Revista A Ponte # 10

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O delicado equilíbrio das necessidades Revista do Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza Semestre 2008.1 Novembro de 2008 N° 10 Ano 5

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Revista laboratório do curso de jornalismo da Unifor

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O delicadoequilíbrio das

necessidades

Revista do Curso de Jornalismo da Universidade de FortalezaSemestre 2008.1 Novembro de 2008 N° 10 Ano 5

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ComidaArnaldo Antunes/Sérgio Brito/Marcelo Fromer

bebida é água.comida é pasto.você tem sede de que?você tem fome de que?a gente não quer só comidaa gente quer comida, diversão e arte.a gente não quer só comida,a gente quer saída para qualquer parte.a gente não quer só comida,a gente quer bebida, diversão, balé.a gente não quer só comida,a gente quer a vida como a vida quer.

bebida é água.comida é pasto.você tem sede de que?você tem fome de que?a gente não quer só comer,a gente quer comer e quer fazer amor.a gente não quer só comer,a gente quer prazer pra aliviar a dor.a gente não quer só dinheiro,a gente quer dinheiro e felicidade.a gente não quer só dinheiro,a gente quer inteiro e não pela metade.bebida é água.comida é pasto.você tem sede de que?você tem fome de que?

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o homem só produz realmente liberado das necessidades físicas, ele sabe impor ao objeto a medida

que lhe é inerente; por isso o homem cria também segundo as leis da beleza

Karl Marx

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espiritualidade

vitais

amor

movimento

EnsaioQuarenta e 4

CrônicaDo ir e devir

02

arte e beleza

liberdade

bem estar

DesperdícioAlimentos que não chegam à mesa

AdoçãoA busca pela estruturação familiar

ÁguaUm comércio que cresce na periferia

MulheresMuito amor pelos outros, pouco por si

Eu, tu... sem elesMarlene depois do filme

Ritual da Lua CheiaPara as necessidades da alma

HippiesDesapego material para ser feliz

SaúdeExercícios para uma vida melhor

NeurolinguísticaA mente pode ser programada para o sucesso?

AntiquáriosMemória nos objetos decorativos

MalabaresArte circense além dos limites do picadeiro

Ao leitorDez motivos para comemorar

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4 NOVEMBRO 2008

EXPEDIENTERevista do Curso de Jornalismo da Universidade de FortalezaCentro de Ciências Humanas - Universidade de Fortaleza - Fundação Edson QueirozDiretora do Centro de Ciências Humanas: Erotilde HonórioCoordenador do Curso de Jornalismo: Eduardo FreireConselho editorial: Antônio Simões, Eduardo Freire e Erotilde HonórioCoordenação editorial: Geísa Mattos ([email protected])Coordenação de produção: Antônio Simões e Geísa MattosGerente do Laboratório de Jornalismo: Cristiana ParenteSupervisão de produção gráfica: Aldeci Tomaz e Carlos NormandoSupervisão de fotografia: Júlio AlcântaraRevisão: Solange TelesSuporte técnico: Aldeci TomazSupervisor da gráfica: Francisco RobertoImpressão: Gráfica da UNIFOR

ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO SOCIAL / UNIFOR:Coordenação de equipe: Diego Benevides e Monique LinharesEditores assistentes: Renata Maia, Natália Évila e Bruno AndersonCapa: Fotografia: Haroldo Saboia; Assistente: Raphael Villar; Produção: Cláudia Holanda; Roupa: ColetivoPosh2ª Capa: Felipe Goes sobre foto de Patrícia Araujo3ª Capa: Patrícia AraujoProjeto gráfico: Eduardo MartinsDiagramação: Felipe GoesFotografias: Elisianne Campos, Gabriel Gonçalves, Hugo William, Jordânia Tarelov, Laurêncio Lima, Marcelo Andrade, Patrícia Araujo, Raphael Villar e Ronaldo Pinto.Ilustrações: Liandro RogerRedação: Alunos da disciplina Princípios e Técnicas de Jornalismo Impresso II de 2008.1 (Aline Pedrosa, Anarrara Oliveira, David Aguiar, Elisianne Campos, Gabriela Fiúza, Gioras Xeres, Greyce Feijão, Hugo William, Jéssica Carvalho, Jordânia Tarelov, Katryne Rabelo, Lícia Fontenele, Leonardo Araújo, Luís Gentil, Monique Linhares, Natália Gomes, Nina Giordana, Raíssa Karen, Rafael Cartaxo, Raphael Barros, Renan Andrade,Tainá Almeida, Tamires Santos ).

No momento em que comemoramos o ani-versário de 10 edições da revista A Ponte, per-cebemos quanto a menina cresceu, amadureceu e ganhou muitos amigos. Eles estão todos aqui, reunidos em forma dos textos caprichados, da produção gráfica esmerada e das belíssimas fotos . Todos os autores são estudantes do Curso de Jornalismo e Publicidade da Unifor. O tema “necessidades” foi escolhido como eixo da edição depois que vimos todas as reportagens

prontas. De repente percebemos que tudo o que um ser humano precisa cabe nos dedos das duas mãos: água, comida, lar, saúde (bem-estar), movimento, amor, arte, beleza, liberdade. Para completar o número 10, felicidade. Temos 10 motivos para comemorar, então. Parabéns à Ponte e a todos os nossos amigos.

Profa. Geísa MattosCoordenação editorial

Dez motivos para comemorar

Em 10 edições, um caminho

percorrido com muita dedicação

pelos estudantes de Jornalismo da Unifor, que

os levaram à conquista de

vários prêmios com a revista A

Ponte

ao le

itor

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A maioria dos fortelazenses não beberia água direto da torneira, não faz parte dos nossos hábitos, ao contrário dos europeus, argentinos e de alguns brasileiros no sul e no sudeste do país. O problema é que muitos não tem condições de manter a rotina de pedir um garrafão no mercadinho da esquina, assim surge um mercado alternativo na periferia para satisfazer a necessidade de beber água potável

· texto · leonardo araújo · raphael barros · fotos · laurêncio lima ·

Vitais

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Apesar de a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) afirmar que a água que sai da torneira é potável, muitas pessoas não confiam. Mas também não podem comprar garrafões das empresas de água mineral, confiando em poços particulares e públicos para garantir a sua dose de água diária.

Ecília Dias de Souza Silva trabalha como merendeira no Centro Municipal de Saúde e Educação (CMES). Dona Ecília, 43 anos, afirma que toma a água da CAGECE sem filtrar, mas ela é uma exceção entre a população de For-taleza. Muitos moradores da periferia bebem de poço próprio, como é o caso da Dona Maria de Lourdes do conjunto Vila Velha, na Barra do Ceará.

Dona Maria, juntamente com seu esposo, Jeová Rodriguez, possue um poço nos fundos de casa, na rua Major Assis. O poço, além de servir como fonte de água para a família de quatro pessoas – ela, o marido e dois filhos –, ainda serve como fonte de renda. Segundo a moradora, eles vendem “pelo que as pessoas puderem dar”, não tem um preço fixo, “mas o pessoal entende, e dá uma ajudinha boa”.

Seu Jeová Rodriguez tinha sofrido uma cirurgia no olho esquerdo há poucos dias e Dona Maria emocionou-se durante a reportagem, além de se mostrar “meio preocupada”, pois tinha medo que essa reportagem atrapalhasse sua vida, que trouxesse fiscalizações da Prefei-tura. Na verdade, ela pensou que nós fôssemos da Prefeitura. Tivemos que tranquilizá-la e dizer que a matéria só desejava fazer um itinerário da venda da “água alternativa” em Fortaleza. “Doença na família é coisa complicada, ainda mais que nossa rendinha mesmo é essa água”, declarou Dona Maria.

A vendedora não é a única a comercializar água de poço na rua Major Assis. Ainda tem o Seu Almir José, que estipula um preço fixo pelo garrafão: cobra R$ 0,30 por 20 litros. É isso mesmo, todos eles vendem garrafões de 20 litros, inclusive Dona Maria. Segundo ela, o Seu Almir impõe um preço porque “as pessoas acham a água dele melhor”.

Na mesma rua de Dona Maria e de Seu Almir, encontramos a Dona Noélia e o Seu Francisco, que vendem garrafões por R$ 0,50. Dona Noélia Cordeiro é aposentada e também

Seu Geraldo Martins

complementa a renda da família

comprando garrafões de água

por R$ 0,50 e revendendo a

R$ 1,25.

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possui um poço em casa – ela é a mais antiga ven-dedora de água, mantém o negócio há oito anos. Quando chegamos em sua casa, notamos o anúncio “Vende-se água analizada” (sic). O que o anúncio quer dizer é que de tempos em tempos os vendedores de água da rua Major Assis encomendam testes, geralmente do laboratório da Universidade Federal do Ceará, para analisar a qualidade da água. Os testes custam em torno de R$ 40,00, segundo os vendedores.

O mais curioso foi constatar que Dona Noélia revende água. Quem compra é Geraldo Martins, 52 anos, trabalha oficialmente como auxiliar de cortador em uma fábrica de con-fecção. Ele ganha um salário mínimo, o que, segundo ele, é pouco para manter sua mulher e seus três filhos.

Nos finais de semana, quando não está na fábrica, Geraldo carrega a bicicleta de entregas com alguns garrafões, enche os garrafões na casa de Nelinha, que compra por R$ 0,50 e vai re-vender no seu bairro. Ele estoca os garrafões em sua casa e a família vende o que sobra durante a semana. O garrafão custa R$ 1,25, metade do preço mais barato dos garrafões comerciais, que gira em torno de R$ 2,50.

Segundo o Seu Geraldo, algumas pessoas do bairro – ele foi relutante em dizer onde mora – tentaram beber a água da Cagece e “não se deram muito bem, problema no es-tômago, sabe?”. Mas, segundo ele, seus vizinhos aprovam a água de Dona Nelinha; ele mesmo disse que consome daquela água junto com sua família.

Ao lado da casa de Dona Nelinha, a quem deixamos bebericando uma xícara de café, mora o Seu Francisco. Ele tem seu poço há um ano e também vende água por R$ 0,50. Quando questionamos o porquê dele e Nelinha ven-derem mais caro, ele nos respondeu que a água “naquele lado da rua” tem o gosto melhor. Basicamente, o que ele nos explicou foi que conforme vinha se caminhando desde a casa de Dona Maria, os poços pareciam mais puros, “a água é mais gostosa”, explica ele.

É importante ressaltar que Seu Francisco foi bastante relutante em responder nossas pergun-tas e queria saber direitinho o que estávamos fazendo ali e por quê. Foi aí que entendemos melhor a resistência de Geraldo, o revendedor. De acordo com Seu Francisco, eles já tiveram al-

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guns problemas com a fiscalização da Prefeitura. Ele conta que existem denúncias de que pessoas vendem garrafões lacrados, com selos falsos, mas afirma que ali eles não fazem esse tipo de coisa. “Eu trabalho honestamente para garantir o pão da minha família. O pessoal tem medo, porque eles só vêm atrás do mais fraco mesmo, ninguém aqui faz coisa errada não”, diz.

Resolvemos perguntar ao Seu Francisco sobre a concorrência, se não havia algum problema, tendo em vista que ele é o mais novo no ramo da água. “O pessoal compra a minha água aqui, porque acha melhor, mas se for pelo preço, tem até de graça lá em cima”, respondeu. A água “de graça”, a que se refere o Seu Francisco, é proveniente de um poço comunitário, que tem uma bomba de água, assim como os particulares. Mas, segundo os moradores e até mesmo os que consomem, a água não é boa. Não aconselham que se beba dela antes de uma filtragem ou mesmo que se ferva a água.

Projeto Água de BeberO “Água de beber” é um projeto da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) que faz a distribuição de água da torneira em eventos no Estado. O projeto se baseia na afirmação da Cagece de que aquela água está pronta para o consumo, podendo ser bebida diretamente, sem precisar filtrar.

Segundo a Companhia, ela não pode ga-rantir que a água chegue “pura” até a caixa d’água, se não houver uma boa higienização periódica na caixa d’água do domicílio. “A Cagece garante a potabilidade da água até a entrada do cliente, ou seja, até o medidor. A partir daí é preciso que cada morador zele pela higiene do sistema hidráulico do seu imóvel, para garantir a mesma pureza apresentada pela água na saída do sistema Cagece”, contou o assessor de comunicação da Cagece, Márcio Teles.

A água é servida também, em reuniões da Diretoria, ao público interno e externo, mas não é amplamente divulgado para população, o que gera questionamentos quanto ao porquê dessa pouca veiculação; tendo em vista que a estatal garante que a água pode ser bebida. O produto foi pensado para mostrar que a água tratada e distribuída pela Cagece tem todas as condições para ser consumida.

Necessidade comumA água é um bem imprescindível, seja

da torneira, de garrafões das empresas privadas, ou até mesmo de um poço; to-dos precisam de água e irão consegui-la de alguma forma. Alguns podem comprar gar-rafões de R$ 5,00, outros de R$ 2,50, alguns bebem a água da torneira e outros preferem os poços, levando em conta a economia que fazem no final do mês. As histórias são muitas e se confundem nessa metrópole de mais de dois milhões de habitantes. O en-graçado é perceber que sempre se encontra um jeito; seja por conta da necessidade, seja por livre escolha.

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Constatamos que é grande o desperdício de frutas e verduras dentro da Ceasa, o maior entreposto de hortifrutigranjeiros do Ceará. A parceria com o projeto Mesa Brasil, do SESC, representa um avanço, mas é triste ver que muitos alimentos vão para o lixo, enquanto poderiam saciar a fome dos fortalezenses

Segundo estudos realizados pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) no Centro de Agroindústria de Alimentos, o brasileiro joga fora mais do que aquilo que consome. Em hortaliças, por exemplo, o total anual de desperdício é de 37 quilos por habi-tante. Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que nas dez maiores capitais do Brasil o cidadão con-some 35 quilos de alimentos ao ano — dois a menos do que o total que joga no lixo. ‘‘Num país com tantos famintos como é o Brasil, esse desperdício é inadmissível’’, avalia o químico industrial e responsável pela pesquisa, Antônio Gomes.

Em nosso Estado a situação não é muito diferente. Há muito desperdício de alimentos in natura, conforme se pode constatar na maior central de abastecimento de nosso estado, a Ceasa – Centrais de Abastecimento do Ceará S/A, localizada no município de Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza.

No ano de 2007 foram comercializadas 491,6 mil toneladas de hortifrutigranjeiros, com um faturamento de R$ 472 milhões. A Ceasa é maior entreposto de hortifrutigranjeiros do Estado do Ceará, sendo responsável pelo abastecimento de sua capital, a quarta maior cidade do país.

· texto · luís gentil · anarrara oliveira ·· fotos · raphael villar ·

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Nos dias de feira, às terças e quintas , são 400 caminhões carregados de frutas e legumes que descarregam ali seus produtos. De acordo com a Divisão Técnica e de Planejamento (DITEP) da Ceasa, dos produtos ali comer-cializados o Ceará participa com 55%, o que corresponde a 270,1 mil toneladas, enquanto que os demais estados participam com 45% dos produtos, ou seja, com 220,9 mil tonela-das de hortigranjeiros. Isto significa que quase a metade dos produtos consumidos em nosso estado vem de outros lugares, a maioria trans-portada por caminhões e em condições, nem sempre, ideais de acondicionamento.

