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Rev. Nutr., Campinas, 12(1): 5-19, jan./abr., 1999 ARTIGO DE REVISÃO REVISITANDO OS ESTUDOS E EVENTOS SOBRE A FORMAÇÃO DO NUTRICIONISTA NO BRASIL 1 REVISITING THE STUDIES AND EVENTS ON THE FORMATION OF NUTRI- TIONISTS IN BRAZIL Nilce Maria da Silva Campos COSTA 2 RESUMO Relata a formação do nutricionista no Brasil, a partir de uma retrospectiva histórica dos eventos e estudos brasileiros e latino-americanos em que ocorreram debates/discussões sobre a formação desse profissional. Parte-se de um breve histórico sobre a formação do nutricionista inserida na formação de profissionais para o mercado de trabalho em saúde, uma etapa da formação do mercado capitalista de um modo geral. Em seguida é realizada uma revisão dos eventos e estudos que se dedicaram ao tema, através da qual pode-se perceber a presença de momentos característicos, assim como de eixos temáticos que os permeiam. O artigo termina com a reflexão sobre o significado dos estudos e eventos já realizados sobre a formação do nutricionista no contexto dos profissionais da área da saúde no momento atual. Termos de indexação: nutricionista, formação profissional, perfil profissional, curriculum. ABSTRACT This article discourses upon the formation of nutritionists in Brazil, through a historical retrospective of Brazilian and Latin-American events and studies in which debates/ discussions about the formation of this professional occurred. The first part of the article is dedicated to the historical formation of nutritionists, which is inserted in the formation of professionals for the health work market, in general, also a part of the formation of a capitalist market. Afterwards, a review of the events and studies about the theme was made, through which was possible to perceive the presence of characteristic moments as well as thematic issues among them. The article ends with a discussion of the insertion of nutritionists in a wider context of health professionals in the present moment of capitalist society. Index terms: nutritionist, professional formation, professional profile, curriculum. (1) Texto baseado no capítulo “Revisitando a formação do nutricionista” da dissertação de mestrado “Currículo e formação profissional: as reformulações curriculares dos cursos de Nutrição”, apresentada à Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, em dezembro de 1996. (2) Faculdade de Nutrição, Universidade Federal de Goiás, Rua 227, Quadra 68, Setor Leste Universitário, 74605-080, Goiânia, Goiás.

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EVENTOS SOBRE A FORMAÇÃO DO NUTRICIONISTA NO BRASIL 5

Rev. Nutr., Campinas, 12(1): 5-19, jan./abr., 1999

ARTIGO DE REVISÃO

REVISITANDO OS ESTUDOS E EVENTOS SOBRE A FORMAÇÃO DONUTRICIONISTA NO BRASIL1

REVISITING THE STUDIES AND EVENTS ON THE FORMATION OF NUTRI-

TIONISTS IN BRAZIL

Nilce Maria da Silva Campos COSTA2

RESUMO

Relata a formação do nutricionista no Brasil, a partir de uma retrospectiva histórica doseventos e estudos brasileiros e latino-americanos em que ocorreram debates/discussõessobre a formação desse profissional. Parte-se de um breve histórico sobre a formação donutricionista inserida na formação de profissionais para o mercado de trabalho em saúde,uma etapa da formação do mercado capitalista de um modo geral. Em seguida é realizadauma revisão dos eventos e estudos que se dedicaram ao tema, através da qual pode-seperceber a presença de momentos característicos, assim como de eixos temáticos que ospermeiam. O artigo termina com a reflexão sobre o significado dos estudos e eventos járealizados sobre a formação do nutricionista no contexto dos profissionais da área dasaúde no momento atual.

Termos de indexação: nutricionista, formação profissional, perfil profissional, curriculum.

ABSTRACT

This article discourses upon the formation of nutritionists in Brazil, through a historicalretrospective of Brazilian and Latin-American events and studies in which debates/discussions about the formation of this professional occurred. The first part of the articleis dedicated to the historical formation of nutritionists, which is inserted in the formationof professionals for the health work market, in general, also a part of the formation of acapitalist market. Afterwards, a review of the events and studies about the theme wasmade, through which was possible to perceive the presence of characteristic moments aswell as thematic issues among them. The article ends with a discussion of the insertion ofnutritionists in a wider context of health professionals in the present moment of capitalistsociety.

Index terms: nutritionist, professional formation, professional profile, curriculum.

(1) Texto baseado no capítulo “Revisitando a formação do nutricionista” da dissertação de mestrado “Currículo e formação profissional: as reformulaçõescurriculares dos cursos de Nutrição”, apresentada à Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, em dezembro de 1996.

(2) Faculdade de Nutrição, Universidade Federal de Goiás, Rua 227, Quadra 68, Setor Leste Universitário, 74605-080, Goiânia, Goiás.

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INTRODUÇÃO

A formação do nutricionista vem sendodiscutida na América Latina em eventos científicosenvolvendo especialistas e profissionais da área deNutrição desde a década de sessenta3, a partir da qualtem ocorrido uma significativa expansão dos cursos deNutrição latino-americanos.

No Brasil, a formação em Nutrição tem sidoalvo de preocupação não apenas das instituiçõesformadoras, como também de outras instituiçõesgovernamentais e dos órgãos representativos dacategoria, principalmente da entidade de representaçãoprofissional dos nutricionistas, a Associação Brasileirade Nutrição (ASBRAN)4 , que no decorrer das últimasdécadas tem realizado eventos e estudos acerca daformação acadêmica do nutricionista (Brasil..., 1983;Federação..., 1989; Associação..., 1992).

A compreensão da formação do nutricionista,enquanto prática social desenvolvida numa realidadeconcreta e histórica, entretanto, é obtida ao se responderà pergunta: que condições materiais permitiram odesenvolvimento do profissional nutricionista noBrasil? Assim, a formação profissional deve seranalisada como parte integrante da prática produtivacapitalista, através do resgate histórico da formação,inserida no contexto da estrutura socioeconômicabrasileira, pois a pergunta: “para que formarnutricionistas?”, está ligada a uma outra: “qual arazão social dessa formação?”

A partir da bibliografia nacional concernenteao profissional nutricionista, verifica-se a existênciade trabalhos desenvolvidos nas décadas de oitenta enoventa que recuperam a trajetória da formação e daprática desse profissional, dentro de uma abordagemhistórico-social, ou seja, no contexto do processo deconstituição da sociedade capitalista brasileira.Constata-se, através deles, que a prática do nutricionistaassim como o currículo dos cursos de Nutrição têmcontribuído para a manutenção das relações sociaisvigentes (Bosi, 1988; Santos, 1988; Barreto, 1992).

A evolução na reflexão acerca desse profissionalcontinua na década de noventa, com a publicação de

artigos e a realização de estudos nos quais ocorrem oaprofundamento da discussão em torno de objetosmais específicos, como por exemplo, as proposiçõesteóricas debatidas pelos nutricionistas (Nunes, 1992)e as representações sociais que trazem sobre a suaprática (Prado, 1993). Além deles, livros publicadosassinalam questões primordiais para a compreensãodessa profissão no mundo contemporâneo, como o deBosi (1996), que discute a identidade e a profis-sionalização dos nutricionistas, e o de Viana (1996),que estuda a prática desenvolvida pelos nutricionistasna área de Alimentação Institucional, na tentativa deapreender o significado social dessa prática.

