Revista A Ponte # 8

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1 JUNHO 2007

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Revista laboratório do curso de jornalismo da Unifor

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Ao leitor

ChronosO tempo na mitologia

Previsões do futuroA busca de respostas nos búzios e no tarô

15 minutosOs sentidos da fama passageira

CinemaReinvenções do tempo na ficção

LiteraturaViagens à subjetividade temporal

Como nossos paisÍdolos aclamados por gerações

AprazívelEncruzilhada de passagem

ProfissõesExtintas e sobreviventes

PresídioO tempo atrás das grades

MemóriasPassado apagado

MortePassagem para um recomeço

FísicaTempo dilatado

RevolucionáriosÀ frente de sua época

AutismoUniverso particular

AnsiedadeA doença da pressa

Ossos frágeisA luta diária pela vida

CartasPonte com o leitor

EnsaioGuardiões da Saudade

CrônicaQuando a morte é bela

Artes“Tempo para te esperar” e“Tempo morto, Tempo vivo”

OpiniãoO tempo da punição

0304

08131618

293340

46

5660

647076

5080

02Fixações

Mundos

Vivências

Transições

Esquecimentos

Deleites

Crenças

82

84

22

Relógios e calendários nunca mais serão os mesmos depois da experiência vivida por estas turmas do Curso de Jornalismo da Unifor, que escolheu como tema da edição de nossa Ponte, “As Formas do Tempo”. Um texto do historiador e sociólogo Norbert Elias no livro Sobre o Tempo (Ed. Jorge Zahar, 1998), contos do escritor Caio Fernando Abreu e a música de Caetano, “Oração ao Tempo”, serviram de mote para as discussões que inspiraram a produção das pautas. Daí em diante, foram só descobertas: as dimensões socioculturais, físicas, mi-tológicas, ficcionais em que o tempo pode ser vivenciado levaram os estudantes a embarcarem na complexidade do assunto. A escolha do tema da edição número 8, cuja forma lembra uma ampulheta e uma espiral, não poderia ter sido mais feliz.

Profª Geísa MattosCoordenação editorial

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4 JUNHO 2007

EXPEDIENTERevista do Curso de Jornalismo da Universidade de FortalezaCentro de Ciências Humanas - Universidade de Fortaleza - Fundação Edson QueirozDiretora do Centro de Ciências Humanas: Profª Erotilde HonórioCoordenador do Curso de Jornalismo: Prof. Eduardo FreireConselho editorial: Profs. Erotilde Honório, Antônio Simões e Jocélio Leal.Coordenação editorial: Prof{ Geísa Mattos ([email protected])Coordenação de produção: Profs. Antônio Simões e Geísa MattosEditor de crônica e poesia: Prof. Batista de LimaSupervisão de produção gráfica: Prof. Aderson Sampaio, Aldeci Tomaz e Prof. Carlos Alberto NormandoSupervisão de fotografia: Prof. Wilton Martins Revisão: Profª Cláudia Matos Suporte técnico: Aldeci Tomaz.Supervisor da gráfica: Francisco RobertoImpressão: Gráfica da UNIFOR

ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO SOCIAL / UNIFOR:Coordenação de equipe: Caio Castelo e Tatiana MarquesEditores assistentes: Isabel Medal, Pery Negreiros e Tatiana MarquesCapa: Caio Castelo2ª Capa: Felipe Vecchio - Agência de Publicidade (NIC)3ª Capa: Diego Pontes e Bruna Reis - Agência de Publicidade (NIC)Projeto gráfico: Eduardo MartinsDiagramação: Anne Nogueira, Caio Castelo e Felipe GoesFotografias: Haroldo Sabóia, Laurêncio Lima, Marília Camelo, Natália Kataoka, Patrícia Araújo e Raphael VillarIlustrações: Liandro Roger, Richell Martins e Adolfo MeirelesRedação: Alunos da disciplina Princípios e Técnicas de Jornalismo Impresso II de 2007.1 (Bruno Anderson, Caio Castelo, Camila Garcia, Fabrícia Vieira, Humberto Torres, Ilo Aguiar, Ivna Girão, Jackson de Moura, Keiliane Gomes, Laurêncio Lima, Marcelo Andrade, Marina Mamede, Marjorie Castro, Niara Rocha, Raquel Maia, Rebeka Holanda, Regina Paz, Renata Gauche, Renata Jaguaribe, Rosanni Guerra, Roxaylly Loren, Sofia Laprovitera, Talita dos Santos, Tatiana Marques e Vicky Nóbrega).

cart

as

De perto

Na última edição gostei, em especial, da matéria sobre as presidiárias do IPF. Já tive a oportunidade de visitar o presídio, mas não tive com as presidiárias o contato que as repórteres tiveram. Achei interes-sante ver o que aquelas mulheres pensam sobre o lugar onde estão e porque algumas delas chegaram lá. Parabéns a todos pelo trabalho.

Renata Macêdo, estudante de Direito da Unifor (4o semestre)

Show

Gostaria de parabenizar toda a galera da revista A Ponte, em especial a Rebecca Colares, que fez essa linda matéria sobre mim, e o Raphael Villar, que a cada dia se mostra um dos me- lhores fotógrafos do Ceará. Obrigado a todos da redação pelo carinho e pelo apoio a mim e a minha música. O show de lançamento da Revista foi muito especial e todos da banda se recordam com muita felicidade. Vocês são ótimos!!! Beijos e Abraços.

Felipe Cazaux, músico

Parabéns

A revista A Ponte é caracterizada pela qualidade da publicação, pelas temáticas abordadas e pelo reparo dos equívocos. Na edição nº 7, particular-mente, apresenta uma série de histórias de pessoas comuns, às vezes esquecidas, que povoam a nossa imaginação com drama, boemia, sonhos e, prin-cipalmente, com vida. Vida real. Porém, a maior conquista está no empenho e na competência na elaboração de cada edição orientada pela professora Geísa Mattos, o professor Antonio Simões e seus alu-nos da disciplina Princípios e Técnicas de Jornalismo Impresso II, assim como a todos que contribuem com o suporte técnico do acabamento.

Wilhelmus Jacobus Absil, vice-reitor de Ensino de Graduação

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5JUNHO 2007

Aquiles e seu famoso calcanhar, ninfas, musas e deuses olimpianos. Todos nós sabemos que esses são personagens do que conhecemos como mitologia. São mitos. São representações simbólicas que nos ajudam a compreender a nossa vida e as nossas relações sociais. O que muitos de nós não sabíamos é que, assim como o amor e a guerra aparecem como deuses em alguns mitos, o tempo também encontra na mitologia sua representação simbólica: o deus Cronos.

Segundo a mitologia grega, Urano (céu) e Géia (Terra) se unem e dessa união surgem os Hecatonquiros, os Ciclopes, Titânidas e Titãs. Dentre os Titãs, nasce Cronos – do grego khrónos, tempo. A pedido de Géia, para livrá-la do tiranismo de Urano, Cronos o destrona e o castra. Após assumir o lugar do pai, Cronos une-se à sua irmã Réia e dá origem aos deuses

Héstia, Hera, Deméter, Hades, Posídon e Zeus. Como Urano e Géia eram depositários da mântica – ou seja, do conhecimento do futuro – previram que Cronos seria destronado por um de seus filhos. E assim, Cronos passa a de-vorar todos os seus filhos, escapando somente Zeus que foi salvo pela mãe e que mais tarde destronou Cronos, dando origem aos deuses do Olimpo.

Esse mito torna válida a associação de Cronos com o tempo. Devorando seus filhos, Cronos também os gerava. Assim é o tempo, que nos consome e devora a partir do mo-mento em que nascemos. Em uma sociedade capitalista como a de hoje, em que o trabalho e acúmulo de capital tornaram-se prioridades, nos sentimentos devorados com mais fúria do que nunca por esse deus chamado tempo.

A sociedade capitalista de hoje tem priorizado o trabalho e o acúmu-lo de capital. Em uma época em que o lema é não deixar de produzir, estamos sendo devorados com mais fúria do que nunca por um deus chamado Tempo

O Deus Tempo· texto · marjorie castro · regina paz ·

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Alex de Xangô vê suas previsões como um dom divino

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O entorno da casa era comum: plantas, jar-ros com flores, um portão com algumas marcas do tempo, varanda com rede, cadeiras e mesa. Mas ao entrar no aposento onde acontecem as consultas, os signos e a simbologia são pre-dominantes no local, fortificando o misticismo quase inerente às previsões do tempo. A casa pertence ao astrólogo esotérico e teósofo Akita, que utiliza aquele aposento como seu espaço para meditações e revelações astrológicas, uma vez que, tendo contato direto com a astrologia há mais de 20 anos, Akita já desvendou o pas-sado, o presente e o futuro de muita gente. Por isso, defende que os acontecimentos da Terra são reflexos das atividades que ocorrem no universo, e explica que, para descobrir o ser, a astrologia volta ao passado e descobre como esse alguém estava configurado no momento da sua primeira respiração, quer dizer, na hora do nascimento.

Contudo, não é só em astrologia que as pre-visões do tempo se baseiam. Com uma manta, um turbante, para garantir uma vestimenta bem leve e larga, adornado por cordões coloridos feitos de miçangas, o pai de santo babalorixá, Alex de Xangô, há sete anos se veste diariamente dessa forma para fazer suas previsões. E, para que isso aconteça, ele recebe o que chama de entidade espiritual, que, segundo Alex, irá lhe orientar para ler os búzios, as cartas e o tarô, os quais também são essenciais para desvendar o futuro.

Para o astrólogo Akita e o babalorixá Alex de Xangô, as previsões do futuro são benéficas ao ser humano. Alex acredita que suas previsões representam uma segunda chance dada por Deus para que as pessoas se previnam do que pode vir a acontecer

“Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de No-vembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante”

A Cartomante, Machado de Assis

Entre os CÉUS...· texto · vicky nóbrega · colaboração e fotos · marília camelo ·

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acontecer em qualquer lugar, basta Alex chamar do seu modo que os espíritos virão.

Os dois astrólogos afirmam que, durante a análise do mapa astrológico, há uma sensação diferente de quando se encontra em consciên-cia plena, mas não há misticismo nisso. Akita é enfático quanto à transcendência, e revela que ao olhar o mapa, ele entra em estados mais sutis de consciência, já que busca entrar no estado sutil da consciência da pessoa que está ao seu lado, na tentativa de decifrar o signo e os aspectos mais profundos desse indivíduo. “Conforme você vai fazendo o mapa você vai intuindo, você vai se sensibilizando para que você adentre na pessoa e mostre a ela quem ela é”, explica Akita. Já Rosa, define a sensação: “é como se estivesse em outro mundo, em um estado de concentração total”.

Em meio às concentrações, transcendências e dons, Akita, Rosa Di Maulo e Alex de Xangô, ao serem perguntados pela cobrança do seu trabalho, declaram que cobram porque pre-cisam fazê-lo. Alex justifica com o argumento de que tem responsabilidades com os orixás, que comem e bebem, “como você gosta de um bom baião de dois com muita carne e cebola, os orixás também precisam se alimentar. É como se fosse uma pessoa e me dedicando a eles, os orixás entregam tudo o que eu quiser” comple-menta o babalorixá. Em contrapartida, Akita se refere ao valor das consultas como um tipo de agradecimento pelo seu trabalho. Já Rosa Di Maulo diz ser a fonte de sua sobrevivência.

E quando se fala na cobrança do valor, lembramos do preconceito sofrido, comumente por eles, o que, para Akita, é apenas falta de conhecimento, “porque se colocou uma aura de mistério” tendo uma equívoca percepção de astrologia. Mas segundo Alex de Xangô, o preconceito existe em cima da má imagem que fazem sobre seu trabalho, associando a algo ruim, porém o pai de santo defende que “em todas as religiões, não importa qual seja, se você estiver com raiva de alguém cabe a você fazer o bem ou o mal”. E acrescenta: “quem planta vento, semeia tempestade, se você plantar o mal, mais cedo ou mais tarde aquilo voltará”.

Mesmo com o preconceito existente, há inúmeras pessoas como o professor universitário Flamarion Pelúcio, que está entre as pessoas que crêem nessa atividade. O professor estuda há 15 anos quiromancia (arte de ler a mão),

com elas mesmas. E Akita não diverge, mas defende que a astrologia, e não ele, possibilita o autoconhecimento e a aproximação à essência humana, A partir de então, o indivíduo enten- derá quem é, como age sua mente e desvendará ele mesmo seu passado, presente e futuro.

Mesmo com simbologias no lugar onde há as consultas, como as imagens de cada signo, e a crença de que o ar, a terra, a água e o fogo explicam muitas das atitudes de um sujeito, Akita enfatiza que na astrologia não há nada de místico, são cálculos e possibilidades, apenas ciência, e explica que “a previsão, baseada no mapa astrológico, é o tempo que um planeta leva para percorrer uma casa astrológica, o que irá desenvolver um cálculo e tender a uma mu-dança no exato momento de um determinado signo”. E enfatiza que “a astrologia não tem re-lação com misticismo. Astrologia é matemática, aliás, o universo é matemático, cada planeta, cada signo fala de uma área da minha vida. Não se diz que a lua influencia as marés e a menstruação? Os planetas influenciam outras áreas. Não há nada demais nisso”.

A também astróloga e terapeuta conhecida como Rosa Di Maulo, que escreve há 12 anos para a revista Marie Claire, complementa Akita quando diz que a astrologia é um trabalho técnico e árduo, e explica que “para fazer uma coluna de previsão, calculo uns 86 mapas as-trológicos, verificando todos os movimentos dos planetas durante aquele determinado período”. E reforça que “não faço parte do grupo de adi-vinhadores, videntes e essas coisas, astrologia é uma matemática”.

Entretanto, o pai de santo Alex de Xangô vê suas previsões como um dom e acredita ser “uma coisa mandada por Deus”. Além disso, afirma que possui uma grande responsabilidade no desempenho do seu trabalho e que há mis-ticismo sim, durante as consultas.

O babalorixá explica que acontece algo espiritual, e a existência das entidades (os es-píritos) é revelada, pois, de acordo com Xangô, durante as previsões “uma energia se encosta, como se encostasse perto do meu ouvido, e me contasse o que muitos não seriam capazes de escutar. Pode acontecer em qualquer canto, mas no meu lugar há uma energia disponível, que na hora que eu sento e me concentro, tenho a energia a meu favor”. E acrescenta que o sus-surro ou o “recebimento” de um espírito pode

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...e a TERRA

taromancia (arte do tarô) e astrologia (a arte de relacionar o homem com o universo). Mas diferente de muita gente, ele acredita que não é um dom, mas sim um estudo, sendo uma habilidade construída, e destaca a grande im-portância do tarô em sua vida. “Eu não tomo nenhuma grande decisão na minha vida, hoje, sem consultar o tarô”, confessa Flamarion, hoje vivendo em Portugal. A decisão de se mudar do país passou pela consulta às cartas do tarô.

Em contrapartida, mesmo com a fé e o misticismo disseminados em uma parcela considerável da população brasileira, há indi-víduos, que diferente de Flamarion, Alex Rosa e Akita, não crêem nas previsões do tempo. Pessoas que acreditam no livre arbítrio e no charlatanismo de muitos deles, visto que, para muitas, como a estudante de Farmácia, Régila Aguiar, “essas pessoas que dizem prever o futuro são apenas fraudes buscando dinheiro de quem acredita”.

Contudo, vale ressaltar que, por meio da astrologia, da tarologia, da numerologia, dos búzios e das diversas formas de prever o futuro, muitas pessoas alcançam explicações para inúmeras perguntas humanas. E como diz o professor Flamarion, “talvez seja a alma re- clamando por muitas coisas, como as questões transcendentais, as questões metafísicas e também espirituais. Mas talvez seja por simples dilema da procura, pois, citando Fernando Pessoa, o segredo da busca é que não se acha, nem nós encontramos no infinito”.

Akitatelefone: (85) 3273-1588email: [email protected]

Alex de Xangôtelefone: (85) 3296-9161/96097324

SERVIÇO

Akita diz que a astrologia não está ligada ao misticismo

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10 JUNHO 2007

Reality shows, bandas de uma só música, centenas de concursos para revelar o mais novo talento bra-sileiro. Neste mercado frenético da fama, o tempo de exposição na mídia é algo fundamental. Neste jogo, talento e imagem se equivalem. Os 15 minu-tos de fama são vistos como a chance de se lançar ao sucesso, mas enquanto alguns se encantam e veneram o êxito alcançado, outros conhecem o lado negativo da fama, bem disfarçado pelas luzes dos holofotes. Todavia, tanto para quem se estabelece no Olimpo da mídia como para quem cai no ostra-cismo, qual o sentindo deste tempo de fama, qual a sensação de ter esses cobiçados 15 minutos?

Dos 15 MINUTOS DE FAMA

· texto · ilo aguiar · re

nata jaguaribe · fotos · laurêncio lima · arte sobre fotos · caio castelo ·

8 NOVEMBRO 2007

veneram o êxito alcançado, outros conhecem o lado

cismo, qual o sentindo deste tempo de fama, qual a

15 MINUTOS DE FAMA ao SUCESSO

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Qual é a sensação de estar na mídia? “É maravilhosa!”, afi rma de forma categórica o músico Ítalo Almeida. Ítalo, que já tocou com os compositores e cantores cearenses Kátia Freitas, Fausto Nilo, Ednardo, Amelinha e Raimundo Fagner, acabou de lançar um CD e um DVD com o grupo “Forró de Dois”. Apesar de gostar da sensação de estar em evidência, Ítalo assegura não ter se deslumbrado. “Ainda estou na mídia de médio porte, meu trabalho é mais pé no chão”, avisa.

Talvez seja essa agradável sensação que acompanha a fama que a torna tão atrativa para muitos. Tanto que, já na década de 1960, o artista plástico criador da Pop Art, Andy Warhol, previa que no futuro todas as pessoas teriam os seus 15 minutos de fama. O fi lósofo irlandês Berkeley, ainda no século XVIII dizia que “ser é ser percebido e nada mais”, foi em outra época, em outro contexto, mas cai como

uma luva para o atual momento. Mas será realmente que todos estão em

busca de seus 15 minutos, de serem reconhe-cidos? O psicólogo Leonardo Danziato, profes-sor adjunto da Unifor, responde: “Talvez todo mundo queira, mas nem todo mundo precise. O reconhecimento que as pessoas obtêm [com a fama] é um reconhecimento imaginário. É mais um reconhecimento ilusório que na verdade não serve muito para o sujeito, talvez sirva para ele fazer uma graninha, fazer alguma coisa, né? Um Big Brother, mas isso, de um ponto de vista subje-tivo, não serve para o sujeito se resolver nos seus desejos, nas suas posições na vida”, pondera.

Segundo o professor Carlos Velázquez Rueda, da área de Comunicação Social da Uni-versidade de Fortaleza (Unifor), o conceito de fama surgiu com a Renascença e a burguesia. Com elas, fez-se presente a necessidade de ser reconhecido. “Quando o burguês faz com que a sociedade sofra uma reviravolta que irá dar atenção e valor não mais a espécie, mas a

ao SUCESSO

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captar a concentração de capital, também se torna extremamente importante a visibilidade dessa pessoa”, afi rma. O professor acredita que, com o advento da publicidade, houve uma exacerbação da individualidade, uma vez que ela promete um mundo de fantasias ao seu interlocutor.

Fama x SucessoJá que a fama é um reconhecimento meramente imaginário, então o sucesso seria um reco- nhecimento real? Mas afi nal, existe realmente diferença entre fama e sucesso? Qual seria essa diferença? Natália Nara, ex-VJ da TV União, ganhadora do Concurso Musa do Ceará, que teve o rosto utilizado como modelo para uma estátua de Iracema na Lagoa de Messejana, em Fortaleza, participou do programa de televisão Big Brother Brasil, assim como a bailarina Ro- berta Brasil. As duas cearenses obtiveram fama ou sucesso com a participação no programa? Para o músico da banda “Forró de Dois”, “fama e sucesso são duas coisas totalmente distintas e independentes. A fama é algo passageiro, um estado momentâneo. O sucesso é a realização ou a concretização de um esforço. Ser famoso não é exatamente ter sucesso. A fama é, o sucesso acontece”. A cantora cearense Deborah

Lima, que fi cou famosa ao participar de um con-curso de cantores no programa do Faustão entre 1999 e 2001, e hoje faz shows regularmente em bares e barracas de praia de Fortaleza, acredita que “o sucesso é resultado do seu trabalho. Eu acho que o sucesso, a fama é conseqüência de um trabalho bem feito”.

