Revista Atletismo - Transgrancanaria 2008

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46 MONTANHA E NATUREZA POR PEDRO JERÓNIMO Entre o céu e o mar Na Ilha da Gran Canária, no Arquipélago das Canárias, realizou- se no passado dia 1 de Março uma das mais belas e duras cor- ridas de longa distância em montanha de Espanha e da Europa. Com um percurso que atravessa toda a Ilha de Sul a Norte por vales e montanhas, a TRANSGRANCANARIA é já uma referên- cia Internacional no mundo do Ultra Trail, atendendo ao eleva- do número de participantes espanhóis e de outros países. Ao participar com 7 atletas na edição deste ano, Portugal foi o país estrangeiro mais representado, seguindo-se a Alemanha, Suíça, Bélgica, Inglaterra, Itália e França. FOTOS DE TRANSGRANCANARIA 2008 - CLUB DESPORTIVO ARISTA Entre o céu e o mar

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MONTANHA E NATUREZA POR PEDRO JERÓNIMO

Entre o céu e o marNa Ilha da Gran Canária, no Arquipélago das Canárias, realizou-se no passado dia 1 de Março uma das mais belas e duras cor-ridas de longa distância em montanha de Espanha e da Europa.Com um percurso que atravessa toda a Ilha de Sul a Norte porvales e montanhas, a TRANSGRANCANARIA é já uma referên-cia Internacional no mundo do Ultra Trail, atendendo ao eleva-do número de participantes espanhóis e de outros países. Aoparticipar com 7 atletas na edição deste ano, Portugal foi opaís estrangeiro mais representado, seguindo-se a Alemanha,Suíça, Bélgica, Inglaterra, Itália e França.

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Entre o céu e o mar

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POR PEDRO JERÓNIMO MONTANHA E NATUREZA

Quem nunca ouviu falar da TRANSGRANCANARIA, deve começarpor saber que esta é uma corrida em montanha, que atravessa aIlha da Gran Canária de lés a lés, num percurso técnica e fisica-mente muito exigente, com aproximadamente 117 km e 4000

metros de desnível positivo, sendo o tempo máximo dado pela organizaçãode 30 horas. Com 80 % da distância percorrida em caminhos e trilhos, 17%em pistas florestais de terra batida e apenas 3% em zonas asfaltadas, estacorrida leva os corredores por alguns caminhos pouco percorridos e pelaspaisagens mais belas e mágicas da Ilha da Gran Canária.

A grande caravana de corredores atravessa o grande campo de dunasde areia da Praia de Maspalomas, continua pelos bosques centenários de

pinhal e de palmeiras canárias, visita a zona das Grandes Barragens, sobetambém a alguns dos picos mais altos e importantes da Ilha e desce denovo à costa, passando ainda pelas aldeias e vilas históricas de Cruz deTejeda e Teror. Este longo percurso termina na cidade de Las Palmas deGran Canária, ponto final da corrida onde está instalada a meta em plenaPraia de Las Canteras.

No vasto grupo de corredores e corredoras que participam na TRANS-GRANCANARIA há todo o tipo de desportistas: desde os amantes damontanha até aos triatletas; dos corredores de cross aos aficionados dosraids de aventura, às caminhadas ou à aventura em geral. A TRANS-GRANCANARIA não é realmente uma única prova. A organização da cor-rida traça anualmente novos objectivos e o número de participantes temaumentado ano após ano. Com o objectivo de satisfazer as necessidadesde todos os corredores, nesta 9.ª edição da TRANSGRANCANARIA, aorganização ofereceu três variantes alternativas. A prova rainha foi semdúvida alguma a TRANSGRANCANARIA 115, com 117 km de distânciana qual participaram os competidores mais bem preparados. A TRANS-GRANCANARIA S – N levou os corredores a atravessar a Ilha de Sul aNorte, com menor dificuldade e “apenas” com 85 km. Para os corredoresmenos dados à competição pura e dura houve também um percursoainda mais acessível de 45 km. Foi precisamente nesta última variante,

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onde participou o basco Martín Fiz, campeão do mundo em maratonaem 95 na Suécia. Entre os corredores que disputaram a TRANS-GRANCANARIA 115, houve também desportistas de alto nível como oitaliano Marco Olmo (60 anos), duas vezes vencedor absoluto do muifamoso “Ultra-Trail Du Mont-Blanc” (França, Suíça e Itália, em 165 km)e também várias vezes campeão da “Marathon des Sables” (Marrocos), osuíço Brennwald Adrian, conhecido triatleta de longa distância IronMane o catalão Arnau Julià membro da equipa de raids Buff Salomon, actualcampeão do mundo. Dos 226 corredores que se apresentaram na linhade partida, 70% eram das Ilhas Canárias, 20% espanhóis do continentee 10% estrangeiros originários de vários países da Europa. De Portugal,país com a maior representação depois de Espanha, estiveram um totalsete corredores: três da Ilha da Madeira (Gonçalo Silva, Miguel Gonçalvese Pedro Alves), dois do continente (João “Johnny” Faustino e JoséMoutinho) e dois que actualmente residem em Espanha (José Gonçalvese Pedro Jerónimo).

Para além da distância e do desnível acumulado, esta prova foi tambémum desafio a todos os que planearam nela participar, pois é uma corridade longa distância realizada em semi-autonomia: os participantes têm quetransportar os alimentos e a água necessários para superar a totalidade dopercurso. Existem apenas três pontos de abastecimento sólido e maiscinco de abastecimento líquido durante a travessia. Para aumentar aindamais a dificuldade, a organização estabeleceu controlos de passagem bas-tante exigentes que obrigam os corredores a prestar especial atenção aocronómetro, sob pena de serem desclassificados por ultrapassarem otempo máximo permitido. Mas vamos à nossa experiência.

O início da corrida…Toca o despertador. São três da manhã, acordo o meu companheiro de

quarto, o bom amigo Johnny.Às quatro da manhã, subo para o autocarro que a organização disponi-

biliza para transportar os corredores para a parte Sul da Ilha, ponto departida. Ao chegar e à minha volta, vejo como alguns corredores cobremos ténis com sacos de plástico para se protegerem da areia da praia.

Cinco minutos antes do início da prova, já com os nervos e o medo àflor da pele, contacto pela primeira vez, com a areia da Praia do Inglês ecoloco-me com os restantes portugueses atrás da linha de partida.

O tiro de partida…Pan! É dado o sinal! De repente tenho ao meu lado cerca de 450 valentes

corredores, das duas provas que têm o seu início neste ponto da ilha, quecorrem ao longo da praia. À minha frente vejo uma espectacular serpentede luzes vermelhas que me guia no meu caminho. Corro com mais gosto:sozinho e sem ter de seguir o ritmo de outros corredores. Depois de 5 kmem ritmo bastante suave, deixo por fim as areias da praia e entro finalmenteno meu terreno favorito, a montanha! O primeiro ponto de controlo, sócom água, é em Ayagaüres a cerca de 22 km do ponto de partida. Antes delá chegar tenho ainda de percorrer 17 km por um barranco seco, cheio depedras, de cascalhos arredondados pelas águas que outrora fluíam do seuinterior, e depois subir cerca de 400 metros de desnível positivo. Por

momