Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro...

90

Transcript of Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro...

Page 1: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram
Page 2: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram
Page 3: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

APRESENTAÇÃO

Num momento de extremo sucateamento do ensino superior

público brasileiro, a diretoria da Adusp, com o apoio daComissão Editorial de sua revista, optou por concentrar

esforços e lançar esta edição especial com depoimentos deimportantes personalidades de diversas áreas da Educação, Ciência e

Tecnologia. A proposta inicial era a de que, ancorado na experiência decada um dos entrevistados, focos de luz pudessem ser lançados sobre os

problemas que o país enfrenta nas áreas educacional e científica. Oresultado foi muito além. O conjunto de reflexões desses educadores, maisdo que apontar os problemas, mostra que existem maneiras diferentes de

educar os nossos estudantes, dando-lhes além do ensino básico dequalidade, profundas noções de cidadania e compromissos com a

sociedade. Enquanto a realidade aponta para a proliferação de faculdadese universidades que oferecem cursos de graduação e pós-graduação de

todos os gêneros e gostos, demonstrando que a educação transformou-seem mercadoria comum, os depoimentos, como farol em terra firma, nosindicam o caminho a seguir. Respeitando as características de cada umadas áreas – o que se refletiu na forma diferenciada de apresentação dostextos –, buscamos mostrar que, em um passado não muito distante, a

Educação, a Ciência e a Tecnologia recebiam um outro tipo de tratamentonão só por parte dos governos estaduais e federal, como também dospróprios docentes. Esta afrimativa pode ser comprovada nas falas de

Antonio Candido de Mello e Souza, Milton Santos, Emília Viotti da Costa,Aziz Ab'Saber, Magda Becker Soares, Cristovam Buarque, Leopoldo deMeis, Rogério Cézar Cerqueira Leite, Fávio Motta e Nestor Goulart Reis

Filho. Vale ressaltar que este trabalho não teria condições de ser realizadosem a colaboração dos professores que aceitaram o convite da Adusp para

colher os depoimentos. São eles: Flávio Aguiar, Zilda Iokoi, Sylvia Bassetto,Francisco Nóbrega, Hamilton de Souza, Khaled Goubar e Nelson Achcar.Na última parte da revista, publicamos textos produzidos para homenagear

os professores Alberto Luiz da Rocha Barros, Francisco Iglésias e Maurício Tragtenberg falecidos entre o final de 1998 e início deste ano.

Page 4: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

DIRETORIAJair Borin, Osvaldo Coggiola, Marcos N. Magalhães, Iraci Palheta,

Ildo Luís Sauer, Lighia B. Horodynski-Matsushigue, José Moura Gonçalves Filho, Paulo Y. Kageyama, Antonio César Fagundes, Jairo Kenupp Bastos, Ires Dias

Comissão EditorialAdilson O. Citelli, Bernardo Kucinski, Fernando Leite Perrone,

Francisco Gorgônio da Nóbrega, Khaled Goubar, Nelson Achcar, Norberto Luiz Guarinello e Zilda M. Gricoli Iokoi

Editor: Marcos Luiz Cripa vdAssistente de redação: Fernanda Franklin da Silva

Editor de Arte: Luís Ricardo CâmaraAssistente de produção: Rogério Yamamoto

Capa: Luís Ricardo CâmaraRevisão: Isabel Cristina Lélis Ferreira

Secretaria: Alexandra M. Carillo e Aparecida de F. dos R. PaivaDistribuição: Marcelo Chaves e Walter dos Anjos

Fotolitos: Bureau OESPGráfica: Van Moorsel Andrade e Cia.

Tiragem: 5.500 exemplares

Adusp - S. Sind.Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 374

CEP 05508-900 - Cidade Universitária - São Paulo - SPInternet: http://www.adusp.org.brE-mail: [email protected]

Telefones: (011) 813-5573/818-4465/818-4466Fax: (011) 814-1715

A RReevviissttaa Adusp é uma publicação trimestral da Associação dos Docentes da Universidadede São Paulo - S. Sind., destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem,necessariamente, o pensamento da diretoria da entidade e são de responsabilidade dosautores. Contribuições serão aceitas, desde que os textos, inéditos, sejam entregues emdisquete e tenham, no mínimo, dez mil e, no máximo, vinte mil caracteres. Os artigos serãoavaliados pela Comissão Editorial, que decidirá sobre seu aproveitamento.

Page 5: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

ÍÍNNDDIICCEE6

NNÃÃOO SSOOUU MMIILLIITTAANNTTEE DDEE CCOOIISSAA NNEENNHHUUMMAA,, EEXXCCEETTOO DDEE IIDDÉÉIIAASS

Milton Santos

14DDEEVVEEMMOOSS RREEVVEERR AA IIMMAAGGEEMM QQUUEE TTEEMMOOSS DDEE NNÓÓSS MMEESSMMOOSS

Emília Viotti da Costa

30AA FFAACCUULLDDAADDEE DDEE FFIILLOOSSOOFFIIAA

MMUUDDOOUU OO PPAANNOORRAAMMAA CCUULLTTUURRAALLAntonio Candido

38ÉÉ GGRRAANNDDEE AA DDIISSTTÂÂNNCCIIAA EENNTTRREE OO

DDIISSCCUURRSSOO OOFFIICCIIAALL EE AA RREEAALLIIDDAADDEEMagda Becker Soares

44AA UUNNIIVVEERRSSIIDDAADDEE RREEPPRREESSEENNTTAA AA CCOONNSSCCIIÊÊNNCCIIAA CCRRÍÍTTIICCAA DDAA NNAAÇÇÃÃOO

Aziz Ab’Sáber

54AA UUNNIIVVEERRSSIIDDAADDEE BBRRAASSIILLEEIIRRAA EESSTTÁÁ AABBAANNDDOONNAADDAA

Cristovam Buarque

60NNÃÃOO QQUUEERROO PPOOLLÍÍTTIICCAA,, SSÓÓ CCIIÊÊNNCCIIAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO

Leopoldo de Meis

66AA PPRROODDUUÇÇÃÃOO CCIIEENNTTÍÍFFIICCAA ÉÉ CCOOMMPPAATTÍÍVVEELL CCOOMM

OO DDEESSEENNVVOOLLVVIIMMEENNTTOO EECCOONNÔÔMMIICCOO DDOO PPAAÍÍSSRogério C. Cerqueira Leite

70AA CCOONNSSTTRRUUÇÇÃÃOO DDAA IINNTTEERRDDEEPPAARRTTAAMMEENNTTAALLIIDDAADDEE

AATTRRAAVVÉÉSS DDAA PPEESSQQUUIISSAA NNAA GGRRAADDUUAAÇÇÃÃOO EE PPÓÓSS--GGRRAADDUUAAÇÇÃÃOONestor Goulart Reis Filho

78SSOOBBRREE OO EENNSSIINNOO DDEE AARRTTEE && AARRQQUUIITTEETTUURRAA

Flávio L. Motta

HHOOMMEENNAAGGEENNSSAlberto Luiz da Rocha Barros, 82

Francisco Iglésias, 85Maurício Tragtenberg, 88

Page 6: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

NÃO SOU MILITANTEDE COISA NENHUMA, EXCETO DE IDÉIAS

NÃO SOU MILITANTEDE COISA NENHUMA, EXCETO DE IDÉIASMilton SantosMilton SantosPOR ZILDA IOKOI

Milton Santos representa uma geração deMilton Santos representa uma geração deintelectuais que se formou na Universidade Fintelectuais que se formou na Universidade Federalederalda Bahia antes da reforma de 1968. O sentidoda Bahia antes da reforma de 1968. O sentidohumanista revelado no depoimento aqui publicadohumanista revelado no depoimento aqui publicadoindica não apenas a experiência de um homem deindica não apenas a experiência de um homem deidéias, como também de um cidadão que defendeidéias, como também de um cidadão que defendecom o rigor da palavra os direitos dos homenscom o rigor da palavra os direitos dos homenssimples, dos negros e dos exsimples, dos negros e dos excluídos. Sua trajetóriacluídos. Sua trajetóriade vida, de pesquisa e de docência permite ode vida, de pesquisa e de docência permite oreconhecimento de um humanismo que sensibilizareconhecimento de um humanismo que sensibilizao leitor e o reconhecimento dos dilemas atuais dao leitor e o reconhecimento dos dilemas atuais daformação dos jovens estudantes do país. De umformação dos jovens estudantes do país. De ummundo de esperanças e de sonhos partilhados commundo de esperanças e de sonhos partilhados como espaço, com os orientadores dentro e fora do paíso espaço, com os orientadores dentro e fora do paíse de planos para o futuro do Brasil, Miltone de planos para o futuro do Brasil, Miltonapresenta-se nesta publicação como um intelectualapresenta-se nesta publicação como um intelectualque reconhece os problemas atuais, mas consideraque reconhece os problemas atuais, mas consideraimprescindível atrair a juventude para o debateimprescindível atrair a juventude para o debateteórico com vistas ao aprofundamento da crítica eteórico com vistas ao aprofundamento da crítica ea reelaboração de projetos democráticos dea reelaboração de projetos democráticos deincorporação de cidadania e direitos entre os quaisincorporação de cidadania e direitos entre os quaisestão o dos negros. Pestão o dos negros. Partilhar com o professor destaartilhar com o professor destalonga e afetiva conversa foi um aprendizado quelonga e afetiva conversa foi um aprendizado quemuito me comoveu.muito me comoveu.

Page 7: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Fotos: Cláudio Rossi/Abril Imagens

Page 8: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Aprimeira coisa a dizer é que eu sou umhomem da Bahia. Nasci em 1926, naBahia. Pude, ainda, participar de um ti-po de formação básica, que iria pratica-mente se extinguir com a minha gera-ção, isto é, um ensino secundário em

cinco anos, complementados por mais dois anos pre-paratórios à Faculdade. Aqueles cinco anos ofere-ciam um conjunto de conhecimentos capaz de for-mar o homem para ser um cidadão. Era isso o ensi-no secundário: a formação de um indivíduo comple-to e, assim, de um candidato a ser um bom cidadão.

Praticamente não fui à escola primária. Comomeus pais eram professores primários, estudei mes-mo em casa e só fui à escola para fazer exames, aosoito anos, em Alcobaça, no sul da Bahia. Fiquei espe-rando a idade de 10 anos para fazer o exame de ad-missão ao ginásio em escola particular, em Salvador.Havia poucos ginásios em todo o Estado. Tive queser interno. E como não havia internatos públicos, fuipara uma escola, onde meu pai havia sido professor.Esta particular, o Instituto Bahiano de Ensino. Erauma escola da classe média estabelecida. Nesse esta-belecimento havia rigor, tanto do ponto de vista daformação ética como da formação intelectual.

Salvador demorou muito para se tornar um cen-tro industrial, permitindo, então, uma valoraçãomuito grande da cultura. A própria sociedade brasi-leira era ainda um arquipélago, pouco contaminadopelos valores da sociedade industrial. Esse apego àcultura não era apenas um sonho daqueles que seentregavam a um projeto intelectual porque havia aquase certeza de que através da cultura, do estudo edo esforço poder-se-ia chegar a algum lugar, diferen-te do projeto industrialista, onde há outros canais deascensão e os valores são outros. Hoje, olhando paratrás, vejo como isso foi importante para a minha for-mação, haver adquirido uma preocupação estudiosa,ao mesmo tempo que uma fé no humanismo.

O fato de haver estudado Direito reforça muitoesta vocação, pois a formação jurídica era, então, aporta para todas as funções de direção da vida so-cial: para a diplomacia, para a política, para o jorna-lismo e até para as atividades propriamente ligadasao Direito, isto é, ser juiz, promotor, advogado, etc.

A Faculdade de Direito não era predominantementetécnica, mantinha um equilíbrio entre o lado técnicoe o filosófico da formação, com um grande peso parao estudo do Latim, da Filosofia, da Sociologia e daGeografia Humana. Tudo isso, como já ressaltei an-tes, foi muito importante na minha formação. SendoSalvador uma cidade pequena mas com a vantagemde ter sido urbana há muitos séculos, havia a possibi-lidade de convivência imediata com homens cultosfora da Universidade. Nela havia já uma segmenta-ção, uma hierarquização da vida social, mas, a essaépoca, isso não impedia os contatos.

Exemplo de intelectuais com os quais convivi ain-da muito moço foram Pedro Calmon e Otávio Man-gabeira. Tive grandes professores desde o ginásio,porque gente de grande valor que ensinava nas Fa-culdades de Medicina, de Direito, de Engenharia,também dava aulas no ginásio. Estes homens eramum modelo para nós, os jovens estudantes.

Fiz meu bacharelado em Direito e um pouco de-pois fui para a França me doutorar o que conseguiaos trinta e dois anos. Meu tema de tese foi O Centroda Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana,que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores detese foram Jean Tricart e Etienne Juillard, na Uni-versidade de Estrasburgo.

Então o Brasil já era visto através da definição ofe-recida no famoso livro de Stefan Zweig, ou seja, "oBrasil do futuro". Havia esse lado ufanista e desenvol-vimentista oriundo em parte da política de preparaçãode Brasília, do crescimento econômico e do debate so-bre o desenvolvimento. Naquela época em que fiz meudoutoramento, havia também da parte dos professorese intelectuais europeus um olhar otimista e simpáticocom relação ao terceiro mundo, noção politicamenteconstruída na Europa e marca da associação daquelesintelectuais com jovens e com gente progressista doTerceiro Mundo. Era também, de alguma forma, umato de engajamento. Ainda que também houvessepreocupações com a carreira, não era como hoje, ondeas relações internacionais são, em grande parte, dita-das por preocupações de carreira, tornando-as tão ári-das e raramente produtivas (no meu modo de ver).Havia um comprometimento com as idéias universalis-

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

8

A

Page 9: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

tas, na cooperação entre orienta-dos e mestres. Tenho grande or-gulho do volume de artigos que euassinei com meu mestre Tricart.

É exatamente porque seacreditava no desenvolvi-mento que se inventou a no-ção de subdesenvolvimento.Havia toda uma idéia de co-mo fazer os países do sul de-colarem. Essa decolagem tinhacertos pressupostos que pas-savam pela industrialização,pela construção de um Estado Nacio-nal, pela incorporação cada vez maiordo conhecimento na criação de umprojeto nacional. Havia todo um conjunto de idéiasque acabava dando entusiasmo à juventude, capita-neada, de uma forma ou de outra, pelos partidos deesquerda, notadamente o Partido Comunista. O PCBfazia um trabalho muito forte, muito sistemático paraesta integração, que incluía também pessoas com ou-tros perfis ideológicos, mas interessadas no projetonacional. Essa busca do desenvolvimento era uma ta-refa que incluía uma grande parte da juventude e nãodeixava indiferentes outros partidos políticos.

Eu tenho a impressão de que, se formos periodizar,veremos que o abalo das concepções de desenvolvi-mento nacional só ocorre recentemente, no governoatual. O que se deu foi uma mudança na forma de vera questão. Em um dado momento, acreditava-se na in-dustrialização como saída para o desenvolvimento ecriou-se, no meu modo de ver, um grande problemaepistemológico. Essa crença firme na industrialização,que até hoje tem repercussão nas Ciências Sociais, étambém decorrente da hegemonia paulista na produ-ção intelectual brasileira. Quer dizer, essa crença naindústria como motor, como único motor possível, tor-nou-se um pensamento hegemônico, aceito pratica-mente sem crítica. Descobri isto somente em 1964,quando fui ensinar na França. Depois de repetir asmesmas coisas - a indústria como motor, a indústriacomo alternativa, a indústria como forma de medir ocrescimento, a indústria como único setor dinâmico - ealiás, isto se devia a uma certa leitura de Marx, trans-

mitida pelos militantes do PC - descobri que não erabem essa a interpretação única, nem a exclusivamenteconveniente. Nem para os nossos países, nem para ospaíses centrais. A base do meu trabalho a partir daípassou a ser a de criticar esta certeza que eliminavainúmeras possibilidades de entendimento do lugar, daregião, da história local. Predominava uma interpreta-ção a partir da industrialização e da indústria. Buscá-vamos ver o país a partir do que ele ainda não tinha,do que ele ainda não era. E imaginávamos estar pro-duzindo uma visão futurista, um projeto, quando, naverdade, buscávamos uma camisa de força, costuradano estrangeiro, para vestir o nosso próprio país. A ba-se mais ampla das ciências sociais era essa epistemolo-gia importada, cujos fru-tos eram legitimadosnos centros exportado-res de idéias. Enquan-to isso, descurávamosda produção denossa própria epis-temologia, de nossaspróprias idéias. Tudoisso era muito ajuda-do pela nossa ênfaseenviesada de umavelha tendênciaintelectual que éa de considerar o

9

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 10: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

mundo a partir da Europa, e agora dos Estados Uni-dos. Assim se exclui do nosso campo de visão a maiorparte da humanidade, do mundo e, também, da pró-pria cultura brasileira. A cultura oficial brasileira - ados homens oficialmente cultos do Brasil - nutriu-se,freqüentemente, de uma visão vesga do mundo. A glo-balização agrava essa vesguice. Ela não convoca a umareal mundialização do pensamento, porque vemacompanhada do predomínio praticamente ditatorialde forças que têm, outra vez, como centro, a Europa ejá agora, sobretudo os Estados Unidos. O pensamentoúnico é um pensamento de origem euroamericana. Eeu creio que isso convida a uma renúncia do mundo ede si mesmo, por ficarmos demasiadamente tributá-rios de epistemologias que não são universalistas, massão apenas euroamericanas, rejeitando assim, a possi-bilidade de começar a ver o mundo a partir de nóspróprios. Acho que esse é o grande drama do pensa-mento social latino-americano.

Vejo hoje com muita dor a relação entre o regimeautoritário militar e o regime autoritário da democra-cia de mercado - porque os dois são autoritários. Ha-via um autoritarismo explícito que convocava à oposi-ção da inteligência, mas hoje há um autoritarismo en-capuzado - em certos aspectos - e ainda mais eficazporque nasce niilista e termina sendo niilista. O outrolevava a uma crença e a uma "contra-crença". Esta"contra-crença" era eficaz pois também era uma cren-ça: essa vontade de liberdade que irmanava brasileirosdentro e fora do país, ainda que as formas de luta pu-dessem ser completamente diferentes. Os de dentroresistiam e os de fora, a seu modo, imaginavam resis-tir. Hoje eu creio que o totalitarismo é pouco visto, ou,em todo caso, não é considerado como autoritarismo.Porque o próprio processo de vida acaba por esmagartoda a vontade de autonomia intelectual, as formaseconômicas e políticas desse autoritarismo aparecemcomo indispensáveis e, para muitos, louváveis, criandouma espécie de "geléia geral", na qual os resistentesaparecem em número relativamente limitado.

Daí decorre a nossa tarefa educacional como ta-refa crítica. No mundo de hoje, a crítica tornou-semenos freqüente, mas ao mesmo tempo mais fácil,porque a história vai se fazendo de modo visível. Ne-nhuma geração teve este privilégio, possibilidade

aliás ainda não completamente realizada, de teracesso direto e imediato à história se fazendo no pla-neta inteiro. Por isso, a tarefa da crítica torna-se afi-nal historicamente viável. Os instrumentos intelec-tuais de crítica passam a ter uma veracidade e objeti-vidade que nunca tiveram e é por isso que a própriahistória, a noção de história, torna-se ainda maiscentral, sugerindo uma volta ao marxismo. Evidente-mente que a um marxismo renovado, porque nuncafoi possível ao mundo, contemplar, como hoje, oconjunto formado por uma totalidade empírica.Acho que a história do presente - a maneira comoela se dá e os enganos a que ela com freqüência nosarrasta pela ditadura da informação - pode ser reto-mada através desse conhecimento da maneira parti-cular de o mundo produzir história em cada país, emcada região, em cada lugar. Acho esta é a grande li-ção da globalização.

Junho 1999

10

No mundo de hoje, a críticatornou-se menos freqüente,mas ao mesmo tempo mais

fácil, porque a história vai sefazendo de modo visível.

Nenhuma geração teve esteprivilégio, possibilidade

aliás ainda nãocompletamente realizada, deter acesso direto e imediato

à história se fazendo noplaneta inteiro. Por isso, atarefa da crítica torna-se

afinal historicamente viável.

Page 11: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

A tarefa que se coloca pa-ra a universidade é convidaros estudantes ao gosto peloentendimento das raízes dosfenômenos. Eu não creio que sejadifícil, é apenas uma questão detreino, ou talvez de incluir em todos os currículos, apartir do primeiro ano, em todas as disciplinas, asnoções de mundo globalizado. Isso já começa aacontecer. Exemplo disto foi um convite muito gos-toso que recebi do diretor da Faculdade de Enge-nharia da Universidade Federal de Minas Gerais pa-ra proferir a aula inaugural. Ou seja, a preocupaçãocom a globalização é central para entender o Brasil.Os intelectuais de Estado nos dizem que temos deobedecer às normas de um mundo tal como eles es-crevem. Vamos escrever de outra forma. Acho queeste é o problema, o debate atual do Brasil é esse:

não dápara dar as

costas à globaliza-ção, à realidade, só que ela está sendo

descrita de uma maneira que considero incorreta.Há uma confusão entre irrecusabilidade do pro-

gresso técnico e irrecusabilidade do processo políti-co. Acredito que o avanço técnico não possa ser re-cusado, mas pode, sim, ser utilizado segundo um ou-tro esquema. Sempre foi assim. Durante toda a his-tória da humanidade, ocorreram progressos técnicosmas com formas políticas múltiplas. O próprio impe-rialismo é exemplo disso. De alguma forma haviaimperialismos desiguais que se olhavam, sem obriga-toriamente se deixarem engolir, como o ImpérioPortuguês e o Inglês que eram diferentes, mas am-bos mantinham suas colônias. Penso que, hoje, à ba-

11

Page 12: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

se da ditadura do di-nheiro, há uma idéiaformada da utilizaçãoem mão única de umcerto conjunto técnico.

Uma universidade como aUSP não dispõe do seu pró-prio fundo de pesquisa. Es-se parece ser o caso geraldas universidades brasileiras,desprovidas, assim, de maior autonomiana direção do seu próprio processo depesquisa. As maiores universidades poderiam desti-nar uma parte dos seus orçamentos (às vezes bemgordos em relação a congêneres estrangeiras) para apesquisa feita a partir dela própria. Grandes idéiasnem sempre necessitam de muito dinheiro. E o tra-balho de faculdades críticas como as de Filosofia ébarato e não pode repousar o seu financiamento so-mente no que vem de fora, mas em recursos que se-jam acionados de perto, não de longe.

Acho que é preciso aprofundar esse papel crítico dauniversidade, após tentar captar a história como um to-do e para todos: cientistas políticos, economistas, soció-logos, antropólogos e, estou deixando para o fim massem nenhuma hierarquia, geógrafos e historiadores.

O dever de ofício da Faculdade de Filosofia, Le-tras e Ciências Humanas é fundamentalmente de-senvolver a crítica. É importante a gente começar abrigar por isso; nosso papel é um papel de crítica,quer dizer, a faculdade é o lugar da crítica, inclusi-ve da própria ciência.

Minha própria biografia pessoal acaba sendo decisi-va para o entendimento de minha posição ideológica epolítica. Quer dizer, o próprio fato de ser negro e a ex-clusão correspondente acabam por me conduzir a umacondição de permanente vigilância. Não sou militantede coisa nenhuma, possivelmente pela forte influênciado estilo francês de ser intelectual, que houve na minhaformação, por mais que eu deseje me libertar dessa he-rança, e tão forte, razão pela qual às vezes eu o façocom certa brutalidade. Essa idéia de intelectual, apren-dida com Sartre, de uma independência total, distan-ciou-me de toda forma de militância, exceto a dasidéias. A militância político-partidária me assusta, me

faz medo, porque ainda que a considere como indis-pensável, como também são indispensáveis os políticos,não desejo sê-lo, porque quero ser permanentementesozinho. Embora separados, os militantes conscientes econvictos, constituem um bloco de resistência.

A universidade é a única instituição que só podeperdurar se não aceitar de forma cabisbaixa as regrasestabelecidas. Se eu me considero institucional, estouacabando com a minha universidade. Então ela é umainstituição sui generis, o que facilita o nosso engajamen-to mais amplo na produção de idéias para o país comoum todo, e no comportamento de uma vanguarda, poisnão creio que ela tenha morrido. E a gente não deveter vergonha de exercer o papel de vanguarda.

Mas, num mundo como o de hoje, as vozes isola-das têm um papel de arauto, mas não têm a força daconvocação para a luta cotidiana e eficaz. Vejo tam-bém assim o papel dos sindicatos dos professores,como, por exemplo, a Adusp, ao convocar a partir dacasa, a sociedade para uma mudança! Disso nós es-tamos um tanto distantes, isto é, não estamos à altu-ra da situação política do país, seja porque espera-mos pelos partidos, seja porque talvez não estejamosà sua altura, pois numa crise como a atual, já deve-ríamos estar mais ativos. Mas como temos medo deser chamados de vanguarda... De certa maneira, acrítica que se fez às esquerdas num dado momentofoi eficaz, porque silenciou muitas vozes.

A gente tem de discutir a democracia. A demo-cracia que a gente quer e essa que está aí? Democra-cia de mercado... eu não creio que seja essa. Tería-mos de rediscutir a idéia de cidadania, de democra-

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

12

Page 13: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

cia, de liberdade mesmo. Liberdade de opinião, decriação, de poder....

Eu creio que o mundo vai se encaminhar parauma situação onde os países não terão necessidadedessa contabilidade dos economistas para se acha-rem grandes. A grandeza do país será dada pela for-ma como ele se ocupa de seus habitantes, de sua po-pulação. E esse não será um mundo guerreiro. Nemmesmo a Europa de hoje, que de certo modo buscase unificar para fazer a guerra com os outros, poderáviver de outro modo. A Europa é uma máquina deguerra contra o Japão e seus satélites, contra os Es-tados Unidos e seus satélites e sobretudo contra oTerceiro Mundo... Será que devemos entrar nessacarreira? Para chegar no caso do Brasil, que diferen-ça faz se somos o oitavo ou o octogésimo país domundo? Não é isso que está em jogo. Acredito, aocontrário, que a história da qual nossa geração parti-cipa é uma história que permite pensar num mundonovo. Uma geração atrás, era impossível pensar as-sim... porque... (voltando à inevitabilidade das técni-cas), não havia as técnicas doces como elas são hoje,subordinadas ao homem pela sua própria natureza.Isso permite uma outra política. Agora, essa outrapolítica não dá para esperar pelo chamado mundo,tem que ser produto de vontades nacionais. Então,não é verdadeiro dizer que só há um caminho paratodos os países. As condições históricas do mundoatual permitem já muitos caminhos e esses muitoscaminhos não vão ser encontrados ao mesmo tempo,mas cada qual encontrará o seu tempo em momen-tos diferentes. O que se está dando, agora, ao mes-

mo tempo é essa vocaçãoatual para seguir avontade de um grupode empresas e de paí-ses hegemônicos.

Num mundo assim fei-to, vejo o Brasil como um

dos países que vão sair nafrente. Não importa o queos governos, mundial e

nacional, façam esteano ou o ano que vem.O movimento atual é de

cima para baixo, mas há um outro movimento possí-vel, um outro mundo movendo-se de baixo para cima,movimento que foi acelerado nestes três meses. Achoque ocorreu uma enorme aceleração da história queaponta para a emergência de um novo país, a despeitoda vontade de mantê-lo vinculado a um pensamentoúnico, a um comando único, a uma idéia única, a umaeconomia única, a um dinheiro único e a um sistemade técnicas único. Eu creio que essa descoberta estásendo feita em toda parte. Nosso problema vem do fa-to de não sabermos até que ponto os homens que con-duzem a nação e os partidos políticos aceitam esse ti-po de idéia. Há muito medo hoje ainda, de dizer queoutra coisa - diferente do que aí está - é também oBrasil, não é? Acho que esse é que é o problema... apalavra ‘mundo’ é usada de maneira indevida, a pala-vra ‘Brasil’ é usada de maneira indevida e isso pertur-ba a produção de umprojeto alternativo.Mas, eu vejo que este épossível. Pode-se usarde outra forma a tec-nologia e, mesmo, omercado, a partirdo homem, e não dodinheiro como estásendo feito agora.

Zilda Iokoi é profes-sora do Departa-mento deHistória daFFLCH/USP.

13

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 14: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Foto: Adriana Zehbrauskas/Folha Imagem

Page 15: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Emília Viotti da CostaEmília Viotti da CostaPOR SYLVIA BASSETTO

DEVEMOS REVER A IMAGEMQUE TEMOS DE NÓS MESMOSDEVEMOS REVER A IMAGEM

QUE TEMOS DE NÓS MESMOS

O depoimento da professora Emília Viotti da CostaO depoimento da professora Emília Viotti da Costapermite acompanhar sua trajetória intelectual,permite acompanhar sua trajetória intelectual,

fortemente vinculada à percepção da históriafortemente vinculada à percepção da históriabrasileira dos últimos 50 anos. Com perspicácia,brasileira dos últimos 50 anos. Com perspicácia,

sensibilidade, emoção e, às vezes, sutil ironia, nossensibilidade, emoção e, às vezes, sutil ironia, nosfala da sociedade, da política, da cultura e dafala da sociedade, da política, da cultura e da

Universidade. Relembra os bons tempos de projetosUniversidade. Relembra os bons tempos de projetoscoletivos e interlocuções férteis e outros momentoscoletivos e interlocuções férteis e outros momentos

menos felizes, mas sempre esclarecedores.menos felizes, mas sempre esclarecedores.Aposentada pelo AI-5, em 1969, como docente doAposentada pelo AI-5, em 1969, como docente do

Departamento de História, Emília Viotti trabalhaDepartamento de História, Emília Viotti trabalhadesde 1970 nos Estados Unidos. Dilemas, percalços,desde 1970 nos Estados Unidos. Dilemas, percalços,

superações estão no relato dessa experiência,superações estão no relato dessa experiência,sempre marcada pela necessidade visceral de sempre marcada pela necessidade visceral de

olhar para seu país, comparando, analisando,olhar para seu país, comparando, analisando,questionando, estimulando a reflexão.questionando, estimulando a reflexão.

PPesquisadora incansável, autora de obrasesquisadora incansável, autora de obrasfundamentais (fundamentais (Da Senzala à ColôniaDa Senzala à Colônia, ,

Da Monarquia à RepúblicaDa Monarquia à República, , Coroas de GlóriaCoroas de Glória,,Lágrimas de SangueLágrimas de Sangue, dentre outras) Emília nos, dentre outras) Emília nosrevela, acima de tudo, sua paixão pelo ensino,revela, acima de tudo, sua paixão pelo ensino,razão maior de seus trabalhos mais fecundos.razão maior de seus trabalhos mais fecundos.

Uma feliz coincidência permitiu a publicação desteUma feliz coincidência permitiu a publicação destedepoimento na ocasião em que Emília Viotti dadepoimento na ocasião em que Emília Viotti da

Costa recebe o título de Professor Emérito da FFLCH.Costa recebe o título de Professor Emérito da FFLCH.

Page 16: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Nasci às vésperas do grande crash de1929 e vivi desde então num mundoabalado periodicamente por recessõeseconômicas, que lançam muitos ao de-semprego e à miséria. Meu pai, natu-ral de Portugal, veio para o Brasil aos

6 anos, e mais tarde optou pela nacionalidade brasi-leira. Dele ouvi histórias da vida difícil na Beira Altae dos primeiros anos no Brasil. Trabalhava como re-presentante comercial de várias firmas do Norte eNordeste, que vendiam seus produtos em São Paulo.Em matéria de política era udenista. Seu catecismoera o jornal O Estado de S. Paulo, que lia assidua-mente. Interessava-se muito por política e economia.Na Associação Comercial defendia a teoria medievaldo justo preço e condenava os gananciosos. Era umhomem reservado, extraordinariamente metódico edisciplinado. Pouco se envolvia na minha educaçãoque, segundo ele, era coisa de mulher. Quando fi-quei adolescente, levava-me aos comícios políticos.Assim é que assisti a comícios do Brigadeiro Eduar-do Gomes, do Getúlio e do Prestes. Minha mãe ti-nha simpatias ligeiramente anarquistas. Era uma lei-tora voraz que, pouco antes de falecer, aos noventaanos, lia e comentava com argúcia livros sobre osmais variados assuntos, dos Versos Satânicos ao últi-mo livro do antropólogo Darcy Ribeiro. Sua rica bi-blioteca abriu para mim os prazeres da literatura eu-ropéia e americana. Era ela quem me levava aosconcertos e ao teatro. Um dos grandes momentos daminha adolescência foi ouvir Pablo Neruda recitar -seus poemas no estádio do Pacaembu, perante cen-tenas de operários entusiasmados e comovidos.

A família de minha avó materna vivia das glóriasdo passado. Falavam do Conselheiro Brotero, nossoantepassado que casara com uma americana de no-me Dabney e fora durante muito tempo diretor daFaculdade de Direito. Contavam também do meu bi-savô Frederico Abranches, que foi Conselheiro ePresidente de Província. Meu avô era jornalista epoeta. Contava histórias maravilhosas. Era uma fa-mília muito grande, com gente de todas as linhas po-líticas e religiões. Havia militares, padres, freiras,ateus, maçons, anarquistas, conservadores e liberais.Aí aprendi o respeito à opinião alheia e o valor da

democracia. Da família paterna pouco sei. O pai demeu pai nunca conheci. Morreu cedo. A mãe mor-reu de parto. Foi criado pela madrasta, uma mulherexcelente que passou os últimos anos em casa demeus pais e foi, para mim, um exemplo de alegria,bondade e infinita paciência.

Fiz o curso primário na Escola Estadual Caeta-no de Campos - que naquele momento era um pólode excelência - e o secundário, no Mackenzie.Quando saí do secundário abandonei a idéia de serfísica, minha matéria preferida. Um casamento euma gravidez me tinham afastado da vocação ini-cial. O curso de Física exigia tempo integral, de queeu não dispunha. Pensei em fazer ciências sociais,mas abandonei a idéia pois, na época, as oportuni-dades de trabalho para os formados em ciências so-ciais eram muito limitadas, ao passo que o curso deGeografia e História permitia lecionar no ensinosecundário ou no superior.