Segundo Luiz Edson Pereira Góis, presidente da Associação dos Usuários da Ceasa Ceará (Assucece), em cada descarregamento há uma perda média de 50 quilos de hortifrutigranjeiros devido às condições de transporte, acondiciona-mento e deficiência das estradas. Isso representa uma perda média de 20 toneladas de alimentos por cada dia de abastecimento do entreposto.

Considerando que o abastecimento ocorre duas vezes por semana, as perdas acumuladas são da ordem de 40 toneladas de alimentos semanais, o que representa, por ano, 1,92 mil toneladas. E se considerarmos as condições de armazena-mento da Ceasa, pode-se concluir que ao final do processo de comercialização as perdas sejam ainda mais significativas.

Para Pereira, o desperdício poderia ser minorado se houvesse uma política mais abran-gente de segurança alimentar e nutricional para as pessoas carentes que vivem na periferia de nossa cidade, sobretudo no entorno da Ceasa. Se houvesse uma consciência cidadã de cada usuário da Ceasa, seria possível doar até 12 toneladas de alimentos por dia. Em que pese os esforços, a Assucece só tem conseguido doar cerca de 600 quilos por semana. De acordo com Pereira, a coleta é prejudicada pela desconfiança que os usuários têm com relação à destinação dos produtos doados, pois há sempre o temor de que suas doações não cheguem à mesa de quem realmente precisa. Por essa razão, a entidade tem procurado levar ela mesma os produtos a seus destinatários. Para tanto, está adquirindo um veículo tipo Kombi para que seu pessoal efetue as entregas e fiscalize o seu aproveitamento.

Dentre as entidades assistidas pela Assucece, estão a ACPP – Associação Comunitária do Planalto Palmeira, a Associação Beneficente dos Moradores do Pantanal e a Igreja do Cristo Rei, através da Pastoral do Idoso. Segundo Pereira, a associação está organizando um banco de alimentos a fim de atender aos pedidos de todas as entidades que procuram a Assucece.

A visão oficial, no entanto, é outra. Para o assessor de imprensa da Ceasa, Germano Ribeiro, as perdas não são tão significativas, quanto se poderia imaginar. Para se ter uma idéia, em 2007 foram produzidas 3,94 mil toneladas de lixo. Desse volume, somente a metade era constituída de hortigranjeiros, cerca de 1,77 mil toneladas. Desse montante, o equivalente a 30% são aproveitados por catadores no interior da Ceasa/Ce, inclusive para alimentação animal. Para Ribeiro, das 424,6 mil toneladas comercializadas no ano de 2007, as perdas foram de apenas 0,83%. (Os dados aqui diferem dos apresentados pelo DITEP, que é de 491,6 mil toneladas). Ele ressalta, no entanto, que esse nível de perda somente foi

De acordo com a assessoria da Ceasa, 1,77 mil

toneladas de alimentos viram

lixo.

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possível em face de uma parceria que a Ceasa mantém com o Programa Mesa Brasil do SESC. Segundo dados de sua assessoria técnica, entre junho/2005 e janeiro/2008 foram repassadas ao Mesa Brasil – Amigos do Prato -, cerca de 1.000 toneladas de hortigranjeiros. Caso não existisse a parceria, certamente, todos esses produtos iriam para o lixo.

Segundo Germano Ribeiro, o Mesa Brasil Amigos do Prato é um programa de segurança alimentar e nutricional que tem como objetivo contribuir para a diminuição das desigualdades sociais do país, cujo lema é: buscar onde sobra e entregar onde falta.

Produção desperdiçadaEmbora as visões e números sejam divergentes, não há como obscurecer a triste realidade: há uma significativa perda de alimentos a partir da fonte produtora até chegar à mesa do consumi-dor. Os números são divergentes porque têm bases de cálculo diversas, ou seja, enquanto a

Assucece, empiricamente, considera as perdas por cada caminhão descarregado, a Ceasa apura as perdas pelo lixo que recolhe. A Ceasa não considera ou subestima o fato de que muitos hortifrutigranjeiros, antes de virar lixo, passam pelas panelas dos catadores que lá transitam todos os dias.

Devido às condições de transporte, muitos produtos chegam à Ceasa machucados, ou seja, com pequenos ferimentos na pele ou na casca. São os chamados produtos “tocados”. Esse fato, por si só, é suficiente para tornar o produto sem valor comercial, pois são refugados pelos varejistas. Nestas condições, se não conseguirem vender mais barato no varejo, é perda. Vai para o lixo. Não há saída

Na visita que fizemos àquele entreposto vimos uma realidade que contrasta com as informações da Ceasa e confirma o que as es-tatísticas nacionais apontam. Embora fosse um dia de pouco movimento, via-se a olho nu o que as estatísticas consultadas registram.

Das 40 toneladas de alimentos desperdiçadas por semana, somente 600 quilos são reaproveitados e doados, segundo a Assucece.

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Não era dia de feira, como se costuma di-zer. Mesmo assim, restos de verduras e legumes podiam ser vistos junto às calçadas e meios-fios, bem como sob as bancas dos varejistas. Ima-gine-se nos dias de feira, após a descarga de, pelo menos, 400 caminhões que abastecem o entreposto de hortifrutigranjeiros. São alimentos produzidos no interior e em outros estados do norte e do nordeste.

Quem fica com o restoApesar do pouco movimento, encontramos vários catadores empurrando ou puxando seus carrinhos cheios de sobras e restos de verduras, frutas e legumes. Seu Ivanildo Caetano, de 43 anos, era um deles. Com um jeito trôpego, con-duzia com dificuldades um carrinho repleto de cebolinha, coentro, alface, repolho, pepino, jeri-mum, chuchu, cenoura, etc. De tão cheio o seu carrinho de mão, por onde passava deixava um rastro de verduras. Mas ele nem ligava. Parecia

que tinha pressa, pois quase não conseguimos falar com ele. Mesmo assim, mostrou-se muito receoso em falar conosco. Somente depois que nos identificamos é que ele baixou a guarda e concordou em conversar um pouco. Sua voz denotava que havia ingerido bebida alcóolica, fato que seu hálito confirmava. Apontando para seu carrinho, como se exibisse um troféu, foi logo dizendo:

- Doutor, isso que o senhor está vendo eu estou levando para alimentar meus porcos.

Ele possui uma pequena criação de porcos nas proximidades. Aliás, criar porcos é uma atividade muito comum naquela área. À me-dida que o papo fluía e conquistávamos a sua confiança, disse-nos que antes de dar de comer aos porcos, verifica o que pode ser aproveitado na alimentação da família.

Ainda um pouco desconfiado sobre o mo-tivo de tantas perguntas, mostrou-se reticente sobre a quantidade de produtos que levava para

Muitas pessoas sobrevivem do

que recolhemna Ceasa.

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casa todos os dias. Quando insistimos, disse-nos que carregava, diariamente, cerca de 50 quilos de alimentos, recolhidos junto às bancas e, até mesmo, retirados dos contêineres. Percebia-se, claramente, o receio e imprecisão de suas res-postas, pois só de cenouras, ele deveria estar levando uns 20 quilos. Pegando o seu carrinho, seu Ivanildo deu por encerrada a conversa. Afinal, o homem tinha pressa.

Logo adiante encontramos o segurança Raimundo Nonato Ribeiro Monteiro, 39 anos, repreendendo algumas crianças que estavam se alimentando de frutas que haviam retirado de um contêiner. Devido à resistência oferecida, Monteiro pediu apoio policial para retirá-las das dependências da Ceasa, pois não era permitida a presença de crianças naquele local, sobretudo para coletar sobras de alimentos.

“Todos os dias, é a mesma coisa. Eles estão sempre procurando aproveitar alguma coisa para comer”, disse-nos Monteiro. Ele estima que cerca de 100 pessoas, cotidianamente, reviram o lixo à procura de alimento. Só na sua área, cerca de dois mil quilos de alimentos são jogados no lixo todos os dias.

Enquanto conversávamos, ia passando ao nosso lado Raimundo Ferreira Pinto, de 62 anos. Com seu carrinho abarrotado de jerimum, lá ia seu Raimundo, mais um que dizia levar os restos da feira para alimentar seus porcos. Atendendo ao nosso apelo, contou que recolhe, diariamente, cerca de 600 quilos de frutas e legumes. Sem qualquer receio ele afirmou que a maioria das pessoas leva mesmo é para alimentar a família.

A seu lado estava seu Francisco Cardoso, 69 anos. Era difícil acreditar que aquele senhor, de aparência tão frágil, tivesse forças para car-regar tanto peso. Dia sim, dia não, como seu Raimundo, ele recolhe uns 200 quilos de restos de frutas e legumes para alimentar os porcos. Foi o que mais ouvimos: todo mundo cria por-cos. Mas, ao final, todos acabam reconhecendo que uma boa parte desses produtos vai mesmo é para a panela. Essa é a triste realidade.

Centrais de Abastecimento do Ceará (Ceasa-Ce)Rod. Dr. Mendel Steinbruch, s/n - Pajuçara - Maracanaú - CETel: (85) 3299.1200

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A estruturação familiar é uma necessidade na vida de qualquer

pessoa. Entretanto, é comum encontrar no Brasil altos índices

de abandono infantil além de crianças que passam por

traumas após serem rejeitadas ou esperarem o longo processo de

adoção

· texto · renan andrade · natália gomes · tainá almeida · · ilustrações · liandro roger ·

Amor

O abandono pode acontecer em várias fases da vida da criança. Um dos mais comuns é o precoce, em que uma criança é deixada, ainda recém-nascida, em maternidade ou em vias públicas. Casos como o da menina Letícia Maria Cassiano (registrada por determinação da Justiça), que foi amarrada num saco plástico e jogada na lagoa da Pampulha, em Belo Hori-zonte, deixam a população estarrecida e fazem com que o tema “adoção” renasça entre as pes-soas. Apesar da solução imediata ser a adoção, a Justiça procura trabalhar com cautela, para que crianças como Letícia não sejam submetidas a processos traumáticos.

Esse é apenas um dos casos que ilustra bem a situação de milhares de crianças abandonadas em todo o Brasil. Um dos fatores que contribui para o abandono infantil é a má distribuição de renda. Segundo pesquisa publicada no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em fe-vereiro de 2000, somente 10% da população concentra 47% da renda nacional, enquanto 50% dos brasileiros mantêm apenas 13% do total. Contudo, a diferença social não constitui motivo suficiente para que pais abdiquem do pátrio poder.

Um larpara chamar de seu

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O chamado “abandono tardio” acontece por uma má estruturação familiar. O alcoolismo é o motivo que mais desencadeia essa situação. A criança é internada em abrigo pelo fato de os pais estarem incapacitados de desempenhar seu papel: zelar pelo bem-estar do filho. É o caso de Marcela, de 12 anos. Ela mora na Casa Abrigo, no Pirambu, com os quatro irmãos (de 9, 7, 6 e 2 anos) desde que os pais tornaram-se al-coólicos. Já Adriana Maria da Silva Sales, de 18 anos, morou no Abrigo Nossa Casa, no Tancredo Neves, com as irmãs de 13 e 14 anos. Motivo: abuso sexual praticado pelo pai. Apesar das adversidades, Adriana saiu do abrigo quando se casou, em julho do ano passado.

Um dos casos mais traumáticos para a criança dá-se quando ela é abandonada por desinteresse dos pais, ou seja, quando eles “esquecem” suas crianças no abrigo por longos períodos. Apesar dos pais demonstrarem, du-rante esse tempo, um interesse em reintegrar seus filhos, isso dificilmente acontece, o que acaba sendo bastante doloroso para a criança.

Com o intuito de proteger judicialmente a criança e o adolescente, foi criado em 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que foi um dos principais responsáveis pela mu-dança na estrutura de abrigos e orfanatos. Antes da criação do ECA, esses locais, em sua maioria, abrigavam as crianças apenas como números, sem identificação pessoal. Atualmente, os grandes orfanatos vêm se tornando pequenos abrigos, abertos para a comunidade social.

PrevençãoExistem medidas preventivas para se evitar um número cada vez maior de abandono de filhos. O Instituto da Segurança Social (ISS) fiscaliza o trabalho dos chamados “técnicos sociais”, responsáveis para avaliar se a família está em situação de risco. Caso esteja, começa um ex-tenso trabalho envolvendo família, psicólogos, serviço social, escola e serviços médicos, que oferecem ajuda econômica, apoio psicossocial aos pais e apoio educativo à criança. Se a uni-dade familiar não for restabelecida, a criança será encaminhada ao orfanato.

O trabalho dos operadores sociais continua mesmo após a criança ser direcionada ao abrigo. Eles trabalham em três níveis: de início, fazem o atendimento no abrigo; depois organizam procedimentos para verificar os elementos de

convicção do juiz para a destituição do pátrio poder dos pais e, por fim, selecionam e pre-param os casais interessados na adoção. Este último processo é fundamental, na medida em que os operadores têm a função de procurar “pais capazes” para crianças abandonadas, que aceitem a origem da criança e que possam enfrentar as dificuldades inerentes à responsa-bilidade que estão assumindo.

Dentro desse processo, a preparação moral e pedagógica dos adotantes é fundamental. O ato de adotar, além de ser um gesto de amor e de complementação de sentimentos paternos e maternos, também precisa ser um ato de res-ponsabilidade pelo próximo. Os pais adotivos, assim como os biológicos, necessitam apresentar uma conduta moral e psicológica condizente com a função de educadores que irão exercer. Para isso, são necessários serviços técnicos

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especializados na elaboração dos pareceres psicossociais da família adotante.

Quando a criança chega ao orfanato, começam as tentativas de reestruturação fami-liar, estabelecida como prioridade pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, na tentativa de que os filhos voltem para as famílias biológi-cas. Segundo Thiago Holanda, representante do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, a não existência de uma política consolidada sobre essa reintegração leva à institucionalização da criança, que passa anos em um abrigo, para depois começar uma nova etapa na sua vida : a espera por um novo lar.

Com essa lentidão, a maioria das crianças que estão em um abrigo acaba, simplesmente, não ficam disponíveis para adoção. Aurilene Vidal, da Pastoral do Menor da Igreja Católica, acredita que a demora se dá devido à falência

do nosso sistema judiciário que não tem téc-nicos necessários para ajudar no processo de reintegração, mas defende que a adoção seja difícil mesmo, para proteger as crianças e não permitir que elas sejam adotadas apenas por ter uma família pobre.

Nesse processo, há espera dos dois lados: crianças que desejam ser adotadas, mas não es-tão disponíveis; e pais que desejam adotar, mas precisam esperar todo o lento processo. Qual é a dificuldade para unir esses destinos?