Ex-baixista da banda “O Surto”, grupo cearense que teve como ponto alto da carreira a música “A Cera/Me Pirou o Cabeção” e tocou no Rock In Rio 3 em 2001, Dudu Freitas, hoje dono da escola de música Musimania, discorda de Deborah, afi rmando que “a fama é uma coisa ilusória, não é legal. Porque nem todo mundo que é famoso sabe fazer alguma coisa realmente de proveito. Muita gente é famosa porque é bonita, porque participou de um reality show. Muitos dos músicos que ali estão não são músicos de qualidade. Se você tem uma boa atitude, você é um produto mesmo! E ‘O Surto’ era um produto igual aos outros. Era um produto descartável.” E complementa: “Hoje eu sou famoso na minha Igreja, eu me converti, sou evangélico. Hoje a minha fama é concreta, é uma coisa muita mais idealista, que preza pelos fundamentos reais de uma vida, tem uma fi nalidade”.

Para o músico da banda “Forró de Dois”, “fama e sucesso são duas coisas totalmente distintas e independentes. A fama é algo passageiro, um estado momentâneo. O sucesso é a realização ou a concretização de um esforço. Ser famoso não é exatamente ter sucesso. A fama é, o sucesso acontece”. A cantora cearense Deborah

“Hoje eu sou famoso na minha Igreja, eu me converti, sou evangélico. Hoje a minha fama é concreta, é uma coisa muita mais idealista, que preza pelos fundamentos reais de uma vida, tem uma fi nalidade”.

Garota propaganda e atrizA atriz cearense Poliana Barbosa Moraes, 43, começou sua

carreira após participar de uma ofi cina de teatro ministrada

por Haroldo Serra em 1987.O convite para ser a garota-propaganda das lojas Paraíso,

personagem pela qual até hoje é lembrada, veio do propri-

etário das lojas, Paulo Fernandes, depois de um espetáculo

em que Poliana atuava.Na Paraíso, ela permaneceu 8 anos; após fez outras propa-

gandas para as lojas Doce Lar e Rabelo; Prefeitura de For-

taleza, Shopping Iguatemi, entre outros.

Hoje ela acumula um currículo com 4 prêmios como atriz, 40

peças, 2 fi lmes, sendo um como atriz e outro como diretora,

além de 20 anos fazendo parte do grupo de teatro “Comédia

Cearense”. Atualmente, Poliana cursa faculdade de Publici-

dade e Propaganda e continua se dedicando ao teatro.

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Poliana Moraes foi durante oito anos a garota propaganda da loja de utilidades domésticas Paraíso. Hoje, após perder mais de 130kg e trabalhar apenas com teatro, diz que a fama é “maravilhosa. Eu adorava. Não vou mentir. Adorava ser reconhecida, ser apontada. Dificilmente eu pagava uma conta em um restaurante, em um bar, porque sempre tinha alguém que queria fazer isso. As portas se abrem com mais facilidade. As pessoas te tratam bem. Facilitam as coisas para você.” Conhecida como a “ex-gordinha da Paraíso”, afi rma que muita gente “chegava para mim dizendo que ia para a Paraíso fazer compras por minha causa e não por necessidade”.

Os dois lados da fama Poliana conta que há um outro lado da fama que pode vir a ser muito cruel. “O incômodo da fama é que algumas pessoas não conseguem entender que aquela pessoa que está na mídia, que é famosa, é um ser humano igual a ela. Precisa de respeito e de privacidade em alguns momentos.” E conta alguns casos: “Me mataram 5 vezes. Morri de overdose. Eu não bebo nada com álcool e morri de coma alcoólico.” Em outra ocasião “fui vista com meu pai no aeroporto porque eu ia para Recife fazer um trabalho pela Paraíso. Quando eu voltei, o boato que tinha

era que eu tinha sido vista com o meu caso, um coroa grisalho (risos).”

Após ter viajado pelo Japão, ter tocado com bandas como Raimundos e Charlie Brown Jr., o músico Dudu vê a fama como algo que “não tem nenhuma fi nalidade, nenhum objetivo de ensinamento. O que acontece é uso de drogas, prostituição, é muita gente se vendendo por dinheiro, o seu talento não importa, o que importa é se você topa a máfi a deles”. Ítalo faz coro: ”O que um cantor de banda de forró, que é famoso, faz de concreto para o benefício de outros ou que seja duradouro? Tudo que traga algum tipo de benefi cio comunitário, uma ação social, uma música, uma poesia, uma obra qualquer, tem como resultado o sucesso”.

Já Deborah acredita que na fama “tudo é positivo”. Sendo positiva ou negativa a fama costuma ser efêmera, e por isso precisa sempre ser transformada em algo novo. Quem tem ta- lento se estabelece e consegue o sucesso. Quem não tem, precisa se reinventar para não ser esquecido pelas pessoas. É como dizia Warhol: “O tempo muda tudo, mas, na verdade, é você quem tem de fazer as mudanças”.

com álcool e morri de coma alcoólico.” Em outra ocasião “fui vista com meu pai no aeroporto porque eu ia para Recife fazer um trabalho pela Paraíso. Quando eu voltei, o boato que tinha

Musimania Av. Viena Weyne, 1035 – 6 BocasE-mail: [email protected]: (85) 3271.3125

Deborah Lima e BandaE-mail: [email protected]: (85) 3262.1207/ 9996.0918site: www.deborahlima.com.br

Ítalo AlmeidaE-mail: [email protected]: (85) 8899.5556

SERVIÇO

Dudu Freitas, ex-baixista da banda O Surto

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14 JUNHO 2007

O homem que conseguiu bem mais do que 15 minutos

“Tentamos durar mais do que tentamos viver”. Seguindo esse pensamento,

Andy Warhol conseguiu por meio de sua trajetória uma permanente duração na história da arte contemporânea.

Warhol nasceu entre os anos de 1928 e 1931 (não se sabe precisar a data), em Pittsburgh, na Pensilvânia, Estados Unidos. Seus pais, Andrej e Julia Warhola, emigraram da antiga Tchecoslováquia para os Estados Unidos e ainda mantinham em casa a tradição de falar tcheco.

Desde garoto Andy colecionava fotografi as de estrelas do cinema. Com 17 anos iniciou seus estudos em desenho gráfi co no Carnegie Institute of Technology de Pittsburgh. Ao fi nal do curso mudou-se para Nova Iorque as-sumindo o nome Warhol. Lá começou a trabalhar como ilustrador de livros, organizou mostras, fez publicidades artísticas para revistas famosas como a Vogue, Glamour e Seventeen.

Fã obcecado do escritor Truman Capote, Warhol elabora sua primeira exposição individual mostrando quinze desenhos baseados na obra do autor. Em 1961, Warhol dá início ao que seria seu trabalho mais célebre. Tendo como base fotografi as e utilizando técnicas que derivavam da publicidade, ele pinta vários quadros retratando objetos famosos como as latas da sopa Campbell’s, garrafas de Coca-Cola e as notas de Dólar.

Em 1963, inaugurou o seu estúdio permanente chamado The Factory, em uma alusão a sua tentativa de “viver como uma máquina”. A partir de então, Warhol parou de retratar objetos e passou a pintar pessoas mundial-mente conhecidas como: Jacqueline Kennedy, Mao Tse-tung, Elvis Presley, Che Guevara, Marilyn Monroe, entre outros. Warhol utilizava a técnica da serigrafi a para transferir fotografi as para grandes telas, e depois as pintava com cores gritantes. Esta nova forma de pintura iniciou um movimento que fi cou conhecido como Pop Art, que se caracterizava pela mistura do mundo da arte e do mundo do consumo.

Já mundialmente famoso, montou a exposição Death and Disaster que não foi tão bem recebida pelo público e pela crítica. Esse resultado é compreensível, já que a exposição mostrava obras baseadas em acidentes automobilísticos. Foi ao comentar essa exposição que Warhol disse a célebre frase “no futuro, todos terão direito a 15 minutos de fama”. Ele ainda se aventurou pelo ci- nema realizando fi lmes experimentais, como Sleep, que mostrava um homem dormindo por oito horas seguidas; e pela música sendo produtor do grupo de rock-and-roll, Velvet Underground.

Em junho de 1968, Valerie Solanas, uma freqüentadora da Factory, en-trou no estúdio de Warhol e disparou inúmeros tiros. Warhol sobreviveu ao atentado e ainda criou a revista Interview que comandou até a data do seu falecimento em 22 de fevereiro de 1987, em Nova Iorque, após uma cirurgia na vesícula.

A fama na telonaFama. Ano: 1980. Direção: Alan ParkerThe Wonders - O Sonho Não Acabou. Ano: 1996. Direção: Tom Hanks.O Show de Truman – o show da vida. Ano: 1998. Direção: Peter Weir.EDTV. Ano: 1999. Direção: Ron Howard.Fama Para Todos. Ano: 2000. Direção: Dominique Deruddere.Rockstar. Ano: 2001. Direção: Stephen Herek. Tudo Pela Fama. Ano: 2006. Direção: Paul Weitz.

No futuro, todos terão direito a 15 minutos de famaAndy Warhol

O homem que conseguiu bem mais do que 15 minutos

“Tentamos durar mais do que tentamos viver”. Seguindo esse pensamento, Andy Warhol conseguiu por meio de sua trajetória uma permanente duração na história da arte contemporânea.

Warhol nasceu entre os anos de 1928 e 1931 (não se sabe precisar a data), em Pittsburgh, na Pensilvânia, Estados Unidos. Seus pais, Andrej e Julia Warhola, emigraram da antiga Tchecoslováquia para os Estados Unidos e ainda mantinham em casa a tradição de falar tcheco.

Desde garoto Andy colecionava fotografi as de estrelas do cinema. Com 17 anos iniciou seus estudos em desenho gráfi co no Carnegie Institute of Technology de Pittsburgh. Ao fi nal do curso mudou-se para Nova Iorque as-sumindo o nome Warhol. Lá começou a trabalhar como ilustrador de livros, organizou mostras, fez publicidades artísticas para revistas famosas como a Vogue, Glamour e Seventeen.

Fã obcecado do escritor Truman Capote, Warhol elabora sua primeira exposição individual mostrando quinze desenhos baseados na obra do autor. Em 1961, Warhol dá início ao que seria seu trabalho mais célebre. Tendo como base fotografi as e utilizando técnicas que derivavam da publicidade, ele pinta vários quadros retratando objetos famosos como as latas da sopa Campbell’s, garrafas de Coca-Cola e as notas de Dólar.

Em 1963, inaugurou o seu estúdio permanente chamado The Factory, em uma alusão a sua tentativa de “viver como uma máquina”. A partir de então, Warhol parou de retratar objetos e passou a pintar pessoas mundial-mente conhecidas como: Jacqueline Kennedy, Mao Tse-tung, Elvis Presley, Che Guevara, Marilyn Monroe, entre outros. Warhol utilizava a técnica da serigrafi a para transferir fotografi as para grandes telas, e depois as pintava com cores gritantes. Esta nova forma de pintura iniciou um movimento que fi cou conhecido como Pop Art, que se caracterizava pela mistura do mundo da arte e do mundo do consumo.

Já mundialmente famoso, montou a exposição Death and Disaster que não foi tão bem recebida pelo público e pela crítica. Esse resultado é compreensível, já que a exposição mostrava obras baseadas em acidentes automobilísticos.

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15JUNHO 2007

O personagem

· texto · pery negreiros· colaboração · prof. márcio acselrad· pauta original · maurício rocha ·

O tempo adora brincar com os acontecimentos em nossa vida real, mas o cinema de vez em quando se vinga e, com maestria, usa a ficção para brincar com o tempo

ONIPRESEN E O filme começa pelo fim. Logo após os créditos finais (sim, eles aparecem no começo), dois homens, Pierre e Marcus, estão num “inferninho”, à procura de um sujeito de nome Tênia. Marcus está claramente transtornado. Pierre está na ingrata posição do amigo ponderado que tenta dissuadir o outro de cometer uma loucura. Ao final da sequência, quando encontram um homem que se nega a responder se é a pessoa pela qual procuravam, é a vez de Pierre pegar o espectador de surpresa: ele (o mesmo que parecia ser o mais racional da dupla) se arma com um extintor de incêndio e atinge a ca-beça do homem furiosamente até matá-lo, enquanto os presentes, estupefatos, apenas observam a cena quase surreal, sem nada entender. O espectador também fica na ânsia de compreender o que está se passando. Como a conseqüência de um ato poderia se apresentar antes de suas causas?

No cinema tudo é possível. Além da violência despudorada demonstrada em seqüências como essa, o filme Irreversível (Irréversible, França, 2002), do franco-ar-gentino Gaspar Noé, tem como característica marcante o formato da narrativa. A partir do assassinato na primeira cena, com o desen-rolar dos acontecimentos sendo contados de trás para frente, vai sendo esclarecido o porquê da fúria dos dois amigos na boate como conseqüência de um fato que ocorre

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E no meio da trama. O tempo, que é trabalhado no roteiro (que também é de Noé) como uma espécie de personagem que se encarrega de virar e revirar a vida das pessoas do lado avesso, se transforma em elemento de composição da narrativa, demons- trando para o espectador, a partir dessa técnica de montagem, que o destino não pode ser mudado. “O tempo destrói tudo”, diz a frase no início e também no final do filme, ou seja, o homem seria uma criatura indefesa, impotente diante das situações desencadeadas por suas ações.

Um filme que trabalha a narrativa de forma semelhante é Amnésia (Memento, EUA, 2000), dirigido por Christopher Nolan. O personagem principal, interpretado por Guy Pierce, é acometi-do, após o bárbaro assassinato de sua esposa, por um distúrbio na mente que o impede de gravar fatos recentes ocorridos após o crime. Para poder se orientar, tira fotos com uma máquina Polaroid, faz anotações em pedaços de papel e até chega a tatuar o corpo com palavras que contenham infor-mações a fim de investigar o que de fato aconteceu. O espectador não pode perder nenhum detalhe das seqüências, pois, se desgrudar os olhos da tela, corre o risco de passar a não entender nada do quebra-cabeça que passa a ser montado, ficando tão confuso quanto o personagem.

P

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17JUNHO 2007O“O cinema é um meio bastante apropriado para se pensar o tempo, já que é a arte no tempo por excelência. Além disso, graças à montagem, pode-se ter experiências temporais as mais diver-sas”, afirma o professor Márcio Acselrad, que é coordenador do Cineclube Unifor.

Para as platéias incautas que estiveram pre-sentes às projeções do cineasta David W. Griffith nos anos 1910, a idéia de uma narrativa que não tivesse um tempo linear, ou seja, uma história que não tivesse seu início, meio e fim, seguindo uma ordem imutável da unidade tempo, soaria completamente disparatada. Hoje em dia, após a difusão de inúmeras e inovadoras linguagens cinematográficas, com o surgimento de novas tecnologias em mais de um século de cinema, o número de possibilidades criativas para as nar-rativas teve um aumento significativo.

Na série De Volta Para o Futuro (Back to the Future,1985, 1989), de Robert Zemeckis, o tempo também é personagem. Na estória, um garoto viaja pelo tempo com a ajuda de um cientista e acaba se deparando com a possibilidade de mudar o futuro através do passado, além de antever o futuro. Um exercício e tanto de imaginação (e de lógica) para os espectadores que buscam algo mais leve que os filmes citados no início da matéria.

Magia atemporal“Festim Diabólico” (Rope, EUA, 1948),

de Alfred Hitchcock. “Embora o tema do filme não seja o tempo, a experiência originalíssima do diretor implica uma sensação curiosa nos espectadores. A estória do filme ocorre em tempo real, como se fosse toda realizada em um único plano sequência. Assim, ao longo de uma hora e meia acompanhamos exatamente uma hora e meia da vida dos personagens.”

“O Feitiço do Tempo” (Groundhog Day, EUA, 1993), de Harold Ramis. “O jornalista representado por Bill Murray se vê preso em uma cilada temporal: misteriosamente, e de uma hora para outra, todos os dias de sua vida se tornam o mesmo. Ele vai dormir e quando acorda, está de volta ao início do dia anterior. Uma fábula deliciosa a respeito da relação que temos com o tempo, tratando-o como se fosse eterno quando na realidade é profundamente efêmero.”

“As confissões de Schmidt” (About Schmidt, EUA, 2002), de Alexander Payne. “Jack Nicholson vive um aposentado em crise ao perder a esposa, de quem ele não sabia mais se gostava ou não. Empreende então uma viagem a fim de impedir sua filha de casar, mas aprende muito mais do que imaginava. Aprende que nunca é tarde para mudar, e que o tempo, portanto, está sempre dentro de nós.”

“Baraka” (Baraka, EUA, 1993), de Ron Fricke. “Uma experiência cinematográfica única. O filme não tem diálogos e mostra, de forma lenta e sensível, imagens da natureza e de diversas culturas, permitindo um sentido diferenciado da temporalidade, do passado, do presente e também do futuro.”

“Five” (Five, Irã, 2004), de Abbas Ki-arostami. “Igualmente perturbador, trata-se de cinco takes longuíssimos em que pouca coisa “acontece”. Pelo menos dentro da nossa percepção tradicional do que seja um acon-tecimento. A lentidão das cenas contrasta com a velocidade alucinante da vida moderna.”P

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O passar das horas, dos dias ou a sensação que o homem tem de ver tudo passar tão devagar. Esses são só alguns exemplos de como o tempo inspira os mais famosos escritores da literatura universal, de Machado de Assis a Simone de Beauvoir. O lei-tor é convidado, no sim-ples ato da leitura, a pen-sar sobre como o tempo interfere em nossas vidas

A literatura propicia experiências temporais inu- sitadas. Pode-se, por exemplo, ler durante vários dias (ou até semanas) uma história que conta um dia na vida do personagem, como ocorre em Ulis- ses, de James Joyce, ou ler em um só dia a história da vida inteira de um personagem, como é possível em “Todos os Homens são Mortais”, de Simone de Beauvoir. A extensão da narrativa, a linguagem e a complexidade ou não do estilo é que podem determinar o tempo de leitura.

A professora de Literatura do Curso de Le- tras da Unifor, Aíla Sampaio, diz que, no caso da literatura contemporânea, as narrativas apenas seguem a tendência, também contemporânea, de registrar o tempo: “O tempo está passando mais rápido em todos os setores e a literatura in-corpora as tendências de seu tempo”, diz. Para ela, a narrativa contemporânea tende a ser mais curta, rápida. Como um jato, para chegar ao leitor “sem tempo” que a consome.

O tempo é um dos três elementos (os outros são espaço e personagens) que não pode faltar Re

LITERÁRIAS· texto · bruno anderson · rosanni guerra · ilustração · richell martins ·

invenções

em uma narrativa, podendo ser usado de forma cronológica ou psicológica. Porém, o escritor sempre sente a necessidade de estar criando e reinventando esse tempo. Para o professor e mes-tre em Literatura, Batista de Lima, essa tendência existe como uma necessidade de se fugir do tempo cronológico, que é o tradicional.

Ainda segundo Batista, os autores constroem suas histórias utilizando vários tempos que se unem para formar um novo tempo. “Hoje em dia eles (autores) querem fazer uma narrativa em que se coloquem flechas, como uma colcha de retalhos, então não é um tempo, são tempos que se unem para formar um outro tempo”.

Pode-se dizer que a obra “Estorvo”, de Chico Buarque, por exemplo, apresenta uma carac-

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terística marcante do homem contemporâneo: a falta de perspectiva de um homem que vive numa sociedade cheia de hipocrisia em que os bons valores estão em decadência. Diante desse cenário, o tempo, para o personagem principal, passa de maneira descontínua, sem que ele saiba se é dia, tarde ou noite. Na leitura da obra não se pode dizer que se passou um dia, um mês ou um ano na vida do personagem, característica que foge totalmente do tempo cronológico.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas (de 1881), de Machado de Assis, temos uma outra criação de tempo na literatura, considerando

que o romance foi publicado no final do século XIX: a do tempo imóvel (controlado pelo

autor) e a de um “defunto autor”, pois o protagonista, Brás Cubas, conta primeiro como morreu, para depois relatar como viveu sua vida. Durante o romance, o narrador recorre diver-sas vezes à digressão, interrompendo

a ordem de sucessão dos fatos, para lembrar de um fato do passado. “Com a

estratégia de Machado, do defunto autor, ele (Machado) tem o perfeito manejo do seu

tempo, porque já está além dele”, conclui Aíla. Alguns autores preferem não fugir do tempo

cronológico, e sim criar novas maneiras de ver passar dias, horas e meses. É o caso, por exem-plo, de José de Alencar, Rubem Fonseca e Caio Fernando Abreu.

José de Alencar, em Cinco Minutos, é ex-tremamente minucioso e o narrador faz refe- rência não apenas às datas, mas às horas. Nessa obra, o tempo passa de maneira lenta, como se pode observar no próprio discurso do narrador: “Vivi um mês, contando os dias, as horas e os minutos; e o tempo corria vagarosamente para mim, que desejava poder devorá-lo”.