Considerando a influência que os eventos eestudos realizados com o objetivo de discutir a formaçãodo nutricionista tem exercido nos cursos de graduaçãoque formam nutricionistas para a sociedade brasileira,este artigo propõe-se a estudar a formação em Nutriçãoa partir dos eventos e estudos latino-americanos,patrocinados pela Organização Panamericana da Saúde eOrganização Mundial da Saúde (OPS/OMS) cominfluência destacada na formação do nutricionista noBrasil e dos estudos e eventos brasileiros, realizadospor iniciativa das entidades de representaçãoprofissional da categoria dos nutricionistas, com opropósito explícito de discussão dessa temática.

Inicialmente parte-se de um breve históricosobre a formação do nutricionista inserida na formaçãode profissionais para o mercado de trabalho em saúde,para em seguida proceder-se a uma revisita aos estudose eventos sobre a formação do nutricionista, quandoocorreram o debate e a formulação de propostasvisando ao aprimoramento da formação profissional,os quais resultaram em recomendações utilizadas para a

organização dos currículos dos cursos de Nutrição.

HISTÓRICO

A formação do nutricionista confunde-se coma formação de profissionais para o mercado de trabalhoem saúde, constituindo uma etapa da formação domercado capitalista de um modo geral. O processo de

(3) Esses encontros têm contado com o apoio da Organização Panamericana da Saúde (OPS/OMS) que desde 1940 colabora técnica e financeiramente coma realização de eventos sobre a formação do nutricionista, com o propósito de definir o papel desse profissional e homologar o currículo dos programasde formação (Organización..., 1977).

(4) Essa entidade foi criada oficialmente em 1972, como Federação Brasileira de Nutrição (FEBRAN), herdeira do caráter nacional que a Associação Brasileirade Nutricionistas (ABN), primeira entidade a congregar nutricionistas no Brasil, vinha tentando cumprir. Posteriormente, em 1990, durante a XVIAssembléia Geral Ordinária dos Delegados da FEBRAN, sua denominação foi mudada para ASBRAN, devido à necessidade de adequação legal às entidadesda sociedade civil (Associação..., 1991).

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formação desse mercado de trabalho, ou seja, aperspectiva da saúde enquanto “mercadoria”, teminício com o nascimento da ordem econômicacapitalista,“y obtiene su configuración definitiva en elsiglo XX, cuando el Estado y el capital, en el sector, pasana influir de forma más decisiva en la determinación delprecio y en las relaciones de compra y venta de esa fuerzade trabajo” (Medici et al., 1991).

Com o desenvolvimento do capitalismo naAmérica Latina, a partir da década de trinta e nas duasseguintes, surgiu também a capitalização do setorsaúde, que definiu a necessidade da especialização naformação profissional. A especialização em saúde temsido um dos traços comuns no cenário histórico dospaíses com expressivo desenvolvimentosocioeconômico ao longo deste século (Santana &Girardi, 1993). Como conseqüência das transformaçõesna divisão técnica do trabalho em saúde, surgiramnovos profissionais na área, entre eles, o nutricionista,cujos primeiros passos giraram em torno dodesenvolvimento da prática hospitalar de assistênciaao paciente.

As décadas de trinta a cinqüenta caracterizaram-se pelo fortalecimento da atenção médica, constituindoo hospital o espaço privilegiado para esse tipo deatenção. Essa etapa foi a do desenvolvimento damedicina estatal e da incorporação da assistênciamédica como contribuição do Estado para o cuidadoda enfermidade individual (Infante, 1992). As condiçõeshistóricas para o surgimento do profissionalnutricionista apareceram, portanto, dentro do setorsaúde, como divisão técnica do trabalho no setor, queaté então concentrava no médico a responsabilidadeda atenção ao paciente.

Essa divisão técnica, entretanto, constituíatambém uma divisão social do trabalho em saúde,evidenciada pelo modo como se articulava nesse períodoa prática do nutricionista no contexto da estruturasocial latino-americana, caracterizada pelasubordinação frente aos profissionais da medicina.Confirmava-se, portanto, que as divisões técnica esocial do trabalho em saúde são construídasinstitucionalmente a partir de determinantes histórico-sociais (Castellanos et al., 1992). A prática donutricionista, na sua origem, estava ligada à práticamédica nos hospitais, exercida na área clínica, semparticipação na promoção da saúde e tampouco nasua prevenção. Prática individual, curativa e hospitalar,

pois o enfoque clínico orienta as ações para esse tipode atenção. O trabalho do nutricionista era utilizado deforma complementar ao ato médico e a ele encontrava--se subordinada.

O primeiro curso de formação de dietistas naAmérica Latina, surgiu na Argentina, em 1926,quando o professor Pedro Escudero criou a EscolaMunicipal de Dietistas, que conquistou o níveluniversitário em 1939. No Brasil, a origem da profissãoocorreu na região Sudeste, mais precisamente nascidades de São Paulo e na então capital do país, Rio deJaneiro (Associação..., 1991).

O nutricionista surgiu no Brasil como dietista,dentro de uma equipe técnica individualista, com aresponsabilidade de prestar assistência ao paciente,através da alimentação. Santos (1988) assinala que odietista era um profissional de nível médio, cujaformação e campo de prática eram pré-definidos pelosideólogos da problemática alimentar brasileira daépoca, os médicos nutrólogos: “o dietista pode sercompreendido como uma função que [...] passou aconstituir mais um agente de saúde, trazendo já em suaorigem histórica as determinações de uma práticacomplementar ao ato médico e a este subordinada técnicae financeiramente”.

A relação hegemônica da medicina - profissãodominante na área da saúde - com as demais profissõesda área tem sido discutida em alguns estudos, queevidenciam a relação hierarquizada existente entre osprofissionais de nutrição e os médicos nutrólogos,recuperando o caráter de subordinação e os mecanismosde resistência utilizados pelos primeiros (Santos,1988; Nunes, 1992). Para Castellanos et al. (1992), amedicina detém o domínio do trabalho intelectual naárea da saúde e com isso o controle da assistência aopaciente, reproduzindo “as relações de classe dasociedade brasileira, estabelecendo com as demaisprofissões do setor saúde relações de poder para a suaprópria reprodução”.

Segundo Bazó (1977), a partir da década decinqüenta, o dietista na América Latina passou a serdesignado de nutricionista-dietista, como umaadaptação da terminologia usada nos Estados Unidosda América do Norte (EUA), país em que eramformados os dois profissionais, o dietista e onutricionista, com funções independentes e bemdelimitadas.

O Brasil, entretanto, adotou a denominação“nutricionista”, diferentemente do ocorrido nos demais

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países latino-americanos, conforme mostram Ypiranga& GIL, (1989): “No Brasil, rejeitou-se porém este conceitoe o termo Dietista designa um técnico de nível médio ouauxiliar de Nutrição. Esta decisão ficou oficializadainternacionalmente, em 1966, em Caracas”.

Na América Latina até a década de sessenta,os esforços de formação de nutricionistas concentraram--se na preparação de dietistas para trabalhar eminstituições hospitalares (Ariza, 1992). No Brasil,por outro lado, além dessa prática hegemônica, aprofissão teve raízes na fase em que o modelo capitalistade produção se vinculava à política populista dadécada de quarenta, em que se originou a preocupaçãonacionalista por parte do Estado, como forma deembasamento social para sua manutenção no poder(Santos, 1988)5.