A resposta pode estar na análise estatística do perfil dos adotantes e dos adotados no Brasil. Uma pesquisa realizada este ano pela Associ-ação dos Magistrados Brasileiros (AMB) revelou que cerca de 95% dos adotantes brasileiros são casados, possuem entre 31 e 35 anos e são bran-cos. Destes, 67% tem preferência em adotar um filho de, no máximo, seis meses de idade,

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o que difere da realidade das crianças existentes em abrigos, que possuem, geralmente, mais de dois anos. 72% dos adotantes preferem filhos de cor branca e 49% se dizem indiferentes à escolha do sexo da criança, embora 27% pre-firam meninas.

Comparando o perfil dos candidatos à adoção com o dos possíveis adotados, a mesma pesquisa mostra uma tentativa de constituir a chamada “família modelo”, ou seja, aquela que não foge aos padrões impostos pela sociedade. Como a maioria dos que procuram adotar uma criança são casais de cor branca, eles desejam um filho da mesma etnia. Já a escolha por ado-tar filhos com até dois anos de idade, feita por 99% dos adotantes, justifica-se pelo fato dos adotantes terem receio de que a criança não consiga se adaptar ao novo lar.

Fora as crianças que tem mais chances de

receber um novo lar estão as crianças negras, maiores de dois anos e com algum tipo de de-ficiência. Embora 56% dos brasileiros tenham adotado filhos com algum problema de saúde, a maioria dessas crianças sofria de problemas de desnutrição. Meninos e meninas com de-ficiências física ou mental representam a parcela mínima dessa porcentagem.

Alternativas Em contraste, a adoção feita por estrangeiros é bem mais flexível e se adequa mais à realidade de crianças disponíveis no Brasil. Segundo da-dos divulgados este ano no site da Organização Humanitária Internacional Amici de Bambini (Ai.Bi.), 48% aceitam crianças com mais de quatro anos. Em caso de adoção de irmãos, 39% não veem problemas em adotar mais de uma criança. Entre os brasileiros, isso só ocorre

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67%preferem filhos de no máximo 6 meses de idade

em 15% dos casos. Quanto ao sexo da criança, 73% dos estrangeiros se mostram indiferentes. No tocante à cor, ao contrário da maioria dos brasileiros, apenas 13% dos estrangeiros têm como ideal uma criança branca e 44% morenas, enquanto o restante aceita criança negra.

A adoção internacional é regida pelo tratado firmado na Convenção sobre Adoção Internacional, a Conferência de Haia, e segue uma série de regras. É preciso, em primeiro lugar, ajudar a criança a permanecer junto de seus pais biológicos; e esgotar as possibilidades da criança permanecer no país de origem. So-mente após esse processo é que se pode pensar em adoção internacional, mas sempre visando ao benefício da criança. Afinal de contas, o pro-cesso de adaptação em um país estranho pode ser muito mais difícil.

De acordo com os dados do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea), no Brasil, aproxi-madamente 80 mil crianças vivem em abri-gos. Mesmo diante desta realidade, existem inúmeros casais que não conseguem ter seus filhos por “vias naturais” e se submetem a anos de tratamento de fertilização. Esses tratamentos são caros, uma vez que o custo da inseminação artificial é de aproximadamente R$ 2 mil. O preço de uma fertilização in vitro pode variar de R$ 8 mil a R$ 10 mil, já que as medicações que acompanham são, na maioria, importadas.

Em Fortaleza existem algumas clínicas especiali-zadas na reprodução humana assistida. A clínica BIOS, centro de medicina reprodutiva, faz men-salmente de 25 a 30 fertilizações in vitro.

O procedimento se restringe àqueles que possuem um poder aquisitivo alto, o que não inclui a maior parcela dos brasileiros, mas mesmo assim, um número significativo de casais encontra condições financeiras favoráveis para tal tratamento.

Nem sempre o tratamento é bem suce-dido e a cada tentativa, um fracasso. Cada inseminação, novas expectativas. E a cada nova expectativa frustrada, novos traumas e sérios problemas de ordem emocional. A adoção é saudável para o casal, mas ela não pode ser um remendo a uma situação desfavorável. Ela precisa ser vivenciada, quer na história de casais com filhos ou na de casais sem filhos, como uma oportunidade de exercitar um dom: o verdadeiro amor, desprendido, abençoador, edificante e construtor de vida.

Abrigo Nossa CasaRua Castro de Alencar, 1280Jardim das OliveirasTelefone: 3279.6093

SERVIÇO

Perfil dos adotantes no Brasil

95% dos adotantes são brancos, casados e possuem de 31 a 35 anos. Destes:

27%preferem filhos do sexo feminino

49%são indiferentes à escolha do sexo da criança

72% preferem filhos de cor branca

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20 NOVEMBRO 2008

Sim, o amor faz doer. Especialmente em quem necessita desesperadamente ser amado e acredita que a felicidade só pode ser encontrada no outro. Enquanto alguns grupos trabalham contra a dependência química, o MADA reúne Mulheres que Amam Demais em anonimato, para que elas juntem forças e recuperem sua integridade moral e sua individualidade, buscando o amor próprio. Ouvimos os depoimentos de integrantes nas reuniões que serão expostos aqui. Os nomes utilizados são fictícios para proteger a identidade delas

A dor do

amor DEMAISA sala aos poucos é preenchida. Uma a uma vai entrando. Algumas um pouco mais apa-gadas, com um olhar melancólico, à procura da solução para aliviar seu sofrimento. Outras possuem um brilho a mais, talvez conquistado por meio da luta diária pela recuperação.

O relógio marca 7 horas. A mão direita dá e a esquerda recebe. Assim se inícia do ritual em que são trocadas energias. As integrantes ficam de mãos dadas em um grande círculo e de pé oram.

“Deus, dai-me a serenidade para aceitar as coisas que eu não posso mudar, coragem para

mudar as coisas que eu possa, e sabedoria para que eu saiba a diferença: vivendo um dia a cada vez, aproveitando um momento de cada vez; aceitando as dificuldades como um caminho para a paz...” (Oração da Serenidade)

É nesse clima de oração e respeito que começa cada reunião do grupo MADA (Muheres que Amam Demais Anônimas) em Fortaleza.

O MADA surgiu inspirado no livro “Mu-lheres que amam demais”, de Robin Norwood 1985. A obra guia e “alimenta” a programação. A primeira reunião no Brasil foi conduzida em São Paulo, no dia 16 de abril de 1994. Já no

· texto · nina giordana · lícia fontenele ·· fotos · divulgação filmes ·

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Ceará, o primeiro encontro das MADAs acon-teceu em 1º de maio de 2003, período em que estava sendo exibida a telenovela global “Mulheres Apaixonadas” que fazia esse mer-chandising social, entre outros.

O grupo de mútua-ajuda é indicado para mulheres que amam demais e que sofrem demasiadamente por seus relacionamentos em geral serem algo destrutivos em suas vidas. Ele funciona seguindo o modelo dos grupos de co-dependência, tomando como exemplo o conhecido AA (Alcoólicos Anônimos). As mulheres integrantes do grupo se reúnem uma vez por semana e partilham seus sofrimentos e aflições.

“Eu fui ao fundo do poço da dignidade moral que uma mulher podia chegar. Meu companheiro foi fazer uma viagem e na volta disse que iríamos comprar tudo para nossa casa

– tapetes, cortinas... Alguns dias depois, apenas me mandou uma carta terminando tudo. Fiz todas as propostas que estavam ao meu alcance para ele ficar comigo. Disse até que se tivesse outra mulher eu aceitaria. Foi algo terrível, nem no dia que perdi meus pais doeu tanto quanto o desfecho desse meu relacionamento” (Maria, 47, professora).

Elas não dão conselhos entre si, apenas par-tilham. Expõem para as outras de que maneira seus relacionamentos têm afetado suas vidas. É uma espécie de terapia do espelho, em que uma mulher se identifica no problema da outra.

“Eu sofria demais. O outro era depósito da minha felicidade. Se ele não me procurava, eu sofria. Eu o amava muito. Então, não conseguia terminar este relacionamento. A carência faz a gente se submeter a coisas que fogem dos nossos princípios. Aceitava tudo que vinha do

O Passado (2007):após terminar o casamento com Sofia (Analía Couceyro), Rímini (Gael García Bernal) procura a felicidade em outro relacionamento, mas a ex-esposa não aceita e o persegue.

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meu companheiro. Sofria muito, não tinha apetite, emagreci bastante. A partir do MADA é que fui vendo nas outras mulheres o que de fato acontecia comigo. Foi quando comecei a mudar e dizer não. Hoje consigo viver sozinha e feliz!” (Raquel, 28, advogada)

O grupo tem como proposta inicial que a mulher recém-chegada assista a seis reuniões consecutivas, sendo chamadas de “primeira-vez”. Nesse período, elas procuram observar como funciona o grupo, se têm realmente identificação com a problemática e se estão dispostas a trabalhar por sua recuperação. Não se discute nenhuma religião.

Em cada reunião, é abordado um tema diferente que gera reflexões. São fornecidos também uma série de exercícios de reflexão para que as MADAs pratiquem e colecionem. Só é utilizada a literatura sugerida pelo Comitê Central do MADA, localizado em São Paulo.

Por amar demais, a mulher não se vê. Só vê os outros e só cuida dos outros. Ela deixa de viver a sua vida para viver a vida do outro.

“Eu acho que sou a pessoa mais doente daqui. Eu tenho dificuldade até de vir pra cá, tenho vergonha. Convivo com um adicto. Se eu pudesse, pregava ele em mim. E isso me faz não sair. Eu sou autônoma, então quando eu saio, ganho bem mais do que quando fico em casa. Aproveito o tempo que ele tá dormindo e saio correndo para trabalhar. Eu tenho medo de deixá-lo, porque ele pode pegar alguma coisa. Possuí uma TV e um DVD que tive que vender. Comprei um aparelho mais simples, preto e branco mesmo. É nele que assisto à novela. É melhor assim, porque posso sair sem ter medo que ele venda. Eu não faço as minhas coisas, prefiro acompanhá-lo. Não gosto de sair e deixá-lo só. Fico aqui pensando o que ele pode estar fazendo em casa agora. Dessa forma não tenho vida própria, só vivo para cuidar dele, eu não existo” (Lúcia, 37, autônoma).

A proposta do MADA é que cada mulher comece a mudar a sua própria vida, a reciclar o que há de melhor em si.

“Eu ainda não consigo me ver como a pes-soa mais importante da minha vida. Alguém que me fez uma raiva e depois pede desculpas, eu perdoo sempre. E isso muitas vezes me faz sofrer” (Rosa, 35, secretária).

O MADA é o único lugar onde o egoísmo faz bem. “Egoisticamente” falando, é preciso

se ver em primeiro lugar. Aprender a se amar e se respeitar são regras básicas para o sucesso na recuperação.

“A gente vai aprendendo. Eu não vou mais servir de capacho para as pessoas pisarem em mim. Estas agora pensam e somente às vezes chegam a pedir determinada coisa. Hoje, eu tenho minhas prioridades. Vou cuidar de mim. Eu sou a primeira pessoa que tenho que agradar (Luísa, 35, auxiliar administrativa).

Na reunião existe um momento em que é passada a “sacola da 7ª tradição”, uma forma de contribuição anônima em que cada integrante fornece algum valor. O dinheiro arrecadado é para investir no próprio grupo, como o aluguel do espaço e a impressão do material a ser trabalhado.

Ao final das partilhas é lida uma mensagem extraída do livro “Meditações diárias para mu-lheres que amam demais”, também de Robin Noorwod. Novamente de pé e mãos dadas, é realizada a oração da unidade. ”Eu coloco minha mão nas suas e uno meu coração ao seu. Para que possa fazer tudo que não faço sozinha. Eu me amo e me aprovo (3x)”. A despedida é marcada por um abraço coletivo.

Só por hoje Ao ingressar no grupo, as mulheres fazem a escolha por mudar. Tudo que antes dava sentido a sua existência, agora passa a ser alvo de sua luta. “Eu perdôo todo mundo e por isso as pessoas fazem o que querem de mim. Não sei se é por carência, mas prefiro perdoar com medo de perdê-las. Eu necessito da presença delas. Às vezes eu queria perdoar menos para não me machucar tanto. Já me perguntaram se eu não tenho vergonha na cara por sempre estar com pessoas que só me maltratam. Mas hoje eu sei que preciso mudar” (Patrícia, 32, cabeleireira).

Dessa forma, o lema “Só por hoje, não...” deve se tornar essencial nas batalhas diárias, vivendo um dia de cada vez. “Eu fui embora com meu tio morar em outra cidade. Lá conheci uma pessoa com a qual fiquei um ano e quatro meses. Eu sempre dizia que só estava lá, porque o amava demais. Então ele terminou comigo, mas voltamos depois de 2 meses. Para não perdê-lo, abri mão de tudo, até do que achava errado. Eu era ridícula. Fazia o papel da mãe que ele já tinha perdido e até da empregada.

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Cortava as unhas, fazia tudo. Ele sempre dizia que não queria casar, ter filhos, mas eu achava que no fundo ele queria e não sabia disso. Então viemos a Fortaleza para ele conhecer a minha família, foi maravilhoso! Tivemos uma lua-de-mel. Depois quando fui visitá-lo, ele terminou o namoro. Até hoje não consigo aceitar. Estou profundamente amargurada, não sei mais o quê fazer na minha vida, às vezes passo o dia dormindo para fugir da dor...Vivo um dilema, se fico aqui com a minha família ou se eu volto pra lá e tento reconquistá-lo...”(Mônica, 25, estudante).

Eu, MADA em recuperação...Com a participação nos encontros e o desejo de ser uma pessoa mais feliz consigo mesma, as MADAs vão buscando modificar atitudes que antes lhes faziam sofrer. “Eu só procurava pes-soas certas nos lugares errados. Servia de tapete para os maridos que tive. Eu tinha que ser mãe, amante, faxineira... fazer tudo. Comprava a companhia dos outros. Eu achava que conhecia as pessoas. Eu conhecia... meus irmãos, sobri-nhos... mas não a mim mesma. Depois é que eu comecei a me ver como ser humano. Agora já sei me cuidar. Eu estou muito melhor depois do MADA. Hoje eu me conheço muito” (Adriana,

38, vendedora).Durante o processo de recuperação, as

mulheres dão seus depoimentos para forta-lecer e estimular tanto elas mesmas, como as iniciantes. “Amava mais as pessoas que a mim mesma. Acordava de madrugada e escrevia como se estivesse psicografando. Era a minha forma de desabafo. A dor era um flagelo que me acompanhava. Eu era uma pessoa muito carente, estive numa profunda depressão por ir agüentando pequenas coisas. Quatro antide-pressivos era pouco pra mim. Eu queria que as pessoas sentissem a minha dor. Mas depois do sofrimento, vem uma força divina. Hoje eu gosto da companhia da minha mãe, da minha filha e gosto de ficar sozinha” (Paula, 42, cor-retora).