Agosto, de Rubem Fonseca, cujo título já remete ao limite temporal, já que se passa du-rante os 24 primeiros dias do mês, vai desde o atentado ao jornalista Carlos Lacerda ao suicídio do então presidente Getúlio Vargas. Como é um romance, e não um livro de História do Brasil, há a presença de um enredo ficcional que tem como protagonista o comissário Matos, que investiga, entre outros crimes, o atentado pos-sivelmente comandado contra Lacerda.

Já na obra “Onde Andará Dulce Veiga”, de Caio Fernando Abreu, a história toda acontece em uma semana, de segunda a domingo.

Cada dia tem um título e o último, que é o domingo, se chama “nada além”. São 212 páginas onde o autor retrata a vivência do tempo acelerado, essa multiplicidade de coisas, fragmentos e excesso de informações da nossa contemporaneidade.

Segundo o professor e psicólogo Daniel Mattos, que defendeu sua tese de Mestrado de Psicologia Social na UFC sobre a obra de Caio Fernando Abreu, o romance busca quebrar a barreira de espaço-tempo. “Esse sentimento do ‘nada além’ vem denunciar o vazio, a falta de sentido e a dificuldade de estabelecer conexão entre o passado, presente e futuro. Está tudo tão acelerado, que o personagem quer tomar um lexotan (remédio que ajuda a controlar a tensão e ansiedade)”.

A poesia também tem sua vinculação com o tempo. Nos poemas de Cecília Meireles e Vinícius de Moraes, por exemplo, a passagem dele é marcada como algo inevitável. Leiamos Vinícius, em seu “Soneto de Fidelidade”: “Que não seja imortal posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure” ou nos versos de:

“De manhã escureço De dia tardo

De tarde anoiteço De noite ardo”

/.../Meu tempo é quando

Nos primeiros versos do “Soneto da Fideli-

dade” o amor é tido como fugaz porque o pró- prio tempo o é. Já no segundo poema, o eu lírico (a voz que fala no poema) se coloca em todos os espaços do tempo cronológico e estabelece que o seu é “quando”, ou seja, é sempre.

Já Cecília Meireles tem uma relação angus-tiada com o tempo, e, diante de sua inevitável passagem, entende tudo como efêmero, como nestes versos de “Motivo”:

“Irmão das coisas fugidiasNão sinto gozo nem tormento

Atravesso noites e diasNo vento”

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Num tempo em que a música sofre com a falta de talento de muitas das novas estrelas do showbusiness, encontra-se fazendo seu barulho, hoje um pouco mais discreto do que antes, aqueles que ainda têm os ouvidos sedentos de um som agradável e que não permitiram que a pressa e os investimentos nas megaproduções lhes roubassem o bom gosto.

Por esses motivos até hoje encontramos pes-soas que admiram artistas que não estão mais na ativa. Beatles, Legião Urbana, Raul Seixas, Cazuza, Elvis Presley. Para seus fãs não vai existir nenhum artista melhor que eles. Suas letras, suas melodias e seus estilos são insuperáveis. As mudanças que eles fizeram no mundo da música não podem ser superadas por um ídolo pré-moldado.

Mesmo depois do fim, esses artistas estão sempre na mídia, pois trabalhos feitos por eles estão sendo resgatados, “repaginados” e lançados para que os fãs antigos mantenham a saudade e os novos sejam conquistados. Recen-temente foi lançado o álbum “Love” com músi-cas dos Beatles que ganharam novas melodias para serem encenadas no novo espetáculo do Cirque Du Soleil, em homenagem aos músicos e seu legado à música. Aqui em Fortaleza, no último sábado de cada ano, acontece a festa do Freqüência Beatles na Concha Acústica da UFC, que conta com um público aproximado de 3.500 pessoas. Ao redor do mundo existe a Beatlesweek em Liverpool e a The Fest For Beatles Fans nos Estados Unidos.

Segundo a socióloga e beatlemaníaca as-sumida, Simone Oliveira Lima, o sucesso dos Beatles durante todos esses anos é devido a sintetização que eles representam do espírito da invenção e reinvenção da música pop.”O que eles fizeram deixou rastros, pois se vincula à música, em todos os sentidos. Completos. Abriram

Como nossos

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PAIS· texto · marina mamede · colaboração · larissa veras · fotos · laurêncio lima

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caminhos para o depois. E o que veio depois, ainda não supera, não apaga o que fizeram”.

Para ela, eles inovaram ao fazer um diálogo com a tradição e com as tendências musicais do seu tempo. “Criaram técnicas de gravação, ex-perimentando novas estruturas de composição, harmonizando vozes, construindo mudanças tonais, inserindo delírios orquestrais”.

Filmes também são uma forma de não deixar a imagem do ídolo morrer. Em 2004, foi lançado o filme “Cazuza, O Tempo Não Pára”, a biografia de um rebelde sem causa, mas que com seu carisma sabia conquistar o público e escrever letras que ficaram eternas. Programas também estão sempre sendo feitos em tributo a ele e foi num desses que o comerciante Hen-rique Ziemer, 28 anos, se tornou seu fã. “Eu estava sintonizando os canais e coloquei no Multishow e vi o programa “Por Trás da Fama” que era sobre o Cazuza. Eu claro, já conhecia Cazuza, mas nunca tinha escutado de verdade suas músicas. Eu vi o programa e me tornei fã imediatamente, achei que aquele era o espírito fiel dos anos 80 !!!”

Outro cantor que vai ganhar sua biografia nas telas é Renato Russo, líder da banda Legião Urbana. O nome do filme será “Religião Urbana” que contará o começo de sua paixão pela música até sua primeira apresentação no Circo Voador em 1983 com a banda “Aborto Elétrico”. Outros dois lançamentos cinematográficos terão como base duas das mais famosas músicas do cantor, “Faroeste Caboclo” e “Eduardo e Mônica”.

Raul Seixas também teve sua vida contada no livro “O Baú do Raul Revirado” que conta com material visual e escrito, muitos deles guar-dado pelo próprio Raul em seu baú, que não deixava passar nenhum relato da sua vida pes-soal e artística. Entre eles está a confissão de ser fã de Elvis Presley e de ter criado um fã clube para ele na Bahia.

Alguns ídolos da música, mesmo depois de “extintos”, tiveram suas obras perpetuadas. Beatles, Legião Urbana, Raul Seixas, Cazuza, Elvis Presley. Para eles, o tempo fez questão de parar, ou melhor, os fãs deram um jeitinho de pará-lo. Não existiu novi-dade que conseguisse superar esses artistas. Não houve tempo que os apagasse ou os deixasse esquecidos. Na verdade, foi o tempo o grande responsável pela sua glória, pois o passar dos anos abriu para eles a porta da eternidade

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Uma relação atemporalFã de verdade é aquele que veste a camisa, é fiel e supera o tempo, que não se deixa vencer pelas novas criações ou modismos e ainda se delicia com o trabalho do seu ídolo, revivendo os tempos antigos.

Isso é o que acontece com várias pessoas que, no quesito música, muitas vezes dese-jariam ter vivido em outra época para poder ser contemporâneo ao seu ídolo. Fábio Nogueira, fã declarado de Elvis Presley diz: “Eu estaria mentindo se dissesse o contrário. Tenho vontade sim de ter vivido na época do Elvis.”

Para Jorge Luis, guitarrista da banda Coda, criada inicialmente para ser um cover da Legião Urbana, na época que ele começou a escutar seus ídolos, os artistas não se preocupavam apenas com o entretenimento, mas, principal-mente, com a informação que a música levava

para seu público, que diferente de hoje, possuia um senso crítico mais aguçado. “Atualmente vivemos a ditadura da mídia, e não sei bem onde foi que aconteceu, mas acabamos por nivelar por baixo nossos artistas e hoje o que é sucesso absoluto nem tocaria nas rádios nos anos 80”. Jorge, teve a oportunidade de co-nhecer Dado Villa-Lobos, guitarrista da banda, e o privilégio de tocar com Marcelo Bonfá, baterista da Legião

Outros fãs filosofam quando pensam na razão da escolha de seu ídolo, como é o caso de Luciano Seixas, vocalista da banda Salt, que por coincidência, ou porque não, pela sua admi-ração por Raul, se parece muito com ele. “Cada um de nós tem um pouco de Raul. Quem não é sensível às dores do mundo? Quem não fica indignado com as injustiças, com a hipocrisia? Raul não era só cantar por cantar”.

Letras que ficaramAs músicas desses ídolos atemporais falam de relacionamentos amorosos, como em “Love me Tender” de Elvis Presley, “Love me tender/ love me sweet/ never let me go”. (Me ame eternamente/ me ame docemente/ nunca me deixe ir). E relacionamentos familiares, “Você culpa seus pais por tudo/ isso é absurdo/ são crianças como você/ o que você vai ser quando você crescer?” (Pais e Filhos – Legião Urbana). Política, como na música “Ideologia” de Cazuza, “Meus heróis morreram de overdose/ Meus inimigos estão no poder/ Ideologia/ Eu quero uma pra viver”. Comportamento humano, “You say you want a revolution/ Well you know/ We all want to change the world”. (Você diz que quer uma revolução/ Bem você sabe/ Todos nós queremos mudar o mundo). Sentimentos, “Quando o navio finalmente alcançar terra/ E o mastro da nossa bandeira se enterrar no chão/ Eu vou poder pegar em sua mão/ Falar de coisas que eu não disse ainda não/ Coisas do coração” (Coisas do Coração – Raul Seixas) e Vida, “Life is what happens to you while you’re busy making other plans”. (Vida é o que acontece com você enquanto está ocupado fazendo outros planos). (Beautiful Boy – John Lennon).

Temas que não perdem sua essência com o passar do tempo. Por essa razão é que eles não só preservam seus próprios fãs mesmo depois do seu fim como também conquistam novos a cada geração surgida.

As bandas Salt (acima) e Coda (abaixo)

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BeatlemaníacosEles são engraçados, inteligentes, divertidos, e o

que pode ser visto como sua principal característica: são beatlemaníacos! Tudo começou meio por acaso, com o jornalista Nelson Augusto, que aos poucos foi ganhando espaço na Rádio Universitária para tocar as músicas do inesquecível quarteto de Liverpool. Até que nasceu em 1990 o programa “Freqüência Beatles”, que hoje conta com uma grande audiência e com colaboradores completamente alucinados pelo som que embalou os maiores agitos na década de 1960. No programa, o único que possui formação jornalística é Nelson, os outros integrantes da turma, Astrid Leão, Fábio Parente e Francisco Parente, são professora, bancário e engenheiro, respectivamente, e são também a prova de que a pro-posta do “Freqüência” não é ser só mais um programa musical e, sim, perpetuar o rock de John Lennon, Paul MacCartney, George Harrison e Ringo Star.

O programa tem duas horas de duração e uma es-trutura simples: muita música e pouca conversa, o que importa mesmo é tocar os sucessos dos Beatles, fazer com que os ouvintes mais maduros revivam e com que os mais jovens conheçam e também se apaixonem pelo som da época em que o melhor mesmo era ser rebelde. A grande marca do “Freqüência Beatles” é que os apre-sentadores funcionem apenas como mediadores desse encontro entre fãs e Beatles, cultivando o público mais antigo da banda e garantindo com que a nova geração tenha contato com o bom rock. É um programa feito de fãs para fãs, onde o único astro é o quarteto que produziu uma obra musical revolucionária e eterna.

A atuação do programa no tocante à memória dos Beatles não se resume aos estúdios de rádio. Há também a banda Roubber Soul que é uma extensão do “Freqüência Beatles” e que proporciona aos fãs o sabor gostoso da saudade ao reunir inúmeros beatlemaníacos em suas apresentações, como acontece nas festas de fim de ano, na Concha Acústica, onde mais de 3.000 pessoas aparecem para ouvir e cantar Beatles.

A influência dos quatro cabeludos ingleses na vida da turma do “Freqüência” é enorme e vem desde a infância. Astrid Leão, formada em Letras/Inglês pela Universidade Federal do Ceará, diz que teve seu primeiro contato com a música dos Beatles quando ainda era uma criança: “eu tinha seis anos quando ouvi Beatles a primeira vez. Me apaixonei! Aprendi inglês rapidinho, achando que ia ter a chance de ver os quatro, falar com eles pessoalmente.”

Ela, assim como os outros integrantes da turma, tem na ponta da língua a resposta quando se questiona a preferência deles por Beatles: ”Porque não Beatles? Os Beatles são eternos, quebraram barreiras. Você vê o mundo antes e depois de suas músicas”.

Freqüência Beatles: sucesso desde 1990

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Um tempo

Ruy Vasconcelos, o realizador do documentário

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À primeira vista, um grande lago no meio do nada. Com uma aproxi-mação lenta, dando a sensação de corpo flutuante, a imagem se trans-forma num imenso muro que dá acesso ao cemitério. Miragem forma-da em meio ao semi-árido cearense. Conflito inicial: ima- gens de uma estrada sobreposta por imagens dos cemitérios; o dinâmico e o estático. A partir deste momento, sucessões de imagens fragmentadas de mo-mentos cotidianos de uma encruzi- lhada no sertão do Ceará: Aprazível – lugar de passagem, não de destino

· texto · renata gauche · fotos · gabriel andrade ·

Ganhador do primeiro lugar do concurso DOCTV III, Ruy Vascon-celos não esconde sua paixão por topônimos e nomes de lugares – um dos motivos por seu interesse em realizar “Uma Encruzilhada Aprazível”. Nascido em Camocim-CE, Ruy é professor formado em História e com Mestrado em Sociologia pela UFC. Atualmente explora o seu tempo – entre outras atividades, traduzindo poemas em diversas línguas e atualizando-os em seu blog pessoal. Em seu projeto vencedor, Ruy deixa claro que sua referência é a literária, revelando suas vivências de infância em um documentário marcado pela fragmentação.

As viagens de Camocim para Fortaleza, vivenciadas em sua in-fância, foram rememoradas, muitos anos depois, numa ocasião em que o pai de Ruy operou a vista e precisou que o filho dirigisse até Camocim. Foi quando a idéia começou a germinar. “Essa questão do tempo da parada durante uma viagem, [pausa] que é um tempo

APRAZÍVEL

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Seu Benedito Gomes

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curto para quem está passando por lá; mas naturalmente é um tempo longo para quem está trabalhando por lá, servindo quem tá passando por lá; reparando os veículos que passam”, afirma o realizador.

A memória elástica de Seu Benedito Gomes, morador do Outeiro (colina situada em Aprazível) que vive de forma muito rudimentar criando cabras, fascinou Ruy. Juntamente com o documentarista Alexandre Veras, que o acompanhava na visita, pensou que talvez tivessem uma chance de fazer um documentário sobre aquele lugar. A proposta era trabalhar com esses tempos muito diversos – que, segundo o realizador, são basicamente três: aquele tempo de quem está passando ali; o tempo de quem está servindo às pessoas de di-versas formas; e o tempo de quem está exilado da informação que passa pela estrada, como é o caso do próprio Benedito Gomes e de outros que moram por lá.

De acordo com o Ruy, “o conceito de tempo é interessante para a gênese do Aprazível porque a gente constrói muito dentro desta dinâmica diferente de tempo – o tempo de quem passa e o tempo de quem mora, de quem habita esse local de passagem”. Em “Uma Encruzilhada Aprazível”, o tempo artesanal dos moradores da região – principalmente do Outeiro, sugere um tempo que não é mais visto no mundo moderno. A proximidade da estrada, mas a distância do tempo; é traduzida no filme, em alguns momentos, por imagens de caieiras (algumas situadas na beira da estrada), desgastadas pelo uso, fabricando a cal de uma forma lenta, rudimentar.

Tempo do audiovisualO audiovisual vem crescendo rapidamente no Ceará, através de in-tervenções artísticas cada vez mais inovadoras em termos de formas e sons que antes não eram explorados. O número de produções voltadas para o audiovisual – incluindo fotografia e vídeo-instalação, fizeram florescer um mercado que antes era restrito a alguns. Com o trabalho de ONGs como o Alpendre – e atualmente da Escola de Audiovisual e do Centro Dragão do Mar; os atuais estudantes da área conseguem o apoio técnico e artístico – além do aparato tecnológico, para pôr em prática suas idéias e concepções sobre o fazer cinema.

Para Ruy, uma característica marcante na produção local, é o deslumbre com a instrumentalização a partir da tecnologia, o que parte para algo mais improvisado – enquanto realizadores como ele se preocupam mais com uma pré-construção. Desta forma, há uma interação entre os realizadores mais experientes – como Alexandre Veras, Ivo Lopes e o próprio Ruy Vasconcelos (mesmo sendo “Uma Encruzilhada Aprazível” seu primeiro trabalho como diretor) e os iniciantes, criando um ciclo inovador na área do audiovisual, no qual há um grande espaço para discussão e diálogo.

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Um posto de gasolina cercado por poucas moradias num movimentado entron-camento rodoviário em pleno sertão cearense. Assim é o distrito de Aprazível. À exceção dos raros dias de chuva, um sol cai em placa fervente sobre a planície adusta e desarborizada. As nuvens que sobrevoam o vilarejo nos dias ensolara-dos mais parecem irônicas promessas de água. O solo é cascalhento, pedregoso. As raízes das plantas agarram o terreno como unhas não feitas há anos. Nesse

distrito, a 27Km de Sobral, duas rodovias se tocam formando um pequeno com-plexo: lanchonetes, posto de gasolina, precários dormitórios. Encruzilhada: local de passagem, nunca paradeiro final. Para o cruzamento convergem três destinos

de origem: o litoral, o sertão, a serra.Trecho retirado do projeto “Uma Encruzilhada Aprazível”, de Ruy Vasconcelos.

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Notas do realizador[Alguns livros recostados na parede da garagem, uma rede armada ao lado. Uma mesa de plástico

com um copo de cerveja em cima – no canto da mesa, seu habitual maço de cigarros. Em contraste com os prédios modernos e o trânsito urbano do centro do bairro Aldeota, Ruy atualmente mora junto com seus pais numa casa construída nos anos 1970 – e desta forma aconchegante, ele constrói com suas palavras pensamentos profundos quanto à sua história pessoal e o conhecimento adquirido durante seus 44 anos de experiências – com um falar calmo, quase que didático].

Uma Construção AprazívelA impressão que eu tenho, é que você só pode, de fato, realizar um trabalho da magnitude do Aprazível quando você tem uma vivência, uma experiência muito forte do objeto que você está tratando; e no caso do Aprazível, foi uma [pausa] relação muito orgânica. A construção do Aprazível tem a ver com a passagem, com a experiência mesmo de garoto; talvez não tão entranhado, não tão cúmplice quanto as Vilas Volantes (“As Vilas Voltantes – O Verbo Contra o Vento”; direção: Alexandre Veras. Baseado na tese de mestrado de Ruy Vasconcelos), porque as Vilas Volantes era a minha infância, eu vivia ouvindo falar daquilo; e o Aprazível não, o Aprazível já era uma espécie de rito de passagem mesmo.

Sempre pensei um pouco disso, em termos de documentário, e veiculando isso com minha história pessoal; se as Vilas seriam a minha infância, o Aprazível seria a adolescência e talvez, se um dia eu fizer um documentário sobre Fortaleza, vai ser sobre algo mais maduro.

Linguagem e formaEu sou completamente obcecado pela forma, até por vir de uma formação muito centrada na literatura e línguas. Acho que uma noção muito forte de poesia para mim é uma noção de medida, de mesura, e que muitas vezes é de tempo, de tempos – tempos que são subjetivos, que se dão em velocidades diferentes.

O plano seqüência num documentário é importante na medida em que ele contribui para a soma do documentário como um todo; então eu jamais utilizaria um plano seqüência pelo plano seqüência em si – contanto que há plano seqüência no Aprazível, mas os planos seqüência que existem no Aprazível eles como que traduzem um tempo que é mais lento, ou seja, há um casamento, uma mesura, uma medida muito interativa entre o conteúdo e a forma.

Então talvez seja mais interessante trabalhar a coisa da direção do caminhão numa linguagem mais fragmentada, um corte mais rápido; e quando você vai trabalhar com a questão da carroça, trabalhar com um plano seqüência. Eu acredito que essa noção de ritmo, que é uma noção que vem muito da música, vem da poesia – foi determinante para a economia geral do documentário.

Um tempoUma forma real de tempo não há. O tempo é algo muito subjetivo, tem um grau de subjetividade muito grande e é algo difícil, um conceito muito fugidio. Eu penso muito em outras referências que não são ortodoxamente modernas. As categorias que nós utilizamos hoje em dia são apenas cat-egorias que foram criadas num tempo social; e que esse tempo social dá ilusão de que nós estamos num momento último da evolução da humanidade que culmina com esse presente que a gente tá vivendo hoje em dia. Isso é ilusório. Já houve épocas muito mais ricas em alguns aspectos do que o tempo presente.

