sentido, destaca a autora que a retomada desses fatores contribui para elucidar cada

    momento passado e tambm o momento presente.

    Nessa mesma perspectiva, tambm se coloca o artigo de Soares (1996),

    dessa vez voltado ao livro didtico. Segundo a autora, muitos tm sido os olhares lanados

    sobre ele: os contedos programticos, os aspectos psicopedaggicos e metodolgicos, o

    contedo ideolgico, faltando, entretanto, um olhar a partir de uma Histria e de uma

    Sociologia do ensino, ou seja, um olhar voltado perspectiva scio-histrica do livro

    didtico.

    Afirma a autora que, como esse material um dos instrumentos escolares

    utilizados para assegurar a aquisio de saberes e competncias, ele se transforma em fonte

    privilegiada para um estudo histrico do ensino e das disciplinas escolares. Dessa forma,

    entende a autora que estudar o livro didtico no Brasil sob essa perspectiva um caminho

    aberto histria do nosso ensino, das suas prticas, das disciplinas escolares, sempre

    determinado e explicado pela evoluo de polticas culturais, sociais, educacionais.

    Para Soares, so justamente esses determinantes histricos que explicam,

    por exemplo, a circulao de livros didticos franceses nas escolas brasileiras do sculo

  • 29

    XIX, no original, para o ensino de Cincias e Histria. S a partir de 1930, que medidas

    nacionalizadoras vm favorecer o aparecimento de autores e edies de livros didticos em

    nosso pas, associadas expanso da rede de ensino e criao das Faculdades de

    Filosofia.

    Destaca a autora que, a partir dos anos 1960, ocorre um crescimento e uma

    diversificao enormes da produo de livros didticos no Brasil, situao que pode ser

    explicada por alguns fenmenos: a diminuio do tempo de permanncia de um

    determinado livro didtico na escola (de dcadas para, no mximo, cinco ou seis anos)

    fato vinculado ao processo de democratizao do ensino e consolidao da indstria

    grfica no pas , o desprestgio da autoria do livro didtico (de educadores emritos e

    especialistas para professores licenciados), o rpido crescimento das agncias de edio de

    material didtico, as sucessivas transformaes dos contedos de ensino e sua didatizao

    ao longo do tempo (de livros apenas de textos, para livros de exerccios, de definio de

    prticas do professor).

    Segundo viso da autora, esse processo de crescimento ocorre

    conjuntamente ao processo de depreciao da funo docente, obrigando o professor a

    partir de ento a transferir ao livro didtico a tarefa de preparao de aulas e de exerccios.

    Soares, por fim, conclui que um olhar sobre o livro didtico na perspectiva

    scio-histrica faz entender que as mudanas nele ocorridas so determinadas por vrios

    fatores: a evoluo dos campos de conhecimento, os objetivos que a escola vai assumindo

    (vinculados alterao de demandas sociais e situao econmica), as condies de

    formao e de trabalho que vo sendo impostas aos professores.

    Tambm na perspectiva histrica, coloca-se o trabalho de Mortatti (2000)

    que aborda o problema da alfabetizao, explorando os sentidos que lhe foram sendo

    atribudos ao longo do tempo, decorrentes das tematizaes, normatizaes e

    concretizaes produzidas na provncia/ Estado de So Paulo, no perodo que vai dos anos

    1876 a 1994, em relao aos mtodos de ensino da leitura e da escrita na fase inicial da

    escolarizao de crianas.

    Segundo Mortatti, a anlise de fontes documentais permitiu apreender que,

    desde as ltimas dcadas do sculo XIX no Brasil, em particular na provncia/ Estado de

    So Paulo, comeam a surgir disputas pela hegemonia de projetos para o ensino inicial da

  • 30

    leitura e da escrita que se colocam relacionados com projetos polticos e sociais emergentes

    e que tem seu ponto de convergncia na questo dos mtodos de alfabetizao.

    Esclarece a autora que, num primeiro momento, a disputa se d entre o

    mtodo sinttico e o mtodo Joo de Deus; num segundo momento, entre o sinttico e o

    analtico; num terceiro, entre o misto e o analtico, vindo mais tarde a crescer a tendncia

    de relativizao da importncia do mtodo; num quarto momento, entre os partidrios da

    linha construtivista (de Emlia Ferreiro) e os defensores dos tradicionais mtodos

    (principalmente o misto), das cartilhas e diagnstico do nvel de maturidade com fins de

    classificao dos alfabetizandos; num quinto momento (atual), uma disputa entre os

    defensores do construtivismo de base piagetiana (modernos) e os defensores de base

    interacionista vygotskyana (mais modernos).