Nas partilhas, algumas têm mais dificul-dade para se pronunciar. Nessa hora é comum as lágrimas, que muitas vezes são o único alívio. “Por amar demais eu não me via. Um dia me perguntaram: “Quando você vai pensar em você?” Eu amava tanto o outro que deixava de viver a minha vida para viver a vida dele (cuidava de seus compromissos... até do seu perfume). Porém, o MADA não muda ninguém ao meu redor, só a mim mesma. Essa porção mágica é só para mim, se alguém quiser, tem

Time – O Amor Contra a Passagem do Tempo (2006):uma moça ciumenta decide fazer uma cirurgia plástica para mudar o visual e fazer com que seu namorado não perca o interesse por ela.

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que procurar ser ajudado. Eu tenho que me amar. Os outros é que têm que me aceitar. Eu que sou importante, eu que tenho que me amar!” (Simone, 30, publicitária).

A aflição que é exposta por cada uma delas, acaba se tornando mesmo um espelho para aquelas que querem uma saída, e não sabem por onde começar. “Não devemos deixar que os relacionamentos acabem com a gente. E isso só depende de nós mesmas. Coragem para enfrentar aquilo que não nos serve mais. Eu via que um relacionamento não tava bom, que me fazia sofrer e não tinha cor-agem de dar um basta. Eu não tinha coragem suficiente para enfrentar essa verdade. Eu fantasiava a minha vida, não via como ela era

de verdade. Todos os homens não são iguais. Não deu certo com um, mas pode dar com outro. Precisávamos desses relacionamentos destrutivos para justificar nossa baixa auto-estima. Enquanto a gente não aprender com as nossas dores, vamos continuar sofrendo. “Eu mereço ser amada do jeito que eu sou, com defeitos e qualidades. Ninguém é perfeito. Todo mundo encontra alguém para si que vai se encaixar direitinho. O importante é se amar de verdade! No MADA a gente vê a realidade dos fatos e encara.” (Sandra, 41, professora) As MADAs são, acima de tudo, mulheres guer-reiras, por viverem uma luta diária pela sua integridadew, buscando manter o amor a si próprias como prioridade.

Um Homem, Uma Mulher (1966):

Anne (Anouk Aimée) e Jean

(Jean-Louis Trintignant) são dois viúvos que

se apaixonam, mas precisam se

libertar de amores antigos.

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Amores obsessivos no cinema No cinema, os amores obsessivos são um tema frequente, como nos filmes que ilustram essa

reportagem “O Passado” (2007, direção de Hector Babenco) e Time“(2006, direção de Ki-duk Kim). Além destes “Notas sobre um escândalo” (2007, direção de Richard Eyre), “Louca Obsessão” (1999, direção de Rob Reiner), “Ata-me” (1989, Pedro Almodóvar) e “Camille Claudel” (1988, Bruno Nuytten).

A dependência e controle da união conjugal se estrutura e se organiza a partir da afetividade, da sexualidade, do respeito e da valorização mútua de um para com o outro, da demarcação dos espaços intrapessoais de cada cônjuge, do equilíbrio da complementaridade no casal, entre outros fatores. É sob a influência desses fatores que se passa o jogo interpessoal que define como o comportamento de um afe-tará o comportamento do outro do sistema con-jugal e vice-versa. Estamos aí diante do vínculo ou do “nós” conjugal e este é o primeiro desafio que enfrenta o casal. Como podem ser manti-das as individualidades respeitando o “eu” do marido e o “eu” da esposa? É neste contexto que observamos a petrificação do vínculo, a fusão simbiótica que engole as individualidades até que uma deles rompa conseguindo escapar desta relação possessiva.

Constata-se também que esse “amar de-mais” pode ser traduzido como uma forma extrema de controle de um sobre o outro e, quando um se cansa de ser controlado, ocorre a ruptura relacional, provocando um caos naquele que sente seu objeto se afastar. O controlador é capaz de cometer todo o desatino possível ou anulando-se totalmente na crença da reconquista do outro: “se eu sofro por ti,

tu vais me amar” é uma das crenças ou ainda, dependendo da estrutura patológica interna do controlador, eliminar o outro no real, pois “se ele ou ela não é meu, não será de ninguém mais”.

O amor compulsivo necessita constante-mente de provas desse amor: telefonemas, e-mail, palavras reafirmando o seu amor, gestos e paralelamente se desenvolve um ciúme feroz e passa a ver em cada pessoa uma rival.

Concluindo, podemos dizer que o de-nominado “amor demais” não é algo encon-trado somente em mulheres, nesta categoria encontram-se homens também. A via da cura deste sofrimento passa por processos de re-estruturação psíquica que, caso não ocorra, a pessoa corre o risco de sair desse tipo de dependência e entrar noutra como transtornos alimentares, alcoolismo etc. Há necessidade de cada um chegar à compreensão de que a felicidade durável é possível se a relação se funda sobre a independência psicológica de cada um, não levando a comportamentos exces-sivos. É necessário o desenvolvimento de uma confiança que permita construir uma relação amorosa, serena e equilibrada considerando a importância da independência e o respeito de si e dos outros.

Porque se ama demais(*)

(*)Dra. Júlia S.NF. Bucher-Maluschke, professora Titular do Mestrado em Psicologia da UNIFOR, profes-sora Emérita da Universidade de Brasília e pesquisadora do CNPq. Ela também escreveu artigo publicado nas Coletâneas da ANPEPP intitulado: “Vínculo conjugal: da união à separação e o controle mútuo do destino”, no qual aborda que tanto mulheres quanto homens podem ser enquadrados como “pessoas que amam demais”.

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sem elesEU, TU...

· texto · gabriela fiúza · fotos · raphael villar ·

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Conheça a história de Marlene, a “Dona Flor do Sertão”.

Diferente do romance de Jorge Amado, o “Dona Flor e Seus Dois

Maridos”, o amor da sertaneja foi compartilhado com três

homens diferentes, que dividiram o mesmo teto e chão batido por anos. Apesar de sua vivacidade e insaciável disposição ao amor

da juventude, Dona Marlene está hoje apenas com um de seus companheiros, mas sem

ressentimentos. Ela conta sua vida de muitos amores no premiado

filme “Eu Tu Eles” e aqui, em forma de literatura de cordel

Cinema, Literatura, pobreza, vaidade ou re-alidade? Isso tudo resume a história da nossa personagem. Mulher sertaneja de muita fibra e disposição, no rosto já calejado pelo tempo ela carrega as marcas de uma vida humilde, em que o amor fala mais alto e o coração, como já diz o ditado, “sempre cabe mais um”. História que mais parece com a literatura de Jorge Amado. É justamente de uma personagem muito conhecida desse autor, a inspiração para o apelido de nossa sertaneja: “Dona Flor do Sertão”. Diferente da representação contida na obra, essa criatura, em sua perfeita consciência, manteve-se casada com três homens de diferentes aparências. Acaso ou destino, Marlene, nossa mulher cheia de amores, foi a inspiração para a protagonista do filme “Eu Tu Eles” (2000), protagonizado pela atriz Regina Casé. O jeito de viver de Marlene encantou o mundo.

EU, TU...

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Marlene, a “Dona Flor do Sertão”, já

foi casada com três homens ao mesmo

tempo e viu sua história virar filme.

Deixando de lado o cinema e a ficção, ja-mais vi um cenário tão lindo como o Sertão que no inverno se modifica e fica mais bonito, com uma vegetação bem ‘verdinha’. A seca, ou o sol escaldante, deu vez a um cenário verdejante que é difícil de encontrar. Quem diria, em vez de um Urubu, vi um Sabiá, ave que canta a dor do ser-tanejo e que hoje veio fazer festejo e anunciar a chuva. No fim de semana em que fiz essa entre-vista, a chuva foi constante. Quando não estava chovendo, o clima permaneceu aconchegante. Até fiquei em dúvida se estava no interior do Ceará.

Quem tiver curiosidade em encontrar nossa personagem, pode preparar suas malas, porque o caminho é longo e cansativo. Ela vive em um pequeno vilarejo sem muitos atrativos, cujo nome ela diz com muito louvor: Quixelô (distante 35 quilômetros de Morada Nova - CE). A chegada - ou saída – de sua casa é de difícil acesso. São 140 quilômetros da Fortaleza e, como se não bastasse, você ainda enfrenta seis quilômetros de ‘piçarra’ até chegar na casinha de Marlene. A pequena casa é simples, feita de barro, tijolos e com chão de cimento. A pintura parece apagada pelo tempo.

Maria Marlene da Silva Sabóia, 60 anos, se casou com Oscar Sabóia da Silva, 77 anos. Pouco tempo depois, o primo de Oscar, que não tinha onde morar, juntou-se à moradia do casal. Oscar, ingênuo e despercebido, não imaginaria que seu primo, Francisco Sabóia (vulgo Minam), 78 anos, se envolveria com Marlene. Em meio a essa confusão, o boato já corria solto no sertão. Seria verdade ou não, que com dois homens uma mulher conseguiu se casar? Como se não bastasse morar com dois companheiros, “Dona Flor”, como é apelidada, arrumou um terceiro: José Eduardo Barbosa (vulgo Zé), 49 anos, moço jovem e trabalhador. Marlene não esconde de ninguém que Zé foi quem mais ela amou.

Quando cheguei à casa de Marlene, o carro chamou atenção de quem morava nas redonde-zas. Os moradores, acostumados com carroças, motos e bicicletas, ficaram todos atentos para ver quem vinha na direção da casa de Marlene. Fui ao encontro da nossa “Dona Flor do Sertão”. Receosa, sem saber, como diz o matuto, “se uma prosa ela iria abrir mão”. Como Marlene já me conhecia, não titubeou. Pegou-me pela mão e disse, sem pensar, “Pra você eu não vou negar entrevista não”. Fiquei lisonjeada de tanta estima. Marlene me conheceu ainda menina nos arredores

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do sertão. Ao entrar na casa de Marlene, parecia que estava voltando no tempo, pois ainda me lembro a última vez que estive no Sertão. A casa continuava a mesma que eu tinha visto há uns 10 anos . A porta, bem típica de interior, é daquelas de madeiras cortadas ao meio, em que você pode escolher abrir só a parte que preferir primeiro. Na sala, que tinha bancos de madeiras e couro, havia uma rede em cada armador. Uma coisa me chamou atenção: a televisão (coisa que não tinha antigamente). No entanto, na cozinha tinha o mesmo fogão à lenha. No fogo, uma panela com feijão. Ao lado do fogão, tinha algumas panelas que mais pareciam um espelho de tão bem la-vadas. Depois de toda essa emoção de retornar ao sertão, sentamos para conversar.

Um dedo de prosaFilme, fama e dinheiro? Essas foram as minhas curiosidades. Eu queria saber quanto realmente ela ganhou com o filme. Sem hesitar, Marlene me respondeu ‘no ato’ que tinha fechado um contrato com a direção do filme. Na ocasião, o diretor Andrucha Waddington pagou-lhe a quantia de R$ 40 mil, como havia lhe prometido.

- Pra mim o Andrucha não me faltou com nada. Ele disse ‘Marlene o que eu vou lhe prome-ter é só o dinheiro’. E isso não me faltou.

- Marlene, cadê esse dinheiro que nem a sua casa você reformou? - perguntei.

- Não sei. Só sei que foi tudo tão rápido que, quando eu pensei que tinha dinheiro, já não tinha nenhum tostão na mão.

Pergunto: O filme foi um sucesso e ganhou várias premiações, mas você assistiu ao filme?

- Aqui de vez enquanto o povo diz: ‘Marlene o teu filme passou na televisão’. Só que eu vou atrás de ver e nunca acho - diz ela, com bom humor.

No meio da entrevista, chega o Seu Oscar, que não me reconheceu. Todo valente, ele pensou que fosse alguém que trabalhasse na Televisão. Tomei um susto! Fui me identificando e o homem foi se acalmando e disse: “valha como tu cresceu”. Oscar estava usando uma bermuda velha, na altura do joelho. Toda rasgada. Na cintura, no lugar do cinto, tinha um barbante com um nó bem dado. Eu e ele conversamos um pouco. De cara, Oscar foi logo dizendo que “a televisão é um veneno”.

- Não sou doido minha ‘fia’. Eu só não faço é vender as minhas carnes na televisão - afirmou

Voltando à “prosa” com Marlene, queria

descontrair o ambiente. Pergunto ligeiramente: Como você conseguiu arrumar três maridos, se hoje está difícil até para arrumar um?

- Minha ‘fia’, juntando os meus três maridos, num dá pra fazer um que preste - brincou.

Mãe de sete filhos, um deles adotado, Mar-lene já não trabalha mais na roça. Ela vive de uma aposentadoria e da ajuda dos filhos. Em 1997, ela conta, com os olhos marejados que ficou doente e pensou em abandonar o Zé. “Procure um canto pra você morar, porque eu vou embora. Do jeito que eu tô doente talvez eu nem escape”, disse ela à Zé.

- Você tá ruim mesmo? - respondeu ele.- Tô - confirmou.“Fui me tratar em Fortaleza de um AVC (Aci-

dente Vascular Cerebral). Quando eu voltei, o Zé ainda tava em casa, aí perguntei: Zé tu ainda tá aqui?

- Tô, mas, vou embora – respondeu o marido.

- Então, vá embora! Se eu não morrer, quem sabe a gente se encontra ou você volta – concluiu Marlene.

José Barbosa, o marido mais jovem de Mar-lene, também foi embora e nunca mais voltou. Como no interior fofocar não é pecado (como dizem), Marlene ficou sabendo, por meio de boatos, que o Zé vivia muito magoado por não ter levado com ele o único filho que teve com Marlene. Já sobre Francisco Sabóia, o segundo ‘marido’ de Marlene, ela diz que não o tem visto mais, já não vivem mais debaixo do mesmo “teto”. Chico, como é conhecido na região, juntou os trapos na mão e foi morar com um filho, fruto do casamento com Marlene. Segundo ela, quando seu filho, conhecido como Cheiro, foi embora, Chico chegou e pediu: Comadre, eu posso ir morar com o Cheiro? A casa dele fica pertinho e você pode ir nos visitar, tá bom? Assim ele saiu, após obter resposta favorável de Marlene.

A história que mais parecia um romance lite-rário, hoje está sendo reescrita. A famosa “Dona Flor do Sertão” já não é mais aquela mulher fogosa de antigamente. Marlene continua vaidosa, sempre maquiada e com cabelos penteados.

A casa continua a mesma (onde tudo começou), já os maridos... Esses se distanciaram. Marlene continua morando com o seu fiel com-panheiro Oscar, que foi o primeiro marido. Apesar de “bruto”, Marlene diz que eles vão ficar juntos até o fim.

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RITUAL DA LUA: em busca de paz

Desde tempos remotos, a humanidade procura estar

em conexão com a natureza como um meio de saciar as necessidades da alma,

independente de religião ou crença. Assim surgem os mais

diversos rituais, estabelecendo um contato mais profundo com

os elementos místicos, como ocorre no Ritual da Lua Cheia.