Eu sinto que o tempo está ligado de uma forma muito forte com a noção de espaço. Um lugar sem gente, sem humanidade, é um lugar sem história, sem tempo. O tempo se dá na medida em que a subjetividade da gente está filtrando este lugar que a gente vai transformando em local de convivência, agradável, mas que é filtrado pelos seus sentidos, pela sua sensibilidade e pela sua interação social. Isso é muito importante; essa conversa com o outro, essa forma de construção que nunca é algo isolado, que só se dá dentro do circuito de interação com as pessoas. É tão forte essa idéia de tempo, ligado ao local, que é onde vai desaguar, por exemplo, a teoria da relatividade. E ao mesmo tempo se cria umas utopias em relação a tempos e lugares, especialmente quem tem uma vivência maior de outros lugares.

AlpendreTel: 3219-2062Escola de Audiovisual de FortalezaTel: 3253-7052

MAIS INFORMAÇÕES

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PROFISSÕESem extinção?

Alfaiate, engraxate, barbeiro, relojoeiro, profissões que há alguns anos eram comuns, hoje, parecem totalmente obsoletas. As transformações econômicas, tecnológicas e culturais trouxeram mudanças nos hábitos e costumes da sociedade. Mudanças essas que afetaram inclusive as re-lações de trabalho. Novas profissões apareceram, outras sumiram, fo-ram substituídas ou tiveram que se adaptar aos novos tempos. Muitos destes profissionais continuam no batente, trabalhando por necessidade ou amor ao ofício, na profissão que escolheram ou que foi passada por gerações. Para tanto, contam com o apoio de uma clientela seleta que, movida por saudosismo ou preferências, se mantêm fiel e ainda ajuda na conquista de novos clientes

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Centro da cidade. Ao passear por esse lugar, aspectos de um passado e de uma tradição são registrados. Estabelecimentos antigos e tradi-cionais. Em alguns, encontram-se profissionais que, aos poucos, foram sendo esquecidos. São eles os alfaiates, os relojoeiros, os barbeiros, os engraxates, entre outros. Para os que ainda resistem ao tempo e aos avanços tecnológicos, o amor pela profissão é o grande motivo que os levam a superar as ameaças que a modernidade pode trazer. O gosto pelo ofício faz com que insistam em não parar.

Em frente ao Cine São Luiz, na Praça do Ferreira, sentado num banquinho de madeira com seu material de trabalho, José Rufino da Silva, 65, o Pirrita, como é conhecido no lo-cal, engraxa sapatos de clientes antigos e de qualquer um que solicite o seu serviço. Todos os dias, há 45 anos, ele faz isso, com as mesmas técnicas. Pincéis, flanela, água e graxa são seus principais instrumentos de trabalho. “A tecnolo-gia está aumentando, mas eu estou ficando na mesma. Os tempos modernos trouxeram muitas

inovações, mas eu não acompanho. Existe uma ‘maquinazinha’ de engraxar sapatos, mas eu não uso ‘ela’. Eu uso é os ‘dedim’”, diz Pirrita. Para ele, os próprios dedos tornam o serviço mais perfeito e o cliente gosta mais.

O engraxate critica a fabricação atual de sapatos, pois, de acordo com ele, 40% da fa- bricação de sapatos é descartável. Os modelos são outros, hoje. “São uns couros flexíveis, mais fracos, é borracha, aí tudo é ruim. Usou, estragou, jogou fora e, há 20 anos, se usava um sapato por 40 anos”, lamenta.

Pirrita não acredita que sua profissão um dia chegue ao fim, mesmo com todas as criatividades e invenções que a modernidade propicia. Para o engraxate, cada profissional, para se manter no mercado, precisa acompanhar o tempo e os lança-mentos que vão surgindo. Ele enfatiza ainda que o grande segredo para atrair novos clientes e não perder os antigos é atendê-los de modo educado, criando muitas vezes um vínculo de amizade, sem esquecer do mais importante: “prestar um serviço bem feito a eles”, afirmou.

Pirrita usa os “dedim”

para um trabalho mais

caprichado

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ResistênciaSegundo o memorialista e historiador Miguel Ângelo de Azevedo, mais conhecido por Nirez, sempre existem clientes “resistentes”, que ainda procuram por essas profissões consideradas em extinção. E, como explica Nirez, se há uma procura pelo serviço, deve haver alguém que o faça. Ele lamenta a destruição das tradições com a passagem do tempo. “O tempo é ine- xorável. Aos poucos, esses profissionais vão se adaptando e conseguindo se relacionar com a modernidade. Os velhos morrem e os jovens vão adquirindo as tecnologias de sua época, fazendo com que apareçam novas tradições”.

Alguns profissionais “em extinção” buscam manter certas tradições. Na rua do Rosário, 313, no Centro, lê-se uma placa num prédio antigo: Alfaiataria Montreal. Uma sala grande guarda registros de um tempo passado. Manequins da década de 1970, radiola, modelos antigos de televisão, telefones e máquinas de costurar ilus-tram o ambiente, relembrando uma época em que o local era freqüentado pela alta sociedade e, o serviço, muito requisitado. Tempo em que quase todos os homens usavam paletós.

Entretanto, nem todos os profissionais re-jeitam as mudanças que a passagem do tempo trouxe. Alguns até se sentem beneficiados por elas. É o caso do alfaiate Antônio Joaquim de Sousa, dono da Alfaiataria Montreal, que prefere não dizer a idade e está exercendo a profissão no mesmo local há 40 anos, uma “existência”, segundo o próprio. “Se fosse a- tender a todos, se não tivesse roupa fabricada, o alfaiate não teria tempo, não dava ‘conta’ do serviço. Além de que, com as novas máquinas, é mais fácil fabricar e agilizar o tempo de entrega” salienta. Antônio lembra que antigamente era chique fazer roupas em alfaiataria e não faltava emprego. “Antes só tinha a Renner como fábrica de roupas e hoje você fabrica até em quintal” [risos], diz.

Para a costureira Alba de Sena Ribeiro, 55, que aprendeu a costurar aos 14 anos, a passagem do tempo foi positiva em relação às tecnologias, que melhoraram as condições de produção do seu trabalho, pois ainda há pessoas que gostam de copiar os modelos de roupas e recorrem às costureiras para fazer a roupa desejada sob medida e exclusiva. “As pes-

O alfaiate Antônio busca unir tradição e modernidade

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soas mais velhas, acostumadas com a costureira, e com muitas reclamações quanto às roupas vendidas em lojas, são as que mais procuram o serviço, mas também tenho muitas clientes novas”, ressalta.

O depoimento da costureira é confirmado por sua cliente Milene Muniz, 20, que opta por mandar fazer roupa, em vez de comprar em lojas já pronta. “Às vezes pode até ser mais barato comprar em uma loja, mas para mim, a minha costureira tem o seu valor. Eu pago por essa diferenciação”, declara.

Entretanto, Alba reconhece que um dos pontos negativos que a passagem do tempo trouxe foi a redução da clientela por causa da facilidade das vendas parceladas em lojas. “Os jovens gostam de shoppings, de ver a roupa na vitrine, de grifes e compram logo”, observa.

Outro que reclama da redução do número

de clientes é o barbeiro Francisco Joaquim da Silva, conhecido como “Baiano”, 63 anos e no batente há 42. De acordo com ele, quase toda rua tem um gabinete e quase todo bairro de For-taleza tem um shopping com salão de beleza. “Portanto, as pessoas preferem ir ao salão do bairro em que moram, o que fez com que caísse muito a procura pelas antigas barbearias”, ex-plica. Na tentativa de se manter no mercado, Baiano busca aperfeiçoar seus equipamentos, “porque tem que mudar, se não se aperfeiçoar, como diz o ditado, você dança”, avalia.

O relojoeiro Wilson Pinheiro, 55, há 35 anos na profissão que foi ensinada pelo pai, sente saudades do tempo em que os relógios eram mecânicos. “Antigamente era melhor porque o relógio era mecânico, era mais perfeito do que hoje, tinha mais qualidade. Hoje você só muda a bateria e a pulseira”, observa.

Baiano procura

se adaptar às novas

exigências do mercado

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“Aqui estou, mais um dia.Sob o olhar sanguinário do vigia.(...)Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá...Tanto faz, os dias são iguais.Acendo um cigarro, vejo o dia passar.Mato o tempo pra ele não me matar.(...)Cada detento uma mãe, uma crença.Cada crime uma sentença.Cada sentença um motivo,uma história de lágrimas, sangue, vidas e glórias,abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão,ação do tempo” Diário de um Detento, Racionais MC’s.Composição: Rennan Beck

CON

TAGEM

regressiva· texto · ivna girão · niara rocha · colaboração · rafaela veras · foto · raphael villar ·

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Até passarmos por essa experiência, não dá-vamos importância alguma para o tempo dentro dos presídios. Os presidiários são, para a socie-dade, como o lixo, saindo da frente da porta, sumindo das vistas, ninguém lembra mais deles. Fomos invadidas por uma vontade de conhecê-los, conversar sobre a vida, saber sobre a rotina, a percepção e a ocupação do tempo dentro dos presídios. Quando recebemos esta missão de falar sobre o tempo no cárcere, várias questões vieram: como eles passam o dia? Eles consultam relógios? Calendários? Que importância tem o tempo para quem tem os dias quase todos iguais? Tínhamos nossas impressões e fomos sur-preendidas com o que nos apareceu: detentos que, por necessidades de sobrevivência, criavam estratégias para passar e consumir esse tempo, tão cheio de espaço a ser preenchido e tão vazio

de possibilidades e expectativas. A proporção do tempo parecia inversa a do espaço que eles tinham nas “trancas”.

Chegamos ao Instituto Penal Olavo Oliveira - IPPOO I. Avistamos o guarda que nos orientou por onde seria a entrada de acesso ao presídio. Lá se encontravam três seguranças que já esta-vam avisados da nossa visita naquela manhã de quinta-feira, dia 19 de abril de 2007. De modo rigoroso, mas também cauteloso, começaram a adotar os seus procedimentos de trabalho. Re-vistaram nossas bolsas, indicaram que passásse-mos pelo detector de metais. Avisaram que os nossos celulares deveriam ficar na portaria e o que nós estávamos temendo tanto: o nosso gravador não poderia ser usado. Tentamos de todas as formas, além de termos deixado bem claro que o uso do gravador seria para um

Na delegacia: o início de uma longa espera

FOTO: PATRÍCIA ARAÚJO

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trabalho universitário e que a entrevista tinha como objetivo saber um pouco do comporta-mento dos presos em relação ao tempo. Dis-seram que não seria possível. A negativa serviu para reforçar a construção institucionalizada da invisibilidade dos internos, sem sequer direito a voz. Mesmo sem entender qual aspecto da segurança seria ameaçado pelo registro de vozes em um gravador, ainda assim, insistimos. Ficou no ar um receio inconfessável, por parte da direção do presídio, de que os presos podiam “falar demais”. Então pedimos para que algum agente penitenciário nos acompanhasse para comprovar que realmente era uma “simples entrevista”. Fomos encaminhadas para a Di-reção. No caminho observamos que os detentos circulavam livremente em um grande pátio aberto, fora das celas. Escutamos um som, não detectamos o que era de imediato, se era uma roda de capoeira ou alguma outra atividade que os reclusos estavam praticando naquele momento. Ficamos curiosas, mas seguimos em frente. Eram, mais ou menos, umas 9h30min. Entramos na sala da diretoria. Enquanto esperá-vamos ouvimos a conversa da Diretora com um agente penitenciário e a enfermeira do presídio. Eles discutiam sobre alguns presos enfermos que estavam com tuberculose e hanseníase que os hospitais não estavam aceitando, mas que eles tinham que isolá-los para começar o procedimento certo do tratamento. Pediram que entrássemos. Apresentamo-nos e falamos do objetivo da nossa ida e da importância de estarmos com o gravador. A Diretora Sandra Helena não nos deu autorização para gravar. Segundo ela, isso caberia apenas ao Secretário de Justiça. A vontade de sairmos dali com algum depoimento foi maior. Falamos que não tinha problema, entrevistaríamos alguns presidiários e anotaríamos tudo à mão. Ela nos encaminhou para o rancho da direção, onde faríamos a nossa primeira entrevista.

Chegando ao rancho, local onde os fun-cionários e a direção se alimentam (uma es-pécie de refeitório) lá estava ele cozinhando, um homem moreno claro, de estatura média, bigode e cavanhaque, olhos castanho-claros. Na sua arcada dentária tinha um dente dourado e outro prateado, parecia muito vaidoso, além de muito simpático. Era o José Canuto Vieira, 53, vulgo “Paraíba”. O apelido veio do lugar onde morava, onde deixou a mulher e os filhos para

se refugiar em Fortaleza dos crimes que já havia cometido por lá. Segundo seu depoimento, depois de se encontrar com outra mulher e ter refeito sua vida no Ceará, continuou praticando crimes por aqui, onde acabou sendo preso. Cometeu três “121”, ou seja, homicídio. Já tem nove anos no presídio e nos contou da sua vontade de sair para viver uma nova vida, longe de crimes ou de “qualquer coisa errada”. “Estou aqui há nove anos e 8 meses. Nove anos aqui é uma vida. O trabalho aqui é bom. Você aqui está ocupado fazendo alguma coisa”. Acorda todos os dias às 5h para preparar o café-da-manhã dos funcionários que já se encontram no presídio, depois faz a merenda para os demais que só chegam às 8h, posteriormente faz o almoço, em seguida a merenda da tarde e às 16h pre-para o jantar. Aderiu à rotina, como lógica de ocupação e significação do tempo. Sua tarefa é ser o cozinheiro do rancho da direção, atividade que faz todos os dias para diminuir sua pena. “Trabalhar aqui no rancho é bom. Em um ano de trabalho você diminui quatro meses”. Ainda lhe faltam oito meses. Diz que não tem tempo de participar das atividades recreativas do presídio, como jogar bola, baralho, dama, malhação, ir para escola que funciona lá dentro, sua diversão é nos dias de quarta e domingo, quando a es-posa vai visitá-lo e as quintas, quando participa dos encontros da igreja católica. “A ocupação é boa, porque ajuda a passar o tempo, além da gente não pensar em besteira”. Fala dos seus prazeres: “Todo presídio tem drogas, mas eu não gosto. Só como e cozinho”. Relata sobre o seu bem-estar no presídio, que tem a liberdade de falar com todos inclusive com a Diretora e da confiança que todos têm por ele. “Falo com a minha família no telefone público do presí-dio e ninguém me fiscaliza. Aqui fico solto das 5h até as 18h, mas se por acaso me pegarem fazendo algo errado vou para o castigo. Com todos funcionam assim”. Fala sobre a questão do tempo vivenciado por eles: “Todos os presos têm calendário e relógio. Nas celas têm televisão, (aparelho de) DVD. Aqui têm muitas atividades, mas não tem espaço para todos trabalharem com o intuito de diminuir a pena”. Relata a sua satisfação com o ambiente: “A assistência médica é boa e a comida também, tem remé-dios, enfermaria e se o preso fica doente nos mandam para o hospital”.

Já eram umas 10h. Horário de muito tra-

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balho no rancho. A conversa acontecia, o cheiro de assado de panela invadia o ambiente. Meio sem jeito, resolvemos atrapalhar os afazeres de Seu Vicente Berto Ferreira, 61, cozinheiro do rancho. Queríamos conversar. E ele também queria, tanto que largou logo sua panela e disse para a Gracinha (cozinheira) cuidar de tudo. Sua disponibilidade em conversar foi grande. “Tem muitos aqui que não têm visita. A gente que tem visita, se entrerte. A gente conversa, vê como é que tá a vida, mantém contato. Passa o tempo. É bom, pois alivia”. Contou que está há três anos no presídio. “Estou condenado a nove anos pra tirar seis”. Sua voz baixa mostrava sua timidez. Ora se constrangia, se refugiava, fugindo para suas panelas, ora sentia prazer, falava da sua família. “Tenho oito filhos que já são todos adultos que vêm me ver. É ruim ver o tempo passar lá fora. Eu num posso fazer nada, vejo o tempo passar. Tenho muitas saudades. Quando vem um aqui eu mato a saudade. Cada um que vem aqui representa a família toda. Aí, alivia a saudade grande. Dia de quarta só entra a

esposa. Ela passa o dia aqui comigo até às 4h da tarde. O dia das crianças entrarem é no segundo domingo de cada mês. Já vieram dois netos meus aqui. “É tão bom quando eles vêm.” Seu Vicente passa o dia todo no rancho, de 6h da manhã às 8h da noite. “A gente trabalhando se entrerte. A maioria dos outros que não tem o que fazer, só pensa besteira. Depois que a gente já tá aqui tem que trabalhar pra tentar viver bem.” O trabalho dá dignidade ao homem. À noite, quando os serviços no rancho acabam, a tristeza parece se instalar. O momento ruim do dia, para ele e muitos outros, é a hora de ir para as celas às 18h. Lá, preso, dá para sentir o valor da liberdade. “Bate uma tristeza, quando a gente vai pra tranca às 5h, 6h da noite. A pessoa, nessa hora, lembra da liberdade lá fora, mesmo tendo um outro dia pra trabalhar e tocar a vida. Aí, a gente percebe que perdeu a liberdade. Aí, serve de exemplo. Na tranca tem todo tipo de perigo. Acontece de tudo!”

No espaço ao lado, acontecia uma reforma. Muitos outros ali trabalhavam com a função

À espera da sentença

FOTO

: PAT

RÍCI

A AR

AÚJO

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de serviços gerais, pedreiros e auxiliares. A agitação aumentava, pois a hora do almoço se aproximava. Seu Vicente, meio sem jeito, pediu licença e nos ofereceu um café como agrado e despedida de um momento de cum-plicidade que passamos juntos, mesmo sem nos conhecermos bem. Ainda não queríamos ir embora. Percebemos a presença de outros três na porta, todos com um olhar carente quase infantil, como se perguntassem “não vai me chamar também não?”. Um deles, Seu Pedro César Ferreira da Rocha, 44, se aproximou. Já entendido da conversa que acontecia, foi logo afirmando que era um homem trabalhador e que isso lhe fazia bem, o tempo passava mais rápido. “Já trabalhei no Rancho dos presos, agora faço serviço geral, faxina. Se não fosse o trabalho aqui eu estaria doido.” Sua situação era difícil. Segundo ele, era a terceira vez que “caía” no presídio. Responde por homicídio. Não pôde estar por perto quando membros da sua família faleceram. Sentia muito pelo desprezo dos que ainda estavam vivos. “Eu

estava aqui quando minha mãe morreu, meu pai e meu irmão. Minha família me desprezou. Tenho cinco filhos. Faz cinco meses que ninguém vem me ver. Só Deus. Fico sentido, pois quando a gente conversa é bom, esquece do tempo”. Fez questão de afirmar, durante todo tempo da entrevista, ser um homem de crença forte em Deus e que era Ele que lhe fazia companhia nos momentos de solidão, depressão e tristeza. “Eu tento não pensar muito na vida. Entrego na mão de Deus. Rezo toda noite pra passar o tempo”. Mesmo não se sentindo a vontade em expor suas idas e vindas para o presídio, afirmou com uma precisão temporal as datas - com dia, mês e ano decorados - que “caía” no presídio e saía para as ruas. “Minha primeira cadeia foi em 83. Entrei no dia 30 de setembro de 83. Saí no dia 09 de janeiro de 84. Vim de novo em 89 e saí em 92. Caí de novo aqui no dia 29 de janeiro de 96.” Seu Pedro César já tinha muito tempo de cadeia. Quando “caiu” a primeira vez, só pen-sava em vingança. Encontrou abrigo na fé para tentar “melhor passar” o tempo e os dias. Ao

Tenho oito filhos que já são to-dos adultos que vêm me ver. É

ruim ver o tempo passar lá fora. Eu num posso fazer nada, vejo o tempo passar. Tenho muitas

saudades

Seu Vicente, preso há três anos e cozinheiro do rancho

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falar de liberdade se emocionou: “A liberdade é o que faz mais falta. É tudo pra gente. Eu estou muito arrependido.” Continuamos nesse clima de desabafo. Estávamos, todos nós, embuidos por um mesmo sentir. Pensar em liberdade, em reencontrar a família, mantinha aqueles homens vivos. Era o que lhes dava ânimo para suportar as dores da vida, as inúmeras horas de tédio, de culpa, de solidão, de depressão e principalmente de saudade. “Tenho que pensar nas lembranças boas da vida e no tempo todo que tenho lá fora. Meus cinco filhos eram de menor na época. Agora já são todos de maior. Tenho dois netos que ainda não vi. Quando eu sair lá fora, vou recuperar o tempo perdido, vou brincar e levar meus netos pra passear.”

A conversa agora não era mais centrada a- penas no Seu Pedro César. No canto da mesa, meio encabulado, mas com vontade de conver-sar, falar sobre sua “neguinha” (filha que estava para nascer), Babau do rancho pediu a palavra. Babau era apelido, “arrumação de preso que não tem o que fazer”, disse brincando. Seu nome era Cleber Souza Damasceno, 33 anos. Chegou ao presídio dia 12 de agosto de 2003, cumpria pena por dois homicídios: “São trinta anos e seis meses. Vou puxar doze e o resto cumpro”. Falou que era um homem trabalhador e que não era porque es-tava preso que ia deixar de fazer isso. “Lá fora, eu trabalhava pra sustentar os meus filhos. Sempre trabalhei, porque ia querer ficar aqui sem fazer nada. Assim que eu soube que tinha colégio aqui quis logo estudar. Estudando você tem também sua remissão. Fui pra escola ocupar o tempo. Os outros presos que não trabalham passam o dia aqui deitados, fazendo nada. É melhor trabalhar. Aqui se tivesse uma firma pra trabalhar seria muito melhor. O trabalho alivia, passa o tempo. A gente aqui reflete sobre o que fez, quero sair daqui, trabalhar como pedreiro”. E assim ele vai passando o tempo, tentando evitar a depressão, o tédio e a loucura, se “virando com o que dá”, procurando estratégias de ocupação do tempo e sentido para viver: “É muito ruim pensar na vida. Quero mesmo é sustentar meus filhos, ver o sol lá fora, a gente tem que ter paciência. Vem logo o meu filho em mente, aí eu tento me acalmar. Eu não sei o que aconteceria comigo se não fosse aqui o meu trabalho, minha ocupação”.

Porém, a percepção e a ocupação do tempo não são uniformes no sistema prisional. Os presos do IPPOO I, pelo menos os entrevista-

dos, conseguiram criar estratégias de ocupação e significação do tempo. Trabalham, recreiam, criam lógicas e rotinas. Ainda assim, apesar do incentivo da Direção, não há ocupação, apoio, nem assistência para todos.

Sistema desumanoNo Instituto Penal Paulo Sarasate – IPPS, em Itaitinga, a situação é ainda pior, segundo o professor e advogado da Pastoral Carcerária, Geo-vani Tavares. “O caso mais complicado é o IPPS, que tem a problemática grave da superlotação. Há uma falta de atenção ao preso, ele não tem assistência de saúde, psicológica, acompanha-mento nenhum, alimentação é muito precária. Aqui muitos são jogados mesmo às baratas, não têm higiene pessoal, banho de sol (...) esse sistema como está funcionando atualmente em que todos cumprem pena privativa de liberdade – que é a reclusão – está um caos”. O advogado afirma que “quanto mais tempo o preso ficar no sistema, mais ele vai se desumanizando. Em vez dele se ressocializar, ele vai criando uma casca que impede que ele volte ao convívio social de forma a ser uma outra pessoa, renovada”. Por uma falta de projetos de governo que propicie a ocupação produtiva, a auto-estima e a digni-dade, o detento passa o dia inteiro sem nen-huma ocupação. “Passa o tempo todo tentando sobreviver, pensando em formas de fugir ou de se livrar dos demais para não ser estuprado, não ser usado ‘como mulher’. Pensam em como con-seguir drogas, cigarros... Ele passa o tempo todo pensando em como conseguir viver lá dentro. Muitos se matam. Tentam desfrutar o mínimo: disputam seus 15 minutos de banho de sol, de descanso, de visita familiar, de encontro sexual, de lazer...”. O Coronel Taumaturgo, da Secretaria de Justiça, afirma que os internos com uma con-vivência mais sadia são aproveitados em serviços internos como de limpeza, de reforma estrutural, hidráulica. No IPPS, em especial, existem políticas públicas de trabalho e formação. Há projetos de alfabetização nos dias de segunda, terça, quinta e sexta que garantem uma formação do interno. “Quem consegue se ocupar com algo, ocupar a mente, com o artesanato por exemplo, acaba conseguindo sobreviver, resistindo. Fugindo do tédio. Quem não consegue, morre, fica doido, sai de lá e volta para o crime”, ressalta indignado Geovani Tavares.

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À espera da liberdade

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Temporalidade e vivências urbanas

Uma cidade desconfi gurada que a cada dia vê o tempo fazer “tudo aquilo que é sólido se desmanchar no ar”. Ar-quitetura, memória e “tempos” compõem uma cidade cuja identifi cação cultural é marcada pela fragilidade e onde as referências históricas são cada vez mais voláteis diante dos modismos da pós-modernidade

FORTALEZA:

modismos da pós-modernidade

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Palácio do Plácido: em 1930 e em 2007

Em Fortaleza, a velocidade das transformações da paisagem urbana faz companhia à desva- lorização de elementos históricos. O desenvolvi-mento da cidade tem priorizado o avanço e o utilitarismo em detrimento do que se considera velho ou antigo.

Fortaleza, a quarta maior cidade do País, em população, chegou à pós-modernidade recheada de contrastes e na contramão da preservação de uma memória. Representa mais um exemplo de quem sempre viveu o tempo presente sem se preocupar em entender seu passado para cons- truir seu futuro. A cidade de apenas 281 anos guarda pouco de sua memória.

Para argumentar essas características da Capital cearense foram entrevistadas quatro personalidades que trabalham ou estudam a memória: Nirez oferece sua paixão por uma Fortaleza que ele não enxerga mais; Gisafran Jucá se baseia em suas hipóteses acadêmicas da história; Renata Giaxa trás a visão da psicologia; e Romeu Duarte sua experiência com arquitetura e a conservação do patrimônio.

[Gisafran Jucá] “Por mais introvertido que seja um indivíduo, mesmo que viva isolado, afastado dos principais meios de comunicação, o depoimento dele obtido sempre nos revelará algo mais do que a sua experiência individual, afi-nal nenhum ser humano é uma ilha. A memória é subjetiva e presa ao seu tempo, mas nos faz melhor entender essa ligação contínua entre o ontem e o hoje.”

Em 1726, a povoação da pré-Fortaleza foi elevada à condição de vila. No entanto, somente em 1823 o Imperador Dom Pedro I elevou, a então vila, à categoria de cidade. No começo do século XIX, a pequena cidade pouco se desen-volveu, sua economia estava ligada às atividades desenvolvidas no interior do Estado, como a pecuária e o cultivo do algodão, sem contar que a mesma ainda mantinha uma forte relação de seus moradores com o interior do Estado e com o coronelismo.

[Nirez] “O pessoal do interior, isso pelo sé- culo XVIII e XIX, fugia da seca e muitos deles iam na direção da capital. Essa vinda dos flagelados para Fortaleza fez a população crescer um pouco, mas não era só miseráveis que vinham, famílias abastadas chegaram a abandonar o sertão para vir morar na capital em virtude da seca.”

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De 1860 até 1930, Fortaleza viveu movimen-tos sociais e culturais marcantes. A elite, formada notadamente por comerciantes e profissionais liberais vindos de todas as regiões brasileiras e do exterior, foi a promotora de mudanças importantes na Capital. De influência européia e guiada por ideais de modernidade, a cidade não permaneceu alheia ao momento histórico da época, fazendo questão de seguir um modismo importado da França. Daí por diante, a cidade passou por um período de enriquecimento. São desse período importantes melhorias das condições urbanísticas e diversas obras, tais como a criação do Liceu do Ceará e o Farol do Mucuripe em 1845, a Santa Casa de Misericórdia em 1861, o Seminário da Prainha em 1864, a Cadeia Pública em 1866, a Biblioteca Pública em 1867, o Instituto do Ceará e a Academia Cearense de Letras respectivamente fundadas em 1887 e 1894.

[Nirez] “Fortaleza completa 281 anos, mas tem idade de 100 anos. Você procura um prédio de 281 anos, 280 ou 180, mas não encontra. Os prédios mais antigos que nós temos aqui são do final do século XIX. É a estação João Filipe, a cadeia pública, a alfândega, o seminário e a igreja da Prainha, o prédio da Assembléia Provincial, hoje o Museu do Ceará e o resto são igrejas.”

A partir de 1880, a cidade ganhou serviços e equipamentos urbanos, como o transporte coletivo por meio de bondes com tração animal, serviço telefônico, caixas postais, cabo submarino para a Europa, construção do primeiro pavimento do Passeio Público e instalação da primeira fá-brica de tecidos. A Praça do Ferreira era o ponto de estacionamento de bondes e carros de aluguel, concentrando intenso movimento. Na virada do século, Fortaleza já detinha a sétima maior população urbana do país, passando a tomar medidas de saneamento básico e ambiental, além de executar um plano de reformas urbanas

com a implantação de jardins, cafés, coretos, monumentos e a construção de edifícios seguindo padrões estéticos europeus. Entre as décadas de 1920 e 1930, bairros como Jacarecanga, Praia de Iracema e Aldeota passaram a ser habitados pelas elites que começavam a valorizar a proxi- midade com o mar. Também data desse período, a construção dos primeiros prédios com mais de quatro andares.

[Nirez] “Em 1939, eu tinha cinco anos de idade, e fui morar numa casinha que tinha na rua Costa Barros. Do lado da Santos Dumont era o Palácio do Plácido. Do lado direito e do lado esquerdo eram quatro bangalôs que ainda existem. O Palácio do Plácido foi construído ali em 1915, pelo comerciante Plácido de Carvalho. Ele sempre viajava para a Europa e numa das viagens que ele fez, ele se apaixonou por uma moça italiana e propôs casamento a ela. Ela disse, talvez brincando, que só viria morar com ele se o mesmo construísse um castelo para ela. O comerciante arrumou a planta de um castelo lá na Itália, trouxe-a e construiu o castelo. Quando o castelo estava pronto a moça italiana casou com ele, vivendo lá até Plácido morrer. O castelo ficava ali na Santos Dumont, onde hoje é a Ceart. Quando foi na década de 1970, o Grupo Romcy comprou o Palácio. Depois que o Plácido morreu, eles alugaram o palácio ao serviço de malária. E o Grupo Romcy, da noite para o dia, colocou abaixo o palácio para construir um supermercado. Isso foi na mesma época que o Grupo ruiu. Aquele terreno ficou lá e talvez por causa de dívidas o terreno foi parar na mão do governo”.

Com as duas grandes guerras e a consoli-dação da influência norte-americana, o foco dos modismos que tradicionalmente tinham a Europa como morada, deslocou-se para os Estados Uni-dos. O reflexo mais nítido foi com o início da Segunda Guerra e instalação de um posto de co-mando de tropas americanas na capital cearense. Para suas instalações, os americanos arrendaram o prédio do Estoril, transformando-o em cassino.

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Mercado de Ferro (atual Mercado da Aerolândia): em 1909 e em 2007

Também é desse período a chegada da Coca-Cola em Fortaleza. As garotas que se envolviam com os militares norte-americanos ficaram conhecidas por “Garotas Coca-Cola”.

[Renata Giaxa] “Fala-se muito que For-taleza é aberta a modismos. Então, não tem aquela história de se valorizar algo por décadas e décadas. É um povo que tem voracidade pela novidade, por aquilo que vem de fora. É lamentável, com relação a arquitetura, porque quando se perde memória, perde-se referencial de tradição e história.”

A transformação gradativa da cidade em metrópole ocorreu reproduzindo ou exacerbando características semelhantes às demais capitais bra-sileiras: crescimento desordenado e convivência simultânea de modernização e pobreza. É, sobre-tudo, a partir de 1970 que Fortaleza experimenta um processo de verticalização e descentralização das atividades de comércio e lazer.

A idéia de uma cidade desfigurada pelas modificações rápidas, pode ser percebida na cri-ação de grandes avenidas e transformações de zo-nas residenciais. Esses espaços visam racionalizar a vida urbana priorizando as regalias da pratici-dade da vida pós-moderna. As alterações rápidas se tornaram uma espécie de rolo compressor que concebeu à cidade uma feição homogeneizadora e destituída de tradições culturais.

[Gisafran Jucá] “Fortaleza, por ser uma capital menos velha do que outras capitais nor-destinas, como Salvador, Recife ou João Pessoa, o pouco que se tinha foi sendo demolido, por razões diversas, de uma forma seqüencial: a cate- dral, a própria Praça do Ferreira. Entretanto, a retirada, do centro da cidade, de edificações que lhe davam um perfil diferente, como o Palácio do Governo, a Assembléia Legislativa, a Sede do Poder Judiciário, as principais lojas e hotéis, tudo contribuiu para desprestigiar esse núcleo central da cidade e as próprias residências foram sendo afastadas para bem mais distante. Ainda há capitais, onde parte das residências ainda permanece na área central. Os mais jovens nem sabem os nomes das principais ruas do centro de Fortaleza, pois estão bem distantes dos novos centros de convergência.”

A partir da década de 1970, Fortaleza, se-

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guindo o ritmo do próprio Estado, assumiu uma postura desenvolvimentista onde tudo que era velho e obsoleto deveria ser abandonado em prol da industrialização e da produtividade. A avenida Aguanambi, construída nessa época, fez parte dessa busca pelo desenvolvimento a partir da melhoria da infra-estrutura urbana. Casas e armazéns velhos deram lugar aos grandes prédios e à instalação de comércios e indústrias, cuja conservação histórica não se configurava sequer como preocupação, e o tempo moderno acabava sendo preponderante nas decisões quanto ao espaço urbano, traduzindo uma falta de com-prometimento ético e a perda de referencial com relação ao mesmo.

[Renata Giaxa] “A gente vive em um mo-mento em que ‘tempo é dinheiro’, então você tem que produzir mais no menor tempo pos-sível. Entra-se em um ritmo de produtividade e consumo. As coisas ganharam um caráter des-cartável, você tem que se desfazer de umas, para ter outras. Leva a esse mundo de experiências voláteis, muito impalpáveis, muito descartáveis. Não se valoriza mais aquele sentimento de se manter um objeto, aquele objeto de família, que vem passando de geração em geração, que tem todo um sentido atribuído a ele. Na ver-dade, tornaram-se voláteis as coisas e também as tradições.”

Numa metrópole como Fortaleza, onde a desigualdade social é gritante, várias tempo-ralidades convivem na mesma cidade. Assim como existem os modernos shopping centers, nas periferias ainda resistem pequenos mercan-tis que guardam traços do tempo da memória, no qual o ritmo das relações humanas é vivido através de um tempo poético. Nesses espaços as pessoas se permitem conhecer para além da troca comercial, em uma constante troca afetiva. Essas trocas fortalecem a construção da memória e da identidade da própria periferia. Ao contrário do que se tem visto em bairros como o centro, o comércio desenfreado e o estabelecimento de uma relação mecânica entre os sujeitos desse

espaço contribuem, diariamente, para a ali-mentação de uma sociedade individualista sem atribuição de qualquer sentido de coletividade.

[Nirez] “A cidade de Fortaleza me traiu se modificando, andando por caminhos que não eram os que eu queria que ela andasse. Existe marido traído que deixa a mulher, mas continua amando. Eu não deixo Fortaleza, mas também não morro de amores por ela. Eu gosto de Fortaleza, eu amo a minha cidade, mas infe-lizmente... ela modificou muito! É muito difícil você pegar Fortaleza e torná-la habitável como antes.”

Na década de 1980 a atividade turística tornou-se mais uma vertente da economia for-talezense, o que pode ser percebido na concen-tração de bares e opções de entretenimento na Praia de Iracema. A falta de ordenamento e de cuidado com a cultura e as pessoas da cidade fizeram com que um bairro tradicional se des-caracterizasse para se tornar um produto que hoje já está desgastado. Numa tentativa de suprir tal carência, percebe-se a construção do Centro Cultural Dragão do Mar como uma tentativa de diálogo entre o velho e o novo. Entretanto, as políticas públicas pensadas a exemplo do Dragão do Mar configuram uma preocupação dos go- vernantes direcionada ao consumo da cidade como produto. Estimulando a idéia da existência de duas Fortalezas, uma para aqueles que podem pagar pelos produtos turísticos e outra para os que, de seus subúrbios, espreitam a concentração de renda à margem na sociedade. Essa dicotomia marca as temporalidades de Fortaleza: o conflito entre o velho e o novo, o moderno opondo-se ao tradicional, e luta por um futuro negando o passado.

[Romeu Duarte] “A grande tradição da ci-dade de Fortaleza é não ter tradição. É um povo tão esquizofrênico que tem que estar mudando de cara. A cidade tem várias personalidades e tem a principal. Às vezes você conversa com pes-soas que nem parecem morar na mesma cidade que você. Pessoas que acreditam em palavras como nobreza, distinção social, aristocracia. Es-sas, parecem que não moram numa cidade em que 60% dos habitantes vivem com menos da metade de um salário mínimo. A realidade é a prova mais pesada que existe. É necessário reco- nhecer a realidade para conseguir mudá-la.”

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PARA SABER MAIS

Livros: Verso e Reverso do Perfil Urbano de Fortaleza: 1945-1960. Autor: Gisafran Nazareno Mota Jucá. Fortaleza Belle Époque. Autor: Sebastião Rogério Ponte. Fortaleza de Ontem e de Hoje e Cronologia Ilustrada de Fortaleza. Ambos de Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez). Acervo de edições antigas do Jornal O POVO na Hemeroteca da Biblioteca Governador Menezes Pimentel.

Seminário da Prainha: em 1905 e em 2007

Miguel Ângelo de Azevedo, mais conhecido como Nirez, é jornalista historiador, pesquisador e dono de um dos mais completos arquivos sobre a cidade de Fortaleza.

Gisafran Nazareno Jucá é historiador, professor-doutor da Universidade Estadual do Ceará. Sua especialidade é História do Brasil. Atuando principalmente nos seguintes temas: História Urbana, História Regional.

Renata Barreiro Giaxa é psicóloga, mestre pela Universidade de Fortaleza, com a tese Aprendendo a ser cientista-artista: viagem etnográfica ao universo de Sérvulo Esmeraldo.

Romeu Duarte é superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no Ceará.

Colaboraram com esta reportagem:

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O ar cada vez mais pesado em seus pulmões. Tão difícil respirar! O corpo suado, marcado de manchas arroxeadas que em alguns pontos já rebentaram a pele. Das mãos e dos pés goteja sangue abundantemente. Os olhos se abrem com uma lentidão que revela grande esforço em ainda ser. A boca seca, entreaberta, in-crivelmente ausente. O rosto coberto de um vermelho negro e viscoso, ferido por espinhos que de tão grossos e afiados mais parecem aço a lhe rasgarem a carne. Ao fundo ouvem-se as lágrimas das mulheres, desesperadas, com o coração tão dilacerado quanto o corpo do homem que se finda na cruz.

Assim são os últimos momentos da vida de Jesus Nazareno. A morte mais famosa da socie-dade ocidental apresenta como características preponderantes a dor e a humilhação, encon-trando no sacrifício seu grande fim. Durante séculos as idéias de provação sobre-humana e de sofrimento extremo preencheram o ima- ginário coletivo, contribuindo para a grande mistificação em torno do tema. Em geral, o homem de cultura ocidental nutre enorme pavor e ojeriza acerca da morte, muitas vezes alimentado pelo forte apego aos bens materiais e às pessoas.

Esse temor absoluto é capaz de imobili-zar o homem diante da vida, lhe podando, lhe castrando. Porém, a morte se revela mais complexa, repleta de surpresas e sinuosidades.

Simultaneamente a esse frio na espinha que nos vence e nos torna menor, nunca nos deixando esquecer a nossa imutável condição de ser finito, ela também nos arremessa para a vida. O jogo paradoxal entre vida e morte conta com um combustível de mesmo poder e mistério para o funcionamento de suas engrenagens. A esse combustível tão gordo, tão pesado dá-se o nome de tempo.

O psicólogo e tanatólogo, Aroldo Escudeiro, acredita que o papel da Tanatologia é funda-mental na relação entre vida e morte, uma vez que a atuação desse campo de estudo se concentra exatamente em facilitar o convívio natural do homem com sua finitude. Assim ele defende que o ser humano, ao não aceitar a morte, tenta enganá-la, se empenhando numa fuga inútil. O desapego seria, então, um cami- nho para minorar o medo que o homem sente de morrer, porém sem destruí-lo por completo. Escudeiro acredita que aí está a resposta de que nós estamos na vida para realizar coisas.

Dessa forma, nos é apresentado o grande paradoxo em que a morte está envolvida. Se o homem tem certeza absoluta de seu fim, então é exatamente por isso que ele deve buscar viver com o máximo de intensidade possível seu tempo porque um dia ele também acaba. “Se eu me coloco para só chegar até os 80 anos e deixar para fazer coisas depois, eu acabo não fazendo agora que eu tenho 50, 60, 70. E isso pode não acontecer”, pondera Escudeiro.