Nesse contexto, despontava no país uma políticasocial extremamente marcada pelo assistencialismo,período em que surgiram os cursos de Nutrição. Anecessidade de implementação da formação de recursoshumanos nessa área ligava-se, portanto, à políticaassistencialista-populista assumida pelo Estado. Osnutricionistas, administrando a alimentação para otrabalhador, constituíam-se, então, em mais uminstrumento de alívio de tensões sociais (Ypiranga &Gil, 1989).

A institucionalização do nutricionistarelacionava-se, portanto, às políticas de prestação deserviços assistenciais patrocinados pelo Estado, quedesenvolvia essa prática a partir dos órgãos públicosde saúde criados na década de quarenta. Entre eles,destacava-se o Serviço de Alimentação e PrevidênciaSocial (SAPS) criado no Rio de Janeiro, pelo decretopresidencial nº 2.478 de 5/8/1940, órgão destinado àexecução de parte da política social do Estado,vinculado ao Ministério do Trabalho, Indústria eComércio, primeiro órgão de política de Alimentaçãoinstituído pelo Estado Brasileiro, auxiliar da políticatrabalhista de Getúlio Vargas, como um dos meios desustentação do seu governo. A função explícitadaquele órgão era a de assegurar condições favoráveise higiênicas à alimentação dos segurados dos Institutosde Aposentadorias e Pensões, subordinados aoministério ao qual se vinculavam. De acordo comL’Abbate (1988), colaborava, portanto, para minimizarpossíveis tensões sociais, indesejáveis no momentoem que se deveria concentrar todos os esforços “na

construção de um sistema econômico de base capitalistaindustrial sob vigência da ideologia nacionalistai”.

No SAPS, as funções diretivas eram exercidaspor médicos nutrólogos, os quais, sentindo anecessidade de contar com pessoal especializado para aexecução das atividades do setor, criaram cursospara a formação técnica desse pessoal, como osprofissionais de copa, cozinha e atividades afins ligadasà alimentação, entre eles, o dietista.

A experiência do SAPS como instituiçãoformadora teve início em 1943, com o curso deauxiliares técnicos em alimentação, com a duração deum ano. Posteriormente, passou a contar com o cursode dois anos, que formava dietistas e mais tarde como de três anos, para formação de nutricionistas (Santos,1988).

A política de Nutrição do Estado Novo visava,acima de tudo, a transformar a alimentação em uminstrumento eficaz de manipulação das classessubalternas. O Estado, ao assumir a alimentação dotrabalhador, procurava, na verdade, atender aosinteresses e necessidades das empresas privadas. Nesseperíodo, deu-se a expansão da indústria de alimentosem consonância com o Estado, que criou outros órgãospúblicos como o Serviço Técnico de AlimentaçãoNacional, em 1942, e o Instituto de TecnologiaAlimentar, em 1944, iniciando a colaboração entreEstado e indústria de alimentos, com apoio a concessõesde prioridades, subvenções e isenções fiscais,consideradas indispensáveis para o desenvolvimentodaquelas indústrias, atividade econômica fundamentalpara a acumulação de capital (L’Abbate, 1988).

Os programas de alimentação do governoinseriam-se, assim, dentro da nova configuração dasociedade de classes, reproduzindo a estruturaeconômica capitalista em consolidação, porémcamuflada através de uma ideologia paternalista: aalimentação oferecida ao trabalhador, aos menosfavorecidos, aparentava ter caráter de prêmio, criandoa possibilidade de extrair parcela maior de “mais-valia” dos trabalhadores melhor alimentados. O Estadocriava e financiava as condições para a exploração dotrabalhador (L’Abbate, 1988).

Após os passos iniciais da formação doprofissional nutricionista, então dietista, foram criados

(5) Ver Santos (1988), p.40-45, sobre a análise das pré-condições políticas para a emergência do profissional nutricionista no Brasil.

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os cursos de nível universitário da Universidade deSão Paulo (USP), Universidade do Rio de Janeiro(UNIRIO)6 e da Universidade Estadual do Rio deJaneiro (UERJ)7, na década de quarenta, seguidospelos da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em1956, e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)em 1957. O curso da Universidade Federal Fluminense(UFF) foi criado em 1967.

As décadas de cinqüenta e sessenta caracte-rizaram-se pelo grande desenvolvimento industrial noBrasil, através da desnacionalização da economia,com grandes vantagens ao capital estrangeiro. Nessaépoca, estabeleceu-se a relação entre saúde e desen-volvimento. O desenvolvimentismo acarretou o au-mento das desigualdades sociais, e o golpe de 1964representou, na verdade, o golpe nas aspiraçõespopulares que implicavam a luta pelas transformaçõessocioeconômicas do país. Ocorreu, então, a tomadado poder pelos interesses multinacionais e a instaura-ção de uma nova ordem política de base ditatorial,com a instituição da democracia excludente.

Nesse período a profissão era tida comoexclusivamente feminina, conforme atestamdocumentos que divulgavam a profissão comoum “novo campo profissional e de magníficasoportunidades aberto às moças deste país” (grifomeu). A profissão era vista também como “jovem epromissora” (grifo meu), pelo surgimento dapreocupação com o problema alimentar e nutricionalda população brasileira e pela emergência da “medicinacomunitária”, que utilizava o trabalho de outrascategorias profissionais como complementares ao atomédico. A educação alimentar era considerada, então,como a ferramenta necessária para “libertar a sociedadehumana da doença e da fome” (Santos, 1988).

A formação do nutricionista manteve-se res-trita, com apenas sete cursos, até a década de setenta,quando ocorreu o explosivo aumento do ensino superiorno país, a partir da Reforma Universitária instituídapela lei 5.540 de 1968, a qual incrementou a formaçãoprofissional em todos os cursos da área de saúde.

Houve, então, uma formação maciça denutricionistas a partir da década de setenta, compara-da com as décadas anteriores, principalmente com ocrescimento das instituições privadas de ensinosuperior. Essa foi uma tendência observada não apenasnos cursos de Nutrição: “o crescimento da participaçãodas instituições privadas de ensino na formação superiorem saúde no Brasil apresenta uma tendência constante eascendente [...] enquanto que no setor público [...] estaproporção tende a cair, especialmente nas instituiçõesmunicipais”, (grifo meu) (Brasil..., 1993).

Constata-se também que a evolução docapitalismo no país influenciou o mercado de trabalhodo nutricionista, acarretando modificações na formaçãoacadêmica. Na década de oitenta, as modificaçõesapareceram em nível teórico nas discussões nacionaissobre a formação do nutricionista, e inicialmenteaparentavam um caráter de resistência a esse modode produção: na realidade, queriam recuperar e formarum profissional que atuasse na transformação dasociedade. Por outro lado, a evolução do sistemacapitalista acarretou modificações na praticidade doscurrículos, que procuraram concretamente ajustá-losàs oportunidades oferecidas pelo mercado de trabalho.

Essa é a contradição vivenciada pela formaçãoem Nutrição no Brasil e uma indagação a ser respondidaatravés da reflexão realizada a seguir sobre os estudose eventos que discutiram a formação do nutricionista:“Qual tem sido o eixo condutor da formação donutricionista e pode ser desvelado a partir dos estudose eventos que se dedicaram à essa temática?”

Percorrendo os estudos e eventos sobre a formação

do Nutricionista

Recuperar a formação do nutricionista requeruma retrospectiva histórica dos momentos de discussãosobre a formação desse profissional, com uma revisãoteórica e bibliográfica acerca dos estudos e eventosmais significativos sobre esta temática, com o objetivode repensá-los em função dos movimentos em queocorreram e dos interesses a que se vincularam.