Entrei para o Departamento de Geografia e His-tória da USP quando esta era bastante jovem. Cria-da nos anos trinta, a USP tinha pouco mais de quin-ze anos. O período dos professores franceses já ha-via passado. Haviam ficado apenas seus discípulos,que, no Departamento de História, com exceção deuns poucos, não faziam jus aos nomes ilustres que oshaviam precedido. Nos anos em que freqüentei oDepartamento como aluna, ainda tivemos algunsprofessores estrangeiros, melhor seria dizer france-ses. A França dominava a cultura. Os cursos dos pro-fessores visitantes ainda eram dados em francês, poisse pressupunha que os alunos estavam aptos a acom-panhar as aulas sem dificuldade. O Departamentode História tinha um número bastante reduzido dealunos e quase todos haviam feito um bom curso se-cundário em escolas públicas ou privadas, o que oscapacitava a entender bem o francês e o inglês.

O currículo do curso era rígido, tanto na seqüên-cia cronológica quanto no número de matérias obri-gatórias em História e Geografia. Havia poucas op-tativas (três em todo o curso). Os geógrafos treina-vam os alunos para fazer pesquisa de campo. Promo-viam excursões e nos ensinavam a ver e explicar apaisagem física e humana. No curso de História nin-guém ensinava os alunos a fazer pesquisa. Tudo o

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

16

N

Page 17: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

que aprendemos sobre pesquisa foi por conta pró-pria, lendo as grandes coleções de história, como aClio, e as revistas e livros de bons historiadores.Aprendíamos a pesquisar analisando as obras, nasua maioria de autores franceses e ingleses; algunsalemães eram traduzidos para o espanhol pela Fon-do de Cultura, casa editora que exerceu uma in-fluência marcante em toda a América Latina nesseperíodo. A historiografia americana não era muitoconhecida, com exceção de uns poucos autores quechegavam até nós através de revistas como o Journalof History of Ideas ou a American Historical Review.Apenas na cadeira de História da América tínhamosa oportunidade de contato com historiadores ameri-canos. Da América Latina conhecíamos uns poucos.A orientação era sobretudo francesa. Estudávamos afundo a história da Grécia e Roma no primeiro anodo curso. A história medieval focalizava a França e aInglaterra. Pouco sabíamos do que se passava na Es-panha ou em Portugal, na Idade Média. Na cadeirade História Moderna aprendíamos sobre o renasci-mento italiano, as guerras religiosas, o absolutismo,o despotismo esclarecido e a revolução francesa. Ocurso era dado durante todo o segundo ano. No ter-ceiro ano tínhamos História Contemporânea, quefocalizava principalmente a França e a Inglaterra. AFrança da restauração, Carlos X, a revolução de1848, Luís Napoleão, a Comuna de Paris, e a Ingla-terra da Revolução Industrial ao fim da era vitoria-na, a partilha da África e a ocidentalização da Ásia.O século XX era considerado recente demais paramerecer estudo sério. A Primeira Grande Guerra, arepública de Weimar, fascismo, nazismo, revoluçãorussa, 2ª Guerra Mundial, Roosevelt e o New Dealficavam por nossa conta. No período em que fui alu-na, a história do Brasil era o setor mais fraco. O pro-fessor Alfredo Ellis estava bastante alquebrado e li-mitava-se a dar cursos baseados em seus livros, quena maioria versavam sobre São Paulo.

Foi principalmente na historiografia do grupo dosAnnales, nos livros da coleção Clio, Hachette,Peuples et Civilizations, Que-sais-je? e Oxford queaprendemos história no curso de graduação. Por issopode-se afirmar que todos os que se formaram emhistória naquela época foram autodidatas no que

concerne à pesquisa. O Departamento visava princi-palmente a formar professores, não pesquisadores.Os cursos eram extensivos, não monográficos. Pre-tendiam dar uma visão que fosse ao mesmo tempotemporal e global, embora certas regiões do globoacabassem sendo privilegiadas e outras esquecidas.O que nos salvava do eurocentrismo era o estudo dehistória da América e do Brasil, ao qual se dedica-vam dois anos. Os trabalhos que escrevíamos para ocurso eram, na melhor das hipóteses, reinterpreta-ções da historiografia existente. Só excepcionalmen-te incluíam pesquisa de arquivo ou documentos. Pes-quisa só no curso de pós-graduação.

O meu primeiro trabalho de história na Faculda-de foi um ensaio sobre os etruscos. Passei o primeiroano lendo tudo o que havia sobre etruscos e escrevium resumo da literatura existente. Aprendi muitosobre os etruscos, mas não aprendi nada sobre pes-quisa histórica. E assim foi na maioria dos cursos.No segundo ano eu tive a sorte de ser encarregadapelo professor Eduardo de Oliveira França de fazeralgumas pesquisas na legislação portuguesa existentena Biblioteca Municipal, para o livro que estava es-crevendo. Foi uma experiência fabulosa! Infelizmen-te, oportunidades como essa eram bastante raras.

Foi no segundo ano que comecei a definir a his-tória que me interessava. Tive que dar uma aulasobre a nobreza francesa no século XVIII. Li tudoo que havia na biblioteca, mas nada me satisfez. Oslivros eram áridos, as ti-pologias abstratas: nobrezatogada, nobreza pala-ciana, nada me inte-ressava. O que euqueria saber nãoestava nos livros ameu dispor. Comoviviam as váriasnobrezas, quais seusvalores, suas aspira-ções, seus projetos?Como atuavam politica-mente? Qual o seupapel na socieda-de? Eu tinha

17

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 18: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

aprendido bem a lição de Lucien Fèbvre: A histó-ria é a ciência do homem, dizia ele. Eu buscavauma história que tivesse um rigor científico, queresultasse de uma pesquisa de fontes primárias,que me desse uma compreensão do processo histó-rico, mas da qual homens e mulheres não estives-sem ausentes: uma história que ajudasse a nos si-tuar no nosso tempo. Muitas vezes eu me pergun-tei por que os livros de Balzac, Tolstói e Dickenspareciam capazes de comunicar um melhor enten-dimento do passado do que a grande maioria doslivros de história. Mas ao mesmo tempo me per-guntava se não lhes faltaria alguma coisa que só oshistoriadores eram capazes de fornecer. Eu alme-java uma síntese que tornasse possível a fusão en-tre a história que se dizia científica e a literatura,entre objetividade e subjetividade, entre a históriaque os homens encontram já feita, e que condicio-na sua formação, e a história que eles mesmosconstroem e que acaba por transformá-los. Umahistória sem barreiras, em que as interconexões en-tre o econômico, o político, o ideológico não seperdessem. Uma história que não fosse meramentedescritiva, que se preocupasse não só com narrarcomo as coisas acontecem, mas também explicar oporquê; uma história que de certa forma fosse umguia para a ação presente, não uma coleção de cu-riosidades. Nunca tive vocação para turista do pas-sado, nem para colecionadora de memórias.

Tais preocupações já estavampresentes em Da Senzala à Co-lônia, meu primeiro livro, e

continuei o aperfeiçoamentodesse projeto nas obras seguintes.O último livro que escrevi - Coroas

de Glória e Lágrimas de San-gue - não é senão a conti-nuação do projeto que meatraiu quando eu era aindauma aluna do Departa-mento de História, prepa-

rando aula sobre a nobrezafrancesa. Afinal de contas, o quese apresenta hoje como novo nãoé assim tão novo. Muitas das ten-

dências que dominam a historiografia hoje origina-ram-se naquela época. Lembro-me de ter lido na-quele tempo um debate entre o escritor inglês Ber-nard Shaw e o historiador Huizinga, sobre qual dosdois estava mais apto para contar a história de Joanad'Arc. Fizeram uma aposta. Ambos escreveram so-bre Joana d'Arc: Shaw uma peça, Huizinga um en-saio. Se bem me recordo, a vitória foi de Huizinga. Aliteratura é uma janela para a história, mas precisada história para explicá-la. Ficção e história são ma-neiras distintas de compreensão da realidade. Issoaprendi no segundo ano de história ao preparar umaaula sobre a nobreza francesa. Recorri ao professorAntonio Candido de Mello e Souza, que me empres-tou livros, indicou romances sobre a nobreza france-sa e recomendou-me que lesse memórias escritas pe-los nobres, o que me permitiu entender melhor co-mo a história do período era vista pelos vários seto-res da nobreza. Aprendi também que além das inter-pretações resultantes das múltiplas subjetividadesdos participantes havia uma outra realidade que asexplicava e que era preciso conhecer. Fazer história,para mim, era ser capaz de captar umas e outras.

Para a minha geração, tanto Antonio Candidoquanto Florestan Fernandes, não obstante suas ten-dências diversas, foram constante fonte de inspira-ção. Fora da Universidade, Caio Prado Júnior, Gil-berto Freire, Otávio Tarquínio de Sousa, cada um àsua maneira, exerceram importante papel. Mas

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

18

Page 19: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

coube a cada um de nós encontrar seu próprio ca-minho, construir a sua própria síntese histórica.Mais tarde preferi seguir Caio Prado, em vez deacompanhar Gilberto Freire, cuja falta de rigor me-todológico, impressionismo e principalmente con-servadorismo me faziam vê-lo como porta-voz dasoligarquias, criador de mitos românticos e engana-dores que ocultavam profundas desigualdades ra-ciais, econômicas, sociais e de gênero existentes noBrasil. Mas, ao buscar inspiração em Caio Prado e,mais tarde, em autores como Eric Hobsbawn, nun-ca fiz deles um modelo. Sempre procurei evitar asseduções da moda e encontrar uma voz própria. Omarxismo para mim foi um método de investigaçãoa ser usado criticamente e não adotado como dog-ma a ser demonstrado.

A criação da Revista de História pelo professorEurípedes Simões de Paula foi muito importante pa-ra os alunos de História daquela época. Nela encon-tramos um fórum para divulgação de nossas pesqui-sas. Publicávamos um pouco de tudo: ensaios histo-riográficos, resenhas de livros, traduções de artigosde Lucien Febvre e Marc Bloch, relatos de experiên-cias didáticas e pequenos trabalhos de pesquisa, aosquais nos lançávamos por conta própria. Dessa ma-neira, arriscávamos os primeiros passos bem antesde nos lançarmos na execução de uma tese.

A minha primeira experiência como professorade História foi no Mackenzie, onde dei aulas duran-te um ano para o curso colegial. Eu tinha quase amesma idade dos alunos quando comecei a ensinar.Estava ainda cursando a Universidade. Os alunos doMackenzie tinham fama de insubordinados. Dizia-seque haviam forçado um professor a abandonar o en-sino, tal a baderna que aprontaram. Até hoje não seipor quê não tive problema algum de disciplina. Tal-vez a história que havia aprendido na Universidade eque comecei a ensinar fosse muito mais interessantedo que a que os alunos haviam tido antes. O fato éque se interessaram e que a experiência serviu paradespertar em mim o gosto pelo ensino. Um dos me-lhores alunos que tive então foi o Ruy Fausto, quese tornou mais tarde professor de filosofia.

Quando terminei o curso de pós-graduação, fuicom bolsa de estudos do governo francês estudar na

École Pratique des Hautes Études em Paris. Lá meinscrevi num curso com Ernest Labrousse, um socia-lista de renome que ficou conhecido pelos seus estu-dos de preços, noutro com Paul Leulliot e num ter-ceiro com Georges Gurvitch. Lucien Fèbvre às ve-zes aparecia e participava do seminário. Assisti tam-bém algumas aulas de Fernand Braudel, no Collègede France, e aprendi a pesquisar nos Archives Natio-naux, sob a direção de Charles Morazé. Iniciei umtrabalho de pesquisa sobre a nobreza francesa du-rante a restauração que nunca cheguei a publicar.Foi então que realmente aprendi o que Marc Blochchamou de métier d'historien.

A viagem à Europa foi extremamente importantepara minha formação. Encontrei a história viva emcada rua, em cada praça, em cada monumento. Nosmuseus, nas igrejas, nas universidades a história es-tava sempre presente. Para quem vinha do novomundo, onde a história era recente e deixara tãopoucos traços (com exceção, evidentemente, do Pe-ru e do México, onde os vestígios do passado estãosempre presentes), viajar pela Europa valia pormuitos cursos de história. Aprendia-se história semperceber. As visitas ao Louvre e aos demais museusespalhados pela Europa, as viagens à Bélgica, Ho-landa, Dinamarca, Suécia, Espanha, Portugal e Itá-lia conferiram à história que eu aprendera uma"concretude" que jamais tivera. Era como se oseventos do passado se fizessem presentes, tão pre-sentes quanto os pinto-res e os escultores cujasobras eu admirava. Eera essa "concretude"que eu tanto desejavacomunicar nosmeus escritos. Nãohavia nem dez anosque a guerra ter-minara e a violênciados bombardeios e adevastação que a guer-ra causara ainda eram visí-veis por toda parte, alembrar que ohistoriador tinha

19

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 20: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

uma missão social a cumprir. Como todas as gera-ções que viveram num período de pós-guerra, está-vamos empenhados em evitar os erros do passado,em construir um mundo melhor, mais democrático,com menos preconceitos, mais consciente, mais li-vre. Tínhamos a certeza de estar vivendo uma novaera. No navio de volta ao Brasil ouvi a notícia damorte de Getúlio Vargas. Era o fim do getulismo,início dos novos tempos em que grupos diversos lu-tariam pela definição do que seria o Brasil. No ní-vel pessoal, eu também ia iniciar um período novo.

Quando terminei o curso de Geografia e Históriarecebi dois convites para trabalhar como instrutora:um do Departamento de Geografia e outro do De-partamento de História. A decisão não foi fácil. Masacabei por escolher história. Naquele período o De-partamento não tinha verba para contratação. A úni-ca solução era contratar alguém que já tivesse um lu-gar no Estado e que seria posto à disposição da Uni-versidade. Eu precisava primeiro arranjar um em-prego num colégio estadual. Para isso precisava fa-zer concurso e assumir o cargo de professora secun-dária onde houvesse uma cadeira disponível. Só en-tão seria possível ser requisitada pela Universidade.Assim é que de Paris fui parar em Sertãozinho. Nes-sa época já tinha uma filha pequena e morava commeus pais. Viajava uma vez por semana de trem,quase quatrocentos quilômetros, até próximo a Ser-tãozinho, e tomava o ônibus para lá. Ficava na cida-de dois dias por semana. Durante o dia dava aulas eà noite ficava no único hotel ali existente, onde sehospedavam também os caminhoneiros. Fiquei ape-nas um semestre. O suficiente para tomar gosto peloensino secundário. Organizei um painel na escola,onde expunha os cartões postais que trouxera da Eu-ropa com textos que explicavam o significado deles.Incluía pequenas biografias dos artistas, comentáriossobre arte, textos de poesia e literatura, que serviamde complemento à história. Organizei até uma visitaà Bienal em São Paulo. Os relatórios que os alunosescreveram demonstraram o sucesso da visita. Meutrabalho em Sertãozinho não foi em vão. Os alunosresponderam com entusiasmo. Foi uma experiênciaestimulante e criativa, mas bastante trabalhosa.

Aproveitei o tempo lá para escrever poesia e ava-

liar a documentação existente. Na Prefeitura encon-trei documentos antigos, com descrição detalhadade fazendas na região, jogados num galpão. Prova-velmente desapareceram desde então. Encontreitambém nos livros antigos do tabelião local grandevariedade de informações que permitiam conhecera história da região. Meu primeiro contato com ar-quivos fora em São Paulo, quando ainda era alunado curso de Geografia e História. Pesquisava o po-voamento do Vale da Ribeira. Fui ao local onde es-tava o Arquivo do Estado, alojado temporariamentena Estação da Luz. Lá perguntei ao funcionário on-de estavam os documentos referentes a Pariquera-Açu. Naquela sala, disse ele, com um sorriso mali-cioso apontando-me uma porta. Dirigi-me sofrega-mente para a sala indicada e deparei com um quartoentulhado de documentos do chão ao teto. Nada es-tava catalogado! Como encontrar o que buscava na-quela montoeira? O amável funcionário veio aju-dar-me. Conhecia o arquivo a fundo e em poucotempo extraiu daquele labirinto os documentos de-sejados. Mais tarde vim a saber que se tratava deAntônio Paulino de Sousa, respeitado funcionáriodo Arquivo. Os que hoje freqüentam o Arquivo doEstado não têm idéia das dificuldades que enfrenta-mos quando iniciamos nossas pesquisas. Mais tardeo Arquivo mudou-se para a Rua Antônia de Quei-rós e muitos dos alunos que fizeram o curso de In-trodução aos Estudos Históricos na Universidade deSão Paulo, sob a minha direção, foram pela primei-ra vez pesquisar no Arquivo, que já estava muitomais bem alojado e organizado.

Fiquei pouco tempo em Sertãozinho. No concursode remoção do ano seguinte, transferi minha cadeirapara o Colégio Estadual em Jundiaí. A experiênciaem Jundiaí foi ainda mais gratificante. Embora os sa-lários fossem parcos, mas não tão ruins quanto hoje,o ambiente de trabalho era ótimo. Um bando de pro-fessores jovens, idealistas e bem intencionados, bemtreinados e devotados ao magistério. Nos intervalosdas aulas escrevíamos poemas e trocávamos expe-riências. O ambiente era cordial e divertido. Mas du-rou pouco porque transferi minha cadeira novamentepara o Colégio de Aplicação da USP. Nessa época le-cionava também na USP, onde estava encarregada de

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

20

Page 21: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

cursos de História Moderna e Contemporânea, etambém dava cursos na Faculdade de Sorocaba.

No país de Juscelino Kubitschek o clima era depopulismo "desenvolvimentista" e a retórica era "na-cionalista". A construção de Brasília provocava críti-cas e acusações de corrupção. Os acordos interna-cionais também. Havia crescente mobilização popu-lar, sinais de inflação, receios e tensões que eclodi-riam no governo Jânio Quadros. A revolução cuba-na parecia anunciar novos caminhos. Essa intensaefervescência política e cultural ecoava na Universi-dade. Mesmo os mais indiferentes eram chamados aparticipar. Se o governo de Juscelino fora agitado, ode Quadros foi ainda mais tumultuado. Incerto so-bre os rumos a tomar, num dia condecorava Gueva-ra e no outro, tomava medidas de direita. Jânio aca-bou renunciando e causando a crise política mais sé-ria desde a morte de Vargas. Mais uma vez as "for-ças ocultas" a que Vargas se referira na carta-testa-mento, e que pelo visto até hoje governam o Brasil,foram responsabilizadas. Corriam boatos de que ovice-presidente, João Goulart, não tomaria posse.Este encontrava-se em visita à China. E de fato, nãofosse seu cunhado, Brizola, então governador doRio Grande do Sul, que contou com o apoio do co-mandante do Terceiro Exército ali sediado, Jangonão teria tomado posse. Assumiu, a despeito daoposição de amplos setores de elite e do exército

que desconfiavam de suas tendências populistas e"esquerdistas". As elites brasileiras e as forças arma-das viviam num clima de paranóia, que se iniciaranos Estados Unidos com o macartismo e se agravaradepois de Castro ter definido os rumos socialistasda revolução. Começou então um período de radi-calização e politização na América Latina, ao qual aUniversidade de São Paulo não estava imune. Nessaépoca, eu deixava o ensino secundário. Fora nomea-da finalmente para um cargo na Universidade, juntoà cadeira de História Moderna e Contemporânea, ecomecei a escrever a minha tese.

Passado um ano e meio pedi a minha demissão.O incidente que levou a essa decisão teve a ver como nascimento de uma segunda filha. Quando anun-ciei que precisaria um ajustamento do horário paraamamentar, o professor Oliveira França me fez umdiscurso dizendo que se eu pretendia ter filhos nun-ca seria uma intelectual. Furiosa, disse a ele que, sepretendia cercear minha vida pessoal, eu preferiame demitir. Foi o que fiz. No dia seguinte apresen-tei a demissão do cargo que tanto almejara. Come-cei então a dar aulas num curso de Introdução aosEstudos Históricos recém-criado no Departamentoe recebi, depois de algum tempo, minha indicaçãopara a nova posição. Encerrara um capítulo impor-tante de minha vida para começar um novo.

O país também entrava numa nova era. Nessa

21

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 22: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

época iríamos descobrir a América Latina. Os even-tos desse período marcaram profundamente o meutrabalho. Vivíamos um momento de reformas. Porisso resolvi estudar um período histórico semelhan-te: a transição do trabalho escravo para o trabalho li-vre. Eu queria entender como fora possível aboliruma instituição tão arraigada em nossa cultura, semprovocar uma profunda convulsão social.

Desde meus 18 anos aproveitava as férias paraviajar pelo Brasil e pela América espanhola. Só vol-tei à Europa quase 20 anos depois da minha primei-ra visita. Preferi conhecer a América. Ao mesmotempo, devorei livros de história, romances, livros depoesia, peças de teatro. Conheci outros povos, ou-tras culturas. Adquiri a consciência de que os paísesda América Latina, se bem que profundamente di-versos, tinham uma história comum que precisáva-mos conhecer melhor. Dei-me conta de quão seme-lhante era nossa forma de inserção no mercado in-ternacional, o quanto as elites latino-americanas ti-nham os olhos voltados para a Europa e ignoravamo povo, sua cultura e tradição. Viajei de São Paulo aCuiabá, ainda quando era estudante de Geografia,numa época em que o interior do Brasil ofereciamuitas surpresas. Andei por estradas recém-cons-truídas onde se viam emas e siriemas, dormi em gal-pões infestados de morcegos. Subi o Rio Amazonasnum navio do Lloyd Brasileiro, que foi de Santos atéManaus, parando em todos os portos. Para mim foi adescoberta do Brasil, de sua riqueza, de sua pobreza,de seu povo sofrido, dos mocambos de Recife, dospescadores da Lagoa do Abaeté, das palafitas doAmazonas. A resistência e a miséria do povo eramcomoventes. Essas imagens vieram à mente, anosmais tarde, quando viajei pelo interior do Peru e daBolívia. Por toda parte encontrei pobreza e admireia dignidade do povo. Em toda parte, presenciei umaluta surda contra a exploração. Em Cuzco, pasmeidiante da desconfiança e da inocência dos índios pe-ruanos, a lembrar os retirantes das secas que via naminha infância na Rua São Luís, a pedir esmolas:mulheres rodeadas de crianças, recém-chegadas doNordeste. A realidade, tal como eu a via, reverbera-va na obra de um Pablo Neruda, de um Siqueiros, deum Portinari, de um Villa-Lobos, de um Ciro Ale-

gria, de um Jorge Amado, de um Graciliano Ramos,de um Celso Furtado. Os autores confirmavam asprimeiras impressões. Assim se forjava nossa cultura,nossa identidade, nossa economia, um projeto para oBrasil. A luta contra o subdesenvolvimento, contra adependência, a criação de um mercado interno, deuma sociedade mais igualitária, mais justa, era essenosso projeto. Escritores, pintores e poetas, todospareciam falar a mesma língua. Em todos a mesmamensagem de denúncia e de esperança. A luta pelodesenvolvimento para pôr fim à miséria que ator-mentava a tantos. A certeza de que o esforço coleti-vo nos emanciparia de uma elite desumana e ganan-ciosa, que parecia cuidar apenas de seus interesses.Imaginávamos que em seu lugar teríamos uma socie-dade mais justa e um governo a serviço do povo. Atéa Igreja parecia ter mudado sob a direção de JoãoXXIII. A teologia de libertação clamava por cons-cientização e justiça social. O trabalho do intelectualestava bem definido para minha geração. Nossasconvicções comunicavam energia e entusiasmo. Con-feriam significado a nosso trabalho, a certeza de fa-zer parte de um processo coletivo. Descobrir as raí-zes de nossa história, expor os mitos que nos aprisio-navam, que nos impediam de criar uma sociedaderealmente democrática, compreender e explicar a di-nâmica da história: era essa a nossa função.

Deixei o secundário num momento bastante críti-co que prenunciava os trágicos eventos que estavampor vir. O Colégio de Aplicação foi invadido pela po-lícia a chamado do seu diretor, que discordou deuma manifestação dos alunos. Para mim, essa inter-venção parecia um contra-senso. O diretor dizia-seliberal. Mas quando os alunos quiseram expressarsuas reivindicações encontraram pela frente a polí-cia. O Colégio fora organizado segundo os preceitosde John Dewey, filósofo americano, predileto doprofessor de didática da USP. Era um colégio-mode-lo, cujo objetivo era treinar professores para desen-volver a observação e o espírito crítico dos jovens,qualidades consideradas essenciais para a democra-cia num mundo em mudança. Criar cidadãos críticose éticos, esse era o objetivo. A atitude tomada pelodiretor, chamando a polícia para reprimir os alunos,anunciava maus tempos para uma escola que come-

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

22

Page 23: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

çara alguns anos antes de ma-neira tão auspicio-sa. Os anos que seseguiram iriam de-monstrar que haviamuitos no Brasil quese diziam defensoresda constituição, da de-mocracia e da liberdade,mas não titubeavam emcriar qualquer pretexto parasilenciar os que queriam pôr em prática a democra-cia que nunca existira neste país.

Embora breve, a passagem pelo ensino secundá-rio foi muito valiosa para mim. Não só aprendi a im-portância da linguagem clara sem rebuços, mas tam-bém a necessidade de ensinar uma história que res-pondesse aos interesses dos alunos, uma história quefosse relevante. Foi a necessidade de tornar minhaaula interessante e significativa que me levou a es-crever um dos primeiros trabalhos que publiquei: umestudo sobre os degredados. Eu tinha percorrido to-dos os livros de história em busca de informações so-bre os tipos de crimes que resultavam em degredopara o Brasil. Mas não encontrara nenhuma infor-mação concreta. Todos falavam em degredados, masnão mencionavam o tipo de crime que esses teriamcometido. A falta de dados me levou a pesquisar alegislação portuguesa e daí resultou um ensaio. Oensino levara à pesquisa. Desde então a experiênciarepetiu-se muitas vezes. A ponto de eu acreditar queo ensino era essencial à minha pesquisa. As boasidéias pareciam sempre surgir numa sala de aula. Aspesquisas nasciam de problemas associados ao ensi-no. Por isso quando aposentada pelo AI-5, em 1969,fui ensinar nos Estados Unidos. A idéia de abando-nar o ensino me era assustadora.

O período que se iniciou quando consegui aban-donar o ensino secundário para me dedicar exclusi-vamente à Universidade até a minha aposentadoriaem 1969 foi provavelmente o mais fecundo de toda aminha vida. A Faculdade estava ainda na Maria An-tônia e lá permaneceu por mais alguns anos até queo Departamento de História se transferisse para aCidade Universitária. Foi ainda na Maria Antônia

que fiz o concurso de Livre-Docência com a tese Es-cravidão nas Áreas Cafeeiras (1964), publicada em1966 pela Difusão Européia do Livro sob o título DaSenzala à Colônia em 1966, atualmente na 4ª edição.Dediquei esse livro a Antônia, que fora empregadana casa de minha mãe por muitos anos e mantiveracontato conosco até morrer, e ao Zé Carnaúba, umalagoano que trabalhou alguns anos em minha casa.Eles representavam o povo brasileiro no que tem demelhor. A partir daí, publiquei vários trabalhos, al-guns dos quais posteriormente reunidos em Da Mo-narquia à República, que terá em breve sua 7ª ediçãopela Unesp, e o livrinho A Abolição, publicado pelaeditora Global, também na 6ª edição. Participei dasprimeiras reuniões da ANPUH.

Com o tempo, passei a trabalhar exclusivamentena Introdução aos Estudos Históricos, que estava en-tregue a professores visitantes. Aí trabalhei com JeanGlénisson, que acaboupublicando o livro Introdu-ção aos Estudos Históri-cos, no qual escrevi umcapítulo sobre as ten-dências da histo-riografia no Con-gresso Internacionalde História de1955. Com Yves Ber-nard Bruand, dei cur-sos de historiografia ede metodologia da história.Como os alunos ti-nham dificuldadede obter livros, fiz

23

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 24: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

com o auxílio de Sylvia Bassetto uma coleção de tex-tos sobre metodologia histórica, para ser distribuídano curso. Quando saí da Universidade em 1969, dei-xei os cursos de Metodologia da História e de Teoriada História organizados. Um grande número de pro-fessores que ficaram na USP quando eu saí haviam si-do meus alunos: Fernando Novais, Carlos GuilhermeMota, Maria de Lourdes Janotti, Maria Luiza Marci-lio, Ana Maria Camargo, Adalberto Marson, IstvanJancsó, Sylvia Bassetto, Suely Robles Reis de Quei-roz, Arnaldo Daraya Contier, Raquel Glezer, CirceMaria Fernandes, hoje na Faculdade de Educação,Boris Fausto, José Sebastião Witter, Jobson de An-drade Arruda, Heloísa Bellotto, Lucy Maffei e muitosoutros. Eu me orgulho de juntamente com colegas doDepartamento de História ter dado minha contribui-ção para a formação de um grupo tão significativo.

O período 1964-1969 foi de tensão crescente e re-pressão, na Universidade e fora dela. Na USP, pro-fessores como João Cruz Costa e Florestan Fernan-des foram perseguidos já em 1964. Ao professorCruz Costa obrigaram a cantar o hino nacional intei-rinho. Depois foi aposentado. Florestan também foiforçado a abandonar a Universidade, que tanto ama-ra. Nos anos seguintes, novos IPMs, novas aposenta-dorias, não só na USP mas em universidades de todoo país. Editores como Ênio Silveira foram persegui-dos por publicarem literatura "subversiva". O histo-riador Caio Prado foi preso. Até a Igreja foi alvo deperseguições. Padres, juízes e políticos foram afasta-dos: Mauro Borges, Arraes, Brizola. Nem mesmopolíticos que tinham apoiado a revolução escaparamà sanha repressora. Ademar de Barros foi cassado eseus direitos políticos suspensos por dez anos. Jusce-lino Kubitschek também. Na Universidade havia es-piões da polícia, do exército e da aeronáutica por to-da a parte. A repressão foi num crescendo.

Em 1968 fui convidada pelo professor EurípedesSimões de Paula, então diretor da Faculdade de Filo-sofia, a dar a aula inaugural da Faculdade. Ao livre-do-cente mais novo cabia, como praxe, essa responsabili-dade. Procurei um tema que pudesse interessar a umpúblico que incluía o pessoal da química, física, ciên-cias biológicas, matemática, filosofia, ciências sociais,história, letras, enfim, pessoas com interesses bastante

diversos. Decidi falar sobre a Reforma Universitáriaque o governo estava propondo, o famoso Mec-Usaid,que estava na ordem do dia. Fiz uma história da Uni-versidade e seus problemas e falei da necessidade dereformas, analisei o projeto do governo, criticando oque considerava seus pontos negativos: o atrelamentoda Universidade ao setor empresarial, intervençãodeste no setor de pesquisa e ensino, a redução daeducação ao preparo da mão-de-obra, o desapareci-mento da orientação humanista e a sua substituiçãopor uma orientação exclusivamente tecnológica. Era asubordinação da Universidade aos interesses do mer-cado. Nas muitas mudanças de casa que fiz desde en-tão, o texto dessa conferência se perdeu. Para mim ho-je é difícil reconstituí-lo nos seus detalhes e ainda meespanto da repercussão que teve. O texto foi publicadona revista do grêmio da Faculdade de Filosofia e re-produzido por todo o país, como mais tarde vim a sa-ber. Fui convidada a repeti-la em mais de quarentauniversidades e acabei sendo chamada para um pro-grama de televisão com o então Ministro da Educa-ção, Tarso Dutra, juntamente com o representante dosalunos, José Dirceu, hoje na liderança do PT. Fiz mi-nhas críticas ao projeto do governo e a horas tantas di-vergi da idéia de que a Universidade deveria ser paga.Argumentei que o poder aquisitivo da população nãopermitia a um grande número de alunos pagar seus es-tudos. Bolsas de estudo retirariam a sua liberdade eautonomia. Na minha opinião cabia ao Estado forne-cer educação gratuita (pensava nos meus alunos docurso noturno que trabalhavam o dia todo e estuda-vam das sete e meia às onze e meia da noite, alunosque certamente ficariam impedidos de freqüentar aUniversidade caso essa recomendação vigorasse). Na-quela ocasião, aliás, nós, professores da USP, organiza-mos em vinte e quatro horas uma petição com qui-nhentas assinaturas à Câmara e Senado contra a apro-vação desse dispositivo. O Ministro concordou. Disseque ele também não era a favor do ensino pago. Per-guntei a ele como então assinara o Projeto Mec-Usaid.Ele negou que houvesse no projeto algum item a esserespeito. Retirando da bolsa o projeto, li a passagemque se referia ao pagamento da Universidade. Apesarde ter sido cumprimentada pelo Ministro, que me deuum cartão seu dizendo que o procurasse quando qui-

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

24

Page 25: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

sesse, sempre desconfiei de que foi esse episódio quelevou à minha aposentadoria. Era o preço que deveriapagar por tê-lo envergonhado em público.

O ano de 1968 foi certamente o mais agitado. Amobilização estudantil paralisava a Universidade. Achamada revolução de 64 tinha inicialmente persegui-do os seus mais óbvios inimigos, mas aos poucos o sis-tema repressivo passara a criar outras vítimas. Prisões,desaparecimentos, fugas, exílios tornaram-se comuns.Alunos eram arrancados da sala de aula por soldadosarmados de metralhadora. Professores eram detidos,sem saber por quê. Enquanto uns eram perseguidospor suas convicções, se bem que a constituição até en-tão vigente garantisse liberdade de expressão, outrosse aproveitaram da situação para denunciar desafetosou para tomar o lugar dos que eram aposentados. Lu-gares que não haviam conseguido por mérito e queentão conquistavam pela adesão. Houve os que pro-curavam ajudar seus colegas visados pela repressão,manifestando-lhes apoio e protestando publicamentecontra suas prisões. Todos aqueles que expressavamqualquer reserva com relação ao golpe de 64 eramsuspeitos aos olhos dos donos do poder. A lei de segu-rança tornou crime a referência à luta de classes e amenção a conflitos raciais. Raça e classe foram, assim,banidos do vocabulário por ato do governo!