Aqui no Ceará, essa celebração acontece todo mês e reúne

diferentes pessoas que buscam o mesmo objetivo: paz de espírito

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RITUAL DA LUA: em busca de paz· texto · aline pedrosa · fotos · gabriel gonçalves ·

Uma bela casa, mais precisamente um sítio. Pessoas reunidas em busca da paz interior. Em torno da vó Lua, do pai Fogo e com o pensa-mento na paz da Mãe Terra. No mundo corrido de hoje, é difícil termos tempo de apreciar as belezas que Deus nos deu. Mas naquele lugar existe algo diferente. Todos curvam as suas cabeças para trás e olham para a bela, lumi-nosa e poderosa Lua cheia. Assim é seu ritual, que acontece uma vez por mês no Portal Via Láctea, no município de Aquiraz.

O Portal da Lua Cheia, que teve início em 2000, tem como guia e responsável o xamã Fábio D’lazerda, 62. Ele tem traços fortes de um índio real e uma notável conexão com a natureza. “Um grupo de pessoas conectadas com o esoterismo vieram a esse espaço para um encontro solar e detectaram que aqui era uma fonte de luz. Um local onde era para ser trabalhada a cura, a harmonia e as energias. Nesse mesmo encontro, me designaram a ser o guardião do Portal”, explicou o xamã.

Os elogios ao trabalho espiritual e mental que Fábio faz são enormes. “Quando ele entra no meio da roda acontece algo mágico. Sempre com os seus tambores, passa uma energia de paz”, afirma a publicitária Alejandra Meneses, 22, que participa dos rituais há dois anos.

A palavra Xamã teve origem na tribo dos Tungs da Sibéria, mas denota práticas larga-mente difundidas em todo o planeta. Durante um rito místico, um visionário inspirado entra em transe profundo e, em nome da sociedade

à qual serve e com ajuda de espíritos pro-tetores, estabelece relações com as entidades espirituais.

“Na verdade todos nós temos o sangue indígena. O xamanismo não é propriedade de nenhuma cultura ou religião. Tenho sangue índio dos meus avós. Hoje o ser humano se preocupa muito em rótulos e com a negação das origens. A pessoa quando é conectada com os bens materiais, com o consumismo exagerado, ela esquece do ser superior e, portanto, do grande espírito. A celebração da Lua é para que as pessoas aprendam a se trabalhar durante esse período energético. É um momento de meditação para a invocação da deusa mãe, com seus atributos divinos de serenidade, amor e poder”, completa Fábio.

Um xamã tem a missão de conhecer a natureza humana, tanto na parte física quanto psíquica. O uso do tambor é outra marca forte. De acordo com Fábio é a forma que eles têm de chegar a mundos desconhecidos.

“Eu nasci em Fortaleza, mas a minha vida foi toda fora e quando chegou o momento retornei à minha origem. Morei um grande tempo em São Paulo, onde freqüentei no Ipiranga, o Centro Espírita dos Caminheiros. Quando me senti um pouco só, resolvi voltar. A espiritualidade existe em mim desde cri-ança, meus pais me levavam para os centros espíritas, e apesar de ter formação católica, porém, nunca desprezei as crenças. E ainda continuo fazendo o mesmo. O objetivo do

Espiritualidade

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Portal é respeitar todas as religiões. Quando Cristo veio ao mundo, ele não veio inaugurar igrejas, mas pregar o amor e a cura”, ensinou o xamã Fábio.

Um passeio nas vibraçõesO ritual tem início às 19h30. Em um primeiro momento, os visitantes participam de várias vivências corporais. Depois é formado um grande círculo para praticar os rituais de celebração, divulgando a prosperidade, a abundância e a auto-estima. Em seguida, os participantes queimam na fogueira sagrada os valores e sentimentos negativos que estão impedindo sua evolução, como mágoas, rancor, ódio, egoísmo e a falta de amor. Por último, todos participam de uma ceia mística, com as mais variadas frutas.

As direções Norte, Sul, Leste e o Oeste estão demarcadas também no Portal da Via Láctea. De acordo com Fábio, a direção Norte é a cor das pessoas brancas, representada por um búfalo e significa abundância e prosperidade. A direção Sul é a cor das pessoas vermelhas, representada pelo lobo e traz de volta a criança interior. O lado Leste é para as pessoas de cor amarela, representada pela águia dourada e leva a iluminação; por fim, a direção Oeste é a cor dos negros, representada pela vó ursa e mostra frutos pelo caminho.

A palavra “how” é repetida constantemente no ritual e significa “assim seja”, “amém”, ou mesmo uma saudação. O pio de uma coruja também é constantemente ouvido durante a cerimônia, denota de acordo com o xamã, o en-xergar na escuridão simbolizando a sabedoria.

Para a aposentada Carminha Miranda, 65, o que a leva a ir todos as noites de lua cheia a esse local é a fé. “Quando saio do portal me sinto renovada. Como se realmente eu fosse uma outra pessoa. Fico mais leve. Sou católica, vou à Igreja todo domingo mas não perco uma lua”, conta.

A advogada Rebecca Samantha, 24, afirmou que vai ao Portal da Via Láctea para buscar paz e tranqüilidade. “Procuro sempre pensar positivo, tanto em relação a mim como aos outros. Me sinto leve ao sair de lá, como se tudo tivesse ali-nhado. Como se todos fôssemos um só. A lua, na verdade, influencia em tudo na minha vida. No meu humor, no crescimento dos meus cabelos, das unhas, no meu esporte (body boarding), pois é ela quem determina o curso das marés”, comenta.

A jornalista Jussara Holanda, 25, frequenta o ritual pela força da lua. “Sempre gosto de ir a lu-gares onde as pessoas sabem que a lua está regendo aquele forte momento. O Portal também é um lugar onde posso fazer dinâmicas para a alma. Saio de lá, às vezes, pensando em mensagens subliminares que

Fraternidade entre os

participantes durante o ritual.

Momento em que se trocam

as boas energias emanadas

da Lua.

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recebo de pessoas que nem conheço”, conta. O maior ganho de fazer esse ritual, se-

gundo o xamã, é a satisfação de saber que está cumprindo o seu dever em prol do ser humano. Ele ainda afirma que ver o sorriso no rosto das pessoas ao término do trabalho, não tem preço. Não se cobra nada para ir ao Portal. Porém, o índio explicou que isso não significa que eles não precisem de ajuda. “É importante a espon-taneidade. O ser humano precisa aprender a dar, para que possa receber também. Todos nós temos que estar em contato com o nosso Cristo interno. Trabalhar o desapego de todas as formas, vaidade, bens materiais, ou seja, o ego negativo. Precisamos ter o coração amadurecido. É preciso que haja amor”, diz o xamã.

O xamanismo foi originado no período pale-olítico, tendo entre 40 e 50 mil anos de existência. Os homens primitivos deram início às práticas xa-mânicas e os indígenas americanos teriam preserva-do a cultura. Porém, a antropologia tem encontrado traços dessas práticas em todo o mundo e em diver-sas religiões. Os seguidores do xamanismo supõem que pinturas rupestres entre outras descobertas arqueológicas demonstram a existência de xamãs na pré-história e levam a crer que o xamanismo foi uma das primeiras religiões da humanidade. Entre suas características está o reconhecimento do divino em todos os elementos do universo como o sol, os planetas, as estrelas e a lua.

Na religião xamânica, é a lua que domina a Terra. Para seus praticantes, ela tem o poder de controlar as habilidades psíquicas, as marés e exerce influência sobre todos os seres vivos. Também tem capacidade energizante, tanto física quanto espiri-tualmente, o que possibilita efeito curativo, espe-cialmente nas mulheres, por simbolizar o feminino

em muitas culturas. A lua cheia é uma fusão das suas outras três fases. A ingestão de remédios naturais nesse período, potencializa o êxito do tratamento. Os relacionamentos, as preces e as orações também são beneficiados por esta lua.

“Em noites de lua cheia sinto que o cheiro no meu corpo aflora. Acho que é uma fase da sensu-alidade, amor e harmonia”, conta a dona de casa Fátima Feitosa, 40, que tinha ido ao Portal pela primeira vez e afirmou a vontade de retornar ao lugar de paz.

As outras fases da lua também trazem ensi-namentos importantes: a nova simboliza forças imperceptíveis que contribuem para atrair pros-peridade e para desintoxicação. Também significa a hora certa de plantar e semear. A crescente é o momento de investir, superar dificuldades e realizar mudanças. E a minguante é uma fase de encer-ramento de ciclos.

Fonte: www.xamanismo.com.br

O poder da lua cheia sobre nós

Portal da Via LácteaCE 040, Aquiraz. 100 metros após a ponte sobre o rio Jacundá (portão vermelho em frente à Aristel).(85) 3260. 1110.

SERVIÇO

O xamã Fábio D’Lazerda comanda o ritual do Portal da Via Láctea, afirma que a espiritualidade existe nele desde criança.

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O ser humano, ao buscar-se, procura no passado as raízes que configuram seu presente.

Essas raízes, muitas vezes, são representadas pela arte

e cultivadas por pessoas que preservam todo um arsenal

material e histórico em antiquários

Eles venceram

· texto e fotos · elisianne campos · hugo william ·

Arte e Beleza

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Saímos um pouco do nosso mundo habitual, onde tudo é passageiro e a efemeridade reina para ingressarmos num universo em que os personagens principais são as lembranças. Entrar no antiquário é como mergulhar num oceano de recordações íntimas e pessoais dos outros. Cada xícara, cada lustre, cada escultura ali presente parece um minúsculo fragmento da vida de alguém, exposto e compartilhado com os clientes e visitantes. Os objetos carregam uma longa história para contar; recordações do tempo impregnadas em cada peça.

Fomos recebidos por Heriberto Rebouças, 59, proprietário do HR Antiqves (do latim, an-tigüidades), antiquário que existe desde 1994 em Fortaleza. As paredes de seu escritório são cobertas por telas de pinturas e relógios-cucos e de pêndulo. Ele se senta atrás de uma mesa de jacarandá repleta de livros, catálogos de antigüidades e papéis, onde há um abajur em mosaico. À sua frente, nós, sentados, e uma espécie de escrivaninha de cedro às nossas cos-tas. Ao lado, duas telas em um cavalete; uma inacabada e outra já pronta, mas visivelmente envelhecida.

Iniciamos nossa conversa. Heriberto diz que, quando entrou para o ramo de antiquários, só havia sete pessoas, em todo o Estado, que trabalhavam com esse tipo de negócio. Se-gundo ele, o Ceará não tem força no mercado de antigüidades por não ter sido um Estado de intenso “ciclo de riquezas”, como os gerados pelo cultivo da cana-de-açúcar em Pernambuco e do cacau na Bahia. É a mesma opinião de Cantídio Brasil e Rodrigo Damasceno, propri-etários do Antiquário Brasil, que existe há três anos em Fortaleza.

As peças comercializadas no Ceará são adquiridas de vários mercados diferentes. “Há peças que vêm do Rio de Janeiro, de São Paulo, Bahia, Recife e da Europa, que é o grande centro mundial de origem e catalogação de antigüi-dades. Compramos de várias pessoas, também de outros antiquários”, diz Heriberto. No an-tiquário de Cantídio e Rodrigo, além das peças adquiridas em outros Estados, principalmente Pernambuco, também há objetos provenientes do interior do Ceará, especificamente Aracati. Segundo eles, como essa já foi a capital do Ceará, seus moradores tinham maior poder aquisitivo e puderam até importar móveis da Europa. Foi o caso de uma família que vendeu

A sofisticação e delicadeza das

peças vendidas em antiquários como

no HR Antiqves.

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ao Antiquário Brasil uma penteadeira inglesa do século XVIII, exposta na loja.

Segundo Rodrigo, já foi mais difícil conse-guir produtos para colocar à venda. Quando o Antiquário Brasil foi inaugurado, era preciso pôr anúncios nos jornais para encontrar pessoas que estivessem dispostas a vender as antigüidades que tinham em casa. “Hoje, são elas que nos procuram; encontram nosso telefone, ou o endereço do nosso site, e entram em contato conosco para oferecer as peças”.

Mas o que pode ser chamado de antigüi-dade? Heriberto nos diz que o princípio comu-mente adotado pelos antiquários brasileiros é a idade da peça. Se tiver mais de cem anos de fabricação, um objeto já pode ser consi-derado antigo. Ele diz que, na Europa, porém, a quantidade de anos é bem maior. Lá, só é considerada antigüidade uma peça fabricada até o século XVII.

Para Cantídio, existem diferenças consi-deráveis entre peças ditas antigas e velhas. Segundo ele, um objeto antigo é aquele que foi fabricado com materiais de excelente qualidade e tem características de estilos específicos, como o Barroco e o Colonial. Ao contrário do objeto velho que não tem estilo definido e foi fabricado com materiais de qualidade inferior.

Ao contrário do que muitos podem pensar, não há um perfil definido do consumidor desse mercado. É o que diz Heriberto, que ressalta a diversidade de sua clientela: “Há desde clientes jovens e velhos, amantes de antiguidades, aos que compram as peças por indicação de decoradores, que sugerem aliar peças antigas a ambientes de decoração contemporânea”. Se-gundo Rodrigo, é comum as pessoas procurarem os antiquários depois de virem, expostas, peças antigas nos cenários de telenovelas. “Agora essa atitude virou moda. As pessoas veem, na TV, ambientes decorados com peças antigas e querem imitar”.

Quanto custa seguir essa moda? Heriberto afirma que, em se tratando de mercado de antiguidades, os custos são muito relativos. O valor depende da idade da peça, da matéria-prima utilizada em sua fabricação, do estado de conservação e, sobretudo, do nível de raridade da peça. Ele prefere evitar comentários sobre os preços dos objetos, já que, segundo ele, “discutir valores monetários acaba passando a imagem da antigüidade como algo caro e ina-

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cessível. Mas não é”. Segundo Rodrigo, porém, a escassez de antigüidades no Ceará e os altos custos para transportá-las para cá são fatores que fazem com que as peças tenham, e muito, seu valor elevado. “O preço acaba ficando alto mesmo. Os valores já são mais baixos em Estados como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo. Lá se encontram ruas e ruas inteiras de antiquários. A farta disponibilidade faz os preços caírem”, revela.

Peças restauradasDepois de um processo de restauração, uma peça pode retomar sua aparência original, mas corre o risco de se descaracterizar com-pletamente. O resultado depende de como o restauro é feito. Se durante o trabalho a peça tiver alguma particularidade modificada, já não é mais a peça original de antes. Segundo Heriberto, isso se exemplifica através de uma pintura: se no decorrer da restauração a tela for alterada de alguma forma, já se tira o “dedo” de quem a fez. Ele diz que é comum ouvir de alguns fregueses: “seria bom raspar o móvel e tirar essa camada grossa e velha”. Um móvel raspado, segundo ele, perde o tempo que carregava consigo e, portanto, a aura e a originalidade que possuía. Para Ro-drigo, o problema com as restaurações está, muitas vezes, na “ignorância” dos fregueses. Ele diz que muitos chegam em seu antiquário com móveis antigos, porém modificados por meio- de processos como a pá-tina*. “É um verdadeiro estrago o que acabam fazendo. As pessoas desconhecem o valor das peças que têm em casa. Fazem barbaridades com elas, entregam na mão de marceneiros despreparados para a tarefa”.