(6) A Universidade do Rio de Janeiro foi criada em 1979 e incorporou o curso do SAPS, extinto em 1967, quando o curso de nutricionistas passou a integrara Federação das Escolas Federais do Estado da Guanabara - FEFIEG (Associação..., 1991).

(7) Em 1975, o curso de graduação de Nutricionistas do Instituto “Annes Dias” da Secretaria de Educação do antigo Estado da Guanabara, foi incorporadoà Fundação Universidade Federal do Rio de Janeiro: “Neste mesmo ano foi criado o Departamento de Nutrição que passou a funcionar em caráterde emergência na Faculdade de Enfermagem da UERJ onde funcionou até 31 de outubro de 1984, data em que foi criado o Instituto de Nutrição daUERJ” (Associação..., 1991, p.56).

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Serão trabalhados neste artigo os eventos lati-no-americanos com influência destacada na forma-ção do nutricionista no Brasil: 1) as Conferênciassobre Adestramento de Nutricionistas-Dietistas deSaúde Pública, a primeira realizada em 1966, emCaracas, Venezuela, e a última em 1973, em SãoPaulo, Brasil; 2) as reuniões da Comissão de Estudossobre Programas Acadêmicos em Nutrição e Dietéticana América Latina (CEPANDAL), a primeira ocor-rida em 1973, em Bogotá, Colômbia, a segunda em1974, em Washington, DC, a terceira em 1977, emBrasília, Brasil, e a última em 1991, em San Juan,Porto Rico. (Associação..., 1991).

Dentre os eventos e estudos ocorridos no Brasil,ressaltam-se os realizados nas décadas de setenta eoitenta, por iniciativa da Associação Brasileira deNutrição (ASBRAN), como o I Diagnóstico dos Cursosde Nutrição, sob os auspícios do Instituto Nacional deAlimentação e Nutrição (INAN) realizado emGaranhuns, estado de Pernambuco, em 1975; o IIDiagnóstico dos Cursos de Nutrição e I SeminárioNacional de Avaliação do Ensino de Nutrição, emBrasília, em 1982, além do II Seminário NacionalSobre o Ensino de Nutrição, em 1987, na cidade deSalvador.

Quando se realiza o aprofundamento nesseseventos e estudos, percebe-se inicialmente a existênciade dois canais de discussão, independentes de espaçogeográfico, porém complementares em nível de idéias.Um específico em relação ao Brasil e outro maisabrangente relativo à América Latina: apesar dasespecificidades, a formação do nutricionista no Brasiltem sido influenciada pelo movimento mais amplo queabrange as nações latino-americanas.

Além dos espaços diferenciados, nota-se que oseixos do debate podem ser classificados em momentosou fases. O primeiro é o momento em que se procuradelimitar as atribuições do nutricionista e estabelecerrecomendações quanto ao currículo de formação.Evidencia-se nele a tentativa de traçar os contornos doprofissional e da formação acadêmica de uma profissãoainda nova no cenário latino-americano. No segundomomento, busca-se a identificação, a quantificação ea discussão dos problemas existentes na formaçãoprofissional, quando ocorrem os debates acerca daformação do nutricionista. A análise dos dois mo-

mentos, permite a verificação, em uma primeiraaproximação, da existência de eixos temáticos comunsque os perpassam com maior ou menor intensidade: operfil profissional e o currículo.

Primeiro momento:delimitação das atribuições donutricionista e estabelecimento de recomendações

curriculares

Destaca-se nesse momento, a influência deambas as Conferências de Adestramento deNutricionistas-Dietistas de Saúde Pública, patro-cinadas pela OPS/OMS, cujas conclusões erecomendações deveriam ser adotadas pelos cursos/escolas de Nutrição latino-americanos.

Entre os principais objetivos da I Conferênciade Adestramento de Nutricionistas - Dietistas de SaúdePública, em 1966, estavam o de delimitar asresponsabilidades e qualificações do nutricionista-dietista nos programas dos serviços de saúde. Naqueleevento, a nutrição foi colocada como um componentebásico da saúde individual, surgindo a necessidade deincorporá-la como ciência aplicada aos serviçosintegrados de saúde. Vigoravam, então, os conceitossobre planejamento em saúde pública, incluindoobjetivos a curto e longo prazo em relação aosprogramas integrados de saúde. Isso implicava anecessidade de pessoal qualificado em várias tarefasde administração sanitária e cujo desenvolvimentoexigia o trabalho conjunto da equipe de saúde comexperiência e capacitação em várias disciplinas(Organización..., 1977).

A ação do nutricionista, categoria profissionalrelativamente nova, era necessária aos programas deNutrição em saúde, os quais estavam inseridos dentrodos serviços integrados de saúde, como umaespecialização necessária a esses serviços e utilizadade forma complementar ao ato médico. Suas atividadesdeveriam ser exercidas nos serviços de saúde públicae em serviços de alimentação de hospitais, centros desaúde e outras instituições, para executar aadministração e o tratamento dietético dos enfermos(Organización..., 1977).

Atualizar as funções do nutricionista-dietistacontinuou sendo um dos principais objetivos da IIConferência de Adestramento de Nutricionistas-Dietistas de Saúde Pública, em 1973.

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No Brasil, os eventos ocorridos na época8

seguiram a tendência latino-americana. A temáticadiscutida referia-se principalmente às questõesadministrativas e práticas em relação à necessidade dedelimitação do espaço a ser ocupado pelo nutricionistano país. Evidenciou-se a tentativa de afirmação doprofissional junto a equipes de trabalhos em SaúdePública e o empenho em mostrar a importância e anecessidade do nutricionista, como demonstram umasérie de recomendações às autoridades competentes,elaboradas na década de sessenta, por ocasião doscongressos da categoria profissional.

Segundo a Associação...(1991), no IVCongresso Brasileiro de Nutricionistas tentou-se, porexemplo, garantir ao profissional o ensino dasdisciplinas “comprovadamente profissionais” doscursos de Nutrição. Em 1965, no III CongressoBrasileiro de Nutricionistas, recomendou-se que seinsistisse junto às autoridades, na conveniência de osnutricionistas integrarem equipes de trabalho em SaúdePública. Em 1967, solicitou-se às escolas e cursos deSaúde Pública que admitissem os nutricionistas entreos profissionais que neles pudessem se inscrever “demodo a que melhor se capacite para integrar a equipede Saúde”. Através dos documentos percebe-se apreocupação em buscar uma definição para umaprofissão com visibilidade social baixa, carecendo deidentidade própria tanto para a sociedade, quantopara a própria categoria profissional.

As recomendações para a realização de estudosacerca da definição de funções e atividades decompetência e responsabilidade do nutricionista-dietista continuaram nas reuniões realizadas na décadade setenta, inclusive como uma das recomendações daII CEPANDAL, em 1974 (Organización..., 1977).

Quanto ao currículo para a formação denutricionistas, também aparecem recomendações nasduas Conferências de Adestramento de Nutricionistas- Dietistas de Saúde Pública. A primeira delas, porém,é a mais significativa em relação ao ensino de Nutrição.