Como sempre acontece em momentos de grandetensão política como aquele, as posições radicaliza-ram-se. O centro dividiu-se: uns foram para a es-querda, outros para a direita. A situação piorou com

o começo da guerrilha. Os donos dopoder finalmente encontravam uma

justificativa: estavam em guerra, umaguerra à qual não se aplicavam os códigos

éticos internacionais. A tortura erausada contra os prisioneiros.Alguns morreram nas pri-sões. Outros simplesmente

desapareceram. O terrortinha chegado ao auge.Para os que tinham esca-

pado ao nazismo e fascis-mo na Europa o cenário erafamiliar. Para os que tinham

sido vítimas da repressão deGetúlio Vargas, a história parecia estar se repetindo.Dentro de alguns anos, dizia-me Sérgio Buarque deHolanda, profeticamente, todos os aposentados se-rão chamados de volta, e estarão reintegrados nosseus cargos. De fato, isso aconteceria anos mais tar-de, com a anistia.

Resolvi aceitar convite para dar um curso de His-tória na Universidade de Tulane em New Orleans. Aprimeira vez em que fui aos Estados Unidos foi em1970. Michael Hall, que lecionava em Tulane naque-la época, e depois passaria a viver no Brasil, estavade licença e indicou o meu nome para substituí-lo.Começava então uma nova etapa em minha vida.Não só teria de dominar bem uma nova língua, co-mo teria de aprender aensinar para um público in-teiramente novo a his-tória da América Lati-na que, àquela altura,era para mim umahistória pouco co-nhecida. Além detudo, teria de meseparar de minha fa-mília por vários meses.Foi um grande desafio.Felizmente, encontrei emTulane um grupo dehistoriadores solí-citos e gentis que

25

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 26: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

amenizaram a minha estada. A Biblioteca parecia-me a ante-sala do paraíso. Ali passei longas horasescrevendo as minhas aulas. Às vezes precisava co-piar passagens inteiras dos livros porque não sabiacomo dizer as mesmas coisas de outra maneira. Du-rante o tempo que passei em Tulane escrevi uma mé-dia de noventa páginas por semana. O esforço foi re-compensado. Apesar de amargar constantementeum sentimento de inferioridade, uma sensação deestar falando com um vocabulário restrito mais con-dizente com o de uma criança de dez anos, os alunosrelevaram as minhas falhas e manifestaram seu apre-ço pelo curso. Desde logo senti as diferenças entreos meus alunos brasileiros e os americanos. Se osalunos americanos, em geral, estudavam mais, falta-va-lhes uma visão da história universal que me ser-visse de ponto de referência para ensinar a históriado Brasil. Muitos não tinham a menor noção do feu-dalismo, outros desconheciam a contra-reforma. Ha-via até quem não tivesse idéia da Revolução Indus-trial e nem mesmo da Revolução Francesa. Como fa-zê-los entender a especificidade da história do Bra-sil, sem esse quadro de referências?

Em Tulane assisti a um encontro dos Black Pan-thers. O auditório estava repleto de negros. Algunsagentes do FBI vestidos de azul-marinho, camisabranca e sapato preto andavam aos pares entre o pú-blico. O conferencista foi o líder negro Dick Gre-

gory. Nunca assistira a um espetá-culo como aquele. Também maisou menos na mesma ocasião houveuma reunião de cineastas em Tula-

ne e encontrei-me com Costa Gra-vas. Contei-lhe o que se pas-

sava no Brasil e sugeri quefizesse um filme sobre oassunto. Dê-me um script

que eu farei o filme, disse.Nunca mais o vi, mas anosdepois assisti com emoção ao

filme Missing, que relatava epi-sódios que aconteceram no Chi-

le por ocasião do golpe militar quedepôs o Presidente Allende.Voltei ao Brasil em abril de 1971. A

situação política piorara. Resolvi aceitar um convitedo professor Joseph Love para lecionar de novo nosEstados Unidos, na Universidade de Urbana-Cham-paign por um semestre. Acabei lecionando tambémno verão e me candidatei a uma posição de lecturerno Smith College, em Massachussets, para onde fuiem setembro de 1972. No ano seguinte fui para Ya-le, onde estou até hoje.

O meu primeiro contato com Yale foi surpreen-dente. Eu era, na ocasião, a única mulher no Depar-tamento de História. Uma vez por semana os profes-sores do departamento reuniam-se para o almoço.Servia-se um cherry antes da refeição. Tudo muitoelegante, mas quando eu me aproximava de um gru-po de homens que conversavam animadamente todosse calavam. Vencendo o embaraço, um colega polida-mente me perguntava: e como vão seus filhos, comoestão as coisas em Buenos Aires? Esse era o fim daconversa. Com exceção desse almoço semanal, no de-partamento ninguém conversava com ninguém. Asportas dos escritórios estavam sempre fechadas. Euestranhava o isolamento e a falta de comunicação en-tre as pessoas. A ausência de interesse político espan-tava-me ainda mais. Coisas importantes ocorriam nopaís e no mundo e no dia seguinte ninguém comenta-va. Watergate, o impeachment do presidente Nixon, aeleição de Jimmy Carter, o resgate dos norte-ameri-canos presos no Irã, a invasão de Granada pelas tro-

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

26

Page 27: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

pas americanas, o bombardeio da Líbia, a revoluçãoda Nicarágua, as denúncias de participação da CIAna queda de Allende, todos esses fatos e muitos ou-tros se sucederam sem que provocassem comentáriosno meu departamento. Até os dias de eleição no paíseram dias normais. Todos estavam voltados para oseu próprio trabalho. Acabei me acostumando. Hojeo departamento mudou em vários aspectos. Se bemque sejam ainda uma minoria, há mais mulheres nocorpo docente. Há maior comunicação entre as pes-soas. Conversa-se mais. Mas ainda se evitam assuntoscontrovertidos que possam ameaçar o consenso. Apolítica continua tema proscrito.

Em Yale trabalhava-se muito, no setor de Améri-ca Latina, que durante anos contava apenas com umprofessor e um assistente. Eu dava dois cursos de gra-duação e dois de pós-graduação por ano. Os cursosde graduação consistiam de um survey sobre a histó-ria da América Latina, colonial e contemporânea, eum seminário sobre o tema que eu quisesse, relativoao meu campo de especialização. Os cursos de pós-graduação não podiam ser repetidos, porque o cursodurava dois anos e os mesmos alunos que assistiramàs minhas aulas em um ano voltariam a assistir nopróximo. Por isso tinha de preparar vários cursos.Além dos cursos, ficava encarregada de orientar dezsenior essays escritos pelos alunos de graduação, so-bre qualquer tópico que desejassem sobre a AméricaLatina. Dessa forma eu poderia orientar um trabalhosobre a política colonial no Peru, outro sobre as mi-nas de cobre no Chile, um terceiro sobre o governoArbenz na Guatemala e assim por diante. Procureivárias vezes mudar esse sistema. Como era possívelalguém orientar eficientemente trabalhos que co-briam um período que abrangia quase quatrocentosanos de história em mais de vinte países? Mas nãoconsegui alterar o sistema que até hoje é o mesmo.Somavam-se a essas atividades a orientação de tesesde doutoramento e a participação em exames de qua-lificação para doutoramento, que todos os candidatosdeveriam fazer ao fim do curso. Devia também com-parecer a reuniões do Departamento de História edo Latin American Studies, fazer relatórios anuais,aprovar projetos de pesquisa e distribuir bolsas. Asatividades eram muito intensas e a elas se somavam

as obrigações de fazer pesquisas, publicar, dar confe-rências em outras universidades e comparecer a con-gressos. De todas as atividades a que consumia maistempo eram as cartas de recomendação. Nada se fazsem uma carta de recomendação. Nos últimos anosestava escrevendo uma média de sessenta a oitentacartas por semestre, não só para os alunos, mas tam-bém para colegas que eram candidatos a bolsas, pro-moções ou novos empregos. A minha frustração au-mentava. Sentia-me uma burocrata. Não tinha maistempo para ler nada fora do meu campo específico.Não tinha tempo sequer de usufruir da biblioteca,das muitas conferências, concertos e exposições queacontecem no campus. Por isso resolvi me aposentar.

Os alunos de Yale estavam mais interessados naAmérica espanhola do que no Brasil. Portanto, sebem que continuasse dando alguns cursos de histó-ria do Brasil, passei a focalizar mais a América es-panhola, o que contribuiu para ver o Brasil com ou-tros olhos. Também me dediquei mais à históriacomparada. Por exemplo, dei cursos sobre a escravi-dão no Brasil e no Caribe, o mercado comum naAmérica Central, o populismo e o movimento ope-rário em várias regiões da América. Na graduaçãodei um curso sobre o radicalismo na América Lati-na, no qual analisei as mudanças econômicas e so-ciais que tiveram lugar no século 20 e que deramorigem a movimentos radicais no Uruguai, Argenti-na, Chile, Peru, Venezuela, Brasil, Guatemala, SanSalvador e Nicarágua.Esse foi um dos cursos pre-feridos pelos alunos.

O mais difícil dessatransição para os Es-tados Unidos foiescrever meus li-vros e artigos em in-glês para um pú-blico norte-america-no pouco familiariza-do com o Brasil e de-pois traduzi-los para o por-tuguês. Língua é pro-tocolo, e as eti-quetas verbais

27

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 28: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

não são as mesmas no mundo saxão e no nosso. Oque no Brasil se considera boa retórica freqüente-mente é considerado uma linguagem abstrata, im-precisa, desorganizada ou verbosa nos Estados Uni-dos, e o estilo que agrada lá freqüentemente nãoagrada aqui.

Publiquei dois livros e vários artigos ou capítulosde obras coletivas em inglês. O primeiro livro foi TheBrazilian Empire Myths and Histories, uma coletâneade ensaios, alguns dos quais foram reunidos e publi-cados no Brasil sob o título Da Monarquia à Repúbli-ca. Mais recentemente, publiquei Crowns of Glory,Tears of Blood, que foi traduzido para o português epublicado pela Companhia das Letras no ano passa-do. Publiquei ainda vários ensaios em inglês, algunsdos quais foram traduzidos para o português.

O que ganhei? Ampliei e enriqueci minha visãoda história, sem entretanto abandonar o rumo queescolhera quando ainda estava no Brasil. Nos Esta-dos Unidos, com algumas exceções, a maioria doshistoriadores e alunos segue o método empírico.Nos grupos radicais há uma preocupação quase ob-sessiva com o politicamente correto. Mas as pessoasem geral se organizam em grupos que raramenteagem juntos. Há os grupos latinos, e estes se dividementre porto-riquenhos e chicanos e os outros. Há ogrupo negro, dividido em várias alas, há as feminis-tas e os homossexuais. Cada grupo promove a suapolítica. Só excepcionalmente eles atuam coletiva-mente. Isso os enfraquece. As demonstrações nocampus não dizem respeito à política nacional, mas aproblemas locais. Os tempos do Vietnã, quando oscampi foram varridos por protestos passaram. Tam-bém os Black Panthers que eu vira em Tulane em1970 tinham sido silenciados. Os campi se despoliti-zaram. A única vez que assisti a manifestações políti-cas promovidas por estudantes foi quando os alunosexigiram que Yale deixasse de investir em empresasnorte-americanas que operavam na África do Sul.Houve mais recentemente manifestações de solida-riedade aos funcionários que se organizaram paradefender suas posições e seus salários. Recentemen-te, os alunos de pós-graduação de todos departa-mentos da Universidade de Yale se organizaram pa-ra melhorar suas condições de trabalho.

É preciso lembrar, no entanto, que qualquer ob-servação que se faça sobre uma universidade norte-americana não dá conta da complexidade e varieda-de do meio acadêmico. O que é verdadeiro em umdepartamento não é verdadeiro em outro, e o pro-fessor de história grega, que quando muito formoumeia dúzia de doutores, descreverá uma situaçãobem distinta do que aquele que formou dezenas nomesmo período. O sistema é diversificado, tão varia-do quanto o imenso número de universidades públi-cas ou privadas que existem no país.

Os salários dos professores variam muito nas uni-versidades particulares. Na mesma universidade umfull professor de História poderá estar ganhando100.000 dólares anuais e outro, quase a metade. Adiferença ainda é maior entre as universidades deprimeira, segunda e terceira categorias. Nestas últi-mas não só se ganha menos, como se dá mais cursose se tem muito menos tempo para a pesquisa. Em to-das as universidades privadas, os salários são decidi-dos pelo chefe de departamento e em última instân-cia pela administração. A decisão teoricamente de-veria se basear na produtividade dos indivíduos, masacaba protegendo os amigos.

Na universidade paga-se tudo, até para estacionaro carro. Os descontos são muitos: social security, apo-sentadoria, imposto estadual, que no Estado de Con-necticut é de 6%, federal, que vai a 30%, e estaciona-mento, que para um professor custa aproximadamen-te mil e duzentos dólares por ano. O que se recebe aofim de tantos descontos corresponde à metade do sa-lário bruto. Depois há outros impostos a pagar. O im-posto sobre o carro, sobre as coisas que se compram,sobre a casa em que se mora. O que sobra é pouco.

Todos fazem economia o tempo todo. A universi-dade, o departamento, os professores, os alunos.Não se compram novos equipamentos enquanto osvelhos estão funcionando, mesmo que não sejam aúltima palavra. Anos atrás, um professor da Univer-sidade de São Paulo levou um material sofisticadopara ilustrar sua preleção, preparado na USP, para oqual não se encontrou um projetor num raio de cin-qüenta milhas, numa região que reúne um grandenúmero de universidades de renome. Esse fato reve-la o quanto os critérios são diferentes aqui e lá.

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

28

Page 29: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Quando o professor se aposenta, o salário que re-cebe corresponde ao número de anos que trabalhoue a forma de investimento que escolheu para suaseconomias, portanto, depende das condições domercado. Os cálculos são feitos na base da expectati-va de vida. Há uma certa humilhação quando um bu-rocrata responsável por estabelecer a aposentadoriapergunta: quantos anos você pensa que vai viver?Não há limite de idade para a aposentadoria. Qual-quer um pode aposentar-se quando quiser. Por outrolado, o indivíduo pode continuar trabalhando en-quanto a sociedade que ele serve o considera apto.Mas a carga de trabalho é tão pesada que a maioriados professores se aposenta entre os 65 e 75 anos.Enquanto o indivíduo trabalha, a universidade pagauma parcela da aposentadoria e a outra parcela épaga por ele. O professor tem também seguro-saúdeenquanto trabalhar e, depois de aposentado, o segu-ro será pago proporcionalmente ao tempo de servi-ço. Em Yale, para receber seguro total, é preciso tertrabalhado no mínimo trinta e cinco anos. Mas háuniversidades que deixam de pagar o seguro-saúdequando a pessoa se aposenta. Como o salário não sealtera a partir do momento em que a pessoa se apo-senta, ele fica à mercê da inflação que, acumuladadurante anos, pode causar uma enorme redução dosalário, a não ser que o indivíduo seja bem-sucedidonos seus investimentos. A única parcela que acom-panha os índices de custo de vida é a social securitypaga pelo Estado, mas essa não vai além de aproxi-madamente 1.300 dólares para os que trabalharammais de trinta anos e tiveram salários elevados. Háuma injustiça tremenda nesse sistema, mas ninguémprotesta. Quando as coisas apertam, o indivíduo ven-de a casa e muda-se para um apartamento menor,comprime as suas despesas. Sempre achei que o sis-

tema que existia no Bra-sil e que o atual governoextinguiu era muito me-

lhor, bastando corrigiralguns abusos. Não há ra-

zão para se pagar menos aquem trabalhou toda

uma vida e agora precisa do seu dinheiromais do que nunca, porque não tem condições de

recorrer a outras fontes, tais como bolsas de estudose outros empregos. Sem falar na ilegalidade de nãose respeitar contratos e se retirarem direitos adquiri-dos como recentemente se fez no Brasil. O que émelhor nos Estados Unidos é a segurança social, queinfelizmente está ameaçada pela mesma lógica neoli-beral que se vê por aqui. Mas lá essa ameaça é con-trabalançada pela capacidade de organização dosaposentados, que pertencem a uma associação bas-tante poderosa (pelo que representam em termos devotos) que defende os seus interesses atuando naCâmara e no Senado. De fato, a capacidade de orga-nização dos norte-americanos em defesa de seus di-reitos é notável desde o tempo de Tocqueville.

Esse é um dos aspectos positivos da sociedadenorte-americana. Há muitos outros de que nem sefala no Brasil, como o amparo ao ensino público, asbibliotecas municipais, as doações voluntárias priva-das a universidades e museus, a proteção que o go-verno dá à economia do país, que não segue à riscao catecismo neoliberal,e assim por diante. Preocu-pamo-nos muito com aimagem do Brasil noexterior. Talvez fossemelhor se nosp r e o c u p á s s e m o smais em rever aimagem que te-mos dos EstadosUnidos e a que temosde nós mesmos.

Sylvia Bassetto é pro-fessora do Departa-mento de Históriada FFLCH/USP.

29

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 30: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Fotos: Daniel Garcia

Page 31: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

A FACULDADE DEFILOSOFIA MUDOU O

PANORAMA CULTURAL

A FACULDADE DEFILOSOFIA MUDOU O

PANORAMA CULTURALAntonio CandidoAntonio Candido

POR FLÁVIO AGUIAR

Além de ser um dos principais sociólogos,Além de ser um dos principais sociólogos,professores e críticos literários brasileiros,professores e críticos literários brasileiros,Antonio Candido tornou-se conhecido comoAntonio Candido tornou-se conhecido como

militante das causas da democracia, da educaçãomilitante das causas da democracia, da educaçãopública e gratuita, e do combate às iniqüidadespública e gratuita, e do combate às iniqüidades

sociais de nossa sociedade. Fsociais de nossa sociedade. Foi fundador dooi fundador doPPartido Socialista e mais recentemente doartido Socialista e mais recentemente do

PPartido dos Trabalhadores. No campoartido dos Trabalhadores. No campoassociativo e sindical foi fundador da Adusp,associativo e sindical foi fundador da Adusp,

sendo 1º Vice-Presidente na gestão do sendo 1º Vice-Presidente na gestão do Prof. Modesto CarProf. Modesto Carvalhosa. Na Universidadevalhosa. Na Universidade

colaborou de modo decisivo para que oscolaborou de modo decisivo para que osprocessos de denúncias, expurprocessos de denúncias, expurgos, cassações,gos, cassações,

aposentadorias forçadas, perseguições, prisõesaposentadorias forçadas, perseguições, prisõesnão impusessem a sua lógica do terrornão impusessem a sua lógica do terror,,

garantindo que o espaço educativo, de pesquisagarantindo que o espaço educativo, de pesquisapermanecesse sempre um lugar de reflexãopermanecesse sempre um lugar de reflexão

crítica e independente. Pcrítica e independente. Pertenceu a umaertenceu a umageração de pensadores formados diretamentegeração de pensadores formados diretamentepela chamada “missão francesa”, ou seja, ospela chamada “missão francesa”, ou seja, os

professores que vieram da Europa (nem todosprofessores que vieram da Europa (nem todoseram franceses) quando da fundação daeram franceses) quando da fundação da

FFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras e daaculdade de Filosofia, Ciências e Letras e daUniversidade de São PUniversidade de São Paulo em 1934.aulo em 1934.

Page 32: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Considero a Faculdade inicialmente cha-mada de Filosofia, Ciências e Letras edepois dividida em vários institutos umacontecimento extraordinário. Ela nãoapenas mudou a vida cultural de SãoPaulo, mas contribuiu para modificar a

de todo o país. Inclusive porque nela as disciplinashumanísticas foram ensinadas aqui pela primeira vezem nível superior. Antes não era possível fazer cursosde Filosofia, História, Geografia, Sociologia, Letras.Alguns anos depois da sua fundação chegou a vez daEconomia como curso autônomo na universidade.

Nessa transformação nós tivemos por sorte a co-laboração dos professores estrangeiros: franceses eitalianos enviados po convênio com os respectivosgovernos em caráter de missão cultural, além de ale-mães contratados individualmente, porque com ogoverno nazista não se estabeleceu contato. Note-sea boa orientação democrática dos fundadores, tendoJúlio de Mesquita Filho à frente: para tudo o quepoderia implicar conotações ideológicas, como So-ciologia, Economia, Política, História, Geografia,vieram especialistas da França, uma democracia; pa-ra disciplinas sem referência ideológica, como Mate-mática, Física, Geologia, Paleontologia, Mineralogia,Estatística, vieram professores da Itália fascista; osalemães, todos anti-nazistas, que desejavam se expa-triar e de fato ficaram no Brasil, ensinavam Química,Botânica, Zoologia. Vieram também dois portugue-ses, para Fisiologia e Literatura Portuguesa.

Falando do meu setor, o das Humanidades, é cer-to que eles estabeleceram muita coisa nova e fecun-da, além do conteúdo das matérias; inclusive, emconsonância com o intuito dos fundadores da Uni-versidade de São Paulo, a concepção do ensino e dapesquisa desligados de finalidade prática imediata,isto é, estabeleceram o conhecimento "desinteressa-do", que faz progredir o saber e dá no fim das contasfundamento mais sólido à sua utilização. Trouxeramtambém novos hábitos mentais, como a renovaçãoanual de cursos e o preparo rigoroso das aulas, cujotexto tinham sempre à frente quando as ministra-vam. No Brasil era bonito improvisar ou fingir quese improvisava. Para sugerir como isso era novo,lembro de um velho professor secundário que, ao vê-

lo consultar as suas notas durante as aulas, me dissenos anos de 1940 que dar aula assim não era vanta-gem, pois colavam tudo...

Por falar em professor secundário: um dos setoresque mais se beneficiaram com a Faculdade, emboraem processo lento, foi o da qualificação de um ma-gistério especificamente formado, quando antes eleera constituído por autodidatas, bacharéis em Direi-to, médicos, engenheiros, farmacêuticos arrancadosde certo modo à sua profissão e encarregados de en-sinar disciplinas nas quais se improvisavam ou ti-nham cursado com outra finalidade. A especializa-ção docente permitiu dar maior normalidade profis-sional aos graduados pelas antigas escolas superio-res, que antes deviam se multiplicar a fim de atendera todas as atividades, desde a burocracia e a políticaaté a agricultura e as finanças, além do magistério.Eles pertenciam à "era dos doutores", que pouco fezpara o progresso do conhecimento, porque este eraministrado como instrumento que vinha pronto defora para ser aplicado profissionalmente de imedia-to. Assim, ficava para trás o saber "desinteressado",que é o criador. De fato, na "era dos doutores" tive-mos pouca autonomia na produção do conhecimen-to, pois éramos sobretudo transmissores.

No entanto, é preciso ressalvar que sempre houveno Brasil mentes fecundas e homens de saber queconseguiam fazer muita coisa, superando o saber ins-trumentalizado. A nossa Faculdade e congêneres fo-ram precedidas por instituições sérias, que procura-ram passar da reprodução do saber à sua produção,rumo à pesquisa fundamental. Para dar exemplos forado meu campo e fora de São Paulo, lembro a obra deOswaldo Cruz, que a partir da necessidade prática decombater doenças tropicais nos anos de 1900 o Insti-tuto de Manguinhos, marco da nossa medicina cientí-fica. Do mesmo modo, em Escolas Politécnicas, ou apartir delas, procurou fazer-se coisa análoga com asciências exatas. Lembro, por exemplo, na do Rio nosanos de 1920, o esforço de homens como ManoelAmoroso Costa e Tobias Moscoso, procurando im-plantar concepções modernas de Matemática e Mecâ-nica Celeste e preconizando na Academia Brasileirade Ciências a reforma dos estudos superiores, com afundação de uma universidade centrada na pesquisa,

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

32

C

Page 33: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

tanto pura quanto aplicada. Portanto, podemos dizerque a Faculdade de Filosofia veio coroar uma tendên-cia já manifestada antes no sentido da passagem dosaber transmitido para o saber criado. O trabalho re-novador das missões estrangeiras foi possível porqueelas encontraram um Brasil já amadurecendo.

Esse amadurecimento era também visível na vidacultural de São Paulo, o que favoreceu a ressonânciados trabalhadores da Faculdade e reciprocamente foifavorecido por eles. Nos anos de 1930 houve aqui ino-vações tão importantes quanto o Departamento Mu-nicipal de Cultura, no qual Mário de Andrade efe-tuou em pouco tempo transformações profundas eduradouras nos meios de difusão e fruição cultural. Elembremos que ele se associou a Claude Lévi-Strausse sua mulher Dina Dreyfus, para fundarem a Socieda-de de Etnografia e Folclore. Noutro plano, docentes eestudantes da jovem Faculdade, como Pierre Monbeige Caio Prado Júnior, se ligaram a especialistas de ou-tros institutos, como o geólogo Luis Flores de MoraesRego, nas atividades da Associação dos GeógrafosBrasileiros, fundada e impulsionada por Pierre Def-fontaines, que publicou uma boa revista e estabeleceuas investigações sistemáticas na especialidade. Essesencontros mostram que estávamos passando da erada reprodução para a da produção do saber.

A criação da Universidade de São Paulo caiu, por-tanto, em terreno favorável num bom momento, em-bora tenha sofrido muita oposição, motivada por pre-conceitos conservadores ou simplesmente oposiçãopolítica. Sabe-se que um interventor do Estado, Ade-mar de Barros, nomeou Alfredo Ellis Júnior, diretorda Faculdade de Filosofia, com a finalidade expressade liquidá-la. Dizia-se que ela acarretava despesas inú-teis com professores estrangeiros dando aula parameia dúzia de pessoas. Mas Alfredo Ellis percebeuque se tratava de coisa importante, passou a defendê-la e foi decisivo para a sua sobrevivência (embora te-nha sido sempre contra a contratação de estrangeiros).

No campo da literatura, é preciso ainda destacarque os anos de 1930 assistiram à relativa aceitaçãodas vanguardas dos anos de 1920, e que o impulsodado pela Semana de Arte Moderna em 1922 aju-dou a preparar o ambiente para a atuação da Facul-dade de Filosofia.

As coisas estavam mais ou menos nesse pé quan-do ingressei em 1937 na 1ª seção do Colégio Univer-sitário Anexo à Universidade de São Paulo, para ne-le fazer os dois anos do Curso Complementar que,segundo a Reforma Campos de 1930, sucedia aoscinco de ginásio. Esse curso existia em alguns colé-gios particulares mais importantes, mas o da USP ti-nha qualidade e prestígio maiores, além de situar oestudante no ambiente universitário, como uma es-pécie de ensaio geral do curso superior.

O Colégio Universitário acabou quando o CursoComplementar foi substituído pelo chamado Cole-gial devido à reforma Capanema, de 1943. Em prin-cípio tinha quatro, depois cinco secções, que funcio-navam junto às Faculdades. A primeira, na de Direi-to, preparava os candidatos a esta e mais aos cursosde Filosofia, Ciências Sociais, Geografia e Históriada Faculdade de Filosofia. Graças a ele, não apenasmelhorei muito a formação trazida do secundário,mas me abri para o universo da cultura superior. Em1939 prestei vestibular para ambas as Faculdades: ade Filosofia (subseção de Ciências Sociais e Políti-cas) e a de Direito, na qual acabei não me formando,apesar de ter cursado até o último ano.

A Faculdade de Filosofia foi para mim e paramuitos outros da minha geração uma experiência ex-traordinária, que nunca louvarei o suficiente. Nelative professores de alta qualidade e me liguei a umgrupo de rapazes e moças aos quais devo quase tan-to quanto a eles no processo de amadurecimento in-telectual; nela trabalhei 36 anos como docente (emais 14 orientando dissertaçõese tese), primeiro como assis-tente de Sociologia, depoiscomo professor de Lite-ratura. A Faculdade foio quadro básico da mi-nha vida mental.

As aulas eram todasem francês ou italianoem nossas seções, salvo,obviamente, História daCivilização Brasileira,no 2º ano. Isso mostracomo éramos ainda

33

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 34: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

dependentes e de mentalidade colonizada. Nessemeio século o Brasil se desenvolveu de tal modo quea nossa língua ganhou maior status e hoje seria im-possível uma coisa dessas, pois penso que os alunosnão aceitariam cursos regulares naquelas condições.Naquele tempo em que o conhecimento do inglês eramais raro, o francês era um must, inclusive por ser alíngua da maioria absoluta da bibliografia corrente. Eos estudantes se defendiam, pois era ministrado du-rante quatro e alguns casos cinco anos de ginásio.

No entanto, os professores estrangeiros nos ensi-naram freqüentemente a compreender melhor o Bra-sil. Caio Prado Júnior (inscrito número 1 na subseçãode Geografia e História) contava que aprendeu a verdireito a paisagem com Pierre Deffontaines, seu pro-fessor, que ele pilotava de automóvel, aos domingos,pelos arredores de São Paulo. Roger Bastide deu em1940, no quadro da Sociologia Estética, o primeirocurso que houve aqui sobre o Barroco, fazendo-nosanalisar fotografias das velhas cidades mineiras e visi-tar capelas e casas em Embu e São Miguel Paulista.Jean Maugüé, de Filosofia, embora pouco vinculadoaos temas brasileiros, acabou fazendo reflexões sobrea força dos textos de Machado de Assis, que Bastideanalisou de maneira magistral num ensaio renovadore precursor publicado em 1940. Sem falar em ClaudeLévi-Strauss, iniciador de rumos originais na antro-pologia a partir das suas pesquisas no Brasil, ou dePierre Monbeig, geógrafo que estudou as zonas pio-neiras, escreveu um livro clássico sobre a expansãodo café e fazia com os estudantes excursões memorá-veis. A Faculdade foi sem dúvida um foco de progres-so no conhecimento do país, e se estendermos a ob-servação a outras seções veremos o mesmo, bastandolembrar o papel decisivo de Felix Rawitscher, ale-mão, professor de Botânica, na reformulação da ma-neira de encarar teórica e praticamente o cerrado.Tudo ao contrário do que achavam muitos nacionalis-tas patrioteiros, que acusavam a Faculdade de ser umempreza alienante.

Falando um pouco da minha carreira, começo es-clarecendo porque, tendo me fixado na crítica e noensino da literatura, cursei Ciências Sociais, não Le-tras. O que vou dizer vale para os membros da minhaturma de amigos na Faculdade, formados entre 1939 e

1944, o chamado "grupo de Clima", nome da revistaque fundamos em 1941 e durou até este último ano.Apesar de sermos licenciados em Ciências Sociais ouFilosofia, e de termos sido algum tempo ou por toda avida docentes dessas matérias, fomos todos críticos dearte e literatura. Do mesmo modo, a maioria de nósestudou também Direito, o curso todo ou parte dele.É que fomos uma geração de transição entre a "erados doutores" e a nova concepção de trabalho intelec-tual; entre a especialização e um certo gosto eclético.

A nossa escolha se prende por outro lado ao fatode sermos filhos do decênio de 1930, pois nascemosquase todos entre 1916 e 1920 e nele nos abrimos pa-ra a vida mental. Ora, 1930 foi o decênio dos radica-lismos, levando os jovens a abandonar o caminho li-beral ou conservador dos pais e se inclinar para a es-querda ou a direita. Os colegas a que me refiro e euoptamos quase todos pela esquerda em graus variá-veis, desde a militância partidária configurada até amera simpatia. Por isso, Filosofia, Sociologia, Políti-ca, Economia nos pareciam instrumentos indispensá-veis para elaborar uma visão do mundo condizente

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

34

Page 35: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

com essa opção. Havia, ainda, uma espécie de grandeonda de curiosidade pelos estudos históricos e sociaissobre o Brasil, com o impacto das grandes coleçõesreveladoras, como a Brasiliana de Fernando de Aze-vedo, e da obra de Gilberto Freyre, Sérgio Buarquede Holanda, Artur Ramos e outros muitos.

O meu interesse fundamental era, no entanto, pe-la literatura. Quando estava no 3º ano, fundamos arevista Clima, onde comecei a fazer crítica. Percebientão que não queria ser sociólogo, mas como preci-sava trabalhar para ganhar a vida, aceitei logo depoisde formado, em fevereiro de 1942, o convite de Fer-nando de Azevedo para ser assistente de Sociologia.No entanto, pensava em mudar de galho quando fos-se possível, de maneira que em 1945 procurei umasolução fazer concurso para a cadeira de LiteraturaBrasileira. Fui aprovado e obtive a livre-docência, àqual eu visava, porque valia eventualmente comopassaporte para as Letras. Em 1954 me doutoreitambém em Ciências Sociais e, tendo dado essa pro-va de competência na matéria que ensinava, me sentilivre para fazer a desejada mudança e me dedicar

apenas aos estudos literários, pois até então fazia asduas coisas. A oportunidade apareceu em 1957 coma fundação da Faculdade de Filosofia de Assis, ondefui ensinar Literatura Brasileira a convite de Antô-nio Soares Amora, seu diretor. Em 1961, voltei paraa USP como docente de Teoria Literária e LiteraturaComparada. Uma carreira heterodoxa, portanto.

Como sempre me interessei pela inserção da lite-ratura na história e na cultura, a formação em Ciên-cias Sociais serviu para a minha atividade de crítico eprofessor no novo rumo. Inclusive porque tive na Fa-culdade professores como Roger Bastide, que alémde sociólogo foi excelente crítico literário, tendo pu-blicado ensaios importantes sobre literatura brasilei-ra. Ou Jean Maugüé, que nos seus cursos transitavalivremente entre filosofia, política e literatura.