Sobre o descuido com peças antigas, Rodri-go e Cantídio nos contam um episódio ocorrido, certa vez, durante o restauro de uma imagem sacra: “o tal ‘restaurador’ simplesmente pintou a imagem com tintas inadequadas e com cores horríveis. Descaracterizou quase que totalmente uma peça tão preciosa. Ainda bem que não pintou os olhos de vidro, que é onde está o maior valor da peça”. Segundo ele, só existem dois restauradores que executam trabalhos de qualidade no Ceará. E eles estão desaparecendo, já que poucos se preocupam em transmitir seus conhecimentos a outras pessoas.

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Talvez um dos mais valiosos produtos co-mercializados pelo mercado de antigüidades seja a confiança. Segundo Heriberto, os antiquários lidam, basicamente, com credibilidade. Porém, ele reconhece que existem falsificadores e que eles vivem de enganar os inexperientes no as-sunto. Heriberto afirma que “sempre há quem queira vender gato por lebre. Mas, geralmente, quem conhece e está acostumado a lidar – seja comprando, seja vendendo – com peças anti-gas reconhece, de longe, uma falsificação. Há quem reconheça se uma peça é autêntica com um simples toque.” Segundo ele, há lojas que comercializam réplicas; mas elas deixam o con-sumidor ciente de que são cópias (vide box).

Rodrigo acredita que um falsificador é indigno de ser chamado de antiquário. “Nosso ramo é muito sério. Antiquários de verdade não lidam com falsificações. Aqui no Ceará, como somos poucos, nós nos conhecemos bem e trabalhamos em parceria à base de confiança”. Ele diz desconhecer falsificações no mercado cearense, mas alerta que existe um “mercado negro de tráfico de objetos antigos”: “existem carroceiros que vendem objetos antigos furtados de casas e até de cemitérios”.

Aos inexperientes nesse mercado, He-riberto recomenda cautela: “evite comprar peças antigas pela Internet. Prefira ter contato com o produto, analisar seu es-tado de conservação e características pes-soalmente. Compre de um vendedor que você conheça e no qual confie”. Cantídio e Rodrigo dão algumas dicas para reconhe-cer se um objeto é falso ou não: “preste atenção à elegância do objeto. Analise se o material é de qualidade, se não tem defeitos, ou se eles não foram ‘fabricados’. No caso dos móveis, observe a qualidade da madeira, o peso e o verniz. Se houver falhas e se o móvel não for pesado como deve ser, não compre”.

Como não ser enganado Bandeja de faiança: bandeja com alças e suporte metálicos e fundo feito de louça de barro vidrado. Geralmente pintada com motivos florais ou geométricos. O nome faiança tem origem na cidade italiana de Faenza, importante produtora européia de porcelana entre os séculos XV e XVI. Compoteira: recipiente para doces em calda. De diversos formatos e estilos, as peças antigas são vendidas por antiquários. Pátina: é uma palavra que vem do italiano e significa “tinta sobre tinta”. É uma técnica de pintura que pode ser aplicada em paredes ou móveis de madeira. Neste caso, porém, o móvel deve ser totalmente lixado. Prato borrão: tipo de prato de porcelana, comumente fabricado na Inglaterra e em outros países europeus. Na tentativa de imitar a técnica chinesa de impressão de figuras coloridas (especialmente em tons azuis) na porcelana branca, os ingleses fizeram vários experimentos. Essa porcelana com aspecto de borrada era vendida como refugos em países subdesenvolvidos, como os da América do Sul, a baixos preços. Hoje, são colecionadas como antiguidades, vastamente utilizadas como objetos de decoração.

GLOSSÁRIO

Heriberto Rebouças em

seu ambiente de trabalho. Detalhe

para sua mesa de jacarandá

e catálogos antigos.

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O circo é uma expressão cultural que resiste ao tempo e ganha cada vez mais adeptos, seja em busca de aventuras ou de um futuro melhor. Em Fortaleza, o espetáculo circense invade as vias públicas, encantando a todos que transitam nelas, e instala seus picadeiros em comunidades periféricas, preenchendo de forma lúdica a rotina dos jovens e desenvolvendo suas aptidões artísticas

· texto · monique linhares · katryne rabelo · tamires santos ·· fotos · marcelo andrade ·

Nas avenidas movimentadas de Fortaleza, observam-se rostos alegres por trás de objetos coloridos. Movimentos ágeis e acrobáticos dis-putam com o tempo cronometrado dos semá-foros. São artistas que fazem da rua um picadeiro, contrastando sua arte com o cotidiano corrido de uma grande cidade como Fortaleza.

Exatamente nesse ambiente castigado, efêmero e necessário de nosso dia a dia, a arte quer se manifestar. Procura-nos ensinar a enxergar com olhos interessados, conscientes e pacientes a cidade que nos cerca, interagindo com ela. Para os malabaristas de rua, essa inte-ração se deu ambientada nas ruas da metrópole,

ao encontrar na arte seu sustento, aprendizado e sua satisfação. Desfrutam de uma liberdade incomum no trabalho e no modo como levam a vida. Eles fazem da diversão instrumento de sua labuta e, da divulgação desta, um modo de sobrevivência financeira.

“Somos uma solução para os problemas sócio-econômicos de hoje, porque estamos fora do desemprego, da delinqüência e estamos dentro da lição de um caminho”. Assim Walter Roy defende seu trabalho, argentino de 33 anos, como um malabarista que se achou e se formou na rua, através da arte mambembe. Ele é um dos muitos estrangeiros que passam por

Diversão que liberta

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Fortaleza e pela maioria das capitais brasileiras, sem trupe nem picadeiros certos. São viajantes, personagens independentes e importantes do circo, mas que não seguem a tradição do circo familiar.

Espírito cigano, o artista circense aprende as técnicas, dá adeus à família e à terra de origem para ganhar o mundo. “O mundo é nosso. Nosso trabalho não tem bandeira, nem nacionalidade”, gaba-se Walter. Seu amigo, conhecido em São Paulo, Hugo Sebastian – só Sebastian, por favor! – fez escola de circo, tam-bém na Argentina, sua origem. Os dois estão no Brasil há cinco anos, percorrendo as principais cidades do país. A vivência nas estradas foi determinante para que Sebastian não fincasse raízes na sua terra. “Meu pai era artesão, eu já viajava com ele – pelos países latino-americanos –. Aí a Argentina ficou pequena”.

Nas ruas, onde passam maior parte do tempo – o quarto alugado só serve para de-sabar depois do dia exaustivo –, eles vivem o ritmo apressado do trânsito, escolhendo estra-tegicamente as horas de pico. “Para as pessoas conhecerem nosso trabalho precisaríamos de marketing, de divulgadores, então trabalhando na rua facilita tudo isso”, explica Sebastian. Sua sobrevivência depende da quantia que con-segue diariamente, em média vinte e cinco reais, e das apresentações extras em eventos, festas e propagandas, através de contatos conseguidos com “seu marketing”.

Vícios e sonhosA rua, além de ser local de trabalho para

alguns malabaristas e espaço de ir e vir para a população, também é palco de meninos e meninas que se arriscam a fazer de tudo para chamar atenção e ganhar alguns trocados. Exemplo dessa situação são os jovens que tentam imitar os malabaristas estrangeiros. “Tem muita criança na rua que sonha em fazer o que nós fazemos, e elas nos olham como se dissessem :‘se esse cara tá fazendo isso eu também posso’ e aí se anima a fazer”, observa Walter. Ele se preocupa com a situação dos meninos de rua, que por falta de responsáveis e de desafetos na vida, são engolidos pelas brechas da sociedade, vivendo na marginalidade, ao invés de serem o centro das atenções.

Tentando contornar essa situação de risco em que muitos jovens se encontram em For-taleza, entidades públicas e sociedade civil organizadas buscam soluções para resolver o problema. Encontraram, há dezessete anos, a arte circense como instrumento de educação e firmação do jovem em seu bairro e com sua família. Em 1991 foi criado, pelo Governo do Estado do Ceará, o projeto Circo Escola, cujas lonas foram montadas nos bairros Bom Jardim e Conjunto Palmeiras.

Dentro da lona São espaços de vivências e aprendizados

lúdicos, através de técnicas do circo e do tea-tro, direcionadas para jovens de sete a dezes-sete anos. Com o intuito de assegurá-los no bairro de origem, o tempo é preenchido com as atividades diárias do circo, além da presença na escola, que é um pré-requisito para os jovens do projeto.

Desde o surgimento, muitos jovens que começaram aprendizes são agora educadores, como os palhaços Xilito, 23 anos, e Pancinha, 30, do Circo Escola Respeitável Turma, do Con-junto Palmeiras. Eram as crianças George Vieira e Francisco dos Anjos, quando a arte circense os encantou e os leva até hoje como seus seguidores e disseminadores para os jovens da comunidade. Esse tempo foi suficiente para agregar valores às técnicas da arte, como a do equilíbrio, ensinada por Francisco aos alunos “não faça esse exercício só aqui na arte circense, mas que você possa ter um equilíbrio na sua vida, com sua família, vizinhos... se você desequilibrar você cai”.

Palhacinhos profissionais. Meninos que

paraticipam do projeto Circo

Escola em apresentação.

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Diversão livre“Vício” para os praticantes, e “encantamento”

para os amantes dos malabares, são algumas das palavras-chave que definem o Encontro Cearense de Malabares que ocorre quinzenalmente, aos sábados, na praça do Dragão do Mar. O encontro reúne gru-pos de malabaristas e pessoas envolvidas com a arte circense na capital, e permite a participação gratuita de qualquer visitante.

Parte de uma parceria entre o Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura e a Companhia Plu-ral de Artes Cênicas, os encontros acontecem desde março de 2007 e são dirigidos por Tonico Lacerda, artista, jornalista, bacharel em Direito e realizador de diversas atividades ligadas a arte. Há também grupos de circo convidados para atrair os passantes, como o Lúmini, que trabalha com malabarismo de fogo.

Para ele o objetivo do encontro é partilhar técnicas e instrumentos artísticos para quem quiser participar, pois isso ajuda a desmitificar a visão sobre os malabaristas como pedintes na rua.

Com diversão e aprendizado, a exploração artística realizada nos encontros estimula o desen-volvimento corporal e espiritual, característico da arte circense. Participe!

Encontros: quinzenalmente, aos sábadosLocal: Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura, próximo a praça do Planetário.Horário: 17h às 21www.teatroplural.blogspot.com

SERVIÇO

O Respeitável Turma abriga, trimestralmente, cerca de mil jovens dos arredores do circo em sua lona, e além do financiamento do Governo através de editais. Também conta com parce-rias do próprio bairro, como a Associação dos Moradores do Conjunto Palmeiras, conhecida como Banco Palmas e seu sistema de economia solidária que deu visibilidade ao bairro.

A trupe do Respeitável Turma ilumina, tam-bém, diversos festivais de arte, teatros e praças do Ceará, ao longo dos anos de atividade. O resultado disso são as transformações que se desenrolam no cotidiano da população, pelo reconhecimento dos moradores da importância social e cultural que os jovens têm na comu-nidade. Eles representam a si mesmos, como pessoas que merecem atenção e incentivo dos aplausos, para proporcionar alegria e beleza ao espetáculo do dia a dia.

A arte circense então, apresenta-se como uma escolha que os malabaristas fazem, se empenham nela e vivem da expressão livre da arte. Em outro patamar, mas dividindo o mesmo espaço, estão crianças e adolescentes que ainda mal decidem sobre suas vidas e lutam para sobreviver com migalhas, tentando suprir vazios encontrados em casa, na escola e nas perspectivas gerais do mundo que as cerca.

O circo é uma escola tanto para pessoas, como os argentinos Walter Roy e Hugo Sebastian , que buscam no malabarismo um modo aventureiro e alternativo de viver quanto para inúmeras cri-anças que enxergam na arte circense uma nova perspectiva de vida e um meio de socialização e expressão artística. A magia dos picadeiros vai além do olhar, pois nos convida a sentir e pensar em um mundo mais lúdico, atraente, prazeroso, expressivo e humanizado.

Integrante do grupo de malabarismo Lúmini em show no Centro Cultural Dragão do Mar, durante o Encontro Cearense de Malabares.

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Falar de fotografia para mim é um assunto um tanto complicado. Sim, pois tentarmos explicar o que tal imagem representa ou o que ela diz são aspectos que facilmente caem em contradição. Obviamente que fazemos juízos de gosto diante de praticamente tudo que nos rodeia – a fotografia, como uma arte, não estaria de fora. Assim, não pretendo aqui tentar traduzir em palavras as imagens desse ensaio, deixo essa parte com vocês. O que posso dizer é que o ensaio que segue foi construído a partir de uma coletânia de fotografias que produzi nas mais diferentes ocasiões da minha vida. Assumo que dentre elas, muitas são bastante pessoais. Decidi, então, transformá-las num mosaico de possibilidades. Possibilidades de vontades, de sonhos, de ternuras, de amores, de leveza... Possibilidades para o que você quiser.

· ensaio e texto · patrícia araujo ·

ensa

io

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Enquanto algumas pessoas se apegam ao materialismo, a vida hippie possibilita, aos adeptos, buscar novas alternativas para sobreviver. Os hippies pregam a filosofia de que não precisam de muito para estar no mundo, já que a qualidade de vida e a paz individual suprem as necessidades humanas

· texto e fotos · jordânia tarelov ·

Vida

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Larissa Gomes, 23 anos, uma jovem natural de Sorocaba, interior de São Paulo, conheceu seu namorado Alessandro Ribeiro, 29 anos, em uma de suas andanças pelo Brasil. Alessandro trabalhava em uma multinacional em Flori-anópolis. Hoje os dois sobrevivem da venda de artesanato. Reginaldo Anichor, 53 anos, filho de pai militar e mãe colombiana, vende artesanato na Ponte Metálica.

O que essas pessoas têm em comum? O fato de terem optado por uma vida alternativa. Elas perceberam que não precisam consumir muito para serem felizes. Parecem saídos dos anos 1960, mas são os hippies que ainda existem no século XXI.

Andando pelo calçadão da Praia de Iracema encontrei, no meio de tanta gente fazendo caminhada, um casal jovem que andava em passos mais lentos, carregando uma cesta cheia de objetos artesanais. A garota tinha cabelo cacheado e pele bronzeada, usava uma saia indiana; o rapaz era loiro e alto, tinha dreads no cabelo (penteado afro feito com cera de abelha) e usava uma bermuda de surfista.

Resolvi perguntar o nome dos dois:

-Meu nome é Larissa e o dele é Alessan-dro...

Paramos distante da feirinha de artesanato que fica na avenida Beira Mar, porque os hip-pies não podem ficar ali, diferente dos “locais” (como eles chamam os artesãos cearenses) que têm suas barraquinhas marcadas e pagam impostos.