Na década de sessenta os currículos adotadospelos diferentes cursos apresentavam uma grandediversidade estrutural, o que ocasionou a necessidadede uniformização curricular. Na I Conferência deAdestramento em 1966, um dos objetivos foi o de

estabelecer recomendações práticas para orientar aformação do nutricionista. Elas versavam sobrequestões administrativas, como os requisitos mínimospara admissão no curso, a duração, o número dealunos, a qualificação do pessoal docente, os recursosmateriais e institucionais necessários. Especificavamtambém as normas técnicas de ensino para a formaçãodo nutricionista, com a descrição de aspectosconsiderados essenciais para a organização dosprogramas de ensino (Organizacióm..., 1977).

Naquela ocasião, ficaram definidas as cincoáreas gerais do ensino em Nutrição: Ciências Básicas,Ciências Sociais e Econômicas, Ciências Pedagógicas,Ciências da Saúde Pública e Ciências da Alimentaçãoe Nutrição. Quanto às áreas de estudo, estabeleceram-se os conteúdos e a intensidade das mesmas, ou seja,as disciplinas componentes de cada área e a contribuiçãode cada uma ao currículo, em relação a carga horária.

Na II Conferência de Adestramento deNutricionistas-Dietistas, em 1973, uma das propostasfoi a de analisar os programas dos cursos de Nutrição.Reconheceu-se que as recomendações estabelecidasna reunião anterior, em 1966, continuavam sendo umguia adequado para formação, apresentando, contudo,falhas tanto em relação ao conteúdo de cada disciplinacomo ao estabelecimento de critérios para o nível e aqualidade dos cursos oferecidos (Organización...,1977).

Aprovou-se, então, a criação de uma comissãoa ser responsável pelos estudos sobre o ensino deNutrição na América Latina, que posteriormente foidenominada CEPANDAL. Sua criação objetivou: 1)definir e elaborar normas que permitissem acomparabilidade dos planos de estudo e estabelecer oconteúdo mínimo de cada disciplina e sua intensidademedida através do sistema de créditos ou pontosequivalentes; 2) preparar guias para o desenvolvimentodas práticas supervisionadas e para seleção de pessoaldocente e 3) estabelecer as necessidades mínimas derecursos humanos, recursos materiais e de instalaçõesfísicas necessárias (Organización..., 1977).

Observou-se naquela ocasião, a ênfase dadapela OPS/OMS, a idéia da formação de pessoal desaúde como forma de reverter o grave quadro nutricionaldos países da América Latina, ou seja, considerava-se

(8) Em 1965, por ocasião do “III Congresso Brasileiro de Nutricionistas e I Encontro Latino Americano de Nutricionistas”, uma das áreas temáticas discutidasfoi: o profissional de Nutrição: sua formação, atividades e perspectivas futuras. Em 1967, no “IV Congresso Brasileiro de Nutricionistas “ o tema básico“Nutrição e Desenvolvimento” teve entre os subtemas: a formação do nutricionista em função do desenvolvimento (Associação..., 1991).

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como um dos fatores responsáveis pela desnutrição,o número limitado de profissionais capacitados emNutrição (Bosley, 1977).

No Brasil, a preocupação com a formação dosnutricionistas continuou na década de setenta, com arealização em 1972, da I Reunião Brasileira sobre aFormação do Nutricionista9, a qual recomendou quea revisão do currículo mínimo dos cursos de graduaçãoem Nutrição atendesse à “atual realidade brasileira”.Realidade colocada como a do desenvolvimento técnicoe científico, “que vem se processando em ritmo maisacelerado, ampliando assim, o campo de conhecimentoque o nutricionista tem por obrigação dominar”(Associação..., 1991).

As reuniões da CEPANDAL continuaraminsistindo nas recomendações curriculares. A primeirareunião, realizada em 1973, foi a mais significativadelas em relação às recomendações quanto ao ensinode Nutrição, acrescentando mais uma área de estudo,a “Multidisciplinar”, às cinco estabelecidas em 1966.Essa nova área de estudo era constituída por matériasoptativas e obrigatórias não previstas anteriormente,com a finalidade de proporcionar maior flexibilidadeaos cursos. Distribuíram-se os conteúdos por setoresdo conhecimento, segundo proporcionalidade na gradecurricular. Foram criadas também normas em relaçãoà elaboração do plano de estudos e metodologia deensino, estabelecimento de critérios de avaliação,seleção de pessoal docente e proporção professor/aluno (Organización..., 1977).

Na década de setenta, a partir do pressupostode que a solução dos problemas nutricionais dependiada formação e capacitação de pessoal especializadoem quantidade e qualidade adequadas, a segundareunião da CEPANDAL, realizada em 1974, nãoapresentou avanços quanto ao ensino de Nutrição.Trouxe, entretanto, a “Política de Formação eCapacitação de Pessoal em Nutrição”, a qualrecomendava para a efetivação da participação donutricionista-dietista na equipe de saúde, a realizaçãode um estudo acerca dos recursos humanos einstitucionais necessários em Nutrição e Dietética afim de solucionar os problemas de Alimentação eNutrição, em cada país, de acordo com as metasdo “Plano Decenal de Saúde para as Américas1971-1980”. Considerava a falta de conhecimento

em Nutrição pelos demais profissionais da área dasaúde, como um fator limitante ao êxito da atuação donutricionista-dietista.

Em 1976, durante o VIII Congresso Brasileirode Nutricionistas e V Congresso Brasileiro de Nutrição(CONBRAN), foram elaboradas várias recomendaçõesquanto ao ensino de Nutrição, destacando-se as de quefossem obedecidos o Currículo Mínimo estabelecidoem 1974, pelo Conselho Federal de Educação (CFE),e as recomendações da CEPANDAL-73 (Associação...,1991). A Resolução n.6 de 23/12/74 do CFE,preconizava uma carga horária mínima de 2 280h, quedeveria ser integralizada em um tempo mínimo de trêse máximo de seis anos, com duração média de quatroanos, incluindo atividades e trabalhos de campo comum mínimo de 300h de estágios supervisionados.

A terceira reunião da CEPANDAL, realizadaem 1977, nada acrescentou às recomendações anterioresrelativamente à definição do perfil profissional e aocurrículo de formação de nutricionistas. Definiu-senela o papel futuro da comissão, em torno daidentificação e análise das funções do nutricionista-dietista em seus vários campos de atuação e da revisãodos planos de estudos e programas de ensino, além dapromoção e divulgação de estudos sobre a formação denutricionistas-dietistas (Organización..., 1979).

Na verdade, as recomendações daCEPANDAL-73 constituem um parâmetroquantitativo que possibilita a análise da dosagem dacarga horária no currículo por área de conhecimentoe setor de estudo. Com isso, privilegiam as dimensõesformais do currículo, ou seja, a carga horária.Assemelham-se a guias curriculares, fornecendo adistribuição da carga horária por áreas do conhecimentoe setores de estudo, além da sugestão de disciplinas econteúdos. Ou seja, especificam as propostas ediretrizes de ensino dentro de uma perspectiva decunho tecnicista, sendo omissas quanto ao fazerpedagógico e à metodologia de ensino.

Segundo momento: identificação, quantificação ediscussão dos problemas

No final da década de setenta, com oesvaziamento das reuniões latino-americanas acercada formação do nutricionista, observa-se no Brasil, a

(9) Em 1972, durante o “VI Congresso Brasileiro de Nutricionistas” e III CONBRAN, realizados em São Paulo (Associação..., 1991 p. 343).