No começo talvez eu exagerasse um pouco aatenção à dimensão social, mas ao escrever de 1944a 1945 minha tese de concurso sobre Sílvio Romero,senti os limites e os perigos da crítica sociológica ecolhi as rédeas, inclusive por influência de posiçõescríticas inglesas e norte-americanas. Era o tempo do

35

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 36: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

new criticism. A partir de então procurei fazer umacrítica que jogasse livremente com as análises estéti-cas e o condicionamento histórico-cultural, tendocomo critério de dosagem dos pontos de vista as exi-gências do texto. E sempre evitei encarar a literatu-ra como documento ou como reflexo da sociedade.O texto literário é ao mesmo tempo autônomo e de-pendente, porque deve ser compreendido, de um la-do, como composição verbal que gera objetos espe-cíficos; de outro, como manifestação cultural, inte-grando-se no contexto histórico e social. Por isso,procurei efetuar o que chamei "crítica integrativa",atenta às exigências do texto, pois é, como a carac-terizei, uma "crítica de vertentes", dispostas a espo-sar a natureza de cada texto. Foi o que procurei fa-zer nos meus cursos.

A este propósito, devo dizer sinceramente que notrabalho universitário me considero sobretudo pro-fessor e transmissor de conhecimento. Creio quenunca fui muito na orientação dos estudantes para ainvestigação, embora sempre os tenha aconselhadoquando queriam ou precisavam. Tive orientandosque nunca precisaram de ajuda e outros que recor-riam à minha direção. Nunca impus nada. Em resu-mo: ante o famoso requisito, essencial para a univer-sidade, de união do ensino e da pesquisa, sempre mesenti um pouco insuficiente.

Além desta lacunaem minha fé de ofício,sinto nessa altura davida outra, que me

preocupa em sentido retros-pectivo, como educador:pensando bem, sempre vi a

educação de uma perspectivaparcial e portanto insatisfa-

tória, porque passei a vi-da fechado na universi-dade. Para mim, ensi-no foi o de nível supe-

rior; sobre os outrosrefleti pouco e nun-ca fiz nada por eles,

ao contrário de mestres comoFernando de Azevedo, colegas como

Florestan Fernandes e amigos como Darcy Ribeiro.Ora, a luta educacional deveria ter sido no Brasil

voltada sobretudo para a difusão e aperfeiçoamentodo ensino primário e secundário (uso, aqui e noutraspartes deste depoimento, as designações do meutempo). Sobre eles poderia ter se firmado um ensinosuperior também de qualidade. Mas parece queconstruímos sobre a areia: hoje temos um enormeensino superior pelo país afora, duvidoso na maioria,e um ensino público muito fraco nos níveis primárioe secundário, como se tivéssemos querido levantaruma pirâmide de cabeça para baixo. No Brasil o mi-to da elite esclarecida levando o povo para o cami-nho do saber foi em grande parte uma ilusão. Comoelite, falhamos sob este aspecto, embora tenhamoscuidado bem do nosso próprio saber. Pessoalmente,sinto-me hoje como alguém que viveu desligado dosgrandes problemas da instrução pública para todos.

No entanto, a minha geração se formou à sombrade uma boa filosofia da educação, formulada sobre-tudo nos anos de 1920 e 1930. Amadurecemos naatmosfera dos defensores da Escola Nova e eu tra-balhei com Fernando de Azevedo, um dos líderesmais combativos do movimento de reforma educa-cional que, ele sim, não apenas teve consciência dosproblemas, mas atuou de maneira lúcida e constru-tiva nos vários níveis, promovendo a reforma do en-

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

36

Page 37: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

sino no antigo Distrito Federal no fim dos anos 20,elaborando o código de educação de São Paulo nosanos 30, exercendo papel decisivo na criação daUniversidade de São Paulo.

Apesar de exemplos como o dele, creio que as eli-tes brasileiras do século XX ficaram meio prisionei-ras das formulações e não souberam passar correta-mente às realizações, contentando-se com as pala-vras, como acontece freqüentemente no pensamentoliberal. As idéias sobre educação podem ser justas,mas para se tornarem operativas em toda a sua ex-tensão é preciso, primeiro, a ação do governo; se-gundo, o empenho da sociedade que o orienta. Asclasses dominantes brasileiras se caracterizaramsempre pelo extremado egoísmo e nunca estiveramrealmente dispostas a usar o seu poder para realizaro que os educadores esclarecidos preconizavam emmatéria de instrução para todos. Isso faz pensar numpaís como o nosso o entrosamento indispensável en-tre projeto educacional, ação governamental e von-tade coletiva só ocorrerá se houver transformaçãoprofunda da sociedade, transferindo para todo o po-vo a capacidade de decidir. talvez seja o caso de in-verter os dados do problema e dizer que, ao contrá-rio do que pensavam os educadores progressistas dasdécadas de 20 e 30, não é a instrução universal queproduz a mudança social num sentido democrático;é a mudança social profunda que permite chegar auma verdadeira instrução para todos.

Este modo de pensar foi reforçado pelo contatodireto com a República de Cuba, onde estive três ve-zes entre 1979 e 1985. Lá, foi a revolução que conse-guiu acabar com o analfabetismo, inclusive estabele-cendo um tipo de comportamento coletivo que podeservir de inspiração: em vez de deixar tudo por contado governo, estimulou-se a população a entrar nacampanha da instrução, e isso ajudou decisivamentea fazer de um país pobre e implacavelmente acuadopelos Estados Unidos, verdadeiro modelo de instru-ção elementar. Sobre esta pôde construir-se o ensinosecundário e complementar de qualidade.

No Brasil do nosso tempo vejo elites nem semprebem formadas por escolas superiores freqüentementeinsatisfatórias, instrução pública primária e secundá-ria arrasadas, limitada de melhoria significativa. Até

que ponto vai nossa culpa, não apenas das elites polí-ticas e econômicas, mas das elites culturais, isto é,nossa? Por não ter pensado e atuado a respeito com odevido empenho no tempo devido, talvez nós, filhosda universidade, tenhamos sob este aspecto. Mas nãoem outros, pois construímos uma cultura universitáriaimportante que, como ficou dito no começo, foi fatordecisivo no progresso cultural de São Paulo e do Bra-sil. Nem é preciso citar as conhecidas estatísticas rela-tivas a porcentagem de produção científica, etc.

Quero deixar claro que não culpo a universidade,em geral, nem a minha Faculdade, em particular,por esse estado de coisas. A função delas foi nosformar. Competia a nós, aos privilegiados que cons-tituem uma parcela da elite mental, intervir na so-ciedade a fim de contribuir para a sua melhoria ou asua transformação no campo da instrução e da cul-tura. A universidade não falhou. Falhamos muitosde nós, inclusive eu.

Como acho que no Brasil o êxito real da instruçãopública depende de uma transformação política e so-cial em profundidade, é o caso de perguntar se essa éprevisível. Difícil dizer. Mas é certo que ela não virámecanicamente nem pela iniciativa das elites, e simpor meio de uma vontade coletiva clara, orientadapor doutrinas conseqüentes, a meu ver de tipo socia-lista. As reformas do século XXI, se vierem, não vi-rão com certeza segundo os modelos atuantes no sé-culo XX, embora venham provavelmente no rumodas idéias básicas que eles pressupunham e que vi-sam à maior igualdade econômica e ao fim da opres-são por parte de minorias privi-legiadas, detentoras do po-der econômico. Então, se-rá possível difundir efeti-vamente a instrução dequalidade em todos osníveis e ficará comple-tada a tarefa dos fun-dadores da universidadee de nossa Faculdade.

Flávio Wolf de Aguiar éprofessor do Departa-mento de Letras daFFLCH/USP

37

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 38: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram
Page 39: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Magda BeckMagda Becker Soareser SoaresPOR MARCOS CRIPA

É GRANDE A DISTÂNCIAENTRE O DISCURSO OFICIAL

E A REALIDADE

É GRANDE A DISTÂNCIAENTRE O DISCURSO OFICIAL

E A REALIDADE

Professora titular aposentada junto àProfessora titular aposentada junto àFFaculdade de Educação da Universidadeaculdade de Educação da UniversidadeFFederal de Minas Gerais, Magda Beckederal de Minas Gerais, Magda BeckererSoares vem desenvolvendo importanteSoares vem desenvolvendo importantetrabalho no campo dos estudos datrabalho no campo dos estudos dalinguagem e, particularmente, doslinguagem e, particularmente, dosprocessos de alfabetização. Intelectualprocessos de alfabetização. Intelectualcomprometida não apenas com acomprometida não apenas com apesquisa acadêmica, mas com aspesquisa acadêmica, mas com aspráticas educadoras voltadas para apráticas educadoras voltadas para atransformação social, Magda Soarestransformação social, Magda Soaresproduziu uma série de pesquisas queproduziu uma série de pesquisas queajudaram a ampliar a discussão acercaajudaram a ampliar a discussão acercadas interfaces linguagem/sociedade.das interfaces linguagem/sociedade.Neste particularNeste particular, com o seu livro, com o seu livro“Linguagem e Escola”, mostrou que o“Linguagem e Escola”, mostrou que oproblema do fracasso escolar decorre,problema do fracasso escolar decorre,sobretudo no campo do ensino dasobretudo no campo do ensino dalíngua materna, de práticas educadoraslíngua materna, de práticas educadoraspreconceituosas e discriminadoras daspreconceituosas e discriminadoras dasdiferentes variedades de fala quediferentes variedades de fala quecirculam entre as classes populares.circulam entre as classes populares.

Foto: Nívea Dias

Page 40: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Omeu despertar para o trabalho nocampo da linguagem se deu meio poracaso, e foi relativamente tardio. Atéo 3º ano científico estava me prepa-rando para a área de ciências exatas.Eu tinha dúvidas apenas quanto ao

curso que faria: Física ou Engenharia Química.Acho que era, em grande parte, a influência da pro-fissão do meu pai: ele era médico, professor daUniversidade Federal Minas Gerais, trabalhavacom Física, na área de Biofísica, e eu tive, atravésdele, minha iniciação na vida acadêmica e naUFMG. Quando pequena, ia com meu pai para olaboratório dele, ficava lá vendo o que ele fazia, an-dava de laboratório em laboratório. Assim, tivedesde muito cedo uma forte convivência com a uni-versidade. Eu gostava muito de ciências exatas econfesso que, até chegar ao 3° ano científico, nemsabia que existia um curso de Letras. No terceiroano científico é que tive uma professora de portu-guês que exerceu uma influência muito grande so-bre mim. Ela estava terminando o curso de Letras,foi dar aulas para nós, e eu absolutamente me apai-xonei por língua portuguesa, por literatura, porfrancês. Foi por essa professora que eu fiquei sa-bendo que existia um curso chamado Letras, emque eu podia estudar línguas clássicas ou neolati-nas, e decidi que realmente o que eu queria estudarera línguas e literatura.

Essa professora que me indicou e abriu o cami-nho para a área de Letras foi Ângela Leão, uma pro-fessora excepcional. Na época, ela era aluna con-cluinte do curso de Letras, depois fez carreira uni-versitária, foi professora titular da UFMG, e, ao seaposentar, transferiu-se para a PUC/Minas, ondecoordena atualmente os cursos de pós-graduação.

Professores bem-sucedidos

Sempre me faço essa pergunta: o que têm de dife-rente professores como Ângela Leão, que desper-tam no aluno o entusiasmo pelo estudo, por um te-ma, seja ele qual for? Não sei ao certo, mas creioque esse entusiasmo é transmitido pela paixão que oprofessor tem por seu trabalho docente e pela área

de conhecimento em que trabalha. Essa hipótese mepreocupa bastante porque, como formadora de pro-fessores, fico pensando: como é que se ensina alu-nos, futuros professores, a ter paixão pela docência epelo conhecimento? Será isso "ensinável"? E é essapaixão que parece decisiva para conduzir a bons re-sultados. Uma pesquisa que fiz sobre alfabetizadorasbem-sucedidas veio reforçar essa minha hipótese.Analisei aquelas professoras que conseguem alfabe-tizar a quase totalidade de seus alunos, trabalhandoem escolas públicas, com crianças de camadas popu-lares, condições em que o fracasso na série de alfa-betização é enorme neste país, há décadas. Os resul-tados mostraram como explicação principal do su-cesso dessas professoras o entusiasmo, a paixão peloato de alfabetizar e pela criança: elas gostavam deensinar, elas acreditavam nas crianças, elas demons-travam paixão pela ação alfabetizadora. Como for-mar professoras que sejam assim?

Opção pela educação e pelo social

Fiz o 1º e 2º graus - então primário, ginásio, cole-gial - em uma única escola particular, confessionalmetodista, em Belo Horizonte. Fui criada na religiãoprotestante metodista e estudei 12 anos em colégiometodista; dele saí diretamente para a universidade,para o bacharelado e a licenciatura em Letras. Ape-sar de ter abandonado a religião metodista aos 18anos, atribuo em grande parte a essa formação reli-giosa meu interesse pela educação e meu compro-misso social. O protestantismo vê a religião comouma ação educativa, e o metodismo é a seita protes-tante em que são princípios fundamentais a respon-sabilidade social do cristão e seu compromisso com aluta contra as desigualdades. Essa responsabilidade,esse compromisso social, carga tão pesada a carregarnum país como o nosso, são, em mim, também resul-tado do ambiente familiar, particularmente da in-fluência de meu pai e de meu avô paterno — este,por exemplo, era um republicano ferrenho, que ti-nha o busto da República e de Floriano Peixoto nasala principal da casa, ardoroso defensor da liberda-de e da racionalidade, que me ensinou, aos 4, 5 anos,a cantar a Marselhesa…

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

40

O

Page 41: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

A educação no Brasil hoje

Trabalhando há quase quarenta anos com e paraa educação pública, às vezes me pergunto, ao ver asituação precária das escolas, a má qualidade do en-sino e as dramáticas condições de salário e de traba-lho dos professores, se valeu a pena. Mas temos dereconhecer que houve melhora em certos aspectos,por exemplo na ampliação da rede escolar e aumen-to do número de vagas. Mas é preciso frisar que issoocorreu por conquista do povo. Rejeito sempre a ex-pressão "oferta de vagas"; as vagas na escola não são"oferta" do poder público; são resultado da luta dopovo por educação; a ampliação do acesso à escolafoi resultado da reivindicação, da exigência do povo,e não um "oferecimento" do poder público. É preci-so, porém, analisar a qualidade desta educação am-pliada. Por exemplo, a questão do analfabetismo. Éverdade que os índices de analfabetismo diminuí-ram. No entanto, o significado das estatísticas temde ser posto em dúvida. O que está sendo chamadode pessoa alfabetizada? O IBGE chega aos índicesde alfabetização e de analfabetismo fazendo às pes-soas a seguinte pergunta: "Você sabe ler e escreverum bilhete simples?" Em primeiro lugar, o indivíduoresponde sim ou não, fazendo uma avaliação comcritérios próprios não só de si mesmo mas tambémdos demais membros da família. Em segundo lugar,ninguém sabe, exatamente, o que é um "bilhete sim-ples", nem o IBGE nem mesmo nós, da área da lin-guagem… Em terceiro lugar, o entrevistado poderesponder "sim" por ter vergonha de dizer "não", oupode dizer "não" por ter receio de que, de repente, oagente do censo tire "um bilhete simples" do bolso epeça que ele leia, e aquilo pode não ser exatamenteo que ele sabe ler… Portanto, as estatísticas que ocenso nos fornece não são confiáveis. Dizer que nóstemos tantos por cento de alfabetizados no Brasil,para mim não significa absolutamente nada, pelaforma como a pesquisa é feita.

Os programas e campanhas de alfabetização quevêm sendo desenvolvidos neste país ao longo de déca-das, inclusive o que agora está sendo realizado peloComunidade Solidária, são programas que têm umavisão extremamente restrita do que é alfabetização.

Tanto assim que sempre entenderam e ainda enten-dem poder alfabetizar uma pessoa em 40 dias! E comalfabetizadores improvisados! Em 40 dias a pessoapode no máximo aprender a decodificar e codificar alíngua escrita, e isso não é suficiente para caracterizaruma pessoa como alfabetizada. Há um grande equívo-co na concepção do que é uma pessoa alfabetizada.

Na verdade, acho que avançamos em aspectosmuito periféricos da educação. Em aspectos funda-mentais, como na questão da formação do profes-sor, penso até que andamos para trás, porque osprogramas governamentais voltam-se para campa-nhas equivocadas de alfabetização, avaliação obses-siva de alunos e de escolas, informatização das esco-las, e nada faz com relação ao fundamental, que é aformação do professor e a melhoria de suas condi-ções salariais e de trabalho.

Quanto à democratização do acesso à universidadepública, é verdade que vem crescendo a proporçãonela de alunos provenientes das camadas populares.Mas é preciso avaliar com mais precisão esse cresci-mento. O número de jovens pertencentes às camadaspopulares que chegam ao fim do ensino médio é mui-to pequeno, porque a maior parte já sofreu o fracassoda repetência e da evasão ao longo do percurso esco-lar. A verdade é que a democratização da educaçãonão depende só nem sobretudo dela, educação, por-que é impossível a democratização da educação numasociedade como a nossa, dividida em classes de formatão gritante, tão revoltante, com diferenças tão gran-des de condições sociais e econômicas. Enquanto asdesigualdades, as discriminações não se resolverem, aeducação pouco pode fazer. O problema fundamentalsão as condições sociais do país. Estou me lembrandoagora, e com uma enorme saudade, do meu grandeamigo Antônio Houaiss, que sempre repetia isto: "en-quanto não se alterarem as condições sociais dopaís, a questão educacional não irá mudarsubstancialmente...". Tal como AntônioHouaiss, apesar do fracasso da experiên-cia socialista, eu continuo insistindo emser socialista. Enquanto não houver mu-danças radicais, vamos continuar tendo umsistema educacional discriminativo e geradorde desigualdades.

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

41

Page 42: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Pesquisa e políticas públicas

Um aspecto que é importante destacar é o divórcioexistente entre o discurso oficial e as políticas públicasna área da educação, de um lado, e os resultados depesquisas desenvolvidas nessa área, de outro lado,quando a pesquisa é instrumento importante para sesaber quais e como os problemas devem ser atacados.Considere-se, por exemplo, o envio de computadorespara as escolas. Reconheço que o computador tem dechegar à escola: é uma utopia, no bom sentido da pa-lavra — vamos ter de chegar lá. Mas se se considera-rem os dados que aí estão, os resultados de pesquisassobre a escola, o ensino, os professores, não há comonão concluir que esta não é ainda a hora, que prover aescola de computadores não é agora uma prioridade.Outras ações são prioritárias no momento, como aquestão da formação, do salário, das condições de tra-balho do professor. Disso não se tem cuidado. Sãomilhões que estão sendo gastos com a informatizaçãoda escola, milhões que estariam sendo muito mais efi-cazes se fossem empregados naquilo que, realmente,no momento, é necessário.

Há um outro aspecto que me parece interessantenisso que estou chamando de divórcio entre a pesquisae as políticas na área da educação. Tem sido cada vezmais freqüente a atribuição da administração da edu-cação, tanto em nível municipal quanto estadual, apessoas da universidade, do meio acadêmico. É um fe-nômeno que valeria a pena estudar mais a fundo, por-que tradicionalmente a administração da educação foiconsiderada não como uma questão técnica, mas co-mo um objeto de barganhas políticas. Durante anos eanos, a escolha de Secretários da Educação, munici-pais ou estaduais, se fez sempre por critérios políticos.De algum tempo para cá, Estados como São Paulo,Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, oDistrito Federal e vários outras unidades federativasvêm fugindo a esses critérios políticos na escolha dosadministradores dos sistemas educacionais, e vêm bus-cando esses administradores nas universidades. No en-tanto, é estranho como os professores universitários,os pesquisadores, ao assumir tais cargos, parecem es-quecer-se do que as pesquisas que conhecem, e atémesmo que fizeram eles mesmos, evidenciam; pare-

cem esquecer-se do que leram, do que estudaram e…do que escreveram… A pesquisa existe para ajudar acompreender a realidade e é ela que mostra o que épreciso mudar, e até como é possível mudar a realida-de. Não tenho visto nossos administradores provenien-tes da academia fazerem esse uso da pesquisa. A mu-dança de postura, de comportamento do acadêmico,do intelectual, quando assume um cargo executivo,tem sido surpreendente e frustrante. Exemplo inegávelé o atual presidente da República, intelectual, profes-sor universitário, pesquisador, e uma enorme decep-ção para toda a universidade brasileira.

A universidade hoje

Ingressei na universidade em 1959 e aposentei-merecentemente (muito a contragosto, diga-se de passa-gem) — depois de quase 40 anos de profundo envolvi-mento com a vida acadêmica. Quando entrei para auniversidade, o envolvimento político de professores ealunos era muito grande, bem como o compromissosocial. Não é preciso recordar o movimento de resis-tência à ditadura militar nas universidades durante osanos 60 e 70, particularmente nos Estados de São Pau-lo e Minas Gerais, onde professores foram cassados eaposentados e alunos foram presos. Progressivamente,com certeza como decorrência do regime militar, foiocorrendo um silenciamento forçado de alunos e pro-fessores, um esvaziamento da ação social e política nomeio acadêmico, e a universidade foi deixando de seruma instância de efervescência política e de compro-misso social. Esta universidade de hoje é muito dife-rente da que foi a "minha" universidade, nos meustempos de estudante e nos meus primeiros anos deprofessora; alunos e professores se envolvem muitopouco em movimentos políticos e sociais — basta ver apouca ou nenhuma participação de professores nas as-sociações docentes, a pouca ou nenhuma participaçãodos alunos nas associações e movimentos estudantis.Professores e alunos hoje pertencem a gerações queforam socializadas e educadas sob o regime militar eviveram a infância e a adolescência tutelados. Contri-bui para esse descomprometimento, no que se refereaos professores, a política acadêmica que se instaurounas últimas décadas, muito positiva, sem dúvida, mas

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

42

Page 43: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

com conseqüências às vezes negati-vas na formação de um professorcomprometido institucional e so-cialmente. Refiro-me à ênfaseatribuída à qualificação e produti-vidade acadêmica do professor, dequem se exige que faça Mestra-do, Doutorado, Pós-Doutorado,que publique, que faça pesqui-sa... A conseqüência extrema-mente positiva é que se qualifi-ca o corpo docente e se produzcada vez mais conhecimento,mas me parece que isso vem acontecendo emdetrimento do envolvimento institucional, social e po-lítico dos professores, porque cada um está preocupa-do exclusivamente em construir a sua carreira acadê-mica e se esquece de que temos de construir também auniversidade, o ensino público, a sociedade.

Um outro aspecto que observo, e pode ser que sejauma visão parcial ou distorcida, é que faltam lideran-ças nas universidades. O corpo docente atual das uni-versidades públicas é constituído, em sua enormemaioria, por jovens recém-ingressados na universida-de, conseqüência do grande número de aposentado-rias no país, por razões que não é necessário citar, tãoconhecidas são. Por exemplo, a minha geração na Fa-culdade de Educação da UFMG já se aposentou toda,e a geração que veio depois da minha também. Quan-do ingressei na universidade como professora, havianós, os jovens professores, mas lá estava o grupo dosmais velhos que continuavam a nos formar, já nãomais como alunos, mas a nos formar como professo-res, e que exerciam a liderança da instituição, do ensi-no, da pesquisa. Hoje, todos são jovens, igualmenteinexperientes, continuando a construção de uma histó-ria que desconhecem e já não há quem a revele a eles.

Além disso, estamos vivendo no país e, portanto,também na universidade, a fantasia da democracia,porque não é verdade que já temos verdadeira demo-cracia. A fantasia da democracia faz com que não setenha inimigo, já que ele está fantasiado de parceiro.Esta é a grande diferença que vejo entre a época atuale o período da ditadura militar. Naquela ocasião, tí-nhamos um inimigo muito bem configurado. Hoje, lu-

ta-se contra o quê? se o inimigo está camuflado sobum discurso que diz, por exemplo, que tudo está me-lhorando, que o povo está comprando frango e iogur-te, que os pobres estão podendo colocar dentadura,que as empregadas domésticas passam férias na Gré-cia, que as escolas estão recebendo computadores…Neste mundo da fantasia, é difícil envolver jovens alu-nos e jovens professores na construção de uma socie-dade mais justa, de uma universidade mais comprome-tida política e socialmente.

Mas não quero que fique, do que disse, uma im-pressão de descrença e pessimismo. Apesar de não termuitas esperanças de que os meus netos viverão numpaís muito diferente deste que temos hoje, vejo indica-dores muito positivos de avanço social e político nosmovimentos populares, nos sindicatos, nas associaçõesde moradores, nas associações dos sem-terra e dossem-teto, e, no caso das escolas públicas e das universi-dades, nos sindicatos de professores, nas associações dedocentes e nas de funcionários, que têm tido uma atua-ção extremamente significativa e impulsionadora. Nãoquero, portanto, deixar uma mensagem só de pessimis-mo: é uma mensagem de esperança, embora de es-perança de um futuro ainda muito distante.

A educação está indissociavelmente li-gada às outras áreas sociais: habitação,saúde, emprego... Meu sonho é o de queum dia tenhamos um governo que pro-mova o desenvolvimento articulado de to-das essas áreas, o que não temos hoje.Marcos Cripa é professor da PUC-SP.

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

43

Page 44: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Aziz Nacib Ab'Sáber é bacharel emAziz Nacib Ab'Sáber é bacharel emGeografia e História pela FGeografia e História pela Faculdade deaculdade deFilosofia, Ciências e Letras (1940-1944),Filosofia, Ciências e Letras (1940-1944),tem especialização em Geografia Físicatem especialização em Geografia Física(1946-1947), começou a trabalhar na(1946-1947), começou a trabalhar naUSP com registro de jardineiro (trêsUSP com registro de jardineiro (trêsmeses) e depois prático de laboratóriomeses) e depois prático de laboratório(1947-1965). Com doutorado e livre-(1947-1965). Com doutorado e livre-docência, trabalhou como professor dedocência, trabalhou como professor de1965 até se aposentar1965 até se aposentar, em 1983. T, em 1983. Tememcolaborado como voluntário nascolaborado como voluntário naspesquisas e trabalhos do Instituto depesquisas e trabalhos do Instituto deEstudos AEstudos Avançados da USPvançados da USP, onde, ondeatualmente prepara uma edição daatualmente prepara uma edição darevista sobre o Nordeste seco.revista sobre o Nordeste seco.

Aziz Nacib AbAziz Nacib Ab’Sáber’SáberPOR HAMILTON OCTÁVIO DE SOUZA

A UNIVERSIDADE REPRESENTAA CONSCIÊNCIA CRÍTICADA NAÇÃO

A UNIVERSIDADE REPRESENTAA CONSCIÊNCIA CRÍTICADA NAÇÃO

Page 45: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Fotos: Daniel Garcia

Page 46: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Eu tenho um prazer imenso de tratar dosassuntos da universidade, não só emtermos de seu papel na ciência e na tec-nologia, mas também de seu papel deformação e reprodução de educadores.Nesse sentido, qualquer observação que

se queira fazer sobre a universidade envolve algumtratamento relacionado com fatos, os seguintes fa-tos: em primeiro lugar, a universidade se preocupacom a recuperação da seletiva do conhecimento soba ótica de uma meditação permanente, que é trans-mitida aos alunos e às gerações de alunos, sobretu-do, para o chamamento para as questões básicas daciência da parte da humanidade que está mais próxi-ma da universidade, em setores que estão vizinhos auma cidade universitária, o seu país, a sua nação.Então, não podemos trabalhar diretamente com to-das as regiões do mundo; a universidade tem de cen-trar suas atenções também na estrutura, na composi-ção, na funcionalidade da sociedade nacional.

Outra coisa que a universidade tem de fazer é sairda ciência básica, que é a ciência produzida na pró-pria universidade, para aplicações de ciências. Nessesentido, não existe uma ciência isoladamente capaz deser aplicada à sociedade e à cultura nacional, aos pro-jetos de interesses regionais ou nacionais. O que exis-te é uma participação de cada área do saber num cer-to agrupamento de ciências para um determinado fimde aplicabilidade. Esse é um dos problemas bastantecríticos que a universidade atual apresenta. Existemgrupos que pensam que podem fazer projetos exclusi-vamente na base do seu corporativismo, na base dasua área do saber, quando todas as pessoas teriam depensar que qualquer projeto é dirigido para uma so-ciedade, para uma nação, um território. E nesse senti-do, as ciências do homem têm tanta importânciaquanto as ciências técnicas, enquanto idéias práticasde projetos de interesse regional, nacional ou local.Em outras palavras: as ciências do homem é que sãocapazes de mostrar as condições sociais, socioeconô-micas e culturais de uma região ou de um local. Osprojetos têm de ser adaptados às necessidades e às as-pirações da sociedade que está nesses espaços.

Isso me irrita profundamente porque aqui noBrasil é o contrário: quem propõe os projetos são

alguns governantes demagógicos, alguns políticosdemagógicos, e eles às vezes não têm nenhuma no-ção da factibilidade do seu projeto em relação às as-pirações e expectativas das comunidades residentese nem têm noção de escala da aplicabilidade. Porexemplo, eu posso pensar no Nordeste seco, nossertões que têm centenas de milhares de quilôme-tros quadrados e o meu projeto vai servir a um setorpequenininho, terá quando muito alguns milharesde quilômetros quadrados e assim mesmo terá pro-blemas de incompatibilidade em relação aos gêne-ros de vida tradicionais que representam a estraté-gia de sobrevivência real da população regional. Eisso acontece sempre, no Brasil, nos últimos quaren-ta anos, em que grupos técnicos de áreas muito di-versas (podem ser da engenharia, arquitetura, urba-nismo, etc.) fazem projetos sem analisar a receptivi-dade real do projeto em face da comunidade e dasociedade. A universidade tem de estar sempre pre-sente na discussão crítica dos projetos, independen-temente da reação dos políticos e dos governantes.Isso implica dizer que a universidade representa aconsciência crítica da nação. Se ela não representara consciência crítica da nação é porque ela não éuma boa universidade.

Outro assunto fundamental da universidade é aformação dos educadores. Evidentemente, o educa-dor não vai, no futuro, poder projetar tudo aquilo queele recebeu, leu, meditou, dentro dos quadros da uni-versidade. Tem de haver seletividade segundo as fai-xas etárias dos alunos, e nesse sentido o educador temde ser sintético sobre as áreas do conhecimento e temde saber quais os fatos, os episódios, os eventos, asnomenclaturas, as tipologias, que ele visa a colocar nacabecinha da criança ou na cabeça dos adolescentes,ou no preparo para a entrada na universidade.

Eu considero que o papel de reprodução do pro-fessorado é tão importante quanto os outros papéistécnicos da universidade. E além disso eu acho queos vínculos entre essas coisas são sempre muito ínti-mos, não dá para separar ciências do universo, ciên-cias da terra, ciências do homem, ciências da socie-dade, ciências da mente, técnicas culturais, técnicasurbanistas e politécnicas, ou seja, as engenharias to-das que foram inventadas ao longo do tempo.

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

46

E

Page 47: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Um segundo ponto é a questão da pas-sagem da adolescência para a vida adulta,que inicia quase sempre pelo pon-to do ingresso da pessoa na uni-versidade. Pelo que eu me lem-bro, quando comecei a freqüentara Universidade de São Paulo,em cursos de geografia e histó-ria, antropologia cultural, tu-pimologia, naquele tempotinha etnologia, a universi-dade deu um assalto ao meuraciocínio, à minha mente. Então esseproblema de que a universidade faz umassalto estimulante às inteligências de quem esta-va muito acostumado com coisas menores, miúdas efragmentadas, eu considero fundamental. E por issomesmo que existe uma diferença entre as universida-des que conseguem fazer esse assalto e as outras quevão muito devagar e que inclusive distorcem as dire-ções por vários motivos, que têm medo da crítica,têm medo da projeção que a universidade possa terem relação aos governantes, aos órgãos dirigentes doensino superior, etc., etc. Então, para mim, a univer-sidade verdadeira é aquela que tem a consciência crí-tica permanente, e que representa um assalto a esti-mular a inteligência do recém-ingressado e do ho-mem que vai entrar depois na vida prática.

Esse assalto se faz pelo trabalho dos professoresque têm o ideal da universidade; nem todos têm. Euposso estar encerrado dentro de um campus, num la-boratório pequeno, tratando de coisas muito sériasdo ponto de vista tecnológico, e não tenho a capaci-dade nesse tipo de coisa que eu estou chamando deassalto, na falta de outro nome. E por outro lado es-se assalto se dá pela convivência, a convivência entreos órgãos da própria universidade, do ponto de vistaaté mesmo dos instintos e das dimensões de reaçãoperante o mundo real, o mundo dos homens, o mun-do das mulheres, etc.

Também se dá esse assalto pelo chamamento paraos grandes problemas do homem e da cultura. Umaverdadeira universidade tem de ter, além das práticaslaboratoriais, excursões, etc., um sistema que possibi-lite a discussão dos grandes problemas do homem, es-

paços culturais para os grandes problemas do homem. Aqui pela primeira vez eu quero lembrar uma lição

que eu tive na universidade logo ao fim do meu curso,devido a uma aula do professor Roger Bastide. OBastide, com muita humildade, começou a sua aula di-zendo o seguinte: ao preparar aquele curso, ele se deuconta de que estávamos em um momento difícil de re-lações culturais com a Europa. Não vinham livros, nãovinham revistas, não vinham jornais, porque a guerraimpedia esse intercâmbio. Então ele preparou seu cur-so na base do pouco que ele tinha de biblioteca emSão Paulo, embora a biblioteca principal estivesse emParis. E lá das suas estantes ele tirou um livro que sechamava La Sociologie des Animaux (A sociologia dosanimais). E, ao terminar a leitura do livro, ele se deuconta de uma coisa fundamental; ele nos dizia no iní-cio da aula: o homem tem um atributo que os animaisnão possuem. Eles têm uma sociabilidade;alguns grupos, como abelhas e casto-res, etc., têm uma sociedade mínima,mas eles não têm a capacidade dereconstruir a história da espécie.Não existe possibilidade de oanimal isolado saber como éque foi a história daquela es-pécie na face da terra.

Eu acho isso fantásti-co; abriu uma janelamuito importantepara mim. É evi-

47

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 48: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

dente que é em função dessa capacidade de repensara história da espécie que se projeta todo o conheci-mento para a cultura. Então, no fundo, o grande atri-buto do homem é a cultura, mas a cultura dependen-do em grande parte da capacidade de relembrar a his-tória da espécie em todos os países, em todos os can-tos. Esse tipo de meditação me vem sempre à cabeçaquando penso na universidade que a gente deseja.