    Aponta Mortatti que, nesse caminhar de disputas, se manifesta a recorrncia

    discursiva da mudana4, indicando uma tenso permanente entre modernos e antigos,

    entre a nova e velha tradio: em cada momento histrico, visando a romper com seu

    passado, determinados sujeitos produziram determinados sentidos que consideravam novos

    em relao ao ensino da leitura e escrita. Num momento posterior, entretanto, esses

    mesmos sentidos foram configurados paradoxalmente por outros sujeitos como um

    conjunto de semelhanas indicadoras da continuidade do antigo, devendo ser combatido

    como tradicional e substitudo por um outro novo sentido.

    Destaca Mortatti que a mudana

    exige uma operao de diferenciao qualitativa, mediante a reconstituio sinttica de seu passado (e, em particular, do passado recente, sentido como presente, porque operante no nvel das concretizaes), a fim de homogeneiz-lo como portador do

    4 Considero relevantes para o presente trabalho os questionamentos levantados pela autora relativos ao movimento de mudana ocorrido no ensino inicial de leitura e escrita: Mudar em relao a qu? O que esse ensino tradicional? Quando e por que se engendra um tipo de ensino inicial de leitura e escrita que hoje acusado de antigo e tradicional? O que representa para o momento em que ocorre seu engendramento? Qual a relao com a tradio que lhe anterior?Como e por que ocorre sua disseminao no tempo? Como se pode explicar sua persistente permanncia? Quais os sujeitos que se empenham(aram) na produo do novo e revolucionrio? Por que razo e de que maneiras? Qual a relao entre tematizaes, normatizaes e concretizaes produzidas ao longo da histria desse ensino? Que tradio essa da qual parece ser preciso sempre se desvencilhar para se produzirem novas, modernas e legtimas utopias? Quem tematiza, quem normatiza, quem concretiza projetos de mudana? Quando? Onde? Por qu? Para qu? Para quem? Como? O que so esses projetos? Quando, por que, por quem e como se engendra, no Brasil, a tendncia definio de certos modelos de escolarizao da leitura e escrita assim como de objetos e mtodos de investigao relacionados a esse ensino? (Mortatti, 2000:20).

  • 31

    antigo indesejvel, decadente e obstculo ao progresso , buscando-se definir o novo melhor e mais desejvel ora contra, ora independente em relao ao antigo, mas sempre a partir dele. (Mortatti, 2000:299) (grifos no texto).

    Acrescenta ainda que para viabilizar a mudana, torna-se, assim, necessrio

    produzir uma verso do passado, e desqualific-lo, como se se tratasse de uma herana

    incmoda, que impe resistncias fundao do novo (grifos meus) (Mortatti, 2000:299).

    A partir dos sentidos que se vo configurando ao longo do tempo para os

    pares moderno/ novo, antigo/ tradicional, Mortatti entende ser possvel explicar o

    movimento histrico em torno da questo dos mtodos de alfabetizao como indicador de

    um movimento duplo no Brasil: tanto de constituio de um modelo especfico de

    escolarizao das prticas culturais da leitura e escrita quanto de constituio da

    alfabetizao como objeto de estudo nas ltimas dcadas do sculo XX, com tendncia a se

    estabelecer como um campo de conhecimento particular.

    Ainda nessa perspectiva histrica, Batista et alii (2002) trazem informaes

    relativas aos livros escolares de leitura produzidos no Brasil, de 1866 a 1956, para o ensino

    elementar, perodo, segundo os autores, de progressiva institucionalizao da escola como o

    principal espao social da educao5. Esclarecem os autores que os marcos temporais da

    pesquisa sinalizam uma poca6 relativamente estvel de construo, consolidao e

    transformao do livro escolar de leitura, que passava pela nacionalizao e pelo

    surgimento de novos modelos de livros de leitura.

    Destacam os autores que o objetivo principal do estudo foi apreender as

    formas assumidas por esses livros7 (pertencentes a um caso provvel de biblioteca escolar):

    suas transformaes, permanncias e variaes ocorridas. Afirmam que a anlise realizada,

    embora parcial, permitiu lanar algumas possibilidades de interpretao da sua morfologia

    e de suas transformaes.

    5 Nesse perodo grupos escolares so construdos e o ensino seriado e o emprego do mtodo simultneo vo-se instituindo progressivamente. (Batista et alii, 2002:27). 6 Segundo os autores, at meados do sculo XIX praticamente inexistiam livros de leitura nas escolas. Em seu lugar eram utilizados textos manuscritos, documentos de cartrio, cartas, a Constituio do Imprio, o Cdigo Civil, a Bblia. S a partir da segunda metade do sculo XIX que surgem livros nacionais para as sries iniciais. (id. Ibid. p. 28). 7 So 444 os livros analisados e pertencem ao acervo de livros didticos do Setor de Documentao de CEALE/UFMG.