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emergência de estudos e eventos que discutiram aformação profissional, demonstrando o início doreconhecimento de que as mudanças ocorridas nasociedade transformavam e exigiam o repensar daprofissão. Para Ypiranga (1991a) “os anos 1980sforam marcados pela ‘reflexão da formação profissionaldo nutricionista’, como projeção, é claro, dos movimentosda sociedade brasileira como um todo, característicadesta década” .

Esse momento pode ser caracterizadoinicialmente como o de identificação dos problemas.Nele aconteceu o acompanhamento da formaçãoacadêmica do nutricionista através de diagnósticosnacionais dos cursos de Nutrição e da quantificação,cujos resultados foram discutidos em eventos oficiais.É o período em que apareceu no Brasil a preocupaçãocom a avaliação dos cursos de Nutrição.

Em 1975 ocorreu o I Seminário Brasileiro dosCursos de Graduação em Nutrição, no qual foramapresentados os resultados do I Diagnóstico dos Cursosde Nutrição. Como resultado desse evento, surgiu arecomendação de que fosse incrementada a formaçãodo nutricionista, através do aumento do número decursos existentes (Associação..., 1991).

O II Diagnóstico Nacional dos Cursos deNutrição aconteceu em 1981. Dentre seus principaisobjetivos incluiam-se os de oferecer subsídios para apolítica de capacitação do nutricionista e identificarestratégias de articulação das Instituições de EnsinoSuperior com a prática profissional em Nutrição. Paraisso foi realizado o levantamento e a análise dos dadosreferentes aos cursos de Nutrição, discutindo-se a suaexpansão, as características do corpo docente e acomposição do currículo vigente (Ypiranga, 1991a).De acordo com a Associação... (1992), pretendia-secom este evento, “um processo de acompanhamentoda formação acadêmica”.

A discussão dos resultados desse diagnóstico,deu-se em 1982, durante o I Seminário Nacional deAvaliação do Ensino de Nutrição, evento consideradocomo o grande feito da década de oitenta em relação àprofissão: “a parada para a reflexão - rever os conceitos,repensar a atuação, rever os conteúdos, para formaro nutricionista do ano 2000 útil ao Brasil.” Considera-se que a partir daí “abriram-se caminhos para adiscussão e para o pensar a formação, os objetivos, opara que do nutricionista” (Associação...,1991).Ypiranga (1996) assinala inclusive que a reflexão

sobre a formação do nutricionista brasileiro foi“desencadeada nacionalmente, pela discussão dosresultados do II Diagnóstico dos Cursos de Nutrição...”.

A análise sobre os aspectos conceituais,estruturais e metodológicos dos cursos de Nutriçãorealizada nessa ocasião, levou à constatação de que aexpectativa de formação centrava-se no profissionalgeneralista. O desejo generalizado de reformular aformação em Nutrição, entretanto, ficou evidenciadopelo descontentamento expresso com o currículoadotado pelos cursos e principalmente pela detecçãode um “hiato entre o biológico e o social” e com “odescompasso entre a teoria e a prática”. Percebia-seque, apesar de já se encontrarem referências à “visãosocial”, a estrutura curricular não condizia com essaperspectiva (Associação..., 1992). A análise docurrículo demonstrava o predomínio de disciplinas dasáreas “Ciências Básicas” e “Multidisciplinar” e abaixa proporção das disciplinas relativas àcompreensão do social, como “Educação, CiênciasSócio-Econômicas e Saúde Pública, levando, assim, aum hiato na articulação do biológico com o social”(Brasil..., 1983).

Assim, foram elaboradas recomendaçõesvisando à reorganização da formação, relacionadasaos objetivos, expectativas, compromissos ecomposição curriculares e às disciplinas do cicloprofissional. Enfatizaram-se nelas, o caráter generalistada formação, a integração teoria-prática, a necessidadedo desenvolvimento da percepção crítica por parte doaluno, além da necessidade de articulação dosconhecimentos biológico, econômico, político e socialdentro das disciplinas e do curso como um todo.Continuaram, por outro lado, as recomendações acercados aspectos formais do currículo, ou seja, danecessidade que a carga horária dos cursos fosserevista, tentando-se adequá-la à CEPANDAL/73(Brasil..., 1983).

Após esse momento de debate, a formaçãocontinua em pauta nos eventos da categoria, na formade propostas administrativas. Entre elas, a da criaçãoda “Comissão Permanente de Ensino da FederaçãoBrasileira de Nutrição (FEBRAN)”, criada durante oIX Congresso Brasileiro de Nutricionistas e VICONBRAN, realizados em 1982, em Brasília, com aincumbência da elaboração de “um projeto nacionalde investigação sobre o perfil profissional do nutricionista”(Associação..., 1991).

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A II Reunião Brasileira Sobre a Formação doNutricionista, promovida pela FEBRAN, em 1985,durante o X CONBRAN, recomendou a realizaçãode um levantamento entre os cursos de Nutrição, afim de se verificarem as mudanças ocorridas a partirdos resultados do Diagnóstico de 1981 e do SeminárioNacional de 1982 (Associação..., 1991). Ocorreunesse evento, reunião com participação das entidadesde classe: Conselho Federal de Nutricionistas,Conselhos Regionais de Nutricionistas, AssociaçõesProfissionais e Sindicatos, quando foi consideradanecessária uma discussão nacional sobre assuntosreferentes a categoria profissional dos nutricionistas.Surgiu, então, a proposta de realização do I EncontroNacional de Entidades de Nutricionistas (I ENEN),ocorrido em 1986. Encontravam-se em pauta naquelaocasião, temas relacionados ao perfil profissional eao mercado de trabalho, dentre outros de interessedos nutricionistas, como piso salarial e jornada detrabalho (Associação..., 1991).

O referido evento foi considerado como umavanço na mobilização da categoria dos nutricionistas,pelo fato de ter encaminhado a discussão profissionaldentro de uma conotação político-social, bem comopor ter favorecido a reflexão sobre a práticaprofissional. Concluiu-se pela necessidade deredefinição da formação acadêmica, devido à suarelação com a prática do nutricionista, percebidacomo “...de manutenção e reprodução das relaçõessociais vigentes, isto é, atender aos interesses daclasse dominante” (Encontro..., 1986).

Outro momento importante no cenário dasdiscussões sobre a formação do nutricionista aconteceuem 1987, com a realização do Seminário: Formaçãoem Nutrição no Brasil: ênfase na Graduação e ênfasena Pós-Graduação, em que ocorreu o prosseguimentoda fase de diagnóstico e discussão do ensino deNutrição. Na verdade, “pretendia-se trazer soluçõesaos problemas já detectados e ainda persistentes,não acessíveis através da discussão de matrizescurriculares, simplesmente” (Federação..., 1989).

Foram estudadas naquele evento as “condiçõesdo currículo de graduação em Nutrição”, ou seja, oscurrículos dos cursos brasileiros, tendo como parâmetroas recomendações da CEPANDAL/73 (Cunha & Gil,1989). Foi realizada também uma atualização dosdados do Diagnóstico de 1981 e verificou-se que oscurrículos estudados em 1987, pouco se diferenciavam

daqueles de 1981/1982, e inclusive, que “frente àsrecomendações da CEPANDAL, as distorções au-mentaram” (Federação..., 1989). Procurou-se,concomitantemente, o aprofundamento da discussãoacerca do perfil profissional do nutricionista, quandose buscou a identificação de seu objeto de trabalho. Oavanço se deu teoricamente, na explicitação do objetivode formar um nutricionista comprometido com asnecessidades nutricionais da população brasileira.Foram obtidas, então, as várias definições pretendidas:do profissional que se almejava formar frente àsnecessidades da população brasileira, do objeto detrabalho do nutricionista, das áreas de atuaçãoprofissional e das ações desenvolvidas pelo nutricionista(Federação..., 1989).