Agir contra o subdesenvolvimento é uma proposta muito difícil

Agora vem a segunda parte que diz respeito àuniversidade no contexto do subdesenvolvimento.Já escrevi alguma coisa sobre isso, está aí, mas gos-taria de relembrar mais coisas agora que tenho maisexperiência.

É bem evidente que a universidade, no contextodo subdesenvolvimento, é dirigida para o desenvolvi-mento polivalente, para um tipo de desenvolvimentopolivalente: cultural, científico, tecnológico, ideológi-co, e dentro de padrões de compreensão das necessi-dades do país considerado subdesenvolvido. O con-ceito de subdesenvolvimento sempre envolveu o fatode que existem países que têm áreas desenvolvidas eáreas não-desenvolvidas; e mais recentemente a gen-te sabe que as áreas ditas desenvolvidas têm um resí-

duo de subdesenvolvimento relacionadocom as migrações internas que se dão

ao longo do tempo e às vezessão contínuas e tradicionais,como é o caso de migraçõespara a disputa do mercado

de trabalho na cidade de SãoPaulo, e também hoje em ou-

tras cidades do país — Brasília,Belo Horizonte ou Rio. Nesse

sentido, tem que pensar em tu-do, da favela ao palácio, da falta

total de urbanização até as re-giões altamente urbanizadas.

Então, o subdesenvolvi-mento não é apenas uma

questão geográfica regional. Evidentemente,existem áreas menos desenvolvidas quando

consideradas na sua integralidade e outras bem maisdesenvolvidas quando consideradas na sua parte so-cial, a, b, e c. Mas, também dentro do abc pode es-tar o mundo mais subdesenvolvido do ponto de vistacultural, do ponto de vista da emersão dos instintos,da violência e da criminalidade. O exemplo maiordisso no mundo certamente será São Paulo. Já hou-ve, no passado, outras cidades da Índia, da China,que tiveram os mesmos problemas. Mas hoje asgrandes multidões estão concentradas na região me-tropolitana de São Paulo. Eu fico até um pouco pas-mo quando me lembro de que diziam: as cidades daÁsia do sudeste são como formigueiros humanos.Agora nós estamos com o formigueiro humano den-tro da nossa casa, com gente do nosso País, irmãosnossos, e nesse sentido é preciso sempre pensar namelhoria das partes mais pobres desse formigueiro.

O problema de como agir contra o subdesenvolvi-mento é uma proposta muito difícil para o universi-tário isolado e pressupõe sempre equipes de traba-lho. Por isso que uma universidade que faça o esfor-ço de multiplicar equipes de trabalho segundo os ti-pos de projetos e assuntos a serem atacados e pro-postas a serem feitas, essa universidade ganha maisforça. E, nesse sentido, a gente tem de se isolar docorporativismo. O economista isoladamente poderáfazer grandes desastres para uma nação. O geógrafo

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

48

Page 49: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

isoladamente, se fosse um ideólogo, faria grandesdesastres para o seu país. Os arquitetos e os urbanis-tas idem e, sobretudo, os engenheiros.

Esses últimos dias tenho meditado muito sobre es-sas enchentes de São Paulo, em que se trata um pro-blema da natureza sobre um organismo urbano exten-so e complexo, que, certamente, tem conflitos com afuncionalidade primária da natureza. Esse organismotem de ser muito bem conhecido em termos de sua es-trutura e sua composição social e urbanística, compo-sição de sistemas de transportes, etc., mas sobretudona funcionalidade. Não é possível que ao longo dotempo as pessoas recebam o impacto das chuvas, dasenchentes, das doenças trazidas pelo transbordamentode rios que não são mais rios, são croacas a céu aberto;não é possível que depois do último mês das grandeschuvas as pessoas se acomodem; pelo contrário, é noperíodo entre o fim das grandes chuvas e na base doconhecimento do acontecido que se pode trabalharpara melhorar as coisas. Mas, se os economistas que-braram a economia do País, do estado e do município,por causa de idéias neo-qualquer-coisa, não há recur-sos para corrigir os defeitos da estrutura urbana.

Eu vou falar em três fatos que dizem respeito àGrande São Paulo. Em primeiro lugar, a lerdeza daconstrução da rede principal e prioritária do metrô.Quando eu digo prioritária é aquela que tem a con-dição de uma rede auxiliando a todo o corpo urbano,a toda a sociedade que transita, a todos os jovensque vão para o trabalho, ou para a escola, ou para auniversidade, ou para um lazer. E a toda a popula-ção de classe média e a todos os pobres da cidadeque não têm os seus carros e que precisam se deslo-car por uma razão qualquer.

Nesse sentido, qualquer erro na condução, no pro-longamento do projeto do metrô é fatal para dar con-tinuidade aos esquemas de perda de funcionalidade.Eu tenho comigo, por exemplo, que aqui em São Pau-lo as linhas de metrô deveriam repetir o esquema demetrô ali no Terminal Rodoviário Tietê, em que toda arede, depois de ser subterrânea, passa por cima da pla-nície inteira. Por que passar por cima da planície intei-ra? Porque aqui em São Paulo o problema não é pas-sar pelo rio em si; o problema é passar por toda a áreaem que o rio em seu leito menor tende a extravasar

para o leito maior, que já está ocupado por bairros,por setores da cidade, quer industriais, quer de arma-zenamento, quer supermercados, hipermercados, etc.

Então seria muito fácil, por exemplo, entender queé preciso uma linha que vá do Butantã, de algum lugardo Butantã. E não se pode perder tempo porque de re-pente os espaços começam a ser ocupados pelo capita-lismo que é supercriativo em matéria de especulação. Épreciso congelar alguns espaços para ser terminal dometrô do lado esquerdo do rio Pinheiros, hoje canal, ede outra banda chegar a alguns pontos críticos que pos-sam ser pontos de captação de outro sistema de circu-lação que não precisa ser necessariamente o metrô.

Em outras palavras, existe a possibilidade de eco-nomizar no conjunto e na extensão das linhas e aten-der às populações, mesmo porque durante os períodosde chuva a população poderia, ao chegar a um pontode cruzamento do metrô, por exemplo, se houvesseuma linha do Butantã até além do Limão ou próximoda Casa Verde, a pessoa saía de metrô, passava por ci-ma das planícies inundadas e entrava numa estação demetrô no cruzamento com Vila Madalena ou Clínicas,e os outros, que morassem mais longe, iriam passarpor cima do Tietê. Essas são coisas simples porque omodelo já existe lá no caso da antiga região da PontePequena, onde hoje está o bairro do Armênia.

O esquema é muito bom, e esse esquema aindapodia ser desdobrado em esquemas outros que di-zem respeito à modernidade. É impossível pensarque o aeroporto metropolitano e o internacional deCumbica, lá na região de Guarulhos, não tenha umaconexão de metrô para passageiros, trabalhadores,freqüentadores obrigatórios do aeroportoquando se pretende buscar convida-dos, parentes, etc. Então, uma linhade metrô que saísse da região deCumbica e integrasse com umponto, uma estação da linhaleste e depois fosse dirigidapara a região do ABC, facili-taria a circulação do ABCpara essa estação da zo-na leste e depois con-tato com o resto docorpo urbano.

49

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 50: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

O grande problema da falta de entendimento dospolíticos sobre o que seja metrô é que eles pensamque metrô é trem. Metrô não é trem. É uma rede detransporte rápido sem interrupções por cruzamentosde qualquer tipo, portanto, tendo horários, velocida-de e rapidez maiores devido ao fato de evitar qual-quer tipo de necessidade de paradas. Paradas nós te-mos nas estações para as pessoas. O que é essencialé a licença da coisa.

Em termos dos tentáculos da área metropolitana,desde há muito tempo e agora são rodovias com umcerto número de faixas, três de um lado, três de ou-tro, etc. O problema continua sendo sério com rela-ção à interceptação de certos pontos da cidade e ain-da oferecem a circulação. Aqui nessa estrada, Rapo-so, que eu conheço melhor, existe ao término da Ra-poso, próximo da Rua Eliseu, uma área de extrava-são. Então, as áreas do córrego Pirajussara, que es-tão contidas em canais fechados, tamponados, canaisesses que não têm condição de escoar rapidamentetoda a água que cai na bacia do Pirajussara, recom-põem-se ao longo das avenidas de fundo de vale, oleito maior inundado dos rios.

O conceito de leito menor e leito maior teria deser muito bem colocado pela universidade para osgovernantes, porque senão eles continuarão fazendoavenidas de fundo de vale sem lembrar que durantetrês meses e meio a quatro meses existem grandeschuvas e possibilidades de inundação em muitospontos. É claro que não podendo extravasar para aplanície, se a planície está tamponada, a água extra-vasa pelos asfaltos laterais que cobriram e hermeti-zaram a água de córrego.

Então, o fato de existir esses pontos críticos pres-supõe que algumas obras sejam indicadas para essespontos críticos, e não querer fazer outras obras quenão resolvam esses problemas, que quebram a fun-cionalidade por horas, dias e semanas.

Nessa parte do meu depoimento para você eu voucontar o que ando fazendo nesses últimos tempos.Eu inventei um trabalho para atender às minhas pró-prias razões de ser cultural, que são as seguintes: fa-zer um trabalho sobre a revanche de certos fatos danatureza em relação à organização conflitiva propos-ta pelos homens, ou feita pelos homens.

O primeiro trabalho foi um pouco sentimental.Eu trabalhei dois anos no Rio Grande do Sul, soucasado com gaúcha em segundas núpcias, tenho trêsfilhos nascidos em Porto Alegre, e eu resolvi estudaro porquê da formação local embrionária da campa-nha gaúcha. Então eu chamei o trabalho de "A re-vanche dos índios".

Baseado nesse primeiro, resolvi fazer "A revanchedas águas". Já fiz uma primeira redação, mas tenhoabsoluta certeza de que agora tenho mais elementospara dar continuidade a esse trabalho. Quando euera um simples prático de laboratório e meio boê-mio, como todo estudante de universidade naquelesidos dos fins da década de 40, começo de 50, um diaeu parei ao lado da bela paisagem existente no valedo Anhangabaú, de um lado o centro velho em pro-cesso de reformulação, a Líbero Badaró, e de outrolado o centro velho mais novo, e no meio daquiloaquela avenida extraordinária, com parque dos doislados — sempre me apaixonei por aquela região,desde a primeira visita que fiz a São Paulo quandotinha apenas 11 anos.

Num dia de chuva, ali, eu estava abrigado sob umaporta, na rua Formosa, vendo o alagamento da aveni-da e eu me lembrei das planícies do Tietê, entre aFreguesia do Ó e a Lapa. Eu tinha visto, quando a re-gião não estava ocupada por fábricas e armazéns, que

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

50

Page 51: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

num momento de grandes chuvas a linha d'água qua-se que chegava ao fim da trava dos campos de futebole inundava todo o vale do Tietê, que é largo, uma dasplanícies mais largas do mundo em relação ao leitodo rio. Os norte-americanos dizem nos livros de textoque um rio, em face de sua planície, pode alcançar deum a dezoito vezes mais. Na planície do Tietê, em al-guns lugares, de um para vinte, um para trinta e, nobairro da Coroa chegava a um para quarenta, a rela-ção entre a largura do rio e a largura da várzea.

Conhecendo esses dois assuntos, a gente tinha depensar nos efeitos das grandes chuvas sobre a cida-de; só que lá no caso da planície do Tietê, o fato deter havido uma retificação progressiva e, depois, apossibilidade de entrada no canal do Pinheiros e dereversão de parte da água para as represas, lá foipossível a idéia de ocupação da planície como um to-do. Evidentemente, a grande vantagem que eles tive-ram, os loteadores, os especuladores, é que no Tietêexiste a possibilidade de reverter parte da água parao litoral, através da Billings. É uma vantagem tecno-lógica de um projeto, mas ninguém pensou que esseprojeto acabaria forçando a ocupação generalizadada planície, que tinha de ter algumas áreas de trans-bordo planejado, como se fez no vale do Tamandua-teí. Resultado: mesmo com a possibilidade de rever-ter água para o litoral existem inundações ferozes.

Outra coisa: foram feitos espécies de diques artifi-ciais na beira do canal e esses diques estão sempremais altos do que as partes laterais da planície. O re-sultado é que, quando vêm grandes chuvas, o riotransborda, dificulta a chegada dos córregos, os córre-gos se ampliam por dentro das ruas da cidade. O piorde tudo é que as pontes não foram pensadas dentrodo nível destas questões de inundações. Então, todosos vãos laterais por onde passam as marginais têm umrebaixo, para poder fazer com que os caminhões mui-to altos possam passar sem bater nas pontes. Para pre-servar a altura da ponte tem uma depressãozinha nopólo; todos os pólos existentes em todas as pontes sãoextraordinários do ponto de vista construtivo, mas er-rados do ponto de vista de impacto. Então, a universi-dade tem de ver isso permanentemente para que nãose repitam esses erros. Eu posso ser o melhor enge-nheiro do mundo e fazer a melhor ponte do mundo,mas se eu não souber o nível das cheias e dos trans-portes na parte de uma marginal, posso deixar errossem solução. É isso que eu espero da interdisciplina-riedade: a previsão dos impactos físicos, ecológicos esociais nas obras de engenharia e nos projetos urba-nísticos. Tem tantos defeitos essa cidade, nesse nível,que às vezes eu fico triste, porque as pessoas que fa-zem isso foram formadas na universidade, estão lu-tando na vida para sobreviver, mas elas poderiam ter

51

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 52: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

feito melhor os projetos se a universidade tivessemaior interdisciplinariedade e um pouco de conheci-mento das tarefas de previsão dos impactos - todos osprojetos precisam ter previsão de impactos.

O papel de discussão e de meditação precisa ser preservado

Outro defeito que a universidade não percebeu edeixou passar foi a construção do "Minhocão". Aquelaobra, naquela parte da região central de São Paulo,para dar conexão de um cinturão viário que vem desdea zona leste com a avenida São João, que é outro eixode acesso aos bairros da cidade, aquele "Minhocão"constitui uma aberração da inteligência construtiva eplanejadora de São Paulo. Não tem outra possibilida-de e, inclusive, eu prevejo que aquela obra venha umdia a ser implodida. É evidente que em vez de fazeraquela obra deveria ter sido feito mais rede de metrô.Então, eu penso que a universidade tem de estar emtudo. Não é porque certas pessoas fizeram a escola xou y ou z que nós temos de aceitar o seu projeto semprimeiro definir as previsões dos acontecimentos, quecertamente ocorrerão em função da implantação doprojeto. Essa necessidade permanente do espírito críti-co na universidade tem duas derivadas políticas so-ciais: em primeiro lugar, é que os governantes ficammais ferozes, eles não querem que ninguém analise osseus projetos, as suas escolhas, as suas determinações.Em segundo lugar, nos momentos mais tristes da vidade um país, já houve duas ditaduras de triste lembran-ça, a consciência crítica da universidade é o campo demaior número de punições possíveis. Toda ditaduraque se instala em qualquer país fará sempre uma guer-ra contra a presença de uma instituição capaz de fazercríticas e capaz de procurar a escolha de alternativasinteligentes. Então, esse papel de discussão, de medi-tação, na universidade, tem de ser preservado. Nãosão aquelas reuniões do Conselho Universitário querepresentam a universidade, não são apenas as reu-niões das congregações que possibilitam a discussão detodos os problemas do país e da nação, em nível regio-nal, setorial, nacional. Então, tem de haver mais conta-tos; a universidade sem contatos entre seus compo-nentes é praticamente zero.

Evidentemente, a universidade não é composta dedeuses. Ao contrário, são homens como quaisquer ou-tros, porém, pessoas humanas que cultivam ciências,técnicas, pensam nos grandes problemas do homem,contribuem para a formação de educadores, etc. Ocorporativismo é uma das grandes falhas da universi-dade. Eu penso que no tempo em que tudo se concen-trava na filosofia, ainda não tinham emergido as ciên-cias tal como elas foram sendo feitas ao longo da Re-nascença, dos tempos modernos e contemporâneos;eu penso que naquele tempo não devia existir corpora-tivismo, havia o ideário do conhecimento, o ideário derepensar o mundo, o universo, as coisas da Terra e dohomem. Mas, na medida em que as ciências se diversi-ficaram, cada uma delas foi conduzida por métodos etécnicas, e nem sempre noção de escala.

Existem casos em que as pessoas falam tão generi-camente que a gente não sabe qual é a área, o volu-me, a composição social dos que vão receber aquelasidéias ou aquelas propostas. Todas as universidadestêm núcleos diferenciados de pesquisadores, de ciên-cias e de técnicas, que acabam se fixando de tal ma-neira na sua própria área do saber que adquiremaquilo que no passado nós chamávamos de "espíritodo corpo", entendendo corpo como a coletividademais próxima. Isso existe nas universidades brasilei-ras e de outros países, e mesmo no interior dos vários

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

52

Page 53: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

grupos das ciências humanas e das tecnologias en-contramos compartimentações. Então, corporativis-mo significa visões compartimentadas, e não há coisapior para a universidade do que compartimentar oconhecimento. Mas o corporativismo maior está nospartidos políticos, no governo, onde as pessoas pen-sam que chegaram a um nível acima de qualquer ou-tra personalidade humana. Os políticos pensam queatingiram o cume da importância social e cultural,quando eles são pessoas egressas das mais diferentesáreas e até mesmo pessoas em grande parte forma-das em algum setor universitário, salvo raras e bri-lhantes exceções, e tornam-se corporativos, não aten-dem mais ninguém. Por isso, os dirigentes políticostendem a ser ditatoriais em qualquer situação consi-derada de ditadura ou democracia. Eu penso queexiste, no momento, em nossa vida social e políticabrasileira, um sentido de democracia, mas em com-pensação entranhado malignamente nesse sentido dedemocracia — em que as pessoas podem dizer o quequerem e ser processadas por aquilo que disseram edesagradou x, y ou z — existe alguma coisa de ordemaltamente ditatorial. Daí por que as pessoas dizemque é uma ditadura civil e a gente fica pensando queé uma ditadura civil nesse nível, no nível do cinismo,no nível do império das idéias sem nenhuma consultafeita à população, no nível do clientelismo.

A situação brasileira foi conduzida a esse caosterrível do ponto de vista econômico, e que está serefletindo no social de modo direto e progressivocom desemprego, com violência e outras coisas mais;a situação brasileira é a de que os grupos corporati-vos comandaram todo o processo e impuseram todasas suas idéias independentemente de qualquer críti-ca. A crítica não é aceita. E daí surge uma ferocida-de também por parte dos críticos, porque o críticoanalisa uma situação, um projeto, um programa, masna hora em que ele é mal recebido pelos governan-tes, pelos políticos, ele passa a ser um crítico feroz.Essa situação é deplorável. Eu acho que os momen-tos tristes da vida de um país devem ser os momen-tos mais aproveitados pela inteligência, pela criativi-dade. A literatura brasileira, a melhor que existe, foibaseada na tristeza da vida do homem do sertão nor-destino. Foi do conhecimento da rusticidade do gê-nero de vida dos homens que moram nos grandessertões é que surgiram as melhores obras da literatu-ra brasileira. A ponto de Graciliano Ramos não terum termo de comparação com a maior parte dos li-teratos do mundo. A gente tem de levar isso em con-ta, que o momento atual é muito difícil; é o momen-to para pensar em criar, em encontrar alternativas e,se possível, ser feroz para ver se as coisas mudam.Hamilton Octávio de Souza é professor da PUC-SP.

53

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 54: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

A UNIVERSIDADE BRASILEIRAESTÁ ABANDONADAA UNIVERSIDADE BRASILEIRAESTÁ ABANDONADACristovam BuarqueCristovam BuarquePOR MARCOS CRIPA

PPernambucano do Recife, Cristovam Ricardoernambucano do Recife, Cristovam RicardoCavalcanti Buarque foi reitor daCavalcanti Buarque foi reitor daUniversidade de Brasília (UnB) entre os anosUniversidade de Brasília (UnB) entre os anosde 86 e 89, e governador do Distrito Fde 86 e 89, e governador do Distrito Federalederalentre 95 e 98. Como professor da UnB,entre 95 e 98. Como professor da UnB,desenvolveu projetos educacionais que podedesenvolveu projetos educacionais que podeimplementar quando eximplementar quando exerceu o carerceu o cargo dego degovernador do Distrito Fgovernador do Distrito Federal. Seu maiorederal. Seu maiorororgulho, deste período, foi o de havergulho, deste período, foi o de haverimplantado a Bolsa Escola, projeto que retiraimplantado a Bolsa Escola, projeto que retiracrianças carentes da rua e as coloca nascrianças carentes da rua e as coloca nasescola. Tescola. Tal projeto está se disseminando peloal projeto está se disseminando pelopaís, sendo adotado até pelos opositores do país, sendo adotado até pelos opositores do ex-governador Cristovam Buarque. Dentre asex-governador Cristovam Buarque. Dentre asmuitas funções que exmuitas funções que exerceu na vida pública,erceu na vida pública,destacam-se a vice-presidência e presidênciadestacam-se a vice-presidência e presidênciado Conselho da Universidade da Pdo Conselho da Universidade da Paz, dasaz, dasNações Unidas; coordenador da Área deNações Unidas; coordenador da Área deEducação do “Governo PEducação do “Governo Paralelo”, do Paralelo”, do Partidoartidodos Trabalhadores; chefe do Ministério dados Trabalhadores; chefe do Ministério daJustiça, de março a agosto de 85; e Membro Justiça, de março a agosto de 85; e Membro da Comissão Presidencial de Segurançada Comissão Presidencial de SegurançaAlimentarAlimentar, Comissão Betinho, 1993., Comissão Betinho, 1993.

Page 55: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Foto: Ana Araújo/Abril Imagens

Page 56: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Não me atrevo a comparar a educaçãohoje com a de 40 anos atrás, quando euestava no primário, porque, em certosaspectos melhorou muito. O conheci-mento que uma criança tem hoje é mui-to maior do que aquele que eu tinha.

Mesmo o número de crianças na escola hoje é muitomaior do que era no meu tempo. Ao mesmo tempo,hoje, a gente percebe uma fragilidade na formação emnossos alunos. Então, eu prefiro não comparar antescom agora, mas comparar o agora, analisar o que agente tem em relação ao que necessitamos. E aí possodizer que nós estamos muito, muito, mas muito atrásdo que a gente precisa em educação.

Em primeiro lugar, na quantidade de pessoas na es-cola. Nós precisamos ter todas as crianças na escola,mas até o final do 2º grau; hoje tem 4 milhões que nãoentram na escola. Ou seja, mais de 10% das nossascrianças vão atravessar a vida sem ter colocado os pésnuma escola. Talvez adulto ele consiga, mas como peãode construção de alguma escola para outras crianças.Isso é uma tragédia. Para mim, esse é o primeiro pro-blema. O outro problema é que das crianças que en-tram na escola apenas 9% terminam o 2º grau. É muitopouco. Pior ainda, 50% das nossas crianças não termi-nam a 4ª série do 1º grau. Isso também é muito grave.E o terceiro problema: depois de 4 milhões que não en-tram, as que entram não chegam ao final, e as que che-gam ao final, é que chegam formadas. Estas, se chegambem mais informadas do que as gerações passadas,chegam pouco informadas em relação às necessidades.

Por isso, quais revoluções precisamos fazer na esco-la? A primeira é universalizar: nenhuma criança ficaráfora da escola; a segunda: nenhuma criança deixará deconcluir o 2º grau, salvo problemas pessoais ou inte-lectuais, porém, não por falta de dinheiro, não por im-possibilidade social, material. E a terceira: que as nos-sas escolas tenham uma qualidade na formação e nainformação que se tem, hoje, nas escolas de países co-mo Japão, Coréia e alguns países europeus. Essas sãoas três revoluções que temos de fazer, que levam àuniversalização e à qualidade.

O ensino superior, por sua vez, está sendo destruí-do de fora para dentro, mas é preciso dizer que eleestá sendo destruído também de dentro para fora.

De fora para dentro por conta dos cortes de verbas eo desprezo do governo federal. A elite brasileiraabandonou a universidade. Veja como hoje é comumver esses parlamentares, intelectuais e dirigentes deentidades de classes defendendo a escola privada, e,portanto, defendendo o esvaziamento da universida-de pública. Agora, a destruição também se dá dedentro para fora. Nós, e aí eu me incluo como profes-sor universitário, não estamos construindo a universi-dade que o momento exige, que o Brasil exige. O mo-mento é de ruptura de paradigmas, tanto paradigmasno que se refere à estrutura social, e, portanto, ao co-nhecimento da sociedade que nós temos, como para-digmas científicos, em todas as áreas. Não estamosfazendo esforço para dar esse salto. Ficamos, porexemplo, prisioneiros dos departamentos. Os depar-tamentos raramente dão os grandes saltos que se es-peram do conhecimento. Os grandes saltos, em geral,vêm de atividades de indivíduos multidisciplinares enão de indivíduos unidepartamentais.

Por outro lado, nossa universidade é voltada paraum conhecimento influenciado pelos nossos doutora-dos no exterior. Tenho dito, e talvez incomode muitagente, que as nossas universidades sofrem de umaamarra dos doutorados. O doutorado é uma forma-ção em que alguém transmite mais para o outro, emvez de uma formação que alguém cria. Existe um tu-telamento do pensamento na universidade. Os orien-tandos, para conseguirem que suas teses sejam apro-vadas, têm de se submeter à ditadura dos orientado-res, que, por sua vez, se submeteram à ditadura de umoutro orientador. Raramente conseguimos que nauniversidade haja uma ruptura do pensamento com atradição da formação dos diversos orientadores.

Claro que isso vai acontecer em outros lugares tam-bém. Há alguns dias eu estava lendo um ensaio quemostrava que no ano de 1903, em Harvard, um indiví-duo que era genial não conseguia ter o seu doutoradoporque a genialidade dele se fazia de uma maneira di-ferente do pensamento conceitual. Claro que na uni-versidade da Idade Média, um pouco depois de a uni-versidade surgir, havia esse tutelamento, sobretudo, tu-telamento religioso que impedia os saltos. Em conse-qüência, alguns tiveram de ir para fora da universidadepara fazer o pensamento avançado. Aliás, em geral, o

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

56

N

Page 57: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

pensamento avança fora da universidade. Freud nãofoi professor universitário, o próprio Einstein foi pro-fessor somente depois de postular a teoria da relativi-dade. Hoje é tempo de ruptura, não de acomodamen-to. A universidade está com medo da ruptura. A uni-versidade tem pavor do risco. Quando digo universida-de, digo os professores, eles têm pavor do ridículo. To-da idéia muito nova é ridícula. Não existe uma idéianova que quando surge não seja ridícula. Isso aprisionaa universidade. Ela fica aprisionada à sua contempora-neidade e aí não dá o salto para o futuro. Assim, elanão tem razão de existir. A universidade só faz sentidose for contemporânea do futuro. Se ela é contemporâ-nea do presente, não faz sentido. Estamos precisandode uma revolução na universidade brasileira. Esta revo-lução é que daria legitimidade para a universidade bus-car recursos no Estado. Se fizerem um plebiscito hojeno Brasil, para saber se devem ou não aumentar recur-sos para a universidade, a maioria vai dizer não. A dita-dura deu muito dinheiro para a Universidade. A dita-dura exilou, expulsou, demitiu, prendeu professores ealunos, mas não faltou dinheiro na universidade. Elaservia ao Projeto de Brasil que os ditadores queriam.Hoje, a elite brasileira perdeu a perspectiva de projeto,a universidade ficou perplexa, ela não tem um patrão aquem se dirigir. O que ela tem de fazer, então? Em vezde ficar reclamando de que o patrão não está lhe dan-do dinheiro, ela deve é começar a formular uma con-cepção nova de sociedade e esperar o novo patrão quevai surgir, que é uma mudança que vai ter de acontecerno Brasil. Pode ser daqui a dois, três, cinco ou dezanos, mas vai ter de surgir um novo estilo de governo,um novo propósito no governo. E então a universidadetem de estar pronta para servir a esse novo propósito.Se tivéssemos um governo progressista, um governo,vamos dizer, de esquerda, acho que a universidade se-ria conservadora. Ela não está preparada para termosum governo revolucionário no Brasil. Ela, sem dúvidaalguma, será um instrumento da reação.

Propus essa revolução da universidade em um li-vro que se chama A aventura da Universidade, no qualanaliso a crise e faço uma proposta de estrutura equi-valente à que implantei quando reitor da UnB - comdificuldades muito grandes de aceitação da comuni-dade -, a qual chamei, naquela época, de Universida-

de Tridimensional; hoje a universidade é unidimen-sional, os departamentos não falam entre eles, nãodialogam. Na Universidade Tridimensional, a estru-tura seria por categoria do conhecimento e o objetivoera a qualidade, o aprofundamento naquela área doconhecimento. Os núcleos temáticos seriam a outradimensão, que, em lugar de se organizarem conformeo conhecimento, se organizariam conforme um temada realidade. Portanto, tem de ser multidisciplinar.Teríamos, sim, o departamento da Engenharia, da Fí-sica, da Química, da Biologia, da Economia. São osdepartamentos das categorias. Teríamos também onúcleo da fome, o núcleo da energia, o núcleo doBrasil, o núcleo da América Latina. Todas essas ins-tâncias são multidisciplinares. Os profissionais de di-versas áreas se encontrariam para debater o proble-ma e não o conhecimento da sua especialidade. E, aterceira dimensão, seriam os núcleos culturais, emque cada profissional se reuniria, e aí juntamentecom professores, alunos e até servidores, para quepraticassem um gosto estético: o núcleo dos cantores,o núcleo dos pintores, o núcleo de dança, o núcleo debalé. Então, esses núcleos reuniriam pessoas de dife-rentes departamentos, de diferentes núcleos, prati-cando um gosto estético. Isso era uma das dimensõesde trazer o humanismo para dentro da universidade.

Preso a um departamento da Economia, você nãoavança o conhecimento. Você pode colocar pequenostijolos, mas não faz um edifício novo. O edifício novoé quando você leva o conhecimento da Economia pa-ra estudar um tema. Pode ser a energia, pode ser ha-bitação, pode ser a fome. Esses três pontos que citeinão cabem em nenhum departamento. Habitação nãoé um problema de arquiteto, de engenheiro. É de ar-quiteto, de engenheiro, de psicólogo, deurbanista, de economista, de filósofo,etc. E energia é um problema dequem? Um problema de engenhei-ros, de físicos, de agrônomos. A fo-me não é uma questão de nutri-ção, ela é uma questão de agrô-nomos, de políticos, de sociólo-gos, de engenheiros civis,etc. Então, os problemas,na realidade, são multidis-

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

57

Page 58: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

ciplinares. Quando o paradigma vai bem, isso nãoprecisa, porque o mercado junta os profissionais lá fo-ra. O Estado ou o setor privado se encarrega de con-tratar um engenheiro ou um economista para traba-lhar e resolver o problema. Mas quando estamos comuma crise de paradigma, nem o setor privado nem oEstado vão resolver o problema. A universidade temde assumir a responsabilidade e formular alternativaspara os problemas que o Estado e a sociedade deve-riam estar formulando. Eu não estou dizendo que auniversidade vai resolver os problemas, mas ela for-mula soluções. Essa é a Universidade Tridimensional.

Dentro da universidade, ouço muitos dizerem: "aimprensa só faz dar pancada na gente, o Estado nãodá dinheiro para a gente, o povo vira as costas para agente, os empresários querem transformar a gente emuma máquina de consultoria". Tudo isso é verdade,mas não é toda a verdade. A verdade é tudo isso emais o fato de que não estamos tendo ousadia parafazer mudanças. Além disso, vamos falar francamente,temos uma grande dose de comodismo. Basta obser-var o seguinte: diga a alguém que seja professor deeconomia, que ele precisa fazer reflexão filosófica,além de estudar economia. Certamente ele diz que is-so é baboseira. Ou diga que ele deve alfabetizar adul-tos. Ele vai dizer que isso é populismo. Ou diga queele deve fazer parte de um grupo temático junto comnutricionistas; ele não aceita porque cada profissão seacha a melhor do mundo e despreza as outras.

Poucos países do mundo têm um número de pro-fessores universitários com a qualidade que nós te-mos. Ocorre que, por falta de ousadia, não estamosusando esse potencial. É como se na escola de Infan-te, Dom Henrique, Sagres, tivesse uma porção debons engenheiros e arquitetos de caravelas, mas nin-guém ousasse tomá-las e ir aventurar-se no alto mar.Está faltando isso... está faltando mergulhar. O queestá errado não é que só tem filho de rico na universi-dade pública. O que está errado é que só filho de ricotermina o 2º grau. Agora, é errado também que essesfilhos de ricos estudem na universidade gratuita paraficar mais ricos ainda, quando deveriam estudar pararesolver os problemas do mundo. Eu gosto sempre dedar como exemplo a arquitetura. Os nossos cursos dearquitetura ensinam a fazer casas caras, bonitas, por-

que é o mercado que paga o arquiteto. Raras univer-sidades têm cursos de habitação popular como algosério. Acho, radicalizando um pouco, que, nos cursosde arquitetura, só se deveria ensinar arquitetura bara-ta e que servisse para o povo. Nutrição forma profis-sionais para os spas. Os nossos nutricionistas estudammais como emagrecer o homem rico do que como en-gordar pobre magro. Os nossos economistas não fa-lam do desemprego como problema a ser resolvido;falam como algo que acontece por causa do desequilí-brio entre oferta e demanda da mão-de-obra.