Ao relativizar a relação entre os elementos Tempo e Morte, ele aponta que o homem velho é quem menos teme seu fim, apesar de ser quem está mais próximo dele. Isso acontece, segundo Escudeiro, porque assim como a morte é produtora de intensa ansiedade ela também é capaz de prepará-lo para seu fim. Porém, ele indica que pesquisas revelam que um terço da população idosa não consente ou aceita a mortalidade na esperança de viver um tempo passado e que não foi devidamente satisfeito. “A gente vai deixando e o tempo passa. Chega uma hora que não dá mais para viver assim. Então aquelas pessoas que não se realizaram pessoalmente têm dificuldade de ter essa acei-tação”, completa.

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A pedagoga Nêda Maria Carneiro Leão Mat-tos, 63, decidiu encarar a morte de uma forma menos dolorida e cruel quando descobriu que sua mãe tinha Alzheimer. “Eu queria e quero acompanhá-la até o fim. Se eu tivesse uma visão de morte que aprisiona, eu estaria chorando, sofrendo e isso passaria para ela”, explica. Para Nêda é impossível ter uma visão de morte posi-tiva sem ter uma visão espiritual por trás. “Na semana passada ela falou que estava indo tirar umas férias. Estava se sentindo muito cansada, as pernas não davam mais para caminhar. E ela não queria que ninguém chorasse. Ela sente que a gente está disposta a ouvir. Por isso, ela abre o coração e fala”.

Nêda saiu da igreja que pertencia e resolveu encontrar um caminho espiritual próprio que a confortasse. “A religião é cheia de dogmas e isso prende a gente. Eu queria ser mais livre. Hoje me sinto mais íntegra, muito mais eu mesma, mais aberta aos outros”, revela. Nêda acredita que quando pensamos na morte, estamos pen-sando também na vida, mas há uma barreira muito grande que distancia as pessoas dessa visão. A causa disso ela atribui ao forte apego às coisas materiais. “Nós somos viajantes. Tudo passa. Nada é permanente. E a impermanência me dá uma grande tranqüilidade”, conclui.

Aroldo Escudeiro indica a existência de pesquisas que apontam que as pessoas que têm religião apresentam maior medo da morte, uma vez que elas estão presas a um depois. “Porque quem pensa que não tem nada lá, não tem que se preocupar. Se não tem nada, qual é o pro- blema? Mas se há alguma coisa e eu sei que há,

vou ter uma prestação de contas. O que eu fiz de mal, vou ter que pagar lá”, explica.

A Igreja Católica considera que realmente a morte pode ser um acontecimento doloroso, porém, não é nada trágico para o cristão. A idéia da morte seria então geradora de grande alívio para o fiel, uma vez que nesse momento último se dá o encontro com Deus. O Monsenhor Antônio Ribeiro Souto acredita que a religião, ao proporcionar um sentido à vida, também o faz em relação à morte. “A religião nos dá a convicção de que tudo não acabou. A morte é uma passagem, um trânsito. É uma ocasião em que nos separamos da presença visível e vamos a um encontro mais importante”. Dessa forma, completa o monsenhor: “Quanto mais fé a pes-soa tem, se for uma fé convicta, mais ela aceita a morte como algo normal”.

A Doutrina Espírita trabalha a morte como uma continuação da vida, sendo que em me- lhores condições. No Centro Virtual de Divul-gação e Estudo do Espiritismo (www.cvdee.org.br), um estudo sobre o temor da morte revela que seus fiéis têm profunda confiança no seu fu-turo por terem consciência da missão que deve ser cumprida por eles. Assim sendo, quando não há mais dúvidas sobre o futuro que os cerca, também se dissipa o medo da morte.

A morte pode ser o último ponto da estação para alguns, para outros é apenas mais um ponto de uma estação sem fim. Porém, é fato que se trata de um ponto que se distingue dos demais e pelo qual todos irão passar. Enquanto não o atingimos, só resta viver e morrer todo nosso tempo.

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Lembrança de fé e memória divinaNa cidade do silêncio um pensamento se descortinaCorpos inertes são matérias celestes que celebram a partida

Testemunhos de vida eles são os sentinelas duma saudade sem fim

Entre a terra e o firmamentoos passageiros dessa vida descansam de sua lidaNum sono incessante que transporta para aesperança de um despertar constante

Mas seus guardiões não estão tão imóveis assim...Movem-se, falam e escutam tantas precesQue o inerte se reverte e a mudez se converteem estátuas dançantes e imagens falantes

E a cidade calada De repente torna-se músicaDe repente torna-se poesiaPela nostalgia dum andante

· ensaio e texto · laurêncio lima

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É possível que o tempo exista de uma ma-neira diferente dependendo do lugar onde se está? Que seu comportamento, assim como o nosso, seja determinado de acordo com o am-biente? Que possamos manipulá-lo por meio de alguns artifícios? Entre verdades, mitos e possibilidades, a Teoria da Relatividade dá um tratamento diferenciado ao tempo e suas interações com o espaço

O fenômeno da

DILATAÇÃOdo tempo· texto · caio castelo · raquel maia ·· ilustrações · liandro roger ·

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Você está numa sala de espera há vinte minutos, mas parece que já passou mais de uma hora. O tempo parece se arrastar e você não pode fazer nada a respeito. Sobre as diversas formas de fluidez do tempo, a psicóloga Marilia Campos diz que “a percepção do tempo é muito subjetiva. Quando fazemos algo prazeroso, o tempo parece passar mais rápido. Já quando fazemos algo desagradável, essa percepção se altera e o tempo parece se arrastar”. No en-tanto, não é apenas dentro de nós que o tempo é capaz de assumir diferentes formas.

Para contar essa história, vamos fazer uma pequena viagem no tempo (veremos mais adi-ante se isso seria possível) e voltar até 1905, quando Einstein (1879-1955) propôs a Teoria Especial da Relatividade. Até então, o espaço e o tempo eram vistos pela Física como dimen-sões imutáveis, assim como suas relações com a duração dos eventos; e, Einstein, como um “ci-entista maluco” e sem credibilidade nos meios científico e acadêmico. A Teoria da Relatividade veio modificar todos esses conceitos. Porém, ela só trabalhava com movimentos uniformes de velocidade constante. Em 1916, a Teoria Geral da Relatividade permitiria lidar com qualquer tipo de movimento, algo surpreendente para a época. Chegou até mesmo a substituir algumas das teorias de Isaac Newton (1643-1727), reconhecidas desde o século XVII.

Afinal, o que é relativo?O professor de Física Experimental da Univer-sidade Federal do Ceará (UFC), Nildo Loiola, afirma que “a Teoria da Relatividade é uma maneira completamente nova de ver o espaço e o tempo”. A Teoria dos Invariantes, como foi chamada por Einstein, seu criador, não corres- ponde ao jargão de que “tudo é relativo”. Na verdade, ela afirma que todo movimento é relativo e que o único valor invariante é o da velocidade da luz no vácuo, de aproximada-mente vertiginosos 300 mil quilômetros por segundo.

“Normalmente, temos uma idéia do espaço da seguinte maneira: se um carro se aproxima de mim e eu também vou de encontro a ele, vejo que o carro se aproxima mais rapidamente do que se eu estivesse parado. Com a luz, é diferente: a velocidade da luz não depende nem da fonte que emite e nem do observador. Então, se você vê a luz que sai do farol do carro,

ela chega até você com a mesma velocidade, independentemente do movimento ou da ve-locidade do veículo”, explica Loiola.

O universo seria composto por uma continui-dade de tempo e espaço. Ou seja, tempo e es-paço estão intimamente relacionados entre si.

Dilatação do tempoUm ex-professor de Einstein, o matemático Herman Minkowski, propôs, em 1908, uma realidade quadridimensional formada por altura, largura, comprimento e... tempo. Isso explicaria porque a dilatação do tempo ocorre: partículas não aceleradas descrevem curvas que aumentam a distância entre dois pontos. Assim, num ambiente onde a gravidade (que é uma aceleração) é zero, as partículas irão descrever trajetórias mais longas e que levarão mais tempo para serem completadas, atrasando os eventos em relação à velocidade com a qual eles ocorreriam na Terra.

Já foram realizados testes com relógios de alta precisão e ajustados entre si em que um deles era submetido a uma velocidade muito maior em relação ao outro. O resultado foi espantoso: ao comparar os dois após a experi- ência, eles marcavam horários diferentes! Ou seja, quanto maior a velocidade de um corpo, mais lentamente o tempo irá passar para ele. Isso ocorre porque quando um corpo atinge uma velocidade muito alta, sua massa aumenta, fazendo, assim, com que as trajetórias das partículas tornem-se mais longas. Por terem de percorrer uma distância maior, todos os eventos acontecem mais devagar. Por isso, se um corpo atingisse a velocidade da luz, sua massa se tor-naria infinita, uma hipótese absurda, claro!

Marilia ressalta que “o envelhecimento é um processo natural e inevitável, mas que estamos sempre buscando retardar, principal-mente na sociedade em que vivemos hoje, que superestima a juventude”. Mas se você é um dos que querem retardar esse processo, pode esquecer os cremes, as cirurgias e os salões de beleza. É possível que, depois de cinco anos, você esteja apenas um ano mais velho.

Saiba como: “Dois gêmeos têm sempre a mesma idade aqui na Terra, mas se um deles viajasse numa espaçonave com uma velocidade bem próxima à da luz, o tempo iria passar muito mais devagar para ele e, depois de muitos anos viajando a essa velocidade, ele

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retornaria à Terra e encontraria seu irmão bem mais velho! Acredite, isso já foi comprovado, não com gêmeos, claro; mas com partículas e até relógios de alta precisão colocados em espaçonaves”. O exemplo dado por Loiola é conhecido como Paradoxo dos Gêmeos e seria uma forma de fazer uma viagem só de ida para o futuro. Realizar tal façanha seria possível em tese, mas, na prática, nossas espaçonaves ainda não atingem velocidades próximas à da luz, tornando a possibilidade muito remota.

O tempo dilatado seria, portanto, resultado de uma série de fatores que contribuiriam para que todos os processos (de metabolismo e envelhecimento do homem, por exemplo)

dade é ainda maior. O matemático Kurt Gödel (1906-1978) demonstrou que qualquer partícula material possui uma linha de tempo, que fica confinada no chamado cone de luz local, já que nada pode viajar mais rápido do que a velocidade da luz. Como a geometria do universo é curva, por vezes, a gravitação pode entortar esses cones de luz, fazendo com que as linhas de tempo fechem-se sobre si mesmas. Simplificando: dessa forma, uma partícula se encontraria com ela mesma no mesmo cone de luz, provocando uma volta ao passado sem transgredir o princípio de que a velocidade da luz é a maior possível.

No entanto, existe sempre o problema da violação da causalidade. Segundo Loiola, “como é dito pela fórmula E = mc², a energia, junta-mente com a massa, se conserva. Suponha que você possa viajar no tempo e voltar para o ano zero. Você é composto por átomos. Esses átomos, no ano zero, não estavam em você. Eles existiam, mas espalhados em diversos outros lugares: na terra, na água, numa fruta, etc. Então, se você volta, essas moléculas estariam em dois lugares ao mesmo tempo, pois elas já existiam naquela época e, agora, estão formando o seu corpo. No entanto, uma molécula não pode virar duas”.

Alô, é da Terra?Apesar das teorias um tanto complexas apre-sentadas até aqui, não estaríamos mentindo se disséssemos que fazemos viagens para o passado todos os dias. Por exemplo, algumas das estrelas que vemos todas as noites no céu nem sequer existem mais. O que vemos é a luz que foi emitida por elas há milhares ou até milhões de anos-luz atrás. Se uma estrela está a dez mil anos-luz da Terra, isso significa que a luz emitida por essa estrela demora dez mil anos para chegar até nós. Se o Sol desaparecesse, só tomaríamos conhecimento 8 minutos e 20 seg-undos depois, já que ele está a uma distância de cerca de oito minutos-luz do nosso planeta.

Minkowski observou que “a distância es-pacial entre dois eventos não é a mesma para dois observadores em estado de movimento diferente. O tempo também não flui igualmente para esses observadores”. Já Marília Campos esclarece que “de acordo com a psicanálise, o inconsciente é atemporal. Um evento que aconteceu com alguém há vários anos atrás pode exercer toda a sua força ainda hoje”. Mais uma vez, podemos fazer um paralelo entre

Dois gêmeos têm sempre a mesma idade aqui na Terra,

mas se um deles viajasse numa espaçonave com uma

velocidade bem próxima à da luz, o tempo iria passar muito

mais devagar para ele

demorassem mais para acontecer de tal forma que, caso você vá para o espaço em 2008 e retorne em 2013, você mesmo terá a impressão de que passou apenas um ano no espaço. E realmente teria passado. Para ser mais especí-fico, você teria passado, simultaneamente, um ano no espaço e cinco anos fora da Terra. Uma verdadeira viagem ao futuro, caso você pretenda retornar ao planeta.

Quanto às viagens para o passado, a dificul-

Nildo Loiola, professor de Física

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nossa percepção e o funcionamento do uni-verso: um observador de um planeta distante pode observar a Terra durante a extinção dos dinossauros enquanto outro observa a Terra durante a Revolução Francesa e nós vivemos na Terra durante a era da internet. Tudo isso simultaneamente.

“Por isso seria muito complicado se comu-nicar com algum ser extraterrestre, já que a luz leva um tempo muito grande para percorrer o caminho entre dois planetas e não existe nada mais veloz do que a luz. Numa conversa telefônica entre um ser humano e um extrater-restre de um planeta a 20 mil anos-luz de dis-tância, você faria uma pergunta e só receberia a resposta 40 mil anos depois (20 mil para a pergunta chegar ao outro planeta e mais 20 mil para a resposta chegar)”, ressalta Loiola. Imagine só o valor do “interurbano”!

Isso também tem aplicações práticas. Loiola conta que “quando a Nasa mandou um robô para Marte, não era possível controlá-lo por controle remoto, pois leva um certo tempo para o robô receber a mensagem. Por exemplo, se o robô estiver andando e na frente dele existir uma pedra da qual você quer desviá-lo, o sinal do controle remoto não vai chegar a tempo de evitar a colisão. Então foi necessário programar um mecanismo para que o robô soubesse, por si só, quando desviar de algum obstáculo”.

Embora ainda hoje haja muitos debates acerca do tema, Einstein propôs esse modelo ainda no início do século passado, quando as idéias de Newton predominavam. Quebrar o modo predominante de pensar o universo lhe custou muito tempo (sem trocadilhos) e esforço, mas nos deu uma nova forma de pensar o tempo, o espaço e até nós mesmos.

Aplicações práticas da Teoria da RelatividadeEntender como a luz se comporta proporcionou um grande avanço na ótica.A famosa fórmula E=mc² diz que grande quantidade de energia pode ser convertida numa quantidade

mais compacta de massa e, infelizmente, contribuiu para desenvolver a bomba atômica.Os cálculos de posição do sistema GPS são feitos a partir do intervalo de tempo em que os sinais são

enviados dos receptores na Terra para os 24 satélites em órbita em torno do planeta.

Einstein (ao centro, sentado) em sua visita ao Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, em 1925

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“De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?”, foi pouco depois desse trabalho, pintado em 1897, que o pós-Impressionista Paul Gauguin (1848-1903) quase chegou a dar cabo da própria vida. Além da morte da sua filha Aline, dos problemas de saúde; o artista, incompreendido na época, teve que recomeçar muitas vezes. Foram idas e vindas, alternando momentos de glória e estabilidade financeira com a fome, o desespero e a miséria. Casos como o de Gauguin parecem ser uma constante na história da humanidade. Se no século XIX o título da obra-prima do artista já era uma das grandes questões da humanidade, o que dizer nos dias de hoje. Embora todos nós, por vezes, tenhamos dúvidas sobre nossas atitudes e esco- lhas, imagine o que acontece com aqueles que resolvem romper com os sentidos socialmente estabelecidos. Mesmo assim, uma investigação mínima nos remete a nomes inestimáveis que quer seja nas suas áreas de atuação profissional,

O que Jesus Cristo, Leonardo da Vinci e Alexandra Kollontai têm em comum? Foram pessoas à frente de seu tempo. Os ensina-mentos de Jesus Cristo até hoje permanecem vivos; Leonardo da Vinci revolucionou a Ciência e as artes com seus experimentos e obras; Alexandra Kollontai, a única mulher no governo leni- nista no período da Revolução Russa, já discutia sobre aborto e homossexualismo feminino no início do século passado

Pessoasformas de pensamento, atitudes ou comporta-mentos resolveram radicalizar e assumir uma postura diferenciada perante a sociedade.

Um desses exemplos é o cineasta Luis Buñueul(1900-1983) que fez parte do grupo de escritores e artistas do movimento surrealista. Trinta anos após seu nascimento já teria chocado o mundo duas vezes: com as obras Um Cão An-daluz(1928) e A Idade do Ouro(1930). Conhe-cido por escandalizar as platéias com imagens bizarras e desconexas; seus filmes contestam a ordem estabelecida, são insólitos, transgressores e impregnados com o tema da morte, do sexo e da religião. Buñuel vivia em conflito permanente com a razão e a emoção. Numa das estréias de seus filmes chegou a assisti-la com os bolsos cheios de pedras, pronto para se defender da ferocidade do público. Foi um crítico implacável da Igreja Católica, do fanatismo religioso e da burguesia espanhola. Suas acusações à Igreja Católica ficam explícitas na película “A Idade do Ouro”, filme que foi proibido pela polícia na época e teve suas cópias recolhidas pelas autoridades.

As pessoas que se rende- ram à ousadia, que tenta-ram algo novo, muitas vezes sem pensar nas conseqüências, o fize- ram com honestidade; e quando viram, algo dali brotava. Tiveram a coragem de pensar o que outrora nunca havia sido pensado. Essas pes-soas profundas continuarão a serem exemplos para os seres humanos muito depois de nossa geração. São pessoas que tiver-am a coragem de pensar o que outrora nunca havia sido pen-sado. Romperam o previsível,

À FRE· texto · laurêncio lima · rebeka holanda · fotos · laurêncio lima ·

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do seu tempoa obediência aos comandos da sociedade da época e abriram mão de todas as coisas nos seus lugares. O historiador Marcos Ferrante opina: “Ninguém está à frente do seu tempo, pelo contrário, estamos todos tão inseridos nele que somos capazes de percebermos a dinâmica dos fenômenos e propormos novos paradigmas”.

A revista A Ponte entrou em contato com o jornalista inglês, diretor e chefe de redação da versão portuguesa do site russo www.pravda.ru, Timothy Bancroft-Hinchey. Segundo o jornalista, “Há aqueles que conseguem prever o futuro e trazê-lo para o seu espaço temporal. Para tal, é preciso ter visão, ver o evoluir das coisas além da ponta do nariz, ter a sensibilidade e inteligência que permitem entender as lições da história e projetá-las para o além, lançando-as como uma rede”.

Quanto aos exemplos dos que estiveram um patamar à frente em suas épocas, Timothy aponta alguns: “Muitos líderes romanos, por construírem uma União Européia com moeda única, serviço administrativo único e até língua única e franca – o Latim - antes de tudo cair em pedaços. Napoleão, pela cariz organizativa que trouxe à sua sociedade. O Marquês de Pombal em Portugal, pela visão que teve da implementação do poder do Estado. Na Rússia, Lênin, por ter revolucionado uma sociedade” e dentre estes destaca um em especial: “Se tivesse de escolher uma figura, seria o Lênin, porque não só conseguiu implementar uma revolução

de fato numa série de países, como conseguiu a internacionalização desta revolução e seus valores globalmente”.

Nietzsche ficou louco. Van Gogh matou-se. Fernando Pessoa era dado à bebida. Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve, pois não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakoviski suicidou-se. Em algumas situações, o mundo parece não estar preparado para essas pessoas, e vice-versa. “Essas pessoas são, em alguns casos, julgadas erroneamente por pensarem diferente da massa, mas mesmo assim conseguem seguir em frente e finalmente ser reconhecidas, pois a diferença de seus pensa-mentos e atitudes passam a ser vistos não como algo prejudicial, mas algo revolucionário”, avalia a psicóloga Rebeca Rangel. Mas segundo a po-etisa peruana Glória Maria que conversou com a equipe da revista “Nem sempre é assim. O que acontece é que essas pessoas muitas vezes são avaliadas pela obra total de sua vida”.

De uma forma geral, a idéia de mudança e quebra de paradigmas sempre causou receio. “A sociedade tem medo do diferente e inveja

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um período onde os Estados Unidos sofriam um confronto racial e discriminação que deixava ver as rachaduras em sua democracia liberal, Luter King deu um passo à frente na luta contra a socie-dade extremista desse país. Como um ativista do movimento em prol dos direitos civis nos Estados Unidos para os afroamericanos recebeu o Premio Nobel da Paz”, prossegue o publicitário.

Estar aberto para novos paradigmas e, como conseqüência, aberto para o progresso. Esta pode ser a única maneira de o mundo deixar de ser refém de seus próprios precon-ceitos. A psicóloga Rebeca Rangel ressalta que “no mundo em que vivemos ainda temos uma grande dificuldade de reconhecer as pessoas que se destacam em vida, mas felizmente isso já mudou bastante; e hoje podemos apreciar pessoas sendo referenciadas por excelentes contribuições para a humanidade e para a vida daqueles que a cercam”.