Em 1988, o II Encontro Nacional de Entidadesde Nutricionistas (II ENEN), continuou o debatesobre o perfil profissional e o mercado de trabalho donutricionista. A preocupação central, naquele momento,residia na especificidade da ação profissional, ou seja,na definição das atribuições específicas do nutricionista,como busca de justificativas para a existência doprofissional.

O que se pode depreender da análise das reuniõesanalisadas, é que apesar da relevância de algumasquestões para a resolução de graves problemas nointerior dos cursos de graduação em Nutrição, elasapresentaram uma certa tendência em relação aotecnicismo. Apesar da determinação em nível dediscurso, de formar um profissional “comdesenvolvimento amplo da percepção crítica darealidade” (Ypiranga, 1991a), não foram preconizadasestratégias para a consecução desse objetivo.

Terceiro momento: a década de noventa

A CEPANDAL ficou praticamente desativadadurante toda a década de oitenta e voltou à cena em suaquarta reunião, em 1991, após um período de quatorzeanos, com sua justificativa na necessidade deatualização dos dados referentes aos cursos de Nutriçãoda América Latina.

O tema “A formação atual do nutricionista-dietista na América Latina e sua projeção para o ano2.000” foi o que direcionou o encontro, do qualparticiparam os países latino-americanos que oferecemcursos de Nutrição. A importância dessa reuniãoresidiu no que se pode perceber através dela: os eixos

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temáticos tratados, reveladores da real preocupaçãoda CEPANDAL no decorrer dos anos e na década denoventa, permanecem os mesmos.

Os debates situaram-se em torno dos problemasatuais na formação do nutricionista-dietista, dasestratégias para dar solução a esses problemas e dasrecomendações que poderiam fortalecer a formação eprojeção desse profissional. Apareceu a premênciada redefinição da identidade do nutricionista do ano2000, de acordo com o momento atual de cada país edos países da América Latina em seu conjunto, assimcomo seu espaço de ação e sua inter-relação comoutras profissões. Em outras palavras, a preocupaçãocentral permaneceu na especificidade das competênciasdo nutricionista e na análise da situação atual deformação do nutricionista - dietista na América Latina(Instituto..., 1992).

A principal conclusão do evento, segundoYpiranga (1991b), foi a de que “há um descompassoentre teoria e prática na formação do profissionalnutricionista. Verifica-se, portanto, que a mesmaconclusão das discussões ocorridas na década deoitenta, no Brasil, foi evidenciada no início dos anosnoventas na América Latina.

As conclusões e recomendações da quartaCEPANDAL apontaram a necessidade de elaboraçãode um “Plano de Desenvolvimento Integral”, comeixo na avaliação sistemática dos currículos,adequando-os à necessidades de cada país. Tal plano,quando implementado, deverá contemplar a seleçãode metodologias que favoreçam a participação, aanálise crítica e a capacidade criativa dos estudantes,a participação das instituições prestadoras deserviços, participação que assegure a integraçãodocente-assistencial, as ações de educação contínuapara docentes e profissionais dos serviços e o papel aser desempenhado pelos diferentes grupos deAlimentação e Nutrição (Organización..., 1992).

Mais uma vez, foram colocadas as“recomendações”, o “deve ser”, e, apesar de teori-camente voltadas para as necessidades de cada país,não indicaram um avanço/desenvolvimento naperspectiva teórico-metodológica da análise do trabalhorealizado pelo profissional nutricionista, confirmandoo contínuo distanciamento da temática mais abrangentedo trabalho como categoria de análise.

OS EIXOS TEMÁTICOS

Os momentos estudados acerca da formaçãodo nutricionista encontram-se permeados por eixostemáticos que os perpassam: o perfil profissional e ocurrículo.

O perfil profissional

Os eventos latino-americanos patrocinados pelaOPS/OMS sempre se preocuparam com a definição doperfil profissional.

Na década de sessenta, fase em que o alvoprincipal das reuniões sobre a formação se encontravano esclarecimento das atribuições/funções doprofissional, recomendava-se que os nutricionistasfossem formados como profissionais polivalentes, ouseja, com habilidade para atuar no campo hospitalar, dasaúde pública e em educação e ensino (Associação...,1991).

Em 1966, na I Conferência de Adestramento, adefinição de nutricionista-dietista era “un profesional denível universitario, calificado por formación yexperiencia para actuar en los servicios de salud públicay asistencia médica, con el fin de mejorar la nutriciónhumana, esencial para el mantenimiento del más altonível de salud” (Organización..., 1977).

Enfatizaram-se, naquele encontro, as atividadespreventivas e de fomento à saúde nos serviços deSaúde Pública, a administração de Serviços deAlimentação e o tratamento dietético dos enfermos.

A II Conferência de Adestramento, em 1973,reconheceu a atuação do nutricionista-dietista comointegrante de uma equipe em diferentes níveis desetores públicos e privados, segundo as necessidadese prioridades de cada país: saúde, educação, agricultura,indústria e comércio, economia e administração. Suasfunções seriam: planejamento de dietas e atençãodietética, administração de programas de Nutrição eDietética, educação e treinamento, investigação,assessoria e consultoria (Organización..., 1977).

Na década de oitenta, as discussões sobre operfil profissional intensificaram-se e, no II Semináriode Avaliação, em 1987, ficou mais clara a percepção dotipo de profissional que se queria formar: “ONUTRICIONISTA é um profissional de saúde, comformação ou caráter generalista e com uma percepçãocrítica da realidade (consciência social, econômica,

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cultural e política), dentro de áreas próprias de atuação”(Federação..., 1989).

Para uma melhor definição do perfilprofissional, foram elaboradas várias aproximações,entre elas a relacionada com o objeto de trabalhodo nutricionista, que ficou mais nítido: “o alimento e/oua alimentação em sua relação com o homem”(Federação..., 1989).

O II ENEN, em 1988, definiu o nutricionistacomo um “...profissional generalista, de saúde, de nívelsuperior, com formação em Nutrição e Dietética, quedesenvolve uma visão crítica da realidade e comprometidocom as transformações da sociedade”.

O objeto de ação do nutricionista definidonesse evento foi “a saúde do homem, inserido numaforma de organização social, tendo como seu eixo deformação o homem e o alimento no seu contexto social”(Associação..., 1991).

A despeito das definições elaboradasteoricamente para esclarecer quem é o nutricionista,o perfil profissional permaneceu com baixavisibilidade, ou seja, sem representação social clara.A tentativa de delimitação do perfil em nível teórico,na verdade, não se concretizou, pois o perfilprofissional real é aquele que vem sendo construídono decorrer do tempo, através da interação entre aformação acadêmica, o mercado de trabalho e aatuação desenvolvida pelo profissional em umdeterminado contexto socioeconômico.

Currículo

Uma característica desse eixo temático é adiscussão acerca do enfoque dado ao ensino deNutrição, na qual surge a polarização entre o biológicoe o social nos currículos, que na verdade significa adiscussão acerca da formação técnica e política donutricionista.