A universidade será sempre feita pela elite. Atéuma universidade que se chame popular vai ser feitapela elite. O problema do Brasil não é que foi a eliteque fez a universidade; o problema do Brasil é que anossa elite exclui o povo. As elites de outros paísesconvivem com o povo; há um projeto unitário de país.Só para dar um exemplo, eu acho que a lingüísticaajuda muito nisso. Eu não conheço nenhum outro lu-gar que precise de duas palavras para dizer povo. NoBrasil tem povo e povão. Quando a elite fala em po-vo, ela vê a nós e mais aqueles que nos cercam; o res-to é excluído. Quer ver um detalhe? Veja como a elitebrasileira se uniu aos sindicatos para reduzir o IPI eICMS dos automóveis. Ela não defende toda vez queeu digo "vamos botar toda criança na escola, com bol-sa-escola". Ela diz: "de onde vem o dinheiro?" Na ho-ra de vender carro, eles sacrificam a receita fiscal,mas, na hora de votar para as crianças que estão narua, eles param e perguntam de onde vem o dinheiro.Então, o problema da nossa elite é que ela é separadado povo, não é uma elite que sinta unidade com o seupovo, ainda que explorando o povo e privilegiada emrelação ao povo. A universidade, por sua vez, foi cria-da para ficar a serviço da elite. Os cursos que organi-zamos, como eu disse, são para a elite. Esse é que é oproblema. Também a universidade norte-americanafoi criada pela elite, mas ela serve ao país. Na Europatambém. Ela serve ao país porque o país tem um pro-jeto e esse projeto é includente. Tem desempregado,tem pobreza, mas ele é includente; o nosso é exclu-dente. Um país cuja economia se move produzindobens para o topo da pirâmide é necessariamente ex-cludente. Volto a insistir, não é que só a elite entra nauniversidade; o problema é que os formandos só tra-

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

58

Page 59: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

balham para a elite. Se o filho domais rico brasileiro entrasse nauniversidade para lutar contra atuberculose, acho que ele deveriaestudar de graça. Foi a universida-de que ajudou a derrubar a dita-dura, foi a universidade que aju-dou a ter a Petrobrás. Hoje, auniversidade está lutando paraquê? Estamos fazendomanifestações pela re-forma agrária? Esta-mos fazendo uma ma-nifestação, para valer, contra o fato de este país ter ti-do dengue, no final do século? Estamos fazendo umagrande greve nacional para acabar com a escravidãodo trabalho infantil? A universidade fechou os olhospara a escravidão.

Gostaria de dizer também que temos de respeitaraquele que faz algo intelectualmente. O filósofo tran-cado, pensando, por exemplo. Agora, se quer fazer is-so, ele tem que ser, radicalmente, bom e trazer algumconhecimento novo em relação a São Tomás de Aqui-no. O nosso problema é que aqueles que querem ficarenfurnados estudando não estão mostrando nada derealmente novo. Não estão sendo revolucionários. Pa-ra ser revolucionário, como intelectual, não precisa irpara passeata; basta você revolucionar o pensamento.Então revoluciona. O problema é que muitos dos nos-sos professores que se dedicam a uma determinadaárea não militam nada fora dela, mas também não mi-litam na própria ciência para fazer com que ela avan-ce. Ficam repetindo o que os mestres deles disseram,o que está nos livros. O que mais me deu prazer foiter colocado idéias em livros e levá-las para o diáriooficial como governador do Distrito Federal. O proje-to bolsa-escola está em um livro, feito como professorantes até de pensar em ser governador.

Meu maior sonho é ver toda criança na escola; osegundo é termos toda escola com qualidade. E issonão é absolutamente nada. Eu dizia nos debates in-ternos do PT que sou professor de economia paraestudar o socialismo e sou militante para construir osocialismo. Acho que fui governador só para botaros meninos na escola; o resto era minha obrigação.

A responsabilidade por toda essa crise na educaçãoeu atribuo a toda a elite brasileira, da qual fazemosparte; somos culpados disso. Evidentemente, o presi-dente é um pouquinho mais culpado do que a gentee abaixo dele o ministro é mais culpado do que agente. Mas, todos nós temos a nossa dose de culpa,até de termos deixado que ele chegasse lá ou de nãotermos sido capazes de impedir que os meios de co-municação fossem tão nefastos nessa campanha a fa-vor de Fernando Henrique Cardoso. Mas não ponhotoda a culpa no governo que está aí, seria um sim-plismo, uma vez que todos os governos que esse paísjá teve, sem exceção, são culpados da crise educacio-nal que o Brasil vive.

Podemos até responsabilizar o atual presidenteum pouco mais, porque ele é um homem da área daeducação, ele é um homem que vem da esquerda, eleé um homem que tem obrigação de ter sensibilidadepara o social, mas ficou muito prisioneiro da moeda.Muito. Teria sido maravilhoso podermos colocar nahistória um presidente que fosse capaz de fazer umarevolução no Brasil, uma revolução den-tro dos limites, que tivesse sido umcolega professor. Teria sido bonito.Já tentaram militares, já tentaramfazendeiros, já tentaram de tudo.Pessoalmente tenho um sonhoque é o seguinte: se um profes-sor não fez, que um metalúrgi-co consiga fazer.

Marcos Cripa é professorda PUC-SP.

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

59

Page 60: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

NÃO QUERO POLÍTICA,SÓ CIÊNCIA E EDUCAÇÃONÃO QUERO POLÍTICA,SÓ CIÊNCIA E EDUCAÇÃOLeopoldo de MeisLeopoldo de MeisPOR FRANCISCO NÓBREGA

Leopoldo De Meis é médico e professor titular de Leopoldo De Meis é médico e professor titular de Bioquímica médica na UFRJ. Suas linhas de pesquisa Bioquímica médica na UFRJ. Suas linhas de pesquisa compreendem os mecanismos de transdução decompreendem os mecanismos de transdução deenerenergia em sistemas biológicos, transporte ativo gia em sistemas biológicos, transporte ativo de íons, acoplamento enerde íons, acoplamento energético e produção gético e produção de Ade ATPTP, além de educação para ciência. , além de educação para ciência. Recebeu mais de dez distinções acadêmicas Recebeu mais de dez distinções acadêmicas e colabora ou colaborou em conselhos e colabora ou colaborou em conselhos diretores da SBBq, CNPq e Cdiretores da SBBq, CNPq e CAPES. APES. Publicou quatro livros e cerca de 175 Publicou quatro livros e cerca de 175 artigos científicos geralmente nos artigos científicos geralmente nos mais prestigiados periódicos mais prestigiados periódicos internacionais. Sua intensa internacionais. Sua intensa atividade envolve, além da atividade envolve, além da pesquisa em Bioquímica, a pesquisa em Bioquímica, a formação de pessoal qualificado formação de pessoal qualificado em ciência a partir do segundo em ciência a partir do segundo ciclo, reciclagem de ciclo, reciclagem de professores do 1º e 2º ciclos professores do 1º e 2º ciclos e pesquisas de natureza e pesquisas de natureza sociológica ou sociológica ou cientométrica cientométrica envolvendo a atividade envolvendo a atividade do cientista e sua do cientista e sua imagem na sociedade.imagem na sociedade.

Page 61: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Fotos: Raimundo Valentim/AE

Page 62: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Quando comecei a atuar fora do labora-tório, meu interesse maior meu estavana política de ciência latino-americanae aí trabalhei. Entre outras atividades,envolvi-me com a criação da Academiade Ciências Latino-Americana. Come-

cei a participar ativamente acho que foi a partir dadécada de 70, princípio da década de 70. A finalida-de era o desenvolvimento da ciência latino-america-na. Fui um dos fundadores da Academia, ao lado deoutros cientistas da América Latina. Mais adiante,envolvi-me com a política brasileira de ciência oupolítica científica, já que nunca tive muito interesseem política, a não ser que seja em ciência. Neste pe-ríodo, descobri que, realmente, não tenho vocaçãopara política. Passei a perceber um gosto amargo naboca porque nas muitas reuniões que freqüentei e ti-nha a sensação de que se repetiam sempre as mes-mas coisas. No fim, estas coisas acabavam não sain-do. Para fazer política de forma eficiente, tem queser em tempo total e não algumas horas por semana.E além disto, tem que ter vocação para ser capaz detransformar idéias em realidade.

Comecei a fazer, então, paralelamente à ciência,que é o meu mundo principal, trabalho com o ensinoda graduação aqui na UFRJ e depois comecei a tra-balhar com meninos de colégio, com as professoras eagora estou fortemente envolvido nisso. Não tenhomais nada com política, não quero política, só ciên-cia e educação, onde eu tenho tido boas recompen-sas. Trabalha-se e se vê as coisas acontecerem. O es-quema agora é assim: nós damos cursos de férias.Esses cursos são financiados atualmente pela Faperje pela Capes. No início tive um financiamento exce-lente da Fundação Vitae, que permitiu estabelecer oprojeto. Um dos objetivos é tentar desenvolver a no-ção de que em educação também se pesquisa. Naprimeira etapa do curso, convidamos professoras docolégio, de preferência, de zonas menos favorecidas.Aceitamos qualquer professor, mas na seleção doscandidatos, se eles têm credenciais semelhantes, da-mos preferência para as professoras de colégio pú-blico que têm menos oportunidades.

Primeiro, vêm as professoras. Damos uma sema-na de curso puramente experimental. Não há nada

estabelecido. Elas têm de desenvolver experiências.Fazemos com que elas proponham as experiências eas executamos. Então, cada turma de 30 professorasé dividida em três grupos que propõem experiênciasem ciências e nós procuramos ajudá-los a fazer asexperiências propostas. Isso durante uma semana.No último dia, organizamos uma espécie de simpó-sio em que cada grupo de professoras apresenta osresultados de suas experiências para debater com osdemais colegas.

A primeira semana termina com uma conferênciadada por um cientista de destaque. Na segunda se-mana, o curso se repete, só que desta vez o públicosão os meninos de colégio. Eles vêm para cá e a pro-posta é exatamente igual à que foi feita com as pro-fessoras. Em princípio, a partir do segundo dia nósnão precisamos induzir mais nada. Eles vão soltos e,em geral, são ainda mais divertidos, porque são ca-beças novas e ágeis. Eles vão muito mais fáceis doque as professoras. Quem organiza esses cursos sãoos estudantes de pós-graduação, junto com alunosde iniciação científica que, na realidade, são o quehá de melhor em nossos laboratórios. Eles estão su-per-treinados para essa tarefa, não é verdade? Ospós-graduados estão no meio do caminho. Não sãosuficientemente treinados para ser cientistas, mas sa-bem muito mais do que professoras e alunos do cole-gial. Damos total liberdade para que o conjunto pós-graduado/iniciação científica escolha os temas doscursos que vão ministrar. Eles se organizam e come-çam a trabalhar durante o ano letivo para ministraro curso aqui na Universidade, no período de férias -julho e janeiro/fevereiro. Ganham créditos para de-senvolverem um curso desses.

Esse esquema funciona há mais de 10 anos. Passa-ram pelo curso cerca de 2.500 meninos e aproximada-mente 600 professoras e professores de escolas, tantodo primeiro como do segundo grau. Não foram pou-cos. No fim dos cursos acontece de aparecem profes-soras que são especiais, que se envolvem e gostam,não é verdade? E aparecem também meninos quetêm talento para a ciência. Aí decidimos continuar otrabalho com alguns destes estudantes e professores.Estudante é uma maravilha porque borbulham entu-siasmo, eles não têm compromisso com passado ne-

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

62

Q

Page 63: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

nhum. São jovens, não é verdade? São, em geral,idealistas e entusiastas. É ótimo trabalhar assim.

Não me lembro exatamente em que ano esta deci-são surgiu. Lembro que os pós-graduados começa-ram a ficar indignados porque professoras que eramtão boas e que tinham se destacado durante o curso,precisavam ir embora depois daquelas semanas. Apartir dessa pressão começamos a organizar algomais elaborado, que foi selecionar algumas professo-ras que tinham participado dos cursos para fazer es-tágios no laboratório e conseguimos bolsas de aper-feiçoamento para elas. Começamos, então, a fazerpesquisa em educação ou sociologia da ciência. Noinício, recebi muitas críticas. Disseram que eu nãoentendia nada de sociologia, pois não havia feito ne-nhum curso universitário sobre o tema. Mas, um diaeu estava andando na praia, carioca anda na praiaaos domingos, e pensei: "Mas faço sociologia da ciên-cia desde os 18 anos. Desde aquela época que traba-lho com pessoas de ciência, lido com pessoas envolvi-das em ciência mais de dez horas por dia, então comoé que é que não entendo de sociologia? Vou embora,vou fazer isso mesmo". E comecei a fazer pesquisaem educação e sociologia da ciência com essas pro-fessoras e o resultado tem sido muito compensador.

Várias dessas professoras passaram a se dedicarao programa; uma delas se tornou cientista e duas, aJaqueline Leta e a Denise Lane, estão na fase finaldo doutorado em educação. Contribuíram enorme-mente para o crescimento do programa e todas co-meçaram com os cursos de férias. Quando iniciei otrabalho de fazer pesquisa em educação e sociologiaem educação, comecei a ler sobre o assunto e fiqueiestarrecido com o pouco que se pesquisa nestasáreas. Há diversas pessoas muito competentes queestão envolvidas, como por exemplo a Myriam Kra-silchick e o Nélio Bisso e diversos outros na USP,mas no conjunto muito poucas pessoas perante aquantidade de problemas existentes. Isso não é só noBrasil, mas no mundo inteiro.

Uma das linhas de trabalho que surgiram com asprofessoras de colégio foi a da cientometria. Não erade nosso interesse saber quem era mais citado, demaneira alguma, nenhuma destas bobagens. O quequeríamos saber, por exemplo, era se a nossa ciência

era igual ou diferente da ciência dos americanos. Setinha ênfase mais biológica, em que setor da ciênciabiológica e onde é que estava a ciência brasileira.Fomos ver como a National Science Foundation, nosEUA, pesquisa isso. A Jaqueline Leta, que trabalha-ra comigo, resolveu mexer com este assunto. Outralinha de pesquisa consistia em saber como as crian-ças dos diversos países — América Latina, África,Europa, Índia, etc. — viam a ciência. Destas duas li-nhas de trabalho resultaram diversas publicações.Mas não podíamos absorver muitas professoras paraestagiar nos laboratórios. Atualmente temos no De-partamento mais de uma dezena, mas ainda é poucoconsiderando a clientela dos cursos de férias.

Surgiram então os cursos de pós-graduação latosensu. As professoras selecionadas também freqüen-taram inicialmente os cursos de férias. Nestes cursos(cerca de 50 por ano) oferecemos atividades às quin-tas e às sextas-feiras; as professoras e professores re-cebem cópias de artigos de um determinado tema,em geral selecionados de revistas com linguagemacessível, como por exemplo a Scientific American.Após lerem os artigos, discutem o tema com os estu-dantes de pós-graduação que participam do curso.Em seguida convidamos um pesquisador da área pa-ra uma palestra seguida de discussão.

Primeiro foi o curso de férias, depois o lato sensue algumas acabam ficando para fazer pós-graduaçãostricto sensu. Além das professoras, nos cursos de fé-rias aparecem meninos de origem modesta, mas queficam muito animados com o curso. Você vê que afamília faz sacrifícios enormes para educar este me-nino ou menina. Então, passamos a selecionar tam-bém estes jovens. Eles passam a freqüentaro laboratório e ganham uma pequenabolsa entre R$ 80 e R$ 100 por mês,mais tudo o que ele puder absor-ver em educação. Se quiser fazercurso de inglês, damos um jeito. Sefor curso de computação, tentamosconseguir . Assim por diante.No laboratório, esses es-tudantes trabalham com a su-pervisão de um pós-graduan-do, que ganha crédito para is-

63

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 64: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

so. A proposta é preparar o estudante para entrarnuma universidade pública. Diversos já consegui-ram. É muito gratificante ver um menino crescer.Faz um bem enorme à gente. Nesta atividade, não sóo menino aprende, mas também o pós-graduando,uma espécie de tutor do menino. Acompanha o seudesenvolvimento na escola, as notas no boletim, aju-da nas matérias que precisa, etc. Em compensação, omenino trabalha para o pós-graduando: ajuda a fa-zer experiência, datilografa, participa do projeto detese, etc. Uma espécie de técnico do pós-graduando.Assim, o pós-graduando aprende a problemáticabrasileira. Uma coisa é você ficar falando: "Tem queeducar esse povo", outra coisa é trabalhar com o ga-roto e viver sua problemática de vida. Aí ele criauma consciência real. Tem um grupo pequeno depós-graduandos que não quer saber disso. Mas, aresposta da maioria dos estudantes é positiva.

A última etapa do projeto está sendo desenvolvi-da agora. Além dos cursos de férias, alguns de nos-sos pós-graduados vão para as escolas, em geral naperiferia do grande Rio, repetir uma versão simplifi-cada do curso de férias durante uma semana. Asprincipais parceiras destas atividades são as profes-soras que freqüentam o curso lato sensu que mencio-nei. A maior dificuldade nesta atividade costuma sera administração da escola. Existe uma resistênciaenorme a qualquer coisa que quebre a rotina e asprofessoras do lato sensu são as que abrem as portasde suas respectivas escolas.

Entre os trabalhos feitos em colaboração com asprofessoras, verificamos que muitas crianças têmuma visão distorcida sobre a atividade científica.Desde os 5 ou 6 anos já demonstram ter uma noçãobem definida do que seja ser pesquisador e entre30% e 40% das crianças em idade escolar acham quese trata de algo lógico, chato, sem imaginação, mecâ-nico, sem emoções, como se os cientistas fossem má-quinas e não seres humanos. Esta visão se estendepara muitas professoras de ciências. Na realidade,um número muito grande das professoras que ensi-nam ciências nas escolas tem a impressão de quecientista é arrogante, vive em torre de marfim, etc.

Acho que uma das causas desta distorção estános meios de comunicação (TV, jornais, livros,

etc.), que costumam realçar o lado utilitário daciência, a importância econômica, a repercussão so-cial, etc. Isso é, sem dúvida nenhuma, muito impor-tante. Além disto, também se tem a falsa impressãode que as bombas e outros artefatos de guerra sãoculpa exclusiva dos cientistas. E assim se critica aciência como um todo e não os governos e militaresque decidem fabricar e usar. Além do lado utilitá-rio, existe também o lado lúdico da ciência que fazcom que muitas pessoas façam ciência pelo simplesfato de que gostam, se emocionam com a descober-ta, tem vocação e se deslumbram com as maneirascom que a Natureza e o Universo funcionam. Emais, são cientistas que, como a maior parte daspessoas, detestam a violência. Esta visão lúdica,acredito, é importante ser mostrada para os jovens,mas no entanto há pouco material que mostre estafaceta importante da ciência.

Quando eu era menino, lembro-me de que umadas coisas que eu gostava na época do Natal eram osalmanaques que apareciam nas bancas de jornais.Almanaques, gibis, príncipe não-sei-das-quantas. Eulia aquilo com um prazer enorme. Até agora, muitagente gosta de ler gibis e almanaques. Veja o sucessodo Asterix, por exemplo. É uma maneira rápida eelegante de se comunicar e que pode ser bonita einteressante. No programa de educação, resolvemos,então, fazer almanaques de ciência, que fossem bo-nitos e gostosos de ler. Sem dúvida um grande desa-fio. Já temos dois: "O Método Científico" e mais re-centemente, "A Respiração e a 1ª Lei da Termodinâ-mica ou... A Alma da Matéria".

O crescimento da ciência brasileira tem sido algoespetacular, no meu entender. Lembro-me de que oque havia de ciências no país, no princípio de minhacarreira (início dos anos sessenta), era realmentepouco. Felizmente ela cresceu de maneira muito sig-nificativa e também está ficando “mais aberta”. Dei-xa eu explicar o que é mais aberta. Com muita fre-qüência, as pessoas que não devem brigar entre si éque acabam brigando. Brigas por competitividade,porque são as pessoas que convivem e, portanto, sãoas únicas com quem podem brigar. Resultado: numataque de mau humor, acaba brigando com o colegaao lado, que está fazendo a mesma coisa que ele, e

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

64

Page 65: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

não com as pessoas que estão lá fora, que não convi-vem com ele e estão causando dissabores a toda asociedade. Assim, cientistas de alto nível, muitas ve-zes, têm desentendimentos entre eles. Isto, felizmen-te, mudou bastante. As pessoas estão trabalhandomais coordenadamente, mais juntas e brigando me-nos entre si. Não é só a colaboração que melhorou,mas também a competitividade negativa diminuiu.Vou contar uma história para dar um exemplo. NoInstituto Oswaldo Cruz, na época dos desatinos doRocha Lagoa e da ditadura militar, os principaiscientistas da Instituição pouco se falavam. Rivalida-des e competitividade faziam com que brigassem en-tre si. Resultado: quando veio o Rocha Lagoa, elesestavam desunidos e foram facilmente desbaratadospela mediocridade.

Naquela época o Jornal do Commércio tinha umapágina de ciência que era publicada aos domingos.Eu e o Peter von Dietrich, da Escola Paulista de Me-dicina, éramos os responsáveis por esta página e eraum bico precioso que nos pagava meio salário míni-mo por mês. Havia pouca matéria sobre a ciênciabrasileira. Recordo-me que o presidente da Acade-mia Brasileira de Ciências, Dr. Artur Moses, pediapara publicarmos os resumos das comunicações fei-tas à Academia e o redator responsável proibia. Elequeria notícias espetaculares sobre a descoberta docâncer. Era um negócio complicado, mas sempreconseguíamos atender o Dr. Moses. Procurávamosentrevistar os diversos cientistas cariocas e nestas en-trevistas ficava patente o pouco entrosamento dospoucos membros da nossa comunidade. Era uma es-pécie de "cada um por si". Um dos grandes passos foique aumentamos muito em número, surgiram as so-ciedades que organizam reuniões e congressos ondeos pesquisadores conversam, discutem e traçam polí-ticas de trabalho. Assim o isolamento diminuiu bas-tante. Isso eu acho que foi uma coisa muito impor-tante. Inclusive tem a ver com o reconhecimento daciência pelo governo.

Nos últimos 20 anos crescemos bastante e o prin-cipal mote foi, sem dúvida, a pós-graduação. A Fa-pesp é o sonho de todo brasileiro. É uma maravilha.Não tenho limite para os elogios à Fapesp. Tomaraque a Faperj consiga seguir o caminho um dia des-

ses. Mas essa é a parte político-administrativa. Ooutro pedaço, que eu acho fundamental e que esta-mos cuidando pouco - e que já é um negócio inter-nacional - é a multidisciplinariedade e principal-mente a interação entre as diversas áreas do saber.A dificuldade de entendimento entre as diversasáreas do saber é, no meu entender, a principal causado conflito humano-tecnológico que estamos viven-do no planeta. Devido à explosão de conhecimentodeste século, surgiu a superespecialização. Assim, osmatemáticos e os biológicos, cada qual vê a Nature-za e o Universo sob uma perspectiva totalmente di-versa. Um não consegue entender a linguagem dooutro. Isto se agrava quando se comparam as ciên-cias exatas e as ciências humanas. Uma verdadeiracatástrofe. Falta total de comunicação. Salvo rarasexceções, não há diálogo entre essas duas áreas. Issoé muito deletério e não é um problema somentebrasileiro, é uma questão mundial.

Como dizia, devido à explosão do conhecimento,torna-se muito difícil para os cientistas acompanha-rem a sua própria área de trabalho, sua especialida-de, quanto mais as outras áreas. Em cada área do sa-ber estamos mergulhados em profundidade e, comoresultado, o matemático, o físico, o biólogo, cadaqual vê o universo de maneiras diferentes. A escalade tempo a que nós das ciências da vida estamosacostumados vai do milissegundo até séculos. Eunão tenho a menor idéia do que represente dez milanos-luz. Desconheço os conceitos fundamentais dafísica moderna. Se conseguíssemos transmitir unsaos outros, nas diversas áreas do saber, a da Nature-za e do Universo que descobrimos nas nossas diver-sas especialidades, talvez nos-so conhecimento estivessemuito mais desenvolvido do que estáatualmente. Falta-nos uma lin-guagem comum, que acredito so-mente poderá ser desenvolvidacom a multidisciplinariedade. Acre-dito que este será um dosnossos grandes desafiospara o próximo milênio.

Francisco Nóbrega é professoraposentado do ICB/USP.

65

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 66: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

A PRODUÇÃO CIENTÍFICAÉ COMPATÍVEL COM ODESENVOLVIMENTOECONÔMICO DO PAÍS

A PRODUÇÃO CIENTÍFICAÉ COMPATÍVEL COM ODESENVOLVIMENTOECONÔMICO DO PAÍS

RRogério Cézar Cerqueira Leiteogério Cézar Cerqueira LeitePOR NELSON ASCHCAR

Page 67: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Foto: Gladstone Campos/Abril Imagens

Page 68: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

68

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

O professorRogério Cerqueira Leitefoi um dos primeirosa registrar o carátercambiantedo político

FHC. "As metamorfosesde Fernando Henrique",publicado na Folha de S.Paulo, em junho de 94, pro-vocou a ira dos correligionáriosdo então candidato a presidenteda República. Nesse artigo é re-montada a trajetória de FHC desdeos tempos em que, jovem acadêmico,"manipulava o Conselho Universitário da USP com acompetência de um D'israeli" até a "troca de caríciascom o imperador da Bahia, ACM".

Provocado a falar sobre o papel da personalidadepolítica de FHC nos eventos políticos dos últimosanos, declarou: "FHC deu uma fisionomia palatávelpara a direita brasileira, que é uma direita profissio-nal, com muitos vícios. Ele conseguiu dar uma caraque serviu a ela. Se o caminho era para ser esse, eleera o homem ideal. Penso que o presidente FernandoHenrique não tinha uma consistência, digamos, típicaque se podia esperar da sua vida acadêmica. Ele tinhauma máscara de pesquisador, de homem de ciência,etc. Mas a vida dele, dentro da universidade, tinha si-do já bastante política e com muitas reviravoltas. Elejá era parecido com o PFL. Ele tinha os vícios da polí-tica tradicional brasileira; aquela troca de favores. Eletambém demonstrou essa faceta enquanto senador: jádurante o governo Montoro ele fez um grande esfor-ço de manipulação, um certo jogo de poder para colo-car pessoas aqui e acolá no sentido de apoiar sua car-reira política. Não se esqueça de que o Sérgio Mottafoi imposto por ele e já havia aliança com o José Ser-ra. Esse acordo não é de agora, é desde aquela época.Os métodos dele não eram diferentes dos do Quércia,só que com uma cara mais limpa".

O professor Rogério Cerqueira Leite sempre foium avaliador crítico da produção científica brasilei-ra. Nesse depoimento ele falou sobre Ciência e Edu-cação no Brasil hoje:

"A ciência brasileira, sem sombra de dúvida, pro-grediu muito. Não é fruto desses últimos quatro oucinco anos; é fruto de ações adotadas num passadomais distante. Uma destas ações foi o apoio à pós-graduação no país, que foi feito com bastante recur-so desde o governo Geisel... até mesmo um poucoantes. Naquele momento foi criada a Finep; a USPteve condições de desenvolver ainda mais a especia-lização que ela tinha e a Unicamp foi criada. Váriascoisas aconteceram, como a o surgimento de novosgrupos. A ciência efetivamente começou no Brasilnessa época. Depois, teve um programa feito no go-verno Sarney, em apoio à pós-graduação, com umaquantidade muito grande de bolsas, tanto no exte-rior como no próprio país. E esse programa de bol-sistas deu tão certo que hoje temos um grupo decientistas jovens de bom nível. Isso tudo não tem na-da a ver com o atual governo, que, na verdade, estáusufruindo, digamos, desses benefícios. A produçãocientífica brasileira é compatível com o desenvolvi-mento econômico do país.

Sei que estão ocorrendo cortes na área de C&T,porém, acho que foi muito por falta de vontade políti-ca de um ministro da Ciência e Tecnologia que não lu-tava pelas verbas. Todos os outros ministérios pedi-ram descontingenciamento de verbas e o Ministérioda Ciência e Tecnologia foi o único que não pediu.Quer dizer, o ministro anterior estava mais interessa-do em se mostrar bem comportado para as áreas maispoderosas do governo, inclusive a Presidência da Re-

O

Page 69: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

69

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

pública, do que fazer, realmente, seus programas an-darem. O Serra faz exatamente o oposto. Ele brigacom todo mundo e quer fazer o seu ministério. Então,era como se o Ministério da Ciência e Tecnologia nãoacreditasse em ciência e tecnologia. O próprio minis-tro não fazia o mínimo esforço. Isso fez um mal terrí-vel: primeiro, porque não veio dinheiro; segundo, por-que produziu uma atitude psicológica extremamentenegativa. Se você sabe que o seu ministro não acreditano que você está fazendo, ou que não vai lutar paraarranjar dinheiro para você, não se incomoda comaquilo que você está fazendo, passa a existir um certodesânimo. Esse ministro chegou a dizer para em pú-blico: "se não tiver dinheiro, vão para praia para fazerpesquisa". Quando um ministro diz isso, produz, diga-mos, uma atitude mental extremamente negativa e,muito provavelmente, isso foi o que houve de pior nogoverno Fernando Henrique. Não foi a falta de di-nheiro, mas foi colocar um ministro dessa natureza,que só pensou em se manter no governo.

Houve, porém, um apoio mais sensato em algunsestados como Pernambuco, por exemplo. O MiguelArraes deu um apoio inteligente às áreas de Ciência eTecnologia e de Educação. Então, houve uma certacompensação em relação às reduções federais. Houve,também, um amadurecimento da comunidade científi-ca que ficou mais competente e se apoiou muito maisem recursos externos. Quer dizer, os brasileiros passa-ram a se associar a cientistas no exterior e fazer pes-quisas no Brasil, porém, usando de alguns meios exis-

tentes no exterior. Essa atitudeaumentou bastante o nosso ca-pital intelectual. Houve, portan-to, um progresso satisfatório.

Porém, é preciso deixar cla-ro que se o país continuarno mesmo nível de investi-mento atual, o risco é que

isso desapareça. Podemoschegar, muito rápido, à degrada-

ção deste quadro.Com relação à educação como

um todo, acho que oPaulo Renato não estáfazendo um bem tão

grande quanto ele diz, mas seguramente ele não éum indivíduo mal intencionado. Ele está fazendo al-gumas coisas razoáveis. Agora, ele não é um educa-dor; entrou recentemente nessa área. Tá certo queele teve uma experiência em São Paulo, como secre-tário da educação, e foi reitor da Unicamp. Porém,ser reitor é uma coisa, a outra é ser educador. Acre-dito que existe gente com mais experiência em edu-cação do que o Paulo Renato, que, na realidade, éum executivo. Precisamos parar de colocar econo-mista em tudo quanto é lugar. O Brasil virou uma es-pécie de país dos economistas.

Quanto à pesquisa, a universidade que funcionamesmo é a universidade pública. Ouvem-se algumascitações, como a Católica do Rio de Janeiro, com re-lação às universidades privadas. Agora, as que estãoem São Paulo fingem que fazem pesquisa. Isso tudo éum jogo político. Na realidade, elas nunca vão fazerpesquisa. É muito difícil. Costumam citar os EstadosUnidos como exemplo, mas é preciso entenderque se trata de uma situação completamen-te diferente. Além do mais, as universida-des lá têm um outro propósito, que não éo do comércio. Aqui, as universidades vi-sam ao lucro, o que é incompatível com apesquisa. A pesquisa não dá lu-cro imediato, é um investi-mento a longo prazo".

Nelson Aschcar é profes-sor da Poli/USP.

Page 70: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

A CONSTRUÇÃO DAINTERDEPARTAMENTALIDADE ATRAVÉS DA

PESQUISA NA GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃONestor Goulart Reis Filho

Depoimento ao Prof. Khaled Ghoubar, em 5 de março de 1999

70

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

É arquiteto pela FAU/USP, 1955, e bacharel em Ciências Sociais pela FFLCH/USP,1962. É professor do Departamento de História da Arquitetura da FAU/USP, compublicações importantes em Arquitetura & Urbanismo e Patrimônio Cultural. É

catedrático pela FAU/USP desde 1967, da qual foi Diretor, 1972/76. Teve papel damaior relevância no progresso do ensino de Arquitetura e Urbanismo e participou dafundação da Asbea e da Anpur. Dirigiu a Emurb, 1975/80, e presidiu o Condephaat,

1976/80. Na USP, presidiu a Comissão de Patrimônio Cultural, 1988/90, e atualmente émembro do Conselho Universitário e do Conselho de Cultura e Extensão Universitária.

Daniel Garcia

Page 71: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

71

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Adusp - Com a mudança daFAU/USP da Rua Maranhão, quefica no centro da cidade, para umlugar bem mais afastado como aCidade Universitária, o que doprojeto espacial, didático e fun-cional sofreu grandes mudanças eo que ainda está incompleto?

Nestor - Antes disso, a grandemudança sofrida foi sair da esferada Politécnica e criar uma escolaestruturada com autonomia. Essafoi a reforma de 62/63, que criouos Grupos de Disciplinas de Pro-jeto e as várias opções nos trêsDepartamentos. No Departamen-to de Tecnologia, a coisa foi maiscomplicada porque havia dentrodele um Departamento de Estru-turas com o pessoal da Poli, queem 68 (ou 69) foi mandado embo-ra porque a “Reforma Federal”impediu a duplicação de empregodos professores. E o professor quefosse da Escola Politécnica nãopodia dar a mesma disciplina naFAU. Eles foram levados à forçapara fora. A última reunião daCongregação, conjunta, ainda foina Rua Maranhão e o professorFigueiredo Ferraz, que era o cate-drático desse grupo de Estruturasda Poli, saiu protestando em altosbrados e pisando duro no chão demadeira, que ecoava com a batidados seus pés no chão. Dizia ele:“Eu saio sob protestos! Fui expul-so! Eu sou catedrático desta Fa-culdade, não sou da Politécnica!Foi aqui que fiz o meu primeiroconcurso!”. De fato, ele fez o seuprimeiro concurso aqui na FAU.Não foi na Poli, e tinha orgulhodisso. Colaborava com os colegas,se entendia bem com os arquite-

tos, como homem de projeto deestruturas. Essa foi uma rupturaque prejudicou a área de Tecnolo-gia porque tirou um quadro técni-co importante da FAU, enquantoos departamentos de História eProjeto se mantiveram mais pre-servados dentro dessa reforma. Aspráticas de ensino é que foram al-teradas nos dez anos seguintes, econtinuam sendo, mas não a suadiretriz geral.