  • 32

    Batista et alii. apontam que dois grandes tipos de livros foram apreendidos:

    os livros isolados, os mais comuns no incio do perodo e que apresentam menos

    claramente suas funes escolares, e as sries graduadas, que progressivamente se tornam

    o tipo de livro de leitura escolar por excelncia. Quatro grandes gneros de livros foram

    apreendidos: os compndios8, que parecem ser o gnero mais comum no sculo XIX,

    tendem a desaparecer no sculo XX com a entrada de outros dois gneros: as antologias9 e

    as narrativas10. Segundo os autores, ao longo das primeiras dcadas do sculo XX, esses

    gneros parecem apresentar um comportamento estvel, uniforme, s modificado

    progressivamente com a entrada de mais um novo gnero de interesse de editores e autores:

    o caderno de atividades11, que passa a ser no apenas um livro de leitura, mas tambm de

    lngua materna, e que, aos poucos, fez desaparecer o prprio livro de leitura tal como se

    constituiu.

    Apontam tambm os autores que foram apreendidos cinco grandes modelos

    de livro: o modelo da leitura manuscrita12, o instrutivo ou enciclopdico os dois mais

    antigos , o formativo13, o retrico-literrio14 e o modelo autnomo15. O primeiro modelo

    ir aos poucos desaparecer da produo; j o instrutivo ir competir, em maior grau, com o

    formativo, no incio do sculo XX, e com o modelo retrico-literrio (num grau a se definir

    ainda) na preferncia de autores, editores e professores. O autnomo o novo modelo de

    8 Livros que sintetizam conhecimentos gramaticais, histricos ou cvicos expostos de forma didtica e progressiva. (Batista et alii, 2002:37) 9 Tambm denominadas seletas, caracterizam-se como coletneas de textos geralmente curtos; na maior parte das vezes, os textos so de diferentes autores, mas h tambm textos no assinados, levando suposio de que tenham sido escritos pelos prprios autores do livro didtico. (id.ib.) 10 So consideradas as obras que, em maior ou menor grau, se desenvolvem a partir de um esquema narrativo, estruturado em torno de uma situao ficcional e no interior da qual se realiza, em menor ou maior grau, a transmisso de contedos instrutivos, morais e cvicos ou religiosos. (id.ibid. p.36). 11 Uma coletnea de textos para leitura, com exerccios de gramtica e de vocabulrio e atividades de redao. (id.ibid. p. 37). 12 Tambm chamados de palegrafos, constituem-se em antologias de textos que tendem a transmitir valores morais e cvicos manuscritos em diferentes caligrafias e dispostos numa progresso que vai de letras mais fceis para as mais difceis. (id.ibid. p. 39). 13 voltado a transmitir valores e no contedos. (id.ibid. p. 41). 14 Tal modelo, mais voltado ao ensino secundrio, organiza-se em torno de uma seleo textual dirigida formao do gosto literrio e apresentao de modelos para redao. (id.ib.) 15 Diferentemente dos outros modelos em que a leitura era um meio para se alcanarem objetivos supostamente mais importantes da ao escolar contedos de reas diversas ou ensinamentos morais e cvicos , no modelo autnomo, a leitura se torna relativamente autnoma em relao aos contedos dos textos (Batista et alii,2002:42).

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    livro que aparece no fim do perodo em que a leitura se coloca como um objeto autnomo

    de ensino, trabalhada independentemente dos contedos dos textos.

    Alm do exposto, os autores apontam para o fato de que a anlise permitiu

    perceber quatro ordens de fenmenos cuja participao na conformao dessas

    caractersticas do livro preciso melhor conhecer(p.44): 1) a progressiva criao de uma

    distino entre dois tipos de leitura escolar a leitura para aprender a ler e desenvolver a

    fluncia em leitura, feita com o manual, e a leitura recreativa voltada formao do gosto

    ou hbito de leitura, realizada com obras paraescolares; 2) as relaes entre as formas do

    livro de leitura e suas transformaes, de um lado, e o processo de consolidao da escola,

    de seus agentes, de sua relativa autonomia, de outro; 3) as relaes entre os livros de leitura

    brasileiros e os franceses16 e 4) o modo pelo qual os livros estudados eram acolhidos,

    abordados, lidos nas prticas de ensino em sala de aula.

    Com relao a esse ltimo fenmeno, destacam os autores a importncia

    dada leitura oral nas prticas de sala de aula. Nos tratados de metodologia de ensi