A ênfase do enfoque biologista aparece desdeo início da formação e pode ser notada como uma dasorientações em relação ao currículo no Brasil,recomendadas no IV Congresso Brasileiro deNutricionistas, em 1967:

"A formação deve ser orientada considerandoa importância das características do meio,especialmente as tradições e os costumes,incutindo desde cedo a noção de que a doençasó acontece pela interação de vários fatores repre-

sentados, pelo paciente, pelo agente etiológico epelo ambiente" (Associação..., 1991, p. 139).

Na década de oitenta, os eventos reafirmavamo predomínio do biologicismo:

"A formação do profissional na área denutrição vem sendo feita a partir de uma visão domundo fragmentadora e biologicista que aoabordar a saúde e a doença como processosnaturais e indi-viduais, não forma um profissio-nal realmente comprometido com uma prática vol-tada para a transformação dos processos sociais ebiológicos que determinam a fome e adesnutrição" (Associação..., 1991, p.359).

Em 1988, no II ENEN, constatou-se edenunciou-se que:

“A prática atual do Nutricionista é demanutenção e reprodução das relações sociaisvigentes; e é considerado também, que o perfildesejado fica atrelado à consciência amadurecidada real posição do nutricionista e da Nutrição nopaís” (Associação..., 1991).

Verifica-se, portanto, a percepção da atuaçãodo profissional nutricionista no processo deconstituição da sociedade capitalista brasileira.Constata-se inclusive que o currículo dos cursos deNutrição têm contribuído para a manutenção dasrelações sociais vigentes (Bosi, 1988; Santos, 1988;Barreto, 1992).

REPENSANDO O SIGNIFICADO DOS ESTUDOS E EVENTOS

SOBRE A FORMAÇÃO DO NUTRICIONISTA

A importância da revisita realizada por estetrabalho aos estudos e eventos sobre a formação donutricionista, reside no fato de que neles ocorreram odebate e a construção de propostas visando aoaprimoramento da formação profissional. Essaspropostas não surgiram ao acaso, mas foram originadasdas experiências dos indivíduos com o mundoconcreto, das relações dos homens entre si e delescom as coisas. Cada passo ocorrido na evolução daformação do nutricionista, portanto, não deve serentendido como uma etapa linear, mas como oresultado de processos contraditórios, de avanços e

retrocessos, de lutas e interesses em jogo.

O repensar da trajetória do nutricionista apartir dos estudos e eventos aqui analisados traz uma

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constatação: os momentos latino-americanos e brasi-leiros de discussão sobre o perfil profissional e sobreo currículo são desenvolvidos a partir do “deve ser”.A formação acontece de determinada forma e deveser reformulada, modificada, daí surgindo as freqüentes“recomendações”. No momento inicial dos eventosenumeram-se os problemas, no momento das conclu-sões enumeram-se as soluções, ou seja, as recomen-dações. As publicações da OPS/OMS sobre o profis-sional nutricionista vêem os problemas como apenasrelação de causa e efeito. Parecem deixar de lado opapel do profissional na resolução dos problemasnutricionais e se isentam de efetuar uma análise maisampla dos elementos que influenciam na dinâmica daprofissão.

Pode-se dizer, inclusive, que os estudospromovidos para efetuar os chamados diagnósticosnacionais e para discutir o perfil profissional donutricionista, na realidade, apenas buscaramfuncionalizar a orientação dos planos de ensino a umasérie de demandas que supostamente surgiam dasnecessidades de desenvolvimento nacional, de umapolítica de ciência e tecnologia e de uma racionalidadeentre o perfil existente, os conhecimentos técnico-pro-fissionais e os planos de estudo.

Uma constatação sempre presente nos eventose estudos sobre a formação do nutricionista é a daexistência de um “hiato entre o biológico e o social”nos currículos, quando as instituições formadoras e asassociações de classe analisaram a formação edetectaram as discrepâncias entre o perfil dos egressose as transformações ocorridas na sociedade, eadvogaram a necessidade do compromisso doprofissional com a transformação dessa sociedade. Oresgate histórico dos estudos sobre a formaçãodemonstra que a falta de mecanismos concretos paraa articulação dos conhecimentos biológicos e sociais élimitada pela deficiência de uma análise crítica darealidade da formação, da prática profissional e datotalidade social.

Os maiores avanços efetuados nas discussõesocorridas no Brasil aconteceram na década de oitenta,quando ficou esboçada a discussão acerca da inser-ção do profissional no contexto mais abrangente dosprofissionais da área da saúde e do compromisso a serassumido com a maioria da população brasileira.

Esses momentos, porém, representaram umaetapa inconclusa do processo de integração do biológico

e do social no currículo de formação de nutricionistas,quando se tentou o compromisso do nutricionista coma sociedade no plano das idéias, da intenção. Neles, osnutricionistas perseguiram o aprofundamento teóricoimprescindível às discussões que poderiam levar a umsalto qualitativo na formação. Contudo, tal intençãonão se concretizou, porque naqueles momentos osprofissionais assumiram tanto a responsabilidade pelacausa, como pela solução dos problemas, em vez debuscarem a compreensão mais ampla da realidade.Não reconheceram que através apenas do seu trabalhonão seria possível solucionar problemas de competênciadas ações multisetoriais dependentes do encaminha-mento e da vontade política. Jogou-se para o nívelindividual, aquilo que é histórico, fruto de relaçõesconcretas da produção capitalista, entre capital etrabalho e, assim, de antemão, a batalha estava perdida.

Embora reconhecendo idéias positivas nessesmomentos, é difícil ver neles, algo além do mérito deestimular o consenso em torno de certos ideais. Atribuiu--se ao discurso difundido uma força capaz detransformar a prática, como se o discurso pudesse setornar realidade pela própria força da evidência e pelaimplementação de medidas administrativas.

É necessário relacionar os fenômenos/fatos/acontecimentos, nesse caso, o nível inadequado desaúde e nutrição da população, além de outrosdeterminantes da qualidade de vida, com o todo com oqual se articulam, na tentativa de ultrapassar a aparênciado fenômeno. Importa, portanto, buscar os nexosexistentes entre a formação do nutricionista e aformação superior na área da saúde, os vínculosexistentes entre o conhecimento em nutrição e oconhecimento em ciências sociais, pois, neles estãopresentes a luta entre o conhecimento biológico e osocial, o embate entre o técnico e o político, vivenciadosnão apenas pela formação em Nutrição, mas por todosos cursos da área da saúde.

Para a formação acadêmica do nutricionistaexistem possíveis soluções alternativas. A distribuiçãoe a organização do conhecimento estão ligados àtransformação histórica do processo de produçãoeconômica. Não se trata de substituir um currículo poroutro, uma disciplina por outra, mas de elaborar,discursivamente, a base de uma argumentação racionale fundamentada, as novas categorias do pensamento eas novas diretrizes que orientarão a formação emNutrição. Afinal de contas, é o currículo, ou são osvários tipos de currículo presentes nos cursos, que

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ensinam ao nutricionista quem ele é. As escolhas, asseleções efetuadas nos currículos não podem seraleatórias ou apenas utilitárias. O currículo é, nessesentido, um recorte intencional. A formaçãoprofissional significa esforços, sacrifícios e custos detoda natureza. É necessário, portanto, que tenha umsignificado teórico e prático para o profissional eprincipalmente para os que usufruem da sua prática.Através das escolhas, das seleções efetuadas, ocompromisso com a construção de uma sociedademais justa e solidária pode desenvolver-se e consoli-

dar-se.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido para publicação em 13 de junho de 1997 e aceito em 11de maio de 1998.