Adusp - No projeto original daFAU havia um espaço destinadoao Atelier Interdepartamental,que seria o quarto Departamentoda escola e que acabou não sendoimplantado. Ele faz falta? Ele foisubstituído pela pesquisa?

Nestor - A idéia que defendo éa de um local onde se desenvol-vessem projetos dentro da FAU,de maneira que projetos de pes-quisa fossem desenvolvidos pelapós-graduação e pelos alunos dagraduação, regularmente. Porqueo projeto é necessariamente inter-departamental. O AI era para serum espaço de trabalho conjuntodos professores sobre o objeto fi-nal, que é o projeto, e não cadadepartamento trabalhando especi-ficamente na sua área. A pós-gra-duação tem de assumir o desen-volvimento do projeto dentro dafaculdade, com os bolsistas. Apesquisa, se for coletiva, e não in-dividual, e se for integrando osgraduandos e os pós-graduandos,terá condições de fazer o papel doAI Naquela época (64/69) era difí-cil integrar os professores da FAUem projetos desse tipo. Não se co-locaram os objetos de trabalho no

AI, e para mim eles têm de serprojetos, grandes projetos de pes-quisa, ou projetos arquitetônicos eurbanísticos, cuja execução exige adisciplina de um escritório. Senãovoltamos à academia, em que oaluno ia aprender trabalhando noescritório do professor. Hoje te-mos condições de fazer isso den-tro da universidade.

Adusp - É inegável que o ensi-no e a pesquisa devem andar jun-tos. Mas está havendo um conflito,dentro dos critérios empregadospela Reitoria da USP, na avaliaçãode produtividade dos professores.Nesses critérios está claríssimoque os trabalhos de pesquisa têmmuito mais valor. E os professoresque mais se dedicam às atividadesde aulas se sentem injustiçados.Esse dualismo cria o risco de re-duzir a qualidade nas salas de au-la e deslocar demasiadamente asatividades para a pesquisa. Esserisco existe ou é um exagero?

Nestor - Por um lado há umexagero. Mas por outro, há umainadequação que precisa serapontada. Vamos começar pelainadequação. Os métodos de ava-liação me parecem montados apartir da experiência das escolascom maior tradição de trabalhouniversitário de pesquisa, comcertos padrões de apresentação ejulgamento de projetos da Fapespe do CNPq. Os padrões de currí-culos oficiais também são destaforma. Ou seja, cobra-se de umprofissional qualquer da mesmaforma como se cobra nas áreasque têm um comportamento quecorresponde a um determinado

Page 72: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

padrão de eficiência, que poucasáreas universitárias o tem na rea-lidade. O que é verdadeiro para aFaculdade de Medicina talvez,muito provavelmente, não sejacerto nas áreas de humanas. Veja,as áreas de exatas, no mundo, têmum sistema de aferição por núme-ro de citações. As áreas de huma-nas não o tem, por vários motivos.Mas o fato é que não o tem, nãose pode pôr como fator de medi-ção de qualidade o número de ci-tações. Vou dar um segundoexemplo. As áreas médicas, e ho-je também a Poli, têm um padrãode trabalho coletivo hierarquiza-do, em que o trabalho do orien-tando é assinado também peloorientador. Para algumas áreas dehumanas isso é um escândalo. Pa-ra mim não o é. Essa é uma ques-tão séria. Nós estamos pedindopara as áreas de humanas, artísti-cas e outras que meçam as suascoisas com padrões e práticas deoutras áreas. Não é que as outrasestejam erradas, nem que estasestejam erradas. Errado é fazerum sistema de avaliação homogê-neo com critérios heterogêneos.Como, então, se mede a produti-vidade de um docente que se de-dica muito aos alunos? Eu achoque essa é uma questão em aber-to, mas tenho de reconhecer tam-bém que os padrões de ensino,em termos de teoria do conheci-mento, em determinadas áreas es-tão muito mais maduros do queem outras. Não só apenas do pon-to de vista positivista, mas tam-bém do ponto de vista dialético,porque nesses setores se reconhe-ce a prática profissional como

uma forma de aprendizado tãoválida quanto o trabalho acadê-mico. Ele se liga à pesquisa, sejaem processo de ensino, seja naprática profissional. O ideal é li-gar a prática à realidade do país.Nós não podemos fazer pesquisasobre um mundo que não é o nos-so. O arquiteto não pode fazerpesquisa sobre uma área profis-sional que não é a sua. Isto nãosignifica dizer que a “prática deprojeto” é pesquisa. Mas nós te-mos que orientar nossa pesquisapara a compreensão do “processode projetar”, de como ele se dáhoje. Se o processo de projetarestá lá fora e a pesquisa está aquidentro, e a pós-graduação tam-bém, nós veremos essa coisa cons-trangedora de que os alunos dagraduação desenvolvem projetosde pesquisa dentro da faculdade eos da pós-graduação, não.

Adusp - O que pode ser feitopara analisar esta questão?

Nestor - Julgando pelo nossolado, eu acho que temos de fazerseminários e discutir uma questãológica que é a seguinte: “nós te-mos juntos de estudar procedi-mentos para aproximar essas vá-rias formas de atividades universi-tárias e tentar juntá-las num pro-cesso só”. Se pensarmos nesse sen-tido, veremos que as áreas maismaduras fundem o ensino com apesquisa e a prestação de serviço,de tal modo que participar de umHC ou de uma Clínica Odontoló-gica é uma forma de ensino. Achoque teríamos de discutir essas coi-sas. E se houver problemas, vamosenfrentá-los, como o que eu levan-

tei no Conselho de Cultura daUSP e aqui na FAU, no Cadernono 4 de nosso laboratório, que ésobre direitos autorais, chamandoa atenção para o fato de que ospróprios colegas de esquerda vi-vem discutindo os direitos sobre otrabalho material e não discutemos direitos sobre o trabalho inte-lectual. Na pesquisa complexa,universitária, que envolve váriossetores, quem são os autores?Quais são os direitos? Como vocêregistra a produção desse pessoal?Parece-me que estamos engati-nhando nesse sentido. Ainda esta-mos numa visão de profissionais li-berais – cada um no seu escritóriomandando na sua parte – e não so-mos capazes de pensar projetosuniversitários coletivos.

Adusp - O que poderíamos ob-servar em termos de diferencia-ção da FAU em relação ao restodo país? O que a FAU aprendeucom a experiência das demais es-colas de arquitetura, principal-mente a carioca? E qual foi a con-tribuição da FAU?

Nestor - Nós não temos se-quer um inventário sistemáticodas teses e dissertações feitas peloBrasil afora. Às vezes, vamos to-mar conhecimento das contribui-ções de nossos colegas anos de-pois, em estados que têm orça-mentos muito menores do que onosso, mas têm professores de ar-quitetura que fazem trabalhos ex-celentes, dos quais gostaria de tertomado conhecimento mais cedopara tê-los estudado tambémmais cedo. Falta um sistema deinformação em escala nacional

72

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

Page 73: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

73

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

para os nossos traba-lhos, que garantauma troca de infor-mações. Somos umasérie de ilhas, e istoé ruim. A FAU foifundada em 1948,pelo Anhaia Mello,junto com seus cola-boradores da Poli,entre eles o Paula deSouza, como uma es-cola de orientaçãomoderna. E isto nãoexistia no Brasil na-quela época. A FAUmarcou época no en-sino de arquiteturano Brasil, porque asoutras escolas estavam ligadas àtradição das Belas Artes, com ex-ceção de BeloHorizonte, que, nãoobstante, seguiu a mesma linha.As escolas de arquitetura maisantigas estavam amarradas, depés e mãos, à tradição acadêmica.E na FAU herdamos em primeirolugar a tradição Politécnica, por-que vieram junto os professoresde lá, e vínhamos do desdobra-mento de um curso de engenhei-ros-arquitetos. A arquitetura pau-lista esteve bem diferenciada até1954, que foi o ano do centenárioda cidade. Ainda tínhamos cor-rentes muito diversas. Tínhamosdiferenças que acho importantes.

Adusp - Que tipo de diferença?Nestor - A arquitetura paulista

e parte da carioca, que não éaquela chamada de “escola cario-ca”, eram muito mais ligadas à ar-quitetura moderna, mas de in-fluência alemã. Com a persegui-

ção política aos arquitetos moder-nos alemães que estavam ligadosao Partido Social Democrático,com a ascensão do nazismo depoisde 30, a arquitetura alemã, queera a vanguarda da arquiteturamoderna mundial, perdeu prestí-gio. E essa escola, essa tendência,perdeu força. Aqui vai uma obser-vação que me parece importante:na Alemanha o conceito de arqui-teto não é do acadêmico. A arqui-tetura é considerada como umcomponente da engenharia, comoera na nossa Escola Politécnica. Ea Politécnica de São Paulo foicriada com um sentido experi-mental muito forte, que veio doensino alemão, porque o Paula deSouza era um engenheiro forma-do na Alemanha. A nossa enge-nharia e a arquitetura foram mui-to ligadas à prática durante déca-das. E a arquitetura era conside-rada uma alternativa da engenha-ria, não como uma subordinação,

como se quer fazercrer, mas como umalinha não-acadêmica,que é a da Alemanhae de certos lados daEuropa, que não afrancesa, nem a ita-liana. Não havia ar-quitetura nem arqui-tetos na Alemanhacomo entendemoshoje, nem havia ouso corrente da pala-vra “arquiteto”. Nãohavia ali divisão coma engenharia civil,como existe aqui ho-je. O engenheiro civilera o homem para

fazer barragens, e a edificação ci-vil era do arquiteto. O engenheirocivil era para fazer as outras coisasda engenharia civil. Os alemãesnão passaram por esse processode uma arquitetura acadêmica,puramente estética e de uma en-genharia responsável pelo proces-so de produção. O arquiteto nessatradição é responsável pelo pro-cesso produtivo, razão pela qualos arquitetos-engenheiros edifica-dores alemães inventaram as Nor-mas Técnicas e a Arquitetura Mo-derna. Depois é que veio LeCorbusier, retomando a tradiçãoacadêmica no âmbito da arquite-tura moderna, porque isso nãoexistia. Quando nós nos desenvol-vemos, acabamos por nos fundircom a tradição da Escola de BelasArtes do Rio de Janeiro, que vi-nha da velha Academia. A inde-pendência da profissão no Brasilacabou por ser mais influenciadapor uma tradição acadêmica – do

A FAU marcou época no ensinode arquitetura no Brasil,porque as outras escolas

estavam ligadas à tradição dasBelas Artes, com exceção de

Belo Horizonte, que, nãoobstante, seguiu a mesma

linha. As escolas dearquitetura mais antigas

estavam amarradas, de pés emãos, à tradição acadêmica.

Page 74: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

arquiteto como o indivíduo que sófaz o projeto – e não é responsá-vel pelo processo produtivo. Issopara mim é um desastre concei-tual. Os arquitetos brasileiros esti-veram à margem do processo deindustrialização, e por mais com-petentes que sejam, não têm opoder de decisão sobre o desen-volvimento da construção civil nopaís. Ficamos no nível do papel,ficamos mais fracos. Eu acho queisso é uma coisa importante e, noentanto, a FAU durante um bomtempo conseguiu ter uma posiçãoforte neste sentido, na medida emque foi ela que começou o ensinoda arquitetura moderna. Até a suareforma de 1962 ainda estávamosimplantando processos novos.

Adusp - O que foi essa reforma?Nestor - A reforma de 62, com

a orientação do professor Artigas,veio criar as disciplinas de Comu-nicação Visual e Desenho Indus-trial, que não eram consideradascomo áreas específicas dos arqui-tetos. E o projeto não era, até ali,pensado como o projeto que é es-sa lógica de pensar as ações futu-ras das pessoas. Ele era pensadocomo uma composição que era alógica positivista do processo deprojetar da academia francesa enão da lógica alemã de orientaçãodo processo de produção. A re-forma de 62 deu uma volta por ci-ma e esse projeto se estendeu aoresto do país. Na área de Histó-ria, começamos a pesquisar e im-plantamos esse projeto, naquelesanos. Criamos auxiliares de pes-quisa, começamos a fazer publica-ções, traduzir textos e abrir espa-

ços para a pesquisa dentro da es-cola. O que era impensável, por-que as pessoas achavam que está-vamos querendo fazer o projetocientificamente. Ouvimos muitosabsurdos desse tipo: “Você nãopode fazer projeto com ciência”,diziam, e achavam que ter conhe-cimento científico implicava fazerprojeto cientificamente. Confun-diam a ciência do conhecimentocom a cientifização da prática, oque é um absurdo em qualquerprofissão. O primitivismo do está-gio de desenvolvimento da pes-quisa era esse. Hoje que estamosfazendo pesquisa a situação pare-ce muito tranqüila, mas a históriainicial foi complicada. Era difícilas pessoas nos aceitarem; nemnós mesmos nos aceitávamos. Écomplicado esse processo, mas aFAU esteve na ponta dessa histó-ria. Quando chegou a reaberturade Brasília, a criação do curso deBrasília teve a FAU como a prin-cipal interlocutora. Depois, aolongo dos anos 70, essas posiçõesse generalizaram e eu acho quehá boas linhas de inovação em vá-rias faculdades do país, tanto pú-blicas como confessionais e atéparticulares. Há um clima experi-mental no ensino de arquitetura,e não temos mais essa posição deliderança. E diante das 80 escolasdo país seria ridículo pretendertê-la. Nós damos a nossa contri-buição, mas felizmente existe hojeuma diversidade muito grande nopaís. A FAU teve um percurso in-teressante nesse sentido. Ela foiúnica, a tal ponto que tentaramfechá-la. Quando o Anhaia foiderrubado, havia um pouco o cli-

ma de fechar a FAU ou transfor-má-la numa academia. Fizemosuma greve de quatro meses, e foidesagradabilíssimo. Mas o entãogovernador tentou fechar a facul-dade onde dava aulas porque osogro dele, com mania de reli-gião, lhe disse que a FAU era es-cola de comunistas e convenceu ogovernador a fechar a faculdade.

Adusp - Quando vamos conse-guir montar uma escola onde oaluno não fique tão angustiado econtrole melhor as coisas, fiquemais relaxado, seja mais ousado emais feliz?

Nestor - Nós não podemos es-quecer que a faculdade existe pararesolver problemas da sociedade.Na universidade brasileira aindaexiste uma tendência de se consi-derar a extensão de serviços comoalguma coisa que se estende à so-ciedade. O estágio em que nós es-tamos aqui na USP é muito espe-cial. Além de ter desenvolvido apesquisa e a pós-graduação com oapoio da Fapesp e a carreira emRDIDP (criados nos anos 60),houve estímulos aos professorespara se tomar uma posição fortesocialmente no plano da pesquisae no plano universitário, mas nãono plano da sociedade. A nossauniversidade padece hoje do de-feito de ficar distante da socieda-de. Curiosamente, esse distancia-mento é pela direita, pelo desejode mantê-la um pouco distante,por ser uma força muito grande,que pode interferir nas diretrizespolíticas. E também é pela esquer-da, ilusão de um esquerdismo in-fantil, de que podemos estar nos

74

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

Page 75: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

75

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

comprometendo aonos aproximarmosda sociedade. Eupenso que a universi-dade tem responsa-bilidades sociais como país. Devemos fa-zer como faz a áreamédica, que é maismadura. Ali os pro-blemas de saúde pú-blica, de doenças dopaís, têm de ser tra-tados em primeirolugar pela universi-dade na escala sociale secundariamentepela ação direta dosprofissionais comseus clientes. Somosresponsáveis pelasdiretrizes de políticashabitacionais no Es-tado de São Paulo. Afaculdade tem de dizer o que oEstado tem para fazer com rela-ção a isto. Ela tem de dizer o queo país tem de fazer com relação àspolíticas habitacionais e de desen-volvimento urbano. Tem de estarna primeira linha de proposições ede crítica, com relação a essassuas áreas de trabalho. E hoje elaestá silenciosa. Se decidirmos as-sumir a responsabilidade pelosprojetos sociais, temos as condi-ções através desta forma específi-ca de extensão da pesquisa e dapós-graduação nessas áreas. E agraduação vai ter a sua prática desíntese seguindo essa estrutura.No nível de graduação não se con-segue hoje essa síntese, a não serpela participação, no estágio, como que os outros estão fazendo.

Adusp - A FAU ainda está vol-tada para formar profissionais li-berais?

Nestor - Ainda somos uma es-cola de profissionais liberais, maso mercado não é mais só de pro-fissionais liberais. O drama é es-te. Nossos professores ainda fo-ram formados na mentalidadedos profissionais liberais. Hámuito de século XIX no exercícioprofissional, mas não na atuaçãocomo professores e pesquisado-res. É o único caminho que meparece correto para tratar dessaquestão, nesta e noutras escolas.Na Constituição de 88 o GovernoFederal fechou e até deixou quese incendiasse o Ministério daHabitação e DesenvolvimentoUrbano. Fechou também o BNH,

cuja proposta inicialfoi feita no IAB-SP,num seminário quecomeçou em Quitan-dinha, em 63, e ter-minou aqui. Até pa-rece que não foramos arquitetos quecentralizaram essasteses em 63. Nossageração estava co-meçando. Nós pro-pusemos isso. Nossoprojeto foi distorci-do e criaram aquelaexcrescência que erao BNH do início,que desconhecia odesenvolvimento ur-bano. Com o traba-lho de nossos cole-gas lá dentro, ao fi-nal corrigiram os ru-mos e começaram a

fazer experiências habitacionaisde todos os tipos, como a casa“embrião” e o “mutirão”. Mas senegavam a industrializar o setor,a resolver os problemas sociaisdessa forma. O sonho era teruma sociedade capitalista em quecada um tivesse a sua casinha.Enquanto nós tínhamos um pro-jeto, com os empresários de SãoPaulo, de industrializar a constru-ção civil. Tudo isso foi sabotado.O BNH proibiu que se fizesse is-so e a construção civil foi atrasa-da em 40 anos por imposição dogoverno. A FAU, mais uma vez,silenciou com relação a isto.Quero que entendam que não es-tou querendo acabar com o escri-tório liberal. O que estou queren-do dizer é que o trabalho do pro-

A nossa Universidade padecehoje do defeito de ficardistante da sociedade.

Curiosamente, essedistanciamento é pela direita,pelo desejo de mantê-la umpouco distante, por ser uma

força muito grande, que podeinterferir nas diretrizes

políticas. E também é pelaesquerda, ilusão de um

esquerdismo infantil, de quepodemos estar nos

comprometendo ao nosaproximarmos da sociedade.

Page 76: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

fissional liberal tem uma dimen-são social, e o local certo para de-senvolvê-la é a universidade. Por-que a universidade só conseguiráse impor e não ser privatizada ecobrada se prestarmos tantos ser-viços a ponto de essa atividadebloquear isso. Temos de discutiros problemas urbanos e da cons-trução civil e oferecer nossa con-tribuição dentro da nossa área.Se assumirmos como nossos osprojetos sociais, devemos fazê-locom essa extensão, porque a so-ciedade nos paga para resolver osproblemas dela. Nossa responsa-bilidade social é que define o va-lor social da nossa instituição. Énesse nível que se funde o que seaprende na faculdade. Se você es-vazia a profissão da dimensão so-cial, você não consegue assumiressa dimensão.

Adusp - Nos programas dosrecentes mutirões institucionaisna RMSP assistimos a algumascoisas inéditas, não só pela pro-dução em si, mas principalmentepela consciência social e políticaque se processou no espírito domutirante. Isso é o que nós pode-mos chamar de “constituição dacidadania”, que ultrapassa oexercício dos direitos civis. A ci-dadania que os mutirantes con-quistaram consiste em acreditarem si mesmo, na sua comunidadee no Estado. Quanto os arquite-tos podem ajudar nessa constitui-ção da cidadania?

Nestor - Cidadania também écompreender a estrutura das rela-ções institucionais, de modo a po-der atuar sobre elas, entender a

divisão do trabalho, entender acoordenação, entender o finan-ciamento, a solidariedade, a coo-peração, o conflito, a negociação,etc. Isso tem que ser aprendido.A grande maioria do espaço urba-no criado na RMSP, e de outrosnúcleos de desenvolvimento doEstado de São Paulo, é a auto-construção isolada, cada um fa-zendo a sua casa. Toda colabora-ção a favor do que eles já estãofazendo deveria ser bem-vinda.Não podemos só querer ensinar afazer. Podemos ajudar a fazer me-lhor aquilo que se faz, e aceitarcomo parte da experiência a ofer-ta de apoio para quem já está fa-zendo algo. Porque por mais quenós façamos, a partir do nossomodelo, ainda o que predomina éa prática social que aí está.

Adusp - A FAU está se esfor-çando na criação de um curso no-turno, para ser mais popular.Mas nós ainda não incorporamoso patrimônio popular ao repertó-rio de uma arquitetura que se dizoficial e erudita. Nós não somosa Europa íntegra. Nós somos aEuropa negra, a Europa índia,miscigenada, e as questões da ar-quitetura de tradição africana eíndia parece que não nos dizemrespeito. Como a universidadepode resgatar coisas como essas,que estão se perdendo, e ser real-mente popular?

Nestor - Há realmente umadesvalorização das formas popu-lares de produção. Não há a me-nor dúvida. Eu fiz uma experiên-cia com os favelados, com osquais tive de trabalhar, e comecei

a perguntar a eles sobre as for-mas de trabalho. Eles custaramum pouco para entender, masquando entenderam foi uma ma-ravilha. Perguntei quem era daregião Nordeste e que produziatecidos de algodão à mão, em ca-sa. Custou um pouco para ouvir“Ah! O senhor está se referindoàquilo... Ah! Lá no Nordeste a fi-bra é maior, tece assim... E na ca-sa da minha mãe era assim...”.Percebe-se então que a popula-ção nordestina faz tecidos porprocessos artesanais, e se aquilofor racionalizado eles podem vi-ver dele. Quando eles chegamaqui são postos para carregarareia na obra... Couro? Eles nas-cem numa cama de couro, se ves-tem inteirinhos de couro e se dizque eles são não-qualificados eque não sabem trabalhar com ocouro... Eles trabalham com amadeira e se diz que eles são não-qualificados... Se fosse feito umpedido ao gravador de históriasde cordel para fazer estampas, elepoderia vender essas estampasmagníficas. Dos bordados nem sefala, só que fazem bordados mag-níficos sobre um tecido paupérri-mo, pois eles não têm capital paracomprar tecidos finos. Se eles fos-sem orientados, e foi isso que aAlemanha e o Japão fizeram, po-der-se-ia atribuir um valor enor-me a esse tipo de trabalho, e to-dos os desempregados começa-riam a trabalhar em casa.

Adusp - Essa não é uma cultu-ra tipicamente brasileira?

Nestor - O que eles fazem é ni-tidamente brasileiro, o resto é ir-

76

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

Page 77: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

77

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

relevante. Não existeessa “cultura africa-na”, não existe essa“cultura índia”, por-que há um racismoviolento atrás disso.Para mim, a contri-buição cultural afri-cana se dá nos maisaltos níveis, como aportuguesa. É o casodas obras de homenscomo Teodoro Sam-paio, ou de nossosextraordinários auto-res de músicas bar-rocas do séculoXVIII, quase todosde sangue africano.Teodoro Sampaio, filho de umaescrava, trabalhou de noite parapoder comprar a liberdade damãe e dos irmãos. Os melhoresestudos de evolução urbana sobreSalvador e São Paulo que conhe-ço foram escritos por ele no co-meço deste século. Foi um grandeengenheiro e um pesquisador ex-cepcional. Nós fomos educadosnessa tradição que vem do Olivei-ra Viana, de começar a classificara cultura brasileira e partir dasvertentes de origem, que era ummecanismo de desqualificaçãodas pessoas. Ele começava a iden-tificar qual era a raça superior. Eisso é fascismo, do qual ele foi lí-der aqui no começo deste século.Diferentemente da etnografia deMário de Andrade, que era de es-tudar o povo brasileiro exatamen-te na sua riqueza.

Adusp - Esse projeto rico, quea maior parte dos brasileiros es-

peraria, não passa pelo nossocurso. Quando se fala hoje em“crise do ensino universitáriobrasileiro”, e em particular daarquitetura em São Paulo, o queestaríamos deixando de fazer? Amim, me parece que não é umacrise intelectual, nem falta decorpo docente, nem falta de alu-nos qualificados, nem falta deinstalações, nem totalmente afalta de verbas. Creio que se acrise existe ela é por falta deidentidade, daquilo que se querproduzir e reproduzir aqui den-tro da universidade, daquilo quedevemos fazer. Não me parece,assim, que a crise esteja nos po-rões, está na superfície. Que cri-se então seria essa?

Nestor - As oportunidades detrabalho são criadas a partir deuma prática de caráter social. Sea universidade não se voltar paraessas áreas, não se abrirão os es-paços necessários para essa pres-

tação de serviços. AUSP, com o seu cus-to, tem de mostrarque ela presta servi-ços que não só o en-sino. Porque o cursonoturno pode serútil. Quando eu le-vantei uma questãocomo essa no Con-selho Universitário,me surpreendi como número de profes-sores – diretores defaculdade, represen-tantes de congrega-ção, na cúpula dauniversidade – quevinha de famílias ex-

tremamente humildes. Portanto,não é verdade que a USP é elitis-ta. O padrão da USP tem de sero melhor possível. Nossa preocu-pação é ter uma escola pública egratuita com todas as condiçõespara quem entre aqui. Não pode-mos nos esquecer de que esta-mos gastando dinheiro para pres-tar serviços à sociedade. A uni-versidade que conhecemos só so-brevirá se ela se organizar nessesentido. As pesquisas individuaisque não repercutem lá fora nãojustificam uma universidade co-mo nós temos. Precisamos terprojetos de interesse social demaneira que a população nos de-fenda. E como o nosso objetivopara a universidade é manter es-se padrão de escola pública, pre-cisamos fazê-la também públicano outro sentido e entregar aopúblico o fruto do nosso traba-lho. Isto é uma responsabilidadeque nós temos. RA

Precisamos ter projetos deinteresse social de maneira

que a população nos defenda.E como o nosso objetivo para a universidade é manter esse

padrão de escola pública, precisamos fazê-la também

pública no outro sentido e entregar ao público

o fruto do nosso trabalho. Isto é uma responsabilidade

que nós temos.

Page 78: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

78

SOBRE O ENSINO DE ARTE E ARQUITETURAFlávio L. Motta

Depoimento ao Prof. Khaled Ghoubar em 5 de março de 1999

É licenciado em Pedagogia pela FFCLH/USP, 1947. Desenhista, estudou e trabalhou no Museu de Arte de São Paulo, a partir de 1947. Foi professor de História da Arte emvários cursos dessa instituição e no Instituto de Educação Caetano de Campos, bemcomo na fase inicial dos cursos da Fundação Antônio de Álvares Penteado, e a partir de 1957 na FAU/USP. Prestou concurso de catedrático na FAU em 1968. Em 1952,

produziu para a PRF3-TV (Tupi) o programa de televisão "Vídeo de Arte". Tem livros, ensaios e artigos publicados no país e no exterior.

Daniel Garcia

Page 79: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Adusp - Se estamos falando doensino, ele não é uma preocupaçãosó de quem ensina, mas sobretudode quem aprende. E como todas asquestões temáticas que as discipli-nas abordam são complexas, aquina FAU/USP elas estão agrupadasem três departamentos: História,Tecnologia e Projeto, e mais umquarto departamento que seria oAI - Atelier Interdepartamental,onde as atividades interdisciplina-res e interdepartamentais seriamexecutadas. Essa proposta, quevem do professor Artigas, não vin-gou ainda. O que aconteceu com oAI e o ensino na FAU/USP ?

Flávio - Quero lembrá-lo de quea palavra ‘escola’ tem uma origemgrega, que está ligada ao ócio. Nãoo ócio do “dolce far niente”, mas dotempo ganho à guerra para o sujei-to se desenvolver como pessoa. En-quanto ensinar é pôr sinais na cabe-ça do aluno, instruir é instrumenta-lizar, e educar é conduzir. Há tam-bém o didático (διδαχτιχοσ) e a pe-dagogia (παιδαγϖγια), termos usa-dos, como os acima referidos, indis-tintamente, para designar as ativi-dades voltadas às relações culturaise sua propagação ou instituição. Eos professores, para susto de algunsestudantes, não sabem tudo. Osalunos pensam que seus professoressabem tudo, mas eles também estãosempre aprendendo. E às vezes oprofessor é bom quando sabe con-duzir o aluno, ensinando-o a estu-dar : "Vá lá, procure aquela fonte,pense sobre esse assunto...", "Não.Me dê a fórmula professor...", "Não.Não lhe dou a fórmula, a fórmulafoi pensada, foi feita e é o resultadode um trabalho intelectual, de pro-

cura e de pensar...". Essa coisa este-ve muito presente na FAU, essaidéia de querer que as pessoas aliparticipassem de um processo cul-tural e de conhecimento. E quantomais claro esse conhecimento setorna, mais lúcido e melhor fica.

Adusp - Analisando o antepro-jeto arquitetônico, às vezes se vêque ele põe a descoberto, põe a numuitos desejos, muitas inclina-ções, muitas tendências do arqui-teto, da visão do arquiteto, que fi-ca mais explícita. Naturalmenteisso ocorre devido às circunstân-cias, ao local, a toda a política daUniversidade, aos processos cons-trutivos e aos cálculos. Tudo aqui-lo que a gente procurou acompa-nhar eu sei uma pequena parte.

Flávio - Guardo um cartaz, queveio junto com as minhas coisas daFAU, em que está escrito "AQUIÉ O AI". No espaço onde hoje es-tão os departamentos havia um sa-lão que era para ser o Atelier In-terdepartamental, o AI Mas nósvivíamos um momento de turbu-lência surpreendente, quandohouve prisões de professores eaquela coisa de que a cátedra eravitalícia e a autoridade do profes-sor não podia ser contestada, nãoporque era "magister dixit", mas pa-ra manter a integridade e a res-ponsabilidade do professor naque-la situação de ensino. Terminarampor prender alguns professores eacabar com a vitaliciedade da cáte-dra. O AI conotava o Ato Institu-cional n° 5. E nós que caminháva-mos dentro de um programa cultu-ral, tivemos um desvio pelo fato deprofessores, integrados no assun-

to, estarem impedidos de compa-recer à escola. Naquela ocasião,havia um sentido meio ambíguo :"-aqui é o AI", quer dizer, "aqui é oAtelier Interdepartamental", e opessoal pensava que era o AI-5.Mas, realmente, se referia ao lugardo Atelier Interdepartamental: va-zio; não funcionava. E a interde-partamentalidade era um aspectoda interdisciplinaridade, que éuma preocupação na universidade,não só na USP, mas em várias par-tes do mundo. Tenho aqui um livrodatado de 1944. Era aluno da Fa-culdade de Filosofia. É uma Histó-ria da Pedagogia, que mostrei a umprofessor, e ele, na sua modéstia,disse o seguinte: "Flávio, eu não liesse livro..." E se tratava de um au-tor respeitável. Depois, ele leu egostou. Hoje eu estou relendo es-sas coisas sobre a história da edu-cação. Porque mesmo no "lufa-lu-fa" daqueles momentos que vivía-mos, nos desajustes sociais e políti-cos, alguns até amargos, e outros,de encher o coração de alegria, nomeio daquelas turbulências, todosnós também nos perguntávamos:"Como é que nós vamos enfrentaresses problemas da Faculdade?Por que é que se chama "Faculda-de"? Por que é que se chama "Uni-versidade"? De onde vem essaidéia de "Universidade"? E essahistória de departamento?". Che-garam a perguntar também: "Vocêvai ensinar matéria ou disciplina?".Questionavam-se esses termos to-dos. E hoje estamos a rever isso,com dificuldades. Temos que ler ereler, e anotar essas coisas todaspara podermos nos reaproximarde uma geração que prezamos.

79

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 80: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Adusp - Há uma questão inte-ressante: o espaço pode ser indu-tor de comportamento? Ou seja,um espaço fluido e flexível, comoé o da FAU, estaria propiciando oexercício de um curso fluido, deposturas flexíveis?

Flávio - Vou lhe contar umahistória para reforçar o que vocêestá dizendo. Eu tinha um amigoque foi passear na Europa. Erapintor e foi para Bruges, na Bélgi-ca. Ao voltar, exclamou: "Maravi-lha a Veneza do Norte; cheguei lá,entrei na igreja de Bruges, e euque não sou católico, não tenhoformação religiosa, caí de joe-lhos!". Tal era o clima que a arqui-tetura induzia na gente.

Adusp - Sempre houve, agoranão mais, uma forte tensão entre asescolas paulistas e cariocas de ar-quitetura. Enquanto a paulista sur-gia "racionalista", de dentro de umaescola de engenharia, a Politécnica,a carioca, saía "formalista", de den-tro de uma escola de Belas Artes.Não foi exatamente essa tensão quealimentou a moderna arquiteturabrasileira com um diálogo perma-nente entre essas duas correntes?

Flávio - O Rio de Janeiro foi asede da Corte, e D. João VI chegoulá com a Escola de Belas Artes,com a Biblioteca Nacional, com oJardim Botânico, e tantas outrascoisas assim, para dar aquele apa-rato de Corte. E aqui, São Paulo oque era? Era uma economia muitomarcada inicialmente pela agricul-tura, pelo gado, pelo café e pela in-dústria - isolada um pouco peloplanalto. Aqui também havia umacerta autonomia com as estradas de

ferro, com o acesso ao mar e com ainstalação da Faculdade de Direito.Até então São Paulo era uma cida-dezinha sem muita expressão. Foi aFaculdade de Direito com seus cur-sos jurídicos que veio trazer vidacultural e intelectual a São Paulopor volta de 1828, dando outro sen-tido à cidade. São Paulo passou aser um espaço da economia e da vi-da cultural quase simultaneamentecom a instalação da Corte no Rio.E São Paulo vai se firmar principal-mente com a República.