Larissa Gomes e Alessandro Ribeiro são hippies e namoram há 4 anos. Ela conta que deixou a casa de sua mãe a convite de um amigo e quando percebeu já estava na “estrada”. Ga-rota sorridente e muito comunicativa diz que é feliz com seu estilo de vida e que isso foi uma escolha. “Eu e o Alessandro poderíamos ter feito qualquer coisa da vida, eu estudei até o segundo grau e Alessandro trabalhou em uma multinacional durante seis anos, estamos nessa vida por opção”, diz.

Alessandro também é muito comunicativo. Ape-sar de já ter morado em todos os lugares do Brasil, ainda carrega um pouco do sotaque de Santa Cata-rina. Conta que trabalhou durante 6 anos na Philip Morris International (uma das maiores empresas de tabaco do mundo, dona da marca Marlboro).

Larissa Gomes, 23 anos, e Alessandro Ribeiro, 29, namoram há 4 anos e adotaram o modo hippie como filosofia de vida.

Liberdade

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52 NOVEMBRO 2008

Reginaldo Anichor: Ponte Metálica

como escritório, pedras como

bancos.

“Aquilo era uma loucura! Eu era operador de máquina, ela produzia mais de 30 embala-gens por minuto, controlava tudo aquilo, quali-dade, produção, tempo, ainda hoje eu acordo meio assustado, achando que estou lá”, diz.

Alessandro precisou viajar para Indonésia para se aperfeiçoar na função de operador, mas afirma que aquele não era seu ideal de vida, “tudo era muito repetitivo, eu mesmo já tinha virado uma máquina”.

De volta para o Brasil pediu demissão e decidiu se mudar para Florianópolis, seu sonho sempre foi morar no litoral. Chegando lá, trabalhou em uma empresa de segurança eletrônica, que o aceitou por ter um currículo muito bom. “Nós instalávamos câmeras dentro das penitenciárias, era um clima muito tenso”, diz Alessandro.

Nessa época, fez amizade com um hip-pie, a quem Alessandro ajudava a vender seu artesanato nos fins de semana. Logo foi se interessando por esse estilo de vida. Um ano depois ele conheceu Larissa, e ambos decidiram colocar a mochila nas costas e viajar, como fazia seu amigo.

AndançaReginaldo Anichor estava na Ponte Metálica, ponto turístico de Fortaleza. Já era noite quando ele e mais dois amigos estenderam os mos-truários cheios de pulseiras feitas à mão. Decidi parar e explicar que estava fazendo uma matéria em busca do conceito de vida alternativa.

-Oi, posso conversar com você? Estou es-crevendo uma matéria sobre...

- Não! Vocês gostam de colocar mentiras, daqui a pouco a polícia tá aqui dizendo que tudo isso aqui é roubado!

- Não, não é isso, me comprometo a trazer a revista pra você ver depois, quero escrever sobre seu estilo de vida.

Reginaldo se animou e me convidou para sentar, “passa pra esse lado que aqui é meu escritório, puxa uma pedra pra sentar que esse ai é meu banco” disse ele rindo.

Homem com um jeito malandro de falar, nasceu na Colômbia, mas foi criado em Ma-naus. Sua mãe era uma camponesa e fazia artesanato; seu pai um militar rígido que tentou criar os filhos dentro de regras, algo que Regi-naldo parecia não apreciar muito. “Ele era meio rígido, sistemático pra ‘caramba’, sabe como é,

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militar...”, comenta. Decidiu então sair de casa, aprendeu com a mãe o artesanato que ainda hoje é seu meio de sobrevivência.

Já conheceu todo o Brasil, viajou muito de carona e até mesmo a pé. A cidade que mais gostou foi o Rio de Janeiro. Também já morou fora do Brasil, passou um ano na Suíça.“Eu ‘co-lei’ com uma suíça que foi estudar zootecnia lá, acho que aprendi mais do que ela, eu aprendi na prática e ela aprendeu por livro”, diz.

Atualmente Reginaldo tem moradia fixa na cidade de Fortaleza, diferente de muitos outros hippies que vivem com seus filhos pelas rodovias do país. Ele acredita que as crianças precisam estudar.

Alessandro e Larissa querem que seus filhos tenham o seu estilo de vida, mas concordam que um dia terão de estabelecer residência fixa. Os dois têm planos de futuramente comprar um terreno em Jijoca, cidade que fica a 23 quilômetros de Jericoacoara.

Vida de hippie não é fácil“Optar por viver à margem do sistema não é fácil. Cada dia é algo novo, tem que ter muito amor a essa vida, porque a gente passa por muitos ‘perrengues’”, diz Larissa Gomes.

Antigamente era possível ver barracas de camping atrás da Ponte Metálica, o número de hippies também era maior, atualmente muita coisa mudou. Eles reclamam da falta de se-gurança dos dias de hoje.

“Antes podíamos andar com uma barraca pra acampar e ficar em qualquer lugar, hoje isso não é mais possível, temos que ter sempre um dinheiro guardado para alugar um quartinho pra dormir”, diz Larissa. Ela e Alessandro estavam em um quitinete antigo que fica no início da praia da Iracema.

Outro problema também comentado por Reginaldo se encontra nas estradas, “hoje em dia não é muito fácil conseguir carona nos pos-tos de gasolina, os caminhoneiros têm medo de serem assaltados, porque muitos que não são do verdadeiro movimento fazem isso”.

Apesar das dificuldades da vida de hippie eles dizem gostar desse estilo: “todo dia vivemos uma coisa nova, conhecemos pessoas diferentes, não sabemos ao certo o que vai acontecer amanhã”, explica Reginaldo.

Essa vida possibilitou a eles buscarem alter-nativas para sobreviver. Segundo Alessandro, os

hippies em geral pregam a filosofia de que não precisam de muito para viver e que a qualidade de vida e paz interior suprem muito das neces-sidades humanas.

Reginaldo viveu uma época difícil, época da ditadura militar, quando eram proibidos os movimentos de contra cultura, mas tem felicidade em dizer que fez história, “somos revolucionários passamos pela ditadura, de 64 pra cá foi muita onda, os policiais pegavam nosso “trampo”, cortavam nossos cabelos, o nosso artesanato é feito a mão para não pagar imposto”, afirma.

Desapego material é algo muito presente na filosofia hippie, para Larissa isso não é ruim, é uma escolha, ruim é o desapego sentimental. Se-gundo ela, “a gente conhece muitas pessoas boas de coração, que nos acolhem, fazemos muitas amizades, a gente parte e eles ficam”.

O artesão Alessandro apresentando sua “arte”. A venda do artesanato é seu sustento e de sua namorada.

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PRATIQUE

Exercitar o corpo passou a ir além da busca por perda de peso ou ganho de massa muscular. Os fortalezenses escolhem as assessorias esportivas para ter o essencial: longevidade e bem-estar físico e mental, encontrados por meio do treino em grupo, adaptados aos horários e condições físicas de cada assessorado.

qualidade de vida

· texto · greyce feijão · raissa karen · fotos · ronaldo pinto ·

bem estar

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Qualidade de vida é algo imprescindível que pode ser conquistada pela prática de atividades físicas, certo? Até aqui nada de novo. Mas o que muita gente não sabe é que podemos alcançá-la de forma prazerosa e aumentando o ciclo de amizades, por intermédio de assessorias esportivas que ganham cada vez mais adeptos no mercado fortalezense.

As primeiras assessorias esportivas surgi-ram há quatro anos, mas só agora as empresas consolidam o serviço, que ainda é considerado uma novidade na capital cearense. “Comecei prestando serviços às empresas, e as pessoas foram me procurando para que eu desse um suporte [individual]”, conta Kelen Sena, pro-prietária da Chronosteam Assessoria Esportiva, empresa atuante no mercado há dois anos.

O diferencial de uma assessoria esportiva é o treinamento em grupo, mas individualizado. Realizados por planilhas elaboradas de acordo com os objetivos e condições físicas de cada um. Os treinamentos respeitam os limites e a disponibilidade de tempo de seus atletas. A prática de esportes e atividades físicas é ori-entada a partir de uma equipe de educadores físicos, médicos do esporte, fisioterapeutas, ortopedistas e nutricionistas.

Além do trabalho diferenciado com a logís-tica para treinos e competições, as assessorias oferecem uniformes, organização de eventos, serviço de personal trainner, palestras e infor-mações por meio de seus sites.

Em modalidades como corrida e cami-

nhada, as mais procuradas pelos fortalezenses, as assessorias oferecem suporte antes, durante e depois da prática, como um alongamento ao início e término do treino e pontos de apoio com água e auxílio em eventuais dificuldades. As atividades são praticadas em vários pontos de Fortaleza, entre eles a Avenida Beira Mar, o local preferido dos clientes.

“Me tornei um assessorado buscando uma maior qualidade de vida no esporte. Mas, hoje, encontro muito mais que a prática [de atividades físicas] e o resultado visto no corpo [obtidos com os exercícios], encontro motivação e disposição”, declara Áureo Luiz, 33, assesso-rado há seis meses na prática de corrida.

Como ser assessoradoPara se tornar um assessorado, “o único re-quisito é estar com uma avaliação física em dia”, alerta Adriana Genioli, proprietária da AG Assessoria Esportiva. A avaliação física pode ser feita por um médico do esporte, com o objetivo de avaliar o condicionamento. “Uma avaliação determina se você está acima da média, dentro ou abaixo, em termos de resistência. Generi-camente falando, permite que eu programe o exercício com exatidão”, define Marcos Steroz-berg, médico do esporte.

As assessorias disponibilizam, além do trei-no individual, planos empresariais, oferecendo a possibilidade de orientar grupos especiais de funcionários que praticam atividade física ou que desejam iniciar a prática.

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De fumante a ATLETAAssessorado há um ano pela Chronosteam Asses-soria Esportiva, Augusto de Almeida (35) conta, com entusiasmo e satisfação, a importância de uma assessoria esportiva no seu dia-a-dia e na luta contra o vício do fumo.

“Vai fazer quatro anos que eu parei de fumar. Desde essa época eu procurei um esporte. Comprei prancha de surf, bicicleta... e nada eu levava pra frente. Até que um dia eu resolvi começar a correr na beira-mar [Av. Beira Mar]. Fui atrás da ajuda de uma assessoria esportiva. Vai fazer 1 ano que eu sou assessorado, e espero ficar mais uns 10! Mudou a minha vida!

O diferencial é a motivação para o atleta, dada pela professora [Kelen Sena]. A planilha [planilha de exercícios adequada com o condicionamento físico do assessorado, feita pela assessoria] passada men-salmente, o acompanhamento que ela [professora] tem e os diversos treinos”.

Treinando com amigos“Sou uma outra pessoa, me deu uma outra qualidade de vida, além de outra turma [amizades adquiridas durante os treinos em grupo]. Como tem muitos alunos, você se encontra num grupo. A turma virou uma família. A gente sai pra jantar. Depois do treino vamos tomar café da manhã.

Vou [aos treinos] todo dia. Treino nas tapiocas [Tapioqueiras, na CE-040), na praia do futuro, na areia, no mar, na piscina [risadas].

Sabe aquela coisa que você se arrepia? Caramba, há um ano atrás eu não conseguia correr 2km e hoje estou terminando agora 16! Fora que eu já perdi 8kg! Eu senti a necessidade de procurar uma alimentação mais graduada, a assessoria me indicou uma nutricionista, e eu tive perda de peso e mais desenvolvimento no esporte. É muito legal, é outra qualidade de vida”.

Sou uma outra pessoa, me deu uma outra qualidade de vida, além de outra

turma. Como tem muitos alunos, você se encontra num grupo. A turma virou uma família. A gente sai pra jantar. Depois do

treino vamos tomar café da manhã

AG Assessoria EsportivaFone: (85) 8841 2772Site: www.agassessoriaesportiva.com

Chronosteam Assessoria EsportivaAv. Monsenhor Tabosa, n° 1400. Loja 10 -Meireles - Fortaleza / CeFone: (85) 3248 0816 - 9178 3839Site: www.chronosteam.com.br

Stark Assessoria EsportivaR. Desembargador Leite Albuquerque 1100lj 01 - Aldeota - Fortaleza / CeFone: (85) 3249 3501 - 8867 8275Site: www.starkonline.com.br

Augusto de Almeida, assessorado

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Todo mundo busca por soluções simples e rápidas para resolver seus problemas, e assim encontrar sua realização profissional e a tão sonhada felicidade. Para isso, surgiram os estudos e a prática da Programação Neurolinguística (PNL), com a proposta de que os objetivos das pessoas sejam alcançados em pouco tempo, apenas com o controle da mente.

Programe seu

SUCESSO“Por favor, ponha sua mão na testa. Agora encosta o teu cotovelo no joelho e olha para o chão. E pensa na tua vida olhando, em silêncio, então respira fundo, trinca os dentes, franze a testa e começa a pensar na tua vida, teus sonhos, te deixa levar pelos teus pensamentos. Agora pergunta como está tua vida... Agora vamos fazer o contrário: eleva o ombro, põe um sorriso no rosto, levanta e grita Hu!Hu!Hu!”

Esta sessão aconteceu durante a entrevista que nós fizemos com o analista e Practitioneer & Master em Programação Neurolinguística, Paulo

Vieira. Segundo ele, a Programação Neurolin-guística (PNL) é uma nova ciência: “a ciência do desempenho, da auto-performance humana. É a maneira como a mente trabalha. É como o indivíduo pode programar a sua mente através da sua linguagem”. Por que alguém tem que continuar a ser a pessoa que sempre foi, se pode ser uma pessoa muito melhor? É com este tipo de pergunta que a PNL se preocupa, já que seus “programadores” se propõem a trabalhar na modificação de sentimentos, comportamentos e de pensamentos.

· texto · jéssica carvalho · rafael cartaxo · fotos · raphael villar ·

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No início da década de 1970, dois cientistas norte-americanos, Richard Bandler, estudante de Matemática, e John Grinder, professor ad-junto de Linguística, começaram a pesquisar como funcionavam as pessoas consideradas “excelentes”, que tinham êxito em suas vidas, capacidade de tomar decisões e habilidade para se comunicar. Procuraram ensinar os mesmos padrões de pensamento a outras pes-soas e descobriram que era possível copiar as estratégias dos vencedores e alcançar o mesmo sucesso. Técnicas matemáticas e linguísticas foram desenvolvidas para a fundamentação da PNL.

Corpo, mente e palavraPaulo Vieira explica que a PNL não pode ser considerada uma terapia. Ela precisa ser entendida como um conjunto de ferramentas neurais de programação neural, que ocorre por meio de todas as linguagens, como um aprendizado. “A nossa mente funciona como um computador, nós podemos reprogramá-la a todo instante. Cada um de nós já tem uma programação desde que nascemos, e isso determina quem eu vou ser, se eu serei rico, se eu vou ser traído, se serei feliz, se eu vou ser próspero, mas isso pode mudar a partir do momento que você decide ser uma pessoa melhor”, afirma. O primeiro passo é estabelecer objetivos. Segundo Vieira, a PNL ajuda nisso ao

realizar uma comunicação entre corpo, mente e palavra.