Ousar, lançar-se, desafiar. Foram os verbos preferidos de Camille Claudel(1864-1943). Ela que poderia ter sido uma brilhante escultora, a exemplo do seu mestre Rodin, preferiu render-se aos arroubos da juventude e entregar-se a seu amor por um homem 24 anos mais velho que ela. Enfrentando sua família, a conservadora sociedade do século XIX e até mesmo seus próprios preceitos morais, Claudel caiu nos braços de Rodin. Se num primeiro momento foi correspondida, seu mestre preferiu casar-se em 1917 com Rose Beuret, com quem o escultor já vivia há mais de 20 anos. Camille se torna então sua amante e diante da impossibilidade de ter em seus braços o único homem que verdadei-ramente amou em sua vida entregou-se a uma depressão sem limites. Claudel viveu os últimos trinta anos de sua vida em um manicômio, vindo a falecer aos 78 anos.

Histórias como essas apenas testemunham a incrível capacidade que nós, seres humanos, temos de nos inventarmos e superarmos nossos medos, angústias e desilusões. Seja na ciência, nas artes, na filosofia, na política e até mesmo no amor o inconsciente primitivo do homem pode até resistir a uma profunda investigação psicológica. Mas não resistirá aos devaneios, ne-cessidades e sonhos do próprio eu. Todos os que marcaram seus nomes na história da humani-dade foram aqueles que tiveram a coragem de perder suas máscaras em um momento qualquer dessa grande encenação que é a vida.

dos que implementam novas tendências antes dela. Por isso, os seres inovadores são tratados como loucos por uma sociedade que só aceita os ‘iguais’, isto é, os que seguem o tradicional, sem arriscar no novo”, afirma o economista e consultor cultural Paulo Benevides. Uma boa visão do mercado econômico e de suas tendências, assim como diferenciar-se da con-corrência, também faz com que empresários e instituições estejam à frente do seu tempo. “Um exemplo dos mais atuais é o Bill Gates, pois se tornou um dos homens mais ricos do mundo graças às inovações no sistema operacional Windows. No início ele trabalhava para a IBM desenvolvendo sistemas, porém identificou que todos os computadores, independente de seus fabricantes iriam necessitar de um sistema operacional funcional e genérico, foi então que saiu da IBM e montou uma empresa de fundo de garagem, hoje em dia respeitada e invejada por todo mundo”, diz o economista Paulo Bene-vides. O território brasileiro e cearense também fornece grandes nomes. “Um exemplo local é o engenheiro químico cearense Expedito Parente que inventou o biodiesel há trinta anos e só agora o mercado identificou sua viabilidade econômica”, destaca Paulo. Quer seja na arte, na Ciência, ou na política, uma coisa é comum: “São pessoas que acreditam nos seus sonhos e lutam estrategicamente para que se tornem reais” diz o economista.

O professor de História da Unifor, Eduardo Lúcio, fala que o mundo da moda também é um grande exemplo, pois nele a criação é constante e extremamente valorizada. Para o professor, grandes estilistas como Jean-Paul Gautier e Calvin Klein, popularizaram a alta-costura e, assim, estiveram à frente do seu tempo.

Uma saída viável para não mais repetir as falhas do passado é aprender com as experiên-cias já vividas e tentar não repetir os mesmos erros. Assim, como na formação individual, a sociedade deve procurar amadurecer e pro-gredir. No entanto, ainda hoje, o mundo parece permanecer restrito quanto a aceitar inovações. Em conversa com A Ponte, Zarko, publicitário de El Salvador, adverte: “Em El Salvador, por e- xemplo, qualquer análise de mudança ou crítica ao sistema é logo taxada de esquerdismo e de um retrocesso ao passado”.

Para Zarko, Martin Luther King seria um exemplo de pessoa à frente de seu tempo. “Em

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Há aqueles que conseguem prever o futuro e trazê-lo para o seu espaço temporal. Para tal, é

preciso ter visão, ver o evoluir das coisas além da ponta do nariz, ter a sensibilidade e inteligência que permitem entender as lições da

história e projetá-las para o além, lançando-as como uma rede.

Timothy Bancroft-Hinchey, jornalista

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senhores de seu tempoAUTISTAS:

PrecursoresComo são eles colocadosSobre a terra (surgindo a intervalos),Como são caros e terríveis para o mundo,Como eles se habituam a si mesmosAssim como aos demaisQue paradoxo chega a parecer O tempo delesComo as pessoas respondem a elesAinda que não os conheçam,Como se algo de intransigente persisteNa sorte deles em todos os temposEscolhem mal as coisasCom que os adular e os recompensar,E como o mesmo preço inexorávelHá de ser pago aindaPela mesma grandeza encomendada

Walt Whitman

· texto · fabrícia vieira · keiliane gomes · fotos · laurêncio lima ·

Vivaldi tem 19 anos, mora em Fortaleza, gosta de praia e carnaval, mas, no cotidiano, acerta os ponteiros de seu relógio psicossocial de uma maneira diferente. Segundo filho de uma família de três irmãos, ele possui ou já possuiu características apresentadas pelo psiquiatra aus-tríaco Leo Kanner que, em 1943, descreveu, em suas primeiras publicações, o Autismo Infantil como sendo uma condição neuropsicológica. Ele observou em onze crianças, comportamentos muito particulares, que denominou de “autismo infantil precoce”. Entre outros sinais, observou que essas crianças têm uma extrema dificuldade de estabelecer relações interpessoais, além de

solidão, incapacidade para assumir posturas antecipatórias, entendimento das palavras em seu sentido literal, entre outras.

As descrições dadas por Kanner ao Autismo Infantil são, até hoje, consideradas válidas. Este distúrbio afeta mais ou menos uma em cada mil crianças que nascem vivas em todo o mundo. É mais comum em meninos e produz em seus por-tadores dificuldades de adaptação às convenções sociais. Muitas vezes, são confundidos com gênios ou mesmo com loucos. Desafiam as comunidades científica e médica com comportamentos que vão da inocência às habilidades mais incomuns. Têm um “jeitinho” muito próprio de captarem para si

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Vivaldi, senhor de seu tempo.

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momentos da realidade, recortes do mundo e de acertarem os ponteiros de um relógio que parece tão deles que, geralmente, têm horas impercep-tíveis ao mundo das pessoas que se denominam normais. Talvez eles se perguntem: quais são as características de um “normal”?

Essa máxima é adequada quando se trata de Autismo. A sensibilidade da família é fundamen-tal na convivência com um autista, pois como observa Walt Whitman, “que paradoxo chega a parecer o tempo deles”. A mãe de Vivaldi en-tendeu que a convivência com a família poderia ajudar. “Eu tomei consciência de que a melhor escola para o meu filho seria em casa, no rela-cionamento dele com a família, com os irmãos, com o pai”, comenta Liduína.

De acordo com os pesquisadores Carlo Schmidt e Cleonice Barbosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (veja box “Para saber mais...”), o Autismo é um dos Transtornos Globais do Desenvolvimento que se caracterizam pelo comprometimento de três áreas do desen-volvimento. São elas: a habilidade de interação social recíproca, as habilidades de comunicação e a presença de comportamentos, interesses e atividades de um modo geral estereotipadas. Eles afirmam que tais características podem tornar-se bastante estressantes para os familiares de uma pessoa autista. Há cerca de trinta anos, o impacto dos Transtornos Globais do Desenvolvimento nas famílias tem sido alvo de pesquisas. Passou-se a questionar não só os efeitos dos pais nos filhos, mas também o efeito dessas crianças em seus pais. Liduína Holanda, mãe de Vivaldi, comenta sobre o período de adaptação de uma criança autista. “Esse período de adaptação é tão difícil! Demora. Leva anos. Às vezes é tão estressante. Por isso que é importante a mãe ficar em casa e cuidar do filho. Quem tem um filho assim, não pode trabalhar fora”, conclui.

Mudanças no ambiente podem levar algu-mas dessas crianças ao desespero. A relação de tempo, cronológico e/ou psicológico, que há entre a família e o autista precisa, portanto, ser muito bem organizada. É necessário que haja um investimento nessas crianças para que elas possam tornar-se adultos com boas condições de relacionamento com o externo, ainda que isso possa parecer impossível. Aretusa Reis Leite, psicanalista da Fundação Pestalozzi, escola que atende a crianças portadoras de distúrbios como o Autismo e a Síndrome de Down, analisa o

momento de estruturação da chegada de uma criança autista a uma família cheia de sonhos. Diante do impacto da nova situação, as famílias podem ter vários tipos de reação. “Vamos imagi-nar uma família que tem o seu bebê sonhado, esperado e que, por algum motivo, esse bebê não está atendendo às demandas da família: de carinho, de atenção, como outras crianças fazem ou como outros filhos fizeram. Ocorre uma certa quebra com relação ao imaginário dessa criança que não é mais aquela esperada e sonhada. Há um distanciamento. Então, receber um diagnós-tico de Autismo ou de Síndrome de Down ou de

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Vivaldi e sua mãe, Liduína, buscam se adaptar ao tempo um do outro.

qualquer outro tipo de deficiência fere muitas famílias”, analisa a psicanalista.

Talvez muitas famílias de autistas não os com-preendam por estarem mal informadas acerca de um assunto que lhes é próximo e que lhes causa medo. Um medo ou uma preocupação que existe exatamente por conta dessa proximidade. Conviver com um filho possuidor de autismo permitindo que se engesse o seu processo de desenvolvimento psicológico e, até mesmo edu-cacional, pode desorganizar a estrutura familiar. Em artigo (veja Box “Para saber mais...”), os estudiosos Maria Helena Sprovieri e Francisco

Assumpção Jr consideram que as dificuldades de integração de um autista interferem na or-ganização familiar, logo, a família é um sistema que vive em constante crise por conta de um de seus membros que não se desenvolve como os demais.

E num reino não muito distante...Vários historiadores já foram em busca de algum registro sobre o Autismo anterior ao artigo pu- blicado por Leo Kanner em 1943, na Revista The Nervous Child. Então, soube-se que na França,

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PARA SABER MAIS

ArtigosA Investigação do Impacto do Autismo na Família: Revisão Crítica da Literatura e Proposta de um Novo Modelo, de Carlo Schmidt e Cleonice Bosa (Pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRS).

Dinâmica Familiar de Crianças Autistas, de Maria Helena S. Sprovieri (Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP) e Francisco B. Assumpção Jr (Diretor do Serviço de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – FMUSP).

EducaçãoSociedade Pestalozzi – Telefone: 32318575.Fundação Especial Permanente Casa da Esperança – Telefone: 3081-4873.

antigamente, as crianças que atendiam às des- crições de Kanner, recebiam o título de criança fada. Mas, por qual motivo? Buscando em contos de fada europeus, descobriu-se que a criança fada seria aquela que havia sido trocada por uma fada. Isso mesmo. Na Irlanda, há o changeling, que significa o transmutado humano. Esse termo se aplicava a crianças que teriam sido levadas pela good people (fadas ou gnomos), que deixa-vam um substituto fisicamente idêntico, mas com uma personalidade completamente diferente. O suposto rapto era feito tão cedo que a mãe só perceberia quando a criança se tornasse agressiva e pouco afetiva. Algo que chama a atenção é o fato de esses raptos serem apenas de meninos.

Tal misticismo parece muito presente no mundo dos autistas. Na própria literatura acadêmica é possível encontrar muitos relatos de casos com problemas distintos, mas com um mesmo rótulo. As famílias, muitas vezes mal ins- truídas sobre o transtorno que afeta seus filhos, entram em pânico quando apenas suspeitam do que pode estar acontecendo com eles. Não sabem o que é o Autismo, não entendem o que se passa. O tempo passa e é fator determinante. Os diagnósticos podem ser prejudicados também pelo fato de, muitas vezes, os próprios médicos não terem segurança sobre aquilo que está sendo dito à mãe e ao pai de uma criança. Liduína Holanda lembra de quando passou por essa situação: “Todos em que eu o levava só repetiam isso. Até o pediatra dele, que o acompanhou durante um ano. O médico disse: ‘Dona Liduína, esse menino não tem nada não... ele é absoluta-mente normal’”, lembra a mãe de Vivaldi. O rapaz, aliás, foge às famigeradas estereotipias. Obviamente que tem características autísticas, teve um desenvolvimento um pouco diferen-ciado, mas, aos 19 anos, gosta de carnaval e de uma boa praia. Apesar das supostas facilidades, Vivaldi parou de estudar cedo se comparado a outras crianças.

Dra. Sônia Oliveira, vice-presidente da Casa da Esperança, instituição que cuida da saúde e da educação de cidadãos autistas, é também assistente social e uma das mães fundadoras da Casa, além de ser a mãe de Alana, uma jovem de 18 anos que também faz parte do projeto. Ela afirma que algumas pessoas consideram os autistas como pessoas que vivem no seu mundo, como se vivessem à parte. Na verdade, eles vivem no “nosso” mundo, embora tenham uma

forma diferente de lidar com as pessoas, com os objetos e até mesmo com o mundo. “Por isso o que define que nós possamos dar um diagnós-tico de Autismo é essa dificuldade que eles têm de interagir com as pessoas e de se comunicar. Então, isso é uma coisa trabalhosa, é difícil para a gente fazer. Se pararmos para pensar, a interação é uma coisa muito difícil, muito complexa. Então, os autistas são considerados como se fossem de um outro mundo pelo fato de eles não terem esse desejo de manter essa interação, nem essa facilidade de interagir. Muitas vezes, a gente percebe que alguns têm muita vontade de fazer isso, mas eles têm essa dificuldade”, explicou Sônia. Um dos grandes medos de um autista diz respeito, segundo Sônia Oliveira, à vida amorosa. Eles podem aprender através de livros ou revistas tudo sobre relacionamentos afetivos, mas há uma dificuldade no momento de colocar as lições em prática. “Eles têm dificuldades de construir uma rede de amizades. E o maior medo deles é com relação a namoro. Eles não sabem abordar, não têm esse jogo de cintura”, disse a assistente social.

É um tempo diferente, um modo diferente de interagir e de se comunicar. Alguém disse que eles não são normais? Quem garante que “nós” somos? Talvez não tenhamos mesmo “jogo de cintura”, aquele que dizem que eles não têm, para entendê-los. De fato, eles devem ser mesmo fadas ou gnomos ou devem ter alguma proteção que vai além de nossos olhos que só vêem es-tereótipos. E é bem possível que isso aconteça em algum reino que é só deles e, talvez, nem se trate de um reino muito distante de nós.

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Mãe e filho: uma relação especial de dedicação e renúncia

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A doença do século XXIA ansiedade é gerada pela maneira como lidamos com o tempo. O tempo curto para a realização das atividades que se acumulam no cotidiano, o tempo passado julgado como improdutivo e mal aprovei-tado ou mesmo o tempo presente não desfrutado

“Foi devido à doença da minha mãe. Quando ela estava internada e sempre que eu sabia que o diagnóstico piorava, corria para a lan-chonete”, conta Adeliane Nogueira, de 30 anos, que há dois sofre de ansiedade. Adeliane lembra que toda vez que sabia do estado de saúde de sua mãe sentia uma ansiedade intensa que era controlada quando comia. “Era uma necessidade de estar direto mastigando”. Nessa época, ela engordou mais de 30 quilos. Hoje, em tratamento, já perdeu metade.

Embora já existisse no homem primitivo, caracterizando-se mais como uma emoção do que um transtorno, o caráter imediatista da sociedade contemporânea faz com que os casos

de ansiedade sejam cada vez mais recorrentes. A ameaça à estabilidade, seja no trabalho ou em casa, o contato com o novo, a insegurança social, a ambição, a competitividade, os sentimentos de culpa são algumas das causas de ansie-dade, que é um sentimento humano, mas pode se tornar uma doença quando o homem perde o seu controle.

Segundo a psicóloga e pro-fessora do Curso de Psicologia da Unifor, Denise de Lima, a ansiedade está relacionada à qualidade de vida de uma pessoa. “Se a vida dela é muito conturbada, tende a desenvolver ansiedade, que é produzida pela relação que a pessoa tem com o ambiente em que vive”, ressalta.

Pode existir uma razão concreta para a pessoa estar reagindo à vida com ansiedade, como, por exemplo, quando há estresse pro-vocado por algum acontecimento no trabalho

· texto · jackson de moura · fotos · laurêncio lima ·

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ou em casos de doença com a própria pessoa ou alguém da família. Entretanto, existem situações de ansiedade em que não se detecta nenhum motivo aparente, inclusive nenhuma doença física que possa justificar tal estado emocional. Nesses casos, os sintomas surgem espontanea-mente, muitas vezes sob a forma de ataques de ansiedade e ataques de pânico.

Foi assim que a pedagoga Flávia Teixeira, de 24 anos, sofreu seu primeiro ataque de pânico há três anos. Flávia estava sozinha em casa quando teve sensação de morte iminente acompanhada de taquicardia e sudorese. “De repente, meu coração acelerou. Telefonei para o meu namorado e pedi que ele viesse cor-rendo”, conta. Flávia lembra que logo melhorou quando seu namorado chegou para vê-la. Dois dias depois os mesmos sintomas se repetiam, desta vez, bem mais acentuados: “Tinha a certeza que iria morrer, fui para o hospital e o médico, após me examinar, disse que eu não sofria do coração, meu problema era síndrome do pânico”, rememora.

Flávia diz que após ter os primeiros ataques

de pânico, deixou de freqüentar festas e lugares que reúnam muita gente. O problema foi diag-nosticado como Agorafobia. “Temo ter ataque de pânico e depender dos outros”, confessa. Hoje, em tratamento com medicamentos e psiquiatria, ela deduz que o seu perfeccionismo foi a principal causa da síndrome do pânico.

Psiquiatricamente, o diagnóstico de quais-quer transtornos de ansiedade (como síndrome do pânico e o transtorno obsessivo-compulsivo) dá-se a partir do estudo histórico de casos de doenças psiquiátricas na família, através das condições sociais e relações pessoais do pa-ciente, abuso de álcool e outras substâncias, além de analisar o histórico de manias e se têm doenças associadas à ansiedade.

Para a psicóloga e professora de Yoga, Ana Cláudia Dutra, a ansiedade é hoje tão recor-rente devido à dinâmica da sociedade contem-porânea. “A maioria das pessoas que tem algum transtorno ansioso têm personalidade forte, são muito competitivas e apressadas, não admitem erros, querem tudo para ‘ontem’ ”, afirma.

Terapia holísticaAtualmente, a psiquiatria e a psicologia não são os únicos meios que as pessoas buscam para controlar a ansiedade. A terapia floral, a yoga e a meditação são bastante requisitadas para o tratamento desses transtornos.

É com a terapia floral que Adeliane Noguei- ra busca aliviar sua ansiedade. “A terapia floral trabalha a sensibilidade, é assim que hoje eu consigo parar e pensar”. Ana Cláudia Dutra, que além da yoga, trabalha com florais, clas-sifica a terapia como uma medicina energética. Por meio dela, Ana Cláudia disse que é tratada a personalidade de uma pessoa ou algum momento da personalidade para que, assim, a doença seja tratada.

Mas são os exercícios de respiração da yoga, os chamados pranayamas, que com-batem diretamente a ansiedade segundo Ana Cláudia. “Quando se está ansioso, respira-se e inspira-se muito rapidamente, é uma respiração curta e, então, não é profunda. No trabalho respiratório da yoga, o paciente vai respirar mais lentamente, soltando ar, isso vai levar a um desaceleramento do nível de ansiedade”, explica.

A meditação no tratamento de ansiedade é também apontada como eficaz e tem sido

Adeliane controla sua

ansiedade por meio do

tratamento da terapia floral

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alvo de muitos estudos no Brasil e no exterior. Para a terapeuta holística Ma-Deva Yoko, a meditação produz um relaxamento que vai eliminar “o desejo latente de resolver tudo do dia pra noite”. Ela diz que a ansiedade faz com que a pessoa deseje o futuro para sair daquela situação do transtorno e para resolver suas inúmeras atividades no trabalho ou em casa, ou mesmo o saudosismo, relembrando que antes tudo era melhor. “A meditação, através do autoconhecimento, vai focar a atenção da pessoa para o agora, você vai fi car mais com você mesmo e, assim, terá uma relação de mais confi ança com a vida”, ressalta. Ainda segundo Ma-Deva, a meditação também melhora a respiração e a paciência.

Para a psicóloga Denise de Lima, a yoga, a terapia fl oral e a meditação são recursos com-plementares no tratamento de ansiedade, principalmente, em casos em que é crônica: “Quan-do a pessoa sofre de ansiedade crônica, ela tem que passar tam-bém por um tratamento psicológico e por medicação, para logo reduzir o nível de ansiedade”, argumenta.

Os transtornos de ansiedade

Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC): pensamentos intrusivos e comportamentos re-petitivos com intuito de afastar a ocorrência de ameaças obsessivas. O principal prejuízo é no bem-estar psicossocial.

Fobia social: medo excessivo e irracional em público; o indivíduo teme agir de modo humilhante e embaraçoso. Mais da metade das pessoas que sofrem desse transtorno tem depressão.

Ansiedade generalizada: o transtorno mais comum. Ansiedade e preocupação exagerados, agi-tação, tensão muscular, fadiga, perturbações no sono e difi culdade de concentração.

Síndrome do Pânico: sensação de perigo ou de morte iminente. O ataque de pânico é espontâneo e dura, no máximo, dez minutos. Os casos duplicaram em relação à década de 80, hoje 4% da população mundial desenvolve a doença.

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Diana diz que a maioria

de seus pacientes

com ansiedade

são mulheres.

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Mulheres estão mais propensasSegundo o Anxiety Disorders Association of America, em pesquisa realizada

nos Estados Unidos, um em cada oito americanos entre 18 e 54 anos, sofre de algum tipo de transtorno de ansiedade. Além disso, 60% das pessoas que sofrem de ansiedade são do sexo feminino, com idade entre 20 e 45 anos.

Para Denise de Lima, a mulher está exposta a mais situações que propiciam a ansiedade do que os homens. A mulher de hoje, além de constituir família, trabalha e tem uma vida social agitada: “A mulher tem que dar conta de várias atividades ao mesmo tempo, numa condição estressante que pode gerar an-siedade”. Para Denise, isto é também uma questão genética: “Mulheres mais ansiosas foram selecionadas ao longo da história”, esclarece.

Diana Suassuna, professora de Yogaterapia Hormonal, diz que a maioria dos seus pacientes que sofrem de ansiedade são mulheres. “O homem se descuida mais quando o assunto é cuidar da casa e dos filhos. A mulher, mesmo quando trabalha, tenta conciliar todas as atividades e acaba se sobrecarregando.”

Além disso, Diana ressalta que o ciclo hormonal implica em uma propensão maior à ansiedade nas mulheres: “Cada emoção está relacionada a um hormônio. E como a mulher passa periodicamente por distúrbios hormonais é complicado manter equilíbrio emocional”, afirma. É na tensão pré-menstrual (TPM) que as mulheres se sujeitam a desenvolver algum transtorno de ansiedade, principal-mente, quando são enfrentadas situações novas e estressantes. “É um período de disfunção hormonal, mas se trabalhado com os exercícios de respiração da ioga, os sintomas da TPM podem ser amenizados”, esclarece Diana, que há nove anos se dedica à Yogaterapia para revitalização hormonal.

Ansiedade e depressãoUma das conseqüências da ansiedade, principalmente se não for tratada, é

evoluir para um quadro de depressão. Ansiosa, uma pessoa passa a evitar diversas situações e pode acabar perdendo a sociabilidade, podendo ocasionar num estado depressivo. “A depressão é um transtorno de humor e se uma pessoa que sofre de ansiedade perder o contato social pode se tornar depressiva”, aponta Denise de Lima.

Mas no caso da depressão evoluir para uma ansiedade é mais difícil. A psicóloga diz que uma pessoa deprimida é apática e não enfrenta situações novas que pos-sam lhe causar ansiedade. “É mais fácil uma pessoa com ansiedade se esquivar de situações do cotidiano e desenvolver depressão”, ratifica.

SERVIÇO

Profa. de Yogaterapia hormonal, Diana Suassuna: Centro de Saúde e Harmonia Interior – Mandala, Av. Washington Soares, 1400. Sala 211. Tel: 3087-9216 / 91179224

Terapeuta holística, Ma-deva Yoko: CECRAN, rua Marcondes Pereira, 1404. Tel: 3227-3699

Psicóloga e professora de Yoga, Ana Cláudia Dutra: SESC, rua Clarindo de Queiroz, 1741. Tel.:3452-9000

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Fraturas, engessamentos e cirurgias. Essa é a rotina de meninos e meninas que parecem ser feitos de vidro. Crianças que desde cedo aprendem a conviver com uma síndrome que pode deixar seqüelas irreversíveis, que dividem sua infância entre brinquedos e salas de hospitais. Desde o primeiro momento lutam pelo direito à vida. Diante de conquistas e desafios diários, esses pequenos tornam-se gigantes. Lutadores genuínos que não se deixam vencer pelas complicações trazidas pelo tempo

CRISTALOssos de

· texto · roxaylly loren · talita dos santos

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Luiz Guilherme estava no berço. Tinha dois meses de vida. Esperava pela mãe que se ocupa-va dos afazeres domésticos. De repente caiu do berço e fraturou o braço. Ele não chorou. Ainda era tido como uma criança normal, pois a mãe desconhecia a doença do filho. Até o dia em que o levou ao hospital. A partir daí passaram-se dezenove dias de espera que levaram a mãe de Guilherme, Vauliz Pereira, 34, a momentos de insegurança e tensão. Exames foram feitos. E os médicos trouxeram a constatação: Guilherme é portador de Osteogenesis Imperfecta (OI) tipo III. Nascido com apenas 37 centímetros, Guilherme transformou a vida de sua mãe, que se sentiu diferente ao saber da doença do filho. “Me senti uma pessoa especial”, afirmou.

Tempos difíceis ainda viriam para mãe e filho que teriam que lutar contra a doença sem a presença paterna. O pai abandonou Guilherme ao saber do seu problema, alegando que não tinha filho aleijado. Ele é registrado no nome dos avós. Hoje aos 7 anos e com 68 centímetros, Guilherme vive com a mãe, dois irmãos e com os avós. Faz tratamento no Hospital Infantil Albert Sabin, mas a mãe sempre que pode evita levar o filho ao hospital. Ela prefere cuidar do filho em casa, por isso aprendeu a colocar os ossos de Guilherme no lugar quando ele fratura. “Deus me deu o dom de pegá-lo e poder ajeitá-lo em casa sem ser preciso levá-lo para o hospital”, declarou.

Vauliz é a própria fisioterapeuta do filho, pois, o único lugar que oferece fisioterapia adequada para ele é em Curitiba e ela não tem condições de levá-lo. Vauliz adaptou sua vida à do filho. O tempo dela passou a depender dele. Ela afirma que não importa onde esteja, pára tudo para atender a Guilherme. O tempo dele transcorre como o de uma criança normal. Ele estuda e brinca. Dono de uma alegria contagi-ante, só fica triste quando ocorrem fraturas. E desde cedo já alimenta o sonho de ser médico para no futuro ajudar as crianças que passam pela mesma situação dele.

A rejeição paterna também fez parte da vida de Vinícius Augusto de Oliveira, 25, que também é portador de OI tipo III. Ele vive com a mãe. É jornalista formado pela Fanor e dedica seu tempo ao trabalho, aos estudos e aos ami-gos. Não faz tratamento e não toma medicação. Segundo ele, não há tempo para isso. Existem coisas mais importantes a serem feitas.

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Ao longo da vida Vinícius já teve 86 fraturas. Mas, elas não são suas principais preocupações. Ele prioriza investimentos no seu futuro profis-sional. E afirma que sabe da importância das cirurgias e do tratamento, mas não pretende perder tempo com isso agora. Tempo que ele considera precioso quando se trata de sair com os amigos. “Eu não estou disposto a trocar todas as saídas que tive com meus amigos para não fazer absolutamente nada na Ponte Metálica da Praia de Iracema, para ficar no hospital com um gesso na perna e uma haste dentro dela” diz Vinícius.

Durante a infância Vinícius fez algumas cirurgias. Sua primeira cirurgia foi feita quando ele tinha 8 anos de idade. Mas, o fato de ter que ficar de 8 aos 15 anos indo para o hospital fazer cirurgias o desestimulou. Segundo ele, o tempo gasto dentro dos hospitais seria melhor aproveitado se fosse dedicado aos estudos e aos amigos. “Não troco a infância que eu tive brincando, me arriscando, para ficar fazendo cirurgias a cada ano” declarou Vinícius. Há dez anos ele não tem fraturas. Atualmente trabalha com assessoria de imprensa e pretende prestar concurso público.

Divulgando informações sobre a doença e orientando pais de portadores. É assim que Célia Bastos, 53, representante Norte e Nordeste da ABOI (Associação Brasileira de Osteogenesis Imperfecta) gasta boa parte do seu tempo. Ela é portadora de OI tipo III e criou um site sobre sua vida para mostrar que há possibilidades de se viver bem com uma orientação adequada. Célia busca melhorias na qualidade de vida dos por-tadores através do trabalho da ABOI e dedica-se às crianças portadoras, buscando animá-las no período de internamento. Toda essa divulgação melhora a condição dessas crianças. Segundo Célia, muitas vezes as pessoas não conhecem a doença, não estão em tratamento e não têm acesso a médicos especializados no assunto. “A desinformação faz muitas vítimas, pois, muitas crianças portadoras de OI são tratadas como crianças normais, portanto, quebram mais”, afirmou Célia.

Célia usa seu tempo para cuidar de si e para orientar pais de portadores. Faz fisioterapia e uma hora de natação por dia. Quando não está cuidando da própria saúde, ela divide o tempo entre visitas a crianças portadoras e a divulgação dos avanços dos medicamentos como o pami-

dronato dissódico que em alguns casos pode ser questão de vida ou morte.

Para os portadores de Osteogenesis Imper-fecta é sempre tempo de recomeçar. A cada fratura, a cada avanço, os desafios aumentam. Porque a luta não se restringe à doença, ela amplia-se diante das rejeições, dos desrespeitos e das próprias frustrações. Mas a vontade fér-rea de viver não permite que essas pessoas de estrutura tão frágil se entreguem ao desânimo. O mesmo tempo que traz complicações para o corpo dos portadores, também traz força para suas famílias que redescobrem o sentido da vida.

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ABOI: um trabalhoque salva vidas

A ABOI (Associação Brasileira de Osteogenesis Imperfecta) foi fundada em dezembro de 1999 pelo jornalista Moacyr Oliveira, pai de uma garota portadora de OI, pela antropóloga Rita Amaral que também possui a doença e por mais 48 pessoas (dentre elas portadores, pais de portadores e médicos interessados).

A entidade orienta seus associados direcionando-os para o tratamento e organiza os interessados na luta por seus direitos de cidadãos. A ABOI também possui um centro de pesquisa científica formado por médicos especializados que se oferecem para ajudar nos casos mais graves. Dentre as principais conquistas da entidade está a criação dos Centros de Referência em Osteogenesis Imperfecta (CROIs) pelo Ministério da Saúde.

Os CROIs são públicos, portanto, os portadores têm acesso a exames, internamentos e medicação gratuitamente. Em Fortaleza, o portador deve procurar auxílio no Hospital Infantil Albert Sabin, onde funciona o Centro de Referência da Região Nordeste. De acordo com Célia Regina, representante Norte e Nordeste da ABOI, o problema mais sério da OI é a questão socioeconômica. Segundo ela, é preciso criar novos Centros de Referência para que os pacientes possam ter o tratamento adequado em seu próprio Estado.

Osteogenesis Imperfecta: conheça a doençaA Osteogenesis Imperfecta (OI) é uma doença incurável que atinge um em cada 21 mil nascidos. É uma

síndrome rara de origem genética, cujo principal sintoma é a fragilidade óssea. Dessa característica vem o nome popular de “ossos de vidro” ou “ ossos de cristal”. Essa fragilidade dos ossos se dá em função da má formação do tecido conectivo dos portadores, que é responsável pela consistência e resistência dos ossos. Por isso os portadores costumam ter dezenas e em alguns casos centenas de fraturas por todo o corpo ao longo da vida. A doença é classificada em quatro tipos, de acordo com a gravidade da doença. O tipo I é o mais freqüente, é tido como relativamente leve. As fraturas começam na idade pré-escolar e tendem a reduzir após a puberdade. O tipo II é a forma mais severa da doença, resulta de uma nova mutação. De acordo com o Dr. José Dourado Nilo, chefe da ortopedia do Hospital Infantil Albert Sabin, geralmente a criança nasce esmagada, cheia de fratu-ras. No terceiro tipo os portadores apresentam desenvolvimento muscular fraco e encurvamento dos membros inferiores, portanto, a maioria não consegue andar. E o quarto tipo é o mais leve. Segundo Dr. Nilo esse tipo de OI dá as crianças chances de terem uma vida praticamente normal.

Com o avanço dos medicamentos, a qualidade de vida dos portadores de OI tem apresentado melhoras. “O uso de drogas, como o pamidronato dissódico, aumenta a resistência do osso e diminui as células que o consomem”, afirmou Dr. Nilo. Com a medicação, as crianças fraturam menos e passam a ter mais mobilidade. Entretanto, aceitar a realidade das fraturas não é fácil. “Às vezes as crianças não aceitam bem”, diz Dr. Nilo. O medo de fraturar faz as crianças temerem muito o início do tratamento. Mas, com o tempo e a diminuição das fraturas elas passam a confiar mais nos médicos. “Você percebe claramente a mudança no humor da criança. Elas passam a confiar mais na gente”, comenta Dr. Nilo.

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crôn

ica

“- Ainda não consigo aceitar.- Sabe o que é preciso.- Não consigo me resignar.- É assim. É a lei. Quando fechar os olhos,

milhões de outros estarão morrendo com você.- Mas eu não estarei aqui. Terei desapa-

recido para sempre. Se pelo menos tivesse aprendido alguma coisa... Eu me sinto tão despreparado quanto no dia em que nasci. Não consegui encontrar um sentido. É isso que temos que buscar... Às vezes acho que é isso que temos que buscar.”Poucos momentos antes de morrer, Rémy ainda procura um sentido para sua vida. O primeiro susto do personagem de “As Invasões Bárbaras” é descobrir que atingiu a velhice. “Dormi a vida inteira com as mulheres mais belas do mundo. Até a manhã fatal em que acordei e percebi que tinha dormido pen-sando no mar do Caribe. Tinha ficado velho. As mulheres tinham abandonado seus sonhos”. É dessa forma peculiar que Rémy encara seus últimos momentos. Acometido por um câncer, ele tem a oportunidade de estar junto de seus grandes amigos e de sua família, recordando e refletindo sobre a vida.

A morte sempre se revestiu de muito mistério, despertando no homem profunda curiosidade. Talvez seja por isso que o tema tenha sido tão trabalhado no cenário artístico mundial. Na literatura têm-se o exemplo dos românticos que marcaram suas produções pela intensa carga subjetiva. Muito mais voltados para o “eu”, esses autores retrataram utopias, dramas trágicos, alimentando grandes desejos de escapismo, sendo a morte o mais radical deles.

Hoje em dia, a morte é apresentada na

literatura de uma maneira mais branda. O au-tor moçambicano Mia Couto trabalha em seu livro “O último vôo do flamingo”, uma narra-tiva fantástica, em que o mundo dos vivos se confunde com o mundo dos mortos. “A morte é uma brevíssima varanda. Dali se espreita o tempo como a águia se debruça no penhasco-em volta todo o espaço se pode converter em esplêndida voação”. É com esse discurso car-regado de poesia que o narrador-personagem do romance de Mia Couto descreve a morte.

“O Mar Mais Longe Que Eu Vejo” é um conto de Caio Fernando Abreu sobre uma pes-soa à beira da morte, que aos poucos perde sua identidade, se descobrindo isolada em uma ilha. Assim tem início o conto de Caio: “Meu corpo está morrendo. A cada palavra, o meu corpo está morrendo. Cada palavra é um fio de cabelo a menos, um imperceptível milímetro de ruga a mais, uma mínima extensão de tempo num acúmulo cada vez mais insuportável”. A dor permeia esse personagem, sempre que lhe fazendo encarar sua situação débil e aprisio-nadora.

Porém, a morte também, pode ser vista com doçura, como uma mãe que acalenta o filho assustado. Assim canta Marisa Monte: “É doce morrer no mar/Nas ondas verdes do mar/O meu bem foi se afogar/Fez sua cama de noivo/No colo de Iemanjá”. São muitas e variadas as percepções que se tem acerca da morte. Ao trabalharem o tema em obras de arte de tanta sensibilidade e emoção, os artistas promovem uma rica reflexão sobre a vida, o amor, a amizade e tudo de valor que nos enche de sentido.

Quando a morte é bela· texto · humberto torres · intervenção · anne nogueira · foto · laurêncio lima ·

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arte

s

Tempo para te esperar1 x 0,8m - tinta acrílica com areia e massapor emilia vidal porto, artista plástica e estudante de Jornalismo

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Tempo morto, Tempo vivo

Se não te vejo ou não te encontroEstou mortoSe estou contigoEstou vivo

Tempo morto, Tempo vivo

Se fico a vagar pela ruaEstou mortoMas se encontro em ti um abrigoEstou vivo

Tempo morto, Tempo vivo

Tempo Senhor da vidaTempo Senhor da sorteTempo Senhor do destinoTempo Senhor da morte

Tempo morto,Tempo vivo

Tempo que passa ligeiroComo a correnteza de um rioTempo que desapareceMe propondo um desafio

Tempo morto, Tempo vivo

Tempo que passou distraídoTempo que não volta maisTempo do tempo perdidoTempo do nunca mais

Tempo morto, Tempo vivo

Tempo do tempo vazioTempo do tempo sombrioTempo do choro contido Tempo do largo sorriso

Tempo morto, Tempo vivo

Te quero TempoO tempo todo comigoA vontade de viver E estar sempre contigo

Tempo morto, Tempo vivopor rosanni guerra, estudante de Jornalismo da Unifor, formada em Letras pela UFC

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Entrei no Instituto Penal Olavo Oliveira I (IPPOO) em busca de informações variadas que me rendessem uma matéria jornalística sobre o tempo nos presídios, sobre a rotina dos ape-nados e sobre as lógicas que regem esse passar medido em anos de punição. Deparei-me com pessoas que me propiciaram uma experiência múltipla: estava ali em um local que a pena maior é ter que ver o tempo passar sem poder vivenciá-lo plenamente. Viver para mim, não é só passar os dias, esperar domingo e cansar de pensar quando é o próximo: é preencher o tempo de satisfação, vitalidade e não de tédio. Percebi no olhar de cada um que se oferecia para conversar, uma vontade imensa de ocupar os vazios dos meses e anos que ali passariam. Eram homens detentores de anseios: queriam ver a família, ter dignidade, trabalhar e serem mais humanos. Enquanto conversávamos, uma questão me vinha à mente: por que punir com o tempo? Saí de lá achando que a pena maior que alguém pode receber é ser privado de vivenciar o mesmo tempo dos demais, dos próximos que simbolicamente dão sentido para o passado e o presente.

Felicidade maior, para um dos presos que entrevistei, era poder estar vendo os filhos cres-cer, acompanhar de perto as experimentações e estar ao lado dos que gosta. Antes de se punir com as penas de privação de liberdade, as punições eram outras: castigos físicos e morte, por exemplo. É mesmo mais humanizado punir assim, privando a liberdade e equiparando pu-nição com tempo? Que tempo é esse que perco para um dia ser livre? É o tempo do tédio, do sofrer, da depressão e da violência que pune e sufoca. É nesse momento de crise instaurada, de presídios superlotados e de desejo de vin-gança de muitos que são a favor da redução da maioridade penal para 16 anos, que proponho uma reflexão sobre o tempo, não da vida, mas da pena, da punição. É necessário ressocializar esse detento, dar oportunidades, perspectivas, oferecer profissionalização e emprego para que possam ter mais dignidade e auto-estima. Fal-tam políticas públicas decentes para os presos. É alegado, pelos delegados e agentes prisio-nais, que é a ociosidade, a “cabeça vazia” do preso que o faz procurar encrenca, fazer falsos

· por · ivna girão · Estudante de Jornalismo da Unifor

seqüestros pelo celular, traficar drogas entre outras coisas.O Estado tem que propiciar novas perspec-tivas de vida e de ocupação, gerar e incentivar nichos de trabalho nos presídios. Todos com que pude conversar no IPPOO reclamavam da falta de ocupação, de assistência social, de atenção e garantia de direitos. Não entendo como, em plena crise do sistema prisional, ainda é pro-posta uma redução da maioridade penal que reforça a cultura da punição, da perversão e do rancor. A dinâmica dos novos tempos exi-ge uma nova abordagem. A pena alternativa pode caracterizar uma importante saída para o combate à criminalidade enquanto poder de viabilidade de políticas públicas, combatendo a exclusão social e dando ao apenado uma noção de comunidade, de ressocialização e de ocupação mais satisfatória do tempo que deixa de ser de punição, passando a ser de trabalho e reflexão. Os outros, bem, estes continuarão reclamando do governo de dois em dois anos..

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ião

O tempo da

PUNIÇÃO

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