Adusp - A população reconhecea arquitetura como uma edifica-ção bela, original e diferenciada, eque tem surpresas. E essas quali-dades são próprias dos objetos dearte. Diante dessa importância, adisciplina de História da Arte pa-ra os arquitetos foi pensada dife-rentemente da de uma escola deBelas Artes?

Flávio - Você tem que levar emconsideração duas coisas. Porquenesse problema de educação, se vo-cê não falar de história, de filosofia,de ciência, de arte e não se demo-rar um pouco sobre elas, fica difícilde andar. Vou ler para você algoque escrevi: "Quando a qualidadedo conhecimento se faz explícitanas relações humanas, ela não sefecha em si, apenas para a satisfa-ção de alguns. Pelo contrário, pormais que perdure em formas, fór-mulas, modos, usos e costumes ti-dos como imutáveis, perenes e cris-talizados, ela retorna em momen-tos inesperados da história". O pro-cesso de educação em arte exige es-tudos e indagações de ordem filo-sófica, histórica, política, econômi-

ca e artística. Então, é uma questãoeducacional por excelência. A FAUteve, e tem, muitos professores pro-venientes da Faculdade de Filosofiaque se instalaram nas disciplinas desociologia e de arte, e que começa-ram a estudar historicamente oprocesso de industrialização. Verifi-camos também que professores daPolitécnica se revelaram excelentesarquitetos, gente de qualidade cul-tural respeitável (essas pessoas nãoescolhem muito o lugar, elas apare-cem...) como o próprio Artigas. Oproblema artístico é um problemaque vou procurar responder comuma pequena história que aconte-ceu comigo e com vários outrosprofessores, numa outra escola. Tí-nhamos um estudante de artes queera muito turbulento e os professo-res reclamavam de que ele inter-rompia as aulas a todo instante.Num certo dia, um professor mechamou para que lhe desse minhaopinião sobre umas aquarelas. Eurespondi que eram abstratas, maslindíssimas, e eu as apreciava mui-to. Perguntando-lhe quem as fize-ra, verificamos na sua ficha que setratava do "aluno turbulento". Eonde ele tinha nascido? Em Hi-roshima! Todos caímos derrotadosdiante disso. É o problema cultu-ral, o ambiente em que você vive,a língua que você falou, os usos ecostumes que você teve, toda a vi-vência em suma. E você me per-gunta se a arte se ensina? Às ve-zes ela emerge desse fundo de de-sejo de comunicação, como umabusca de autenticidade dessa co-municação. Será que se precisaensinar, ou o ser humano tem ne-cessidade absoluta disso?

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

80

Page 81: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Adusp - Hoje nós temos a pre-sença de uma estética "pós-mo-derna". O que essa estética tem acontribuir para a nossa cultura ?

Flávio - O "pós-modernismo"surge num certo momento quan-do a arquitetura funcional nãofuncionava psicologicamente. Nãosabia absorver o "folclore urbano",ou o kitsch - uma fantasia de con-teúdo, considerada de mau gosto.Esses problemas não estavam sen-do pensados e absorvidos, devidoa uma certa rigidez e estreiteza noconceito de "funcional". E issotem vários significados. Exige umestudo em maior profundidade.

Adusp - O mercado imobiliáriosabe que a solução diferencial doprojeto arquitetônico é uma ga-rantia de vendas, mas, por outrolado, impõe vários outros aspec-tos ao arquiteto. E os edifíciosacabam sendo embalados comoqualquer outra mercadoria. Nessecontexto, discutir arte numa esco-la de arquitetura não vira umacoisa muito mais complicada?

Flávio - Quanto a essa questãode mercado, ele só existe quandoexiste mercadoria, e a mercadoriasó existe com a "produção e a re-produção da vida real".

Adusp - O patrimônio cultu-ral de uma população pode serentendido como a memória queela tem, ou que não deve deixarde ter, da sua história, dos valo-res afetivos, dos valores mate-riais, dos valores paisagísticos,etc. Como fica o patrimônio his-tórico e artístico popular se amídia prestigia, principalmente,

o erudito e o oficial?Flávio - Se você faz um projeto

de arquitetura de um edifício qual-quer, você tem que ter um progra-ma de funcionamento econômicoe psicológico daquilo. Quandoconversávamos, numa das últimasvezes, com o Artigas, sobre aque-las colunas da FAU (e eu me lem-bro dos primeiros desenhos queele fez), nós íamos lá ver a cons-trução da Faculdade e conversáva-mos com os operários, e víamosque ele transmitia uma vibração epaixão pessoal pela arquitetura,pelo trabalho do arquiteto e pelogosto que ele tinha pelo desenho epelo material. Ele transmitia paravocê a qualidade do concreto. E àsvezes o sujeito que entrava no pré-dio da FAU e não percebia espaçonenhum ao menos percebia queele era bem feito e que era feitocom um componente pessoal: "-aqui houve gente, gente-gente,mexendo nisso". Então essa coisapessoal transmite e essa objetivi-dade transparece. Está lá. Ele co-mo pessoa está lá. Deixou seu tatosobre as superfícies. É o que vemdele, do fundo, como dessas coisasa que você está se referindo, coi-sas de barro singelas que a popu-lação faz, pequenos objetos ou umcasebre, mas você vê o mesmo ca-rinho e a mesma capacidade deentrega e posse.

Adusp - O conceito de cidada-nia, que está se banalizando, masque deve ser entendido mais do queo exercício pleno dos direitos civis,mas principalmente à capacidadede a pessoa acreditar em si mesma,nas suas associações e no Estado.

O que a arquitetura pode ajudarna constituição da cidadania?

Flávio - O cidadão é coisa daimplantação da Revolução Fran-cesa contra a aristocracia. A ban-deira brasileira tem partes da umafrase citada na capa de um livrode R. Teixeira Mendes, sobreBenjamin Constant, (ApostoladoPozitivista no Brazil, 1894): "oAmor por principio, i a Ordempor baze; o Progresso por fin".Então "o Amor por principio" nãoestá na bandeira, só está a "Or-dem" e o "Progresso". Ou o amornão quis entrar, ou não o deixa-ram entrar... Uma bandeira que osujeito precisa ler.

Adusp - O que houve de inter-rupção no processo brasileiro deevolução para uma universidademais democrática, aberta, pluralis-ta, rica, emancipadora, prazerosapara os jovens, e útil socialmente ?

Flávio - Ela está aí, está nasruas, nas casas, nos hospitais, nasescolas (até nas escolas...). Está aí.Porque um dos aspectos da educa-ção é que ela não é tão palpávelpara você dizer que pode fechar aescola. Fechar o conhecimento, fe-char a arte? Fechar como? Não ca-be aqui trazer um testemunho pes-soal, cheio de equívocos perante osanos conturbados que vivemos nasuniversidades. Mas não seria justonegar momentos de consciência,de conhecimento, e de desejo dealiar a sobrevivência à existência,resultado de convívios que perma-necem no âmago dos nossos diaspassados, mas tão presentes, quenos apontam para uma universida-de mais humanizadora. RA

81

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Page 82: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

82

Faleceu no dia30 de janeiro oprofessor Al-berto Luiz daRocha Barros,vítima de en-

farto, aos 69 anos. Era um dosmais conhecidos e respeitadosprofessores da USP por suasidéias e pela sua intensa mili-tância política. Ao longo desuas atividades docentes, Ro-cha Barros sempre privilegiouo ensino da Física, marcandouma posição coerente, que oacompanhou toda a vida. Acre-ditava que a universidade de-veria evidenciar, mais do que apesquisa e a extensão, o debateacadêmico e o ensino, difun-dindo o aprendizado em todosos seus níveis. Talvez, por estarazão, não tenha se preocupa-do em ascender na carreiraacadêmica, permanecendo Au-xiliar de Ensino até o fim desua vida. Na graduação era ex-tremamente respeitado pelosseus alunos, que afluíam paraas suas aulas. Antigo militantedo PCB (Partido ComunistaBrasileiro), soube como pou-cos aglutinar em torno de suapessoa amigos das mais varia-

das tendências em que se divi-de a esquerda brasileira e,também, do centro demo-crático. Aberto ao diálo-go, promovia com fre-qüência a aproximaçãodessas forças semprevisando à defesa dauniversidade pública,autônoma, voltada paraa excelência do ensinoe da pesquisa. Em 1976,juntamente com dezenasde professores identifica-dos com os princípios de-mocráticos, começou a ba-talhar arduamente pelo re-torno dos exilados e pela anis-tia política dos professoresatingidos pelos atos de exce-ção. Contribuiu nesta épocapara a transformação da entãoAssociação dos Auxiliares deEnsino da USP na atualAdusp, integrando a sua pri-meira diretoria provisória. Co-nhecido pelo seu bom humor,Rocha Barros era pródigo deidéias, contribuindo com fre-qüência nas atividades daAdusp e com sugestões váriasnas promoções do Instituto deEstudos Avançados da Univer-sidade. Tendo retornado re-

centemente de Cuba, traba-lhava num projeto de inter-câmbio com centros de ensinosuperior daquele país, paraonde pretendia levar a sua co-laboração como professor deFísica, tão logo viesse a seraposentado compulsoriamen-te, ao completar 70 anos. AUSP perde um de seus qua-dros mais queridos, que se de-dicou a vida inteira ao ensino,dando prioridade a uma dasáreas universitárias pouco con-ceituadas nas avaliações ado-tadas nos últimos anos.

Diretoria da Adusp

ALBERTO LUIZ DPROFESSOR

Daniel G

arcia

Page 83: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

83

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Conheci o pro-fessor AlbertoLuiz da Ro-cha Barros,fiz várias coi-sas com ele,

às quais quero me referir, as-sim como a aspectos de suapersonalidade não incluídos nasua condição de professor doInstituto de Física e militantedo PCB, ambas verdadeiras,que prevaleceram nos artigosde homenagem publicados porocasião de seu recente faleci-mento. Em 1990, organizamosconjuntamente um SimpósioInternacional em homenagema Leon Trotski, realizado noDepartamento de História daFFLCH, e que teve importanteimpacto nacional e internacio-nal. Em 1991, organizamos,junto a docentes argentinos, oCongresso Internacional "Pa-sado, Presente y Perspectivasdel Socialismo", realizado emoutubro daquele ano na Facul-dade de Filosofia e Letras daUniversidade de Buenos Aires.Tive também o prazer de publi-car o artigo de Rocha Barros,"Dialética e teoria da ciência",no volume Marx e Engels na

História, publicado pela Edito-ra Humanitas (FFLCH/USP)como resultado do simpósioem homenagem aos 100 anosda morte de Friedrich Engels,realizado na FFLCH em no-vembro de 1995.

Alberto Luiz da Rocha Bar-ros era filho de Alberto RochaBarros, conceituado jurista eadvogado trabalhista, que publi-cou na década de 40, pela Edi-tora Laemmert (do Rio de Ja-neiro), o livro A Legislação Tra-balhista no Brasil, primeira aná-lise sistemática (e crítica) da le-gislação laboral do Estado No-vo, inspirada na Carta del Lavo-ro do Estado fascista italiano.Rocha Barros pai tinha sido vin-culado à Oposição de Esquerda(trotskista) da InternacionalComunista, representada noBrasil pelo grupo de Mário Pe-drosa, e depois às primeiras or-ganizações brasileiras da IV In-ternacional. Essas origens fami-liares condicionaram fortemen-te os primeiros passos (e toda atrajetória política) de AlbertoLuiz, cujas primeiras experiên-cias de militância política vincu-laram-se à Esquerda Democrá-tica (onde militava seu pai), no

final da década de 40, e tambémao Partido Socialista Revolucio-nário, seção brasileira da IV In-ternacional, liderado pelo jorna-lista Hermínio Sacchetta, d'OEstado de S. Paulo. Lembro-mede ter sido Rocha Barros, numaconversa de almoço de 1990,quem me esclareceu sobre osmotivos da ruptura de Sacchettae do PSR com a IV Internacio-nal, em 1953, motivos que euandava investigando sem suces-so como pesquisador da históriada esquerda.

Rocha Barros nunca rene-gou as idéias da sua primeirajuventude, o que significa quenunca foi um militante stalinis-ta "obediente e cego" do PCB.Isso também explica a sua car-reira diversa em relação aos di-rigentes do ex-PCB, depois dacrise e dissolução desse partido.

Na década de 50, RochaBarros, junto com seu primo,o historiador Moniz Bandeira,se somou à Liga ComunistaInternacionalista (LCI), de ex-trema-esquerda, orientada pe-lo mesmo Hermínio Sacchet-ta. Foi na LCI que fizeramseus primeiros passos políticosmilitantes e intelectuais do ga-

A ROCHA BARROSE MILITANTE

Page 84: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

barito de Eder Sader, MichaelLowy, Emir Sader (irmão doprimeiro) e outros. A LCI le-vava adiante sistemático com-bate, no campo da esquerda,às posições do PCB. Paralela-mente, Rocha Barros desen-volvia sua "carreira" acadêmi-ca (à qual nunca deu maiorimportância) no campo da Fí-sica, como discípulo de MárioSchemberg. Seu relativo de-sinteresse pelo progresso aca-dêmico deveu-se, sem dúvida,a seu profundo engajamentopolítico.

Na década de 60, Rochaparticipou, junto com MonizBandeira e outros militantesda dissolvida LCI, das reu-niões que dariam lugar àPolop (Política Operária), or-ganização posteriormente en-gajada na luta armada contrao regime militar e desarticula-da por causa da repressão. Foijustamente a desarticulação daextrema-esquerda sob a re-pressão desencadeada pelo re-gime militar, que levou RochaBarros às fileiras do PCB, queestimava ser o único campo demilitância possível nas condi-ções de retrocesso na época daditadura (mas também acom-panhava com atenção a ativi-dade de outras organizaçõesde esquerda).

Em 1976, Rocha Barros foium dos articuladores do nasci-mento da Adusp, originada naantiga Associação dos Auxilia-

res de Ensino, contra a ditadu-ra e seus agentes na universida-de, ao mesmo tempo em que iase tornando o articulador polí-tico dos professores simpati-zantes ou membros do PCB naUSP. Nunca deixou de ter osolhos atentos para o que acon-tecia no restante da oposição,sendo o "padrinho" de gruposde esquerda independentesque desenvolviam um trabalhonas fábricas de São Paulo e, nadécada de 80, do Núcleo de Es-tudos d'O Capital do PT (Parti-do dos Trabalhadores). No en-tanto, criticava a carência deuma base teórica marxista noPT. Datam desta época suasdisputas, como membro dachapa "Universidade", com achapa "Participação", atual con-dução da Adusp.

Ainda assim, no final dosanos 80 e na década de 90, boaparte de seus antigos compa-nheiros de luta aproveitou anova situação política paraocupar cargos dirigentes, pri-meiro na universidade, e de-pois nos governos estadual efederal (incluindo o do "lem-brado" Fernando Collor deMello), trajetória que RochaBarros recusou, tendo partici-pado como construtor do IEA(Instituto de Estudos Avança-dos) da USP, e voltando tam-bém para a Adusp para defen-der a universidade pública e asreivindicações dos professorescontra as políticas de FHC.

Sua defesa da RevoluçãoCubana foi outra constante e,no seu trabalho de construçãodo IEA, não se esqueceu depromovê-la. Além disso, ulti-mamente vinha estreitando la-ços com o professor Rafael So-ler Martinez, diretor da Escolade História da Universidade deOriente (Santiago de Cuba) eautor de uma importante tesesobre "O trotskismo em Cuba",que Rocha Barros sonhava emver publicada no Brasil (bateuàs portas de diversas editorasnesse sentido). Não tinha rene-gado, portanto, seus ideais ousua trajetória da juventude enão os vendeu em troca de al-gum cargo administrativo noEstado, o que lhe teria sido fá-cil, dadas as suas vinculações.

Outros poderão se referirmelhor do que eu à sua trajetó-ria, nunca abandonada por "car-gos em comissão", de professordo Instituto de Física da USP.Queria só deixar registrado meurespeito pela trajetória política,docente por cima de quaisquerdivergências, de um homem quesintetiza a ousadia e as contra-dições de toda uma geração daesquerda brasileira depois da IIGuerra Mundial e a dor que meprovoca, depois de Eder Sader,de Florestan e de outros, a mor-te de mais um companheiro.

Que a semente de luta quenos deixou floresça nas novasgerações.

Osvaldo Coggiola

84

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

Page 85: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

85

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

Amorte do his-toriador Fran-cisco Iglésias,dia 21 de fe-vereiro, aos75 anos, em

Belo Horizonte, abre no meioacadêmico e intelectual brasilei-ro uma lacuna difícil de serpreenchida. Ele morre deixandocomo legado uma sólida obrahistoriográfica e um vasto círcu-lo de discípulos e admiradores.Iglésias era cardíaco, havia so-frido há 13 anos uma interven-ção para colocação de pontes desafena e nos últimos meses seuestado de saúde se agravara ir-recuperavelmente, devido aproblemas renais.

Professor, pesquisador, en-saísta de rara elegância, Francis-co Iglésias exerceu profunda in-fluência sobre pelo menos trêsgerações universitárias de MinasGerais, sua terra de nascimentoe onde viveu quase toda a suavida, exceção feita a um curtoperíodo em que residiu em SãoPaulo, nos anos 40. Nessa oca-sião, estabeleceu contatos, queiriam se tornar duradouros, comgrande parte da intelectualida-de paulista da época.

À importânciade seu trabalhocomo historiadorsomava-se tam-bém em Iglésias oreconhecimentogranjeado em am-plos círculos pelavariada gama deinteresses culturaisque nutria, confor-me ressaltou emseu enterro o es-critor SilvianoSantiago, paraquem "ele era o ti-po intelectual quehoje convencional-mente é classificado como in-terdisciplinar". A influência deFrancisco Iglésias, portanto, seexerceu tanto diretamente,através dos alunos que passa-ram pelo seu curso de HistóriaEconômica na UniversidadeFederal de Minas Gerais, quan-to por sua obra historiográficaou pelo extenso intercâmbioque manteve, durante muitasdécadas, com intelectuais daárea acadêmica ou de fora de-la, no Brasil e no exterior. Elepode ser considerado, assim,um intelectual-ponte entre ge-

rações e entre os inúmeros sa-beres que praticou ou que in-corporou à sua formação cien-tífica e humanística.

A propósito de sua persona-lidade ímpar, o cientista políti-co Fábio Wanderlei Reis, seuex-aluno, parafraseando Han-nah Arendt, escreveu a respei-to de Iglésias que ele "foi clara-mente o autor de si mesmo: oautor dessa figura singular emque o rigor profissional eraapenas uma faceta da atitudegeral de autocontrole e empe-nho de equilíbrio e lucidez".

FRANCISCO IGLÉSIASRégis Gonçalves

Fotos: Paulo Fonseca/ O Tempo

Page 86: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Francisco Iglésias nasceu em28 de abril de 1923, na cidadede Pirapora, porto fluvial àsmargens do rio São Francisco.Segundo dos seis filhos do casalde imigrantes espanhóis José eMaria Josefa Hernandez Iglé-sias, ele se considerava um"barranqueiro", embora a cir-cunstância de seu nascimentonaquela cidade se devesse à de-signação temporária de seu pai,mecânico da Central do Brasil,para trabalhar na construçãode uma ponte.

Transferindo-se a família pa-ra Belo Horizonte, Iglésias rea-lizou seus estudos secundáriosno antigo Colégio Mineiro, in-gressando, em 1941, na Facul-dade de Filosofia e Letras daentão Universidade de MinasGerais, onde colou grau na pri-meira turma de formandos docurso de Geografia e História.Durante seu tempo de estudan-te, o futuro historiador conhe-ceu e conviveu com colegas queviriam, mais tarde, a se desta-car também na vida intelectualbrasileira, entre eles o teatrólo-go Sábato Magaldi, o romancis-ta Waldomiro Autran Douradoe o crítico de cinema Jacquesdo Prado Brandão.

Com seus companheiros degeração fundou e foi redator darevista literária Edifício, de cur-ta duração, mas que assinaloualgumas vocações literárias, in-clusive a sua, pois Iglésias sem-pre exerceu com mestria uma

escrita ensaística claramenteinspirada em clássicos do gêne-ro, como Montaigne e o portu-guês Antonio Sérgio, escritoresde sua predileção. Em depoi-mento sobre o historiador, ocientista político SimonSchwartzman, outro de seus ex-alunos, registra essa faceta domestre. "Acho que Iglésias aca-bou deixando coisas preciosaspara as gerações que passarampelas suas aulas e puderam des-frutar de seu convívio. Primei-ro, o valor da literatura. A gera-ção de Iglésias se formou à luzda revolução modernista que,Mário de Andrade à frente,criou uma nova maneira deolhar e expressar a realidade.Depois, o valor da história, que,nas suas melhores vertentes, es-tá muito próxima da literatura,já que preserva o uso cuidadosoe inteligente da língua comoinstrumento fundamental".

Em 1945, Francisco Iglésiasintegrou a delegação mineiraao I Congresso Brasileiro deEscritores, ocorrido em SãoPaulo. Foi nessa ocasião queconheceu Antonio Candido, dequem iria se tornar amigo, e al-gumas figuras exponenciais dasletras brasileiras, entre as quaisMonteiro Lobato, Oswald deAndrade e Manuel Bandeira.Já conhecido de Mário de An-drade, de uma de suas visitas aBelo Horizonte, o jovem minei-ro foi convidado por este paraum almoço e, entusiasmado

com a recepção e o ambienteintelectual da cidade, resolveutransferir-se para São Paulo.

Durante sua curta tempora-da paulistana, Francisco Iglé-sias trabalhou como gerente daLivraria Jaraguá, de AlfredoMesquita, ponto de encontroda elite letrada da época, e co-mo colaborador no jornal OEstado de S. Paulo. Mas, saudo-so da família, logo retornou aBelo Horizonte.

Em 1949, Francisco Iglésiasingressou na Faculdade de Ciên-cias Econômicas da Universida-de de Minas Gerais, hojeUFMG, onde lecionou a disci-plina História Econômica Gerale do Brasil, até sua aposentado-ria, em 1982. Foram seus colegasnaquela Faculdade, em discipli-nas paralelas, o poeta EmílioMoura e o crítico e ensaísta Fá-bio Lucas. Em 1955, habilitou-seà livre docência com tese sobrea "Política Econômica do Gover-no Provincial Mineiro".

Seus trabalhos de pesquisahistoriográfica se concentraramespecialmente nos capítulos dahistória econômica e história so-cial dos séculos 19 e 20. Admira-dor e amigo do historiador Sér-gio Buarque de Hollanda, Fran-cisco Iglésias compartilha comeste o mérito de ter contribuídopioneiramente para a introdu-ção do estudo da história dasmentalidades no país. A admira-ção era recíproca, tanto que em1969, alguns meses antes de se

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

86

Page 87: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

aposentar, Buarqueinsistiu com Iglésias parasubstituí-lo como titular da ca-deira de História do Brasil naFaculdade de Filosofia da Uni-versidade de São Paulo. Inter-mediário do convite, SábatoMagaldi diz que passou dez me-ses tentando convencer o amigoa voltar para São Paulo "mas elenão aceitou". Seu contato comos colegas da USP, no entanto,foi constante e duradouro aolongo do tempo, tendo ali parti-cipado de inúmeras bancas exa-minadoras, seminários e pales-tras. Foi nos corredores da USPque Iglésias travou conhecimen-to, nos anos 50/60, com algunsprofessores que viriam a se tor-nar amigos ou admiradores seus,entre eles Fernando Novaes,Octávio Ianni e Fernando Hen-rique Cardoso.

Outros, alunos naquela oca-sião, tiveram de Iglésias o in-centivo para seguir a carreira dehistoriador, como é o caso deCarlos Guilherme Mota. Segun-do José Murilo de Carvalho,Iglésias "por muito tempo, tal-

vez tenha sido oúnico estranho a quemse tenha dado acesso livreà fortaleza do Departa-mento de História da USP".

Uma das qualidades realça-das por quantos conheceramFrancisco Iglésias foi sua coe-rente ojeriza a tirar partido desuas relações pessoais, princi-palmente em receber favorespolíticos. Durante toda a sua vi-da sempre se recusou a aceitarquaisquer cargos públicos. Suaopção humanista o manteveainda mais distante dos círculospolíticos durante os anos da di-tadura militar, a que Iglésiassempre recusou legitimar. Inte-lectualmente requintado e re-conhecidamente discreto de há-bitos, Francisco Iglésias manti-nha no entanto estreita ligaçãocom a cultura popular, atravésde sua paixão pelo futebol (eratorcedor fanático do AtléticoMineiro), pelo cinema e pelasmarchinhas carnavalescas. Os

amigos que privaram de seu cír-culo mais íntimo são unânimesem reconhecer nele o humorsutil e às vezes sardônico. A al-guém que teimava em conduzi-lo para uma discussão sobreuma partida de futebol, Iglésiasteria respondido, no depoimen-to de José Murilo de Carvalho:"Futebol eu discuto com muitopoucas pessoas e o senhor nãoé uma delas". Mas essa ironiamuitas vezes podia atingir tam-bém o meio acadêmico, cujosmanifestações de mediocridadeIglésias nunca poupou. Como éo caso da obscuridade e herme-tismo de certos autores a quemIglésias dirigiu certa vez o se-guinte comentário: "eles prati-cam um texto tão abstruso que,se algum dia alguém conseguirdecifrá-los, é de se esperar umarevolução nas ciências sociaisdo Brasil".

87

Page 88: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

Em 17 de no-vembro de1998 faleceuem São Paulo,aos 69 anos, op r o f e s s o r

Maurício Tragtenberg. Soube desua morte apenas alguns diasdepois, por telefone, pois me en-contrava fora do país. Nos meusquase 25 anos de andanças porvárias instituições, públicas eprivadas, foi a pessoa mais gene-rosa com quem convivi, conci-liando erudição, rigor intelec-tual, militância e afetividade.

Conheci-o em agosto de1972, quando cursava Adminis-tração Pública na FundaçãoGetúlio Vargas, tendo Mauríciovindo lecionar Sociologia II. Narealidade, ele retornava à FGV,pois havia sido afastado de suasfunções docentes por meio de

ato arbitrário da ditadura mili-tar. Maurício trabalhava aluci-nadamente em sua tese de dou-torado, que elaborava junto aoantigo Departamento de Ciên-cias Sociais (Política) da Facul-dade de Filosofia, Letras eCiências Humanas da USP eque deveria ser entregue até ofinal de 1972. A tese, intituladaBurocracia e Tecnologia, edita-da em livro em 1973, tornou-severdadeiro clássico na área deHumanidades.

Em sua tese, Maurício reali-za abrangente análise crítico-histórica das formas de domi-nação burocrática, arrimando-se em Hegel, Marx e Weber.Seu trabalho avança no estudodo fenômeno burocrático, deseu surgimento (daí dedicar-selongamente ao modo de pro-dução asiático) até as grandes

corporações capitalistas. De-tém-se, também, no exame dasociedade soviética - uma desuas paixões -, além de riquíssi-mo capítulo intitulado "As har-monias administrativas deSaint-Simon a Elton Mayo". Asegunda parte, "A crise do ca-pitalismo e a passagem da teo-ria da administração à sociolo-gia das Organizações Comple-xas", abarca três densos capítu-los, a saber: "A crise da cons-ciência liberal alemã", "MaxWeber" (outra de suas paixões)e "Burocracia: da mediação àdominação".

Nascido no Rio Grande doSul, numa comunidade de imi-grantes judeus ucranianos quevieram para o Brasil fugindodos pogrons, Maurício passou ainfância entre camponeses pe-quenos proprietários. Escreve

88

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp

MAURÍCIO TRAGTENBERGUM INTELECTUAL CONTRA O PODER INTELECTUAL

(1929-1998)Afrânio Mendes Catani

Page 89: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

89

Junho 1999RReevviissttaa Adusp

que os camponeses da localida-de (Erebango, que depois setornou Erexim e, finalmente,Getúlio Vargas), "ajudados pe-la imprensa libertária, aprimo-raram o senso coletivo de vidae trabalho, aprendendo unscom os outros. Todos eram alu-nos e professores e aprendiamao mesmo tempo os segredosdo cultivo da terra. À luz de ve-la, à noite, aprendiam e ensina-vam português, espanhol, russoe esperanto (...). Lia-se emErebango muitos autores anar-quistas russos, como Kropotki-ne, Bakunin, especialmenteTolstói, com seu anarquismoreligioso, anticlerical, que era oautor preferido".

Quanto à educação formal,Maurício estudou apenas até o3º ano primário, em Porto Ale-gre. Mudou-se com a mãe para

São Paulo, após a morte do paie, precocemente, ingressou nomercado de trabalho. Aindamuito jovem, freqüentou círcu-los operários, convivendo comtrabalhadores letões, russos, li-tuanos e poloneses, lendo e dis-cutindo Lenin, Trotski, Baku-nin. Na década de 40, com 16anos, teve rápida passagem pe-lo Partido Comunista Brasileiro(PCB), de onde acabou expulsopor divergir do stalinismo, queentão dava o tom. Segundo ele,o PCB proibia que seus militan-tes mantivessem "qualquer con-tato direto ou indireto comtrotskistas ou outros inimigosda classe operária".

Aproximou-se do jornalistatrotskista Hermínio Sacchetta,de cuja amizade compartilhouaté a morte do companheiro.Como escreveu Ricardo Antu-

nes, "foi nesse universo quesua crítica da sociedade e suarecusa da política instituciona-lizada cada vez mais confluí-ram para o ideário anarquista".Tornou-se, também, amigo dafamília Abramo.

Freqüentou com assiduidadeoutro importante "centro deformação", qual seja, a Biblio-teca Municipal Mário de An-drade, onde integrava um gru-po que lia de tudo: "de Aristó-teles a Spengler, passando porFernando Pessoa, Sá-Carneiroe José Régio".

Por sugestão de AntonioCandido, candidatou-se ao ves-tibular para o Curso de Ciên-cias Sociais na USP, apresen-tando uma monografia sobreplanejamento (posteriormentepublicada em livro sob o título:Planificação: Desafio do Século

Paulo Giandalia/Folha Imagem

Page 90: Revista Adusp 17da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana, que acabou se tornando um livro de História, ver-sando sobre Salvador nos anos 50. Meus diretores de tese foram

XX). Abandonou Ciências So-ciais após um ano, fazendo ves-tibular para História, curso emque se graduou.

Trabalhou como professorem ginásios de vários municí-pios do Estado de São Paulo e,posteriormente, na Faculdadede Filosofia, Ciências e Letrasde São José do Rio Preto, deonde saiu em 1964, quando foicassado. Lecionou na PontifíciaUniversidade Católica de SãoPaulo (PUC-SP) e na Faculda-de de Educação da Unicamp(1975-1992), além da FGV. Ti-ve o privilégio de ser seu aluno,de ter estudado com ele, infor-malmente, durante anos, e deser seu colega na FGV e naUnicamp. Junto com RicardoAntunes e Gilberto Vasconcel-los, compartilhamos durantecinco anos um gabinete de tra-balho no antigo Departamentode Ciências Sociais. Inquieto,rara era a vez em que Maurícionão nos fornecia uma dica so-bre qualquer temática que co-mentássemos: com Gilberto,debatia Wilhelm Reich, em es-pecial sobre a relação do fascis-mo com a libido pequeno-bur-guesa; com Ricardo, acerca dasquestões trabalhistas e sindicais(durante sete anos manteve co-luna intitulada "No Batente",no jornal Notícias Populares,em que analisava temas de in-teresse da classe operária); co-migo, sobre Weber, Lefort,Bourdieu e Wright Mills (com

quem muito se identificava).Tenho a certeza de que muitosoutros colegas também se be-neficiaram de sua generosapresença, em termos humanose intelectuais. Maurício fazia,ainda, a "ponte" entre algunscolegas do Departamento deCiências Sociais e o de Admi-nistração Geral, principalmen-te com Fernando Prestes Mot-ta, Roberto Venosa e o falecidoRamon Moreira Garcia.

Gilberto Vasconcellos escre-veu perfil extremamente sensí-vel sobre ele: "às vezes eu tinhaa impressão de que Maurícioandava pelado como Adão,sempre com um cigarro na bo-ca e os dois braços carregadosde livros. Leitor infatigável.Mas não era um especialistachato; ao contrário, ele se inte-ressava por muitas coisas nasciências humanas".

Na Unicamp, foi um dosfundadores da revista Educa-ção e Sociedade, além de orien-tar dezenas de dissertações demestrado e teses de doutorado– atividades que exerceu comintensidade também na PUC-SP e na FGV –, formando mes-tres e doutores que atuam hojenas mais variadas universidadesbrasileiras e de outros paíseslatino-americanos.

Além dos livros já menciona-dos, escreveu Administração,Poder e Ideologia, A Delinqüên-cia Acadêmica e Reflexões sobreo Socialismo, todos eles com vá-

rias reedições. Organizou, ain-da, Marxismo Heterodoxo. Pu-blicou artigos em vários jornaisda grande imprensa e da im-prensa nanica, merecendo des-taque sua colaboração para aFolha de S. Paulo, dedicando-sea uma gama variada de temas.

Intelectual sem preconcei-tos, antiburocrata por excelên-cia, até o fim da vida conviveuharmoniosamente com amigose colegas sindicalistas, anar-quistas e acadêmicos. Com amorte de Maurício Tragtenbergdesapareceu um pensador quepautou suas ações remandocontra o pensamento dominan-te, nos fazendo lembrar as pa-lavras do sociólogo francêsPierre Bourdieu, para quem ointelectual sempre deve "tentarevocar os mecanismos da modaintelectual justamente nos tem-plos da moda intelectual, utilizaros instrumentos do marketingintelectual, mas para fazê-losveicular aquilo que em geraleles ocultam, em particular, afunção destes instrumentos edaqueles que costumam a utili-zá-los (...) o intelectual sempredeve tentar voltar contra o po-der intelectual as armas do po-der intelectual, dizendo a coisamais inesperada, mais imprová-vel, mais deslocada no lugarem que é dita".

Quando penso nestas pala-vras de Bourdieu, penso emMaurício, em sua ação, em suatrajetória rica e generosa.

90

Junho 1999 RReevviissttaa Adusp