O analista diz que trata de muitos casos so-mente por meio da PNL, desde doenças graves até casos de sucessos empresariais. Ele afirma que é capaz de curar pessoas que estejam com sérios problemas de saúde, pois, segundo ele, o fato de nós termos ou não uma determinada doença está ligado ao emocional. “Há sim uma predisposição genética para se ter uma doença grave. Neste caso, a PNL vai na origem, reprogramamos, recolocamos crenças e valores naquela pessoa”, completa.

Sete dias para ser felizConstatamos que várias empresas colocam à disposição dos seus funcionários sessões de PNL. Ana Raquel Nogueira, 25 anos, telefonista de uma empresa de comunicação e entreteni-mento, falou-nos que foi por meio da PNL que seu marido conseguiu o emprego que tanto desejava. “Meu marido estava desempregado há um ano e meio, ele próprio já não acreditava mais. Então resolvi investir na PNL, afinal mais de 40 pessoas lá na empresa já haviam feito e os resultados foram inacreditáveis. Pratiquei a técnica com o meu marido e em menos de cinco dias ele estava trabalhando na empresa que ele queria. Eu não acredito em coincidência. Foi a PNL que nos ajudou sim”, acredita.

Vieira afirma que, para a PNL, tudo é psicos-

Paulo Vieira: “o primeiro passo

é estabelecer objetivos”

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somático. Nada é por acaso. Não existe fracasso, mas sim resultado. “Quando eu mudo a minha forma de viver, os meus resultados também mudam”. Ele afirma que sete dias é o tempo necessário para que a PNL mude alguém e a faça feliz. “Eu dou uma semana para você ser feliz novamente. Isto é reestruturação neural, emocional, novas sinapses neurais são feitas. A primeira coisa é querer mudar, ter coragem de ser feliz, pois até para ser feliz existem fer-ramentas que podem ser utilizadas.

Cada cérebro tem sua lógicaMagui Guimarães, professora da Pós-Graduação do Instituto Evaldo Lodi (IEL) e especialista em Psicopedagogia, também estuda e trabalha com a PNL em Fortaleza. Ela explica que a PNL é o estudo da subjetividade humana, cada cérebro tem sua lógica, suas estratégias. Com a PNL, você pode aprender a influenciar a si próprio e aos seus relacionamentos com os outros, e a ter o tipo de vida que você deseja. Porém, Magui deixa claro que é preciso ter muito cuidado quando você decide praticar a PNL. “Pessoas pegaram os segredos e técnicas da neurolin-guística e usaram para se beneficiar perante os outros de forma mesquinha. Como uma pessoa pode propor a felicidade em sete dias? Porém é uma oferta tentadora e as pessoas vão buscar essa felicidade”, explica.

O administrador e empresário Francisco de Assis Almeida Filho, 56 anos, afirma que conheceu a PNL através do livro “Poder sem Limite”, de Anthony Robbins, lançado aqui no Brasil pela Editora Best Seller, e logo resolveu fazer as sessões com a programadora Magui. “Decidi praticar PNL para tratar um problema meu de dislexia, além das fortes dores de cabeça que eu sentia. Depois do curso, essas dores sumiram, minha dislexia melhorou considera-velmente, aprendi a me conhecer melhor e a me relacionar melhor com as outras pessoas. Hoje eu pratico a PNL com a minha família e com os empregados das minhas empresas”.

A psicóloga formada na Universidade Fe-deral do Ceará, Wanise Guimarães Bloc, coloca-se contra esta proposta que ganha espaço cada vez mais na vida das pessoas. Wanise diz que os programadores devem ter uma formação de psicólogos para poder trabalhar com isso. “É muita pretensão deles achar que podem transformar uma pessoa em sete dias e torná-la

feliz”, questiona. Ela acredita que todos esses métodos da PNL sejam baseados em estudos, porém são proporções muito grandes as quais os programadores querem chegar. Wanisse afirma que as questões pessoais são profundas e deli-cadas demais para serem trabalhadas somente por uma programação lingüística.

Considerando apenas custos, a PNL parece tentadora para quem quer soluções rápidas. O custo médio para uma pessoa praticar durante oito meses e meio a PNL é de cerca de R$ 2.500. Enquanto, praticando a psicanálise ou outro tipo de psicoterapia, há um custo médio de R$ 100 a sessão semanal e o cliente, ao final de oito meses, terá gasto R$ 3.200 e sem a garantia de ter chegado a “mudar sua vida”. Em uma época em que as pessoas têm cada vez menos tempo para esperar por mudanças sutis, embora profundas, é compreensível o sucesso da Programação Neurolingüística.

Magui Magalhães: “com a PNL você aprende a influenciar a si próprio e a ter o que deseja”

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crôn

ica

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Do IRe Devir

· texto · david aguiar · gioras xerez ·· fotos · david aguiar·

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Gosto de vivenciar coisas novas, dedicar certos dias a alteridade. Aqui estou, Estação João Felipe, uma construção de um tempo nostálgico que, mesmo a revelia de seus erros históricos, impõe-se como uma época grandiosa. É assim muitas vezes que o passado nos fala, por meio de uma linguagem mítica. E ali fincado, aquele prédio contrasta com nossa esterilidade estética, uma ruína urbana que se avoluma diante daquele fetiche histórico, o que me constrange. No fundo, ele não é assim tão belo, o que não evita, porém, o terrível contraste. Aqui começa a alteridade.

Nunca antes havia estado ali, sequer to-mado um trem, geralmente uso ônibus, o que não faz com que este seja meu transporte predi-leto, entretanto, quanto ao objeto desta crônica, tinha dúvidas sólidas acerca da possibilidade de ser surpreendido. Adentrei na estação. Era uma casca, constatei, a fachada glamorosa não cor-respondia com seu interior. Apenas um prédio público como tantos outros: burocrático, por-tanto hermético e irracional, e se, por um lado, conservava parte da sua estrutura mais antiga, por outro, essa simpatia perdia-se no seu aspecto tão propício à cegueira do tempo. No salão prin-cipal as pessoas exercem o seu dever de pressa, os bancos apenas figuram, executando um papel

meramente decorativo, exceto pelo gato. Não um felino exemplar perfeito da espécie, mas um gato magro e vulgar que deitado naquele banco esquecido enrolava-se consigo mesmo. Mas ainda não é o momento.

Sabia onde deveria chegar, mas não sabia como, então tentei ler as placas informativas, mas que placas? Não estavam lá, nada havia que especificasse quais os trajetos eram feitos, por onde as linhas passavam, quais os terminais, apenas os nomes enigmáticos de Vila das Flores e Caucaia, que pouco me diziam. Perguntei ao moço do caixa obrigando-o ao desprazer de um momento comunicativo com algum inoportuno usuário de primeira viagem, no caso eu, e diante do incômodo, ele mirou o indicador para uma das roletas e disse-me;

-Um real – pronto, estava resolvida uma síntese semiótica.

Segui uma das poucas placas ali existentes : Vila das Flores, rota que termina em Maracanaú. Na parada alguém me confirma o trajeto, agora

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estava tranqüilo. Passei meus olhos pelo cenário: pessoas largadas ao chão com a mão estendida, um casarão em ruínas ironicamente ao lado de uma placa do Ministério das Cidades, ferrugem por todo lado, e aquele silêncio assombroso. É fato que em meio aquele cenário de abandono os personagens não eram poucos, portanto, aquele silêncio me pareceu desproporcional ao horário matinal (eram 10 horas) e ao volume humano em constante crescimento.

Lá estava o trem, olho meu relógio e con-firmo, o rapaz ao lado estava certo: “ele chega pontual”. Lembro-me agora daquelas belas máquinas sobre trilhos que vi no cinema, um progresso sempre avante e desbravador. Mas ali, havia apenas uma máquina carcomida, como se

ali estivesse instalado um câncer que se alastrara sob o signo do abandono. A máquina parou, as portas esboçaram um movimento, era inútil, o tempo já havia agido impiedosamente, logo os passageiros desemperraram as portas que estavam fechadas e em seguida dava-se início ao natural embaralhamento de pessoas saindo e entrando. Tudo naturalmente desordenado, sem nenhum esboço de estranhamento.

O trem partiu de portas abertas. Um jovem de mochila aventurava-se do lado de fora, sustentando-se apenas com um braço.

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Crianças corriam pelo vagão, flertavam as portas escancaradas e se continham diante do proibido, enquanto que alguns pais eximiam-se de cuidados em seu descanso. Um homem de uniforme, em pura neutralidade preta e branca, dirige-se ao centro do vagão e despeja aos berros seus ensinamentos proféticos, competindo com o estrondoso barulho do trem. Bíblia a mão, movimentos largos, aspereza em seu tom, uma gama de recursos para cativar a atenção dos pre-sentes e convencê-los da única justiça “possível”, e eu, incrédulo ateu diante daquele espetáculo do esquecimento, concatenava comigo mesmo como poderia resistir a qualquer significação de justiça humana diante daquela coleção de signos do abandono. Ali se ploriferava a justiça de um

“pós-mundo”, de uma existência condenada. E o homem persistia, um ou outro repetia atento: “amém”, a maioria era de espectadores aparen-temente indiferentes, e ainda haviam aqueles que reagiam com deboche.

O trem possui ao todo seis vagões. Eu estava no meio. Era perceptível que cada vagão tinha sua tribo, algumas vezes um tanto misturadas, aqui as pessoas acabam se encontrando. Tem o vagão dos estudantes, o vagão mais descon-traído, aquele em que as pessoas parecem evitar umas as outras, exatamente nesse eu estava, há também o vagão dos crentes. Mas aqui tudo se mistura, de uma forma ou de outra. A maioria dos usuários pertencem às classes menos favore-cidas, mas aqui a solidariedade ainda não foi esquecida: ocorre por exemplo que quando um está desempregado, logo outro indica-lhe um emprego ou coisas do tipo.

Passamos por inúmeras estações, e quase todas indiferenciáveis. A paisagem diante das portas abertas era sempre novas repetições de matas ou casebres. Na estação de Parangaba, migrei para outro vagão e lá abordei um homem de barbas brancas, que não gostou da minha objetiva apontada para ele: “ele pensa que eu não tô vendo,... tire não, que eu não gosto não” – disse-me com certa ironia o fotógrafo profissional. Seu nome era Stênio Saraiva, e contava-me do descaso que cerca aquele ícone do progresso – “olha aquela caixa de energia ali, quando chove, isso aqui fica tudo molhado, eu já vi até gente levar choque” – apontava para uma caixa de energia totalmente aberta e com fios desencapados – “o cara põe a mão pra se segurar nesse ferro, ai leva choque, isso aqui em dias de chuva molha é tudo – falava-me enquanto cumprimentava pessoas e adiantou-se em responder a pergunta que não fiz: “aqui todo mundo se conhece, já vi até cantar para-béns. É que a agente anda todo dia no trem por anos, aí acaba conhecendo alguém” – quando fomos interrompidos por aquele cheiro horrendo novamente, era sempre um aviso de que nos aproximávamos de algum aglomerado de casas sem nenhuma dignidade.

Naquela altura já estávamos voltando de Maracanaú, foi então que interrompi momen-taneamente minha conversa com Stênio para abordar um vendedor ambulante. Fora inútil, o vendedor não quis conversa alguma, saiu mesmo assustado, trocando de vagão na parada

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seguinte: “eles não vão falar não, tem medo, é que não podem vender nada aqui dentro não, se a polícia ferroviária pegar, eles tão é lascado” – explicou Stênio como se falasse a um turista. “Aqui, antigamente, o pessoal pegava e usava era os bancos pra botar CD pirata, bugiganga, aí foi que a polícia ferroviária coibiu esse pessoal” – e cadê a polícia? - perguntei sem sequer saber qual era a farda usada pela polícia ferroviária – “muito difícil vê, e quando eles sobem em um vagão os ambulantes vão pra outro, era pra ter policial em cada vagão, isso aqui tá ficando perigoso” - afirmou Stênio protegendo o nariz do cheiro hor-rendo que sempre passa e retorna, anunciando as condições de um vida subumana.

O trem retornava e todas as paisagens se repetiam: as matas, os casebres, a fedentina, os rostos tristes, os pastores e ambulantes, a total naturalidade de como tudo se projeta. O trem não mudou centímetro algum em seu trajeto. Tudo perfeitamente igual como foi pensando, se não foi pensado pelo menos posto em prática. E quando o trem progredia (ou talvez regredia?) o tempo ficava suspenso, todos sentados como velhos conhecidos de um tempo imóvel, de uma realidade estática e paradoxalmente refém do devir, de um devir que se faz sentir pela sua voracidade de corroer as coisas, nada fica in-tacto, o que não impede de ficarmos estáticos. E sempre aquela idéia fajuta de progresso, de um misterioso progresso que não chega, até lá, destilemos todos os estereótipos do descaso, em todo o seu rigor teatral.

Veio-me por um instante a lembrança daquele gato. Acostumado à luta pela sobre-vivência, a refeição de hoje não garante o que virá amanhã, mas, o que não se conserta, se improvisa. Vamos levando pra ver no que é que dá. E ali deitado no banco, um corpo misturado, definições complexas do que seja o início ou fim. Não se enroscava diante da fome nem do frio, é um sobrevivente nato, anos de aprendizagem e de evolução no seio da espécie lhe garantem tamanha resistência, é a vergonha que lhe obriga a esconder o rosto, pois o cinismo não lhe é dos mais fortes atributos, ao menos não dessa espécie.

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O que realmente devemos considerar como uma necessidade? Se respondermos a essa questão de forma objetiva podemos dizer que temos necessidade de comer, beber, nos agasalhar e nos proteger, para que possamos, assim, possibilitar a perpetuação da nossa espécie. Então, o que leva o ser humano a ter a necessidade de possuir tantos bens que muitas vezes nem usa ou tão sofisticados que nem consegue compreendê-los?

Os grandes produtores de bens e serviços, na ânsia de angariar lucros cada vez maiores, aliados aos detentores dos meios de comu-nicação de massa, despertaram no homem moderno algo que beira à irracionalidade e que pode levá-lo a sérias dificuldades: o desejo exagerado pelo consumo.

O que leva alguém a adquirir cinqüenta relógios, a ter cem pares de sapatos, vários carros esportivos, mansões e outros absurdos?

O que leva um marginal a roubar um tênis de grife ou um celular multifuncional não mais para saciar a sua fome? Certamente não é mais a necessidade fisiológica. Se quisermos simplificar a questão sem nos aprofundarmos em conceitos filosóficos ou sociais podería-mos dizer que se trata de uma compulsão ao consumo, seja motivada pela exposição do objeto do desejo através de propagandas promocionais, seja pela cobrança que a socie-dade exerce na exaltação do novo, do belo, do possuir. É uma necessidade que vai além da nossa compreensão racional porque existe quase que um desafio proposto pelo sistema capitalista: a aquisição do bem ou serviço recém lançado.

Sem corrermos o risco do exagero, pode-mos afirmar que na nossa sociedade capitalista não é mais a necessidade que leva à aquisição do bem, mas o bem, à necessidade.

As necessidadesno mundocapitalista

· por · neiva nobre ·Economista e estudante de Publicidade da Unifor

· fotos · patrícia araujo · jorge rafael ·

opin

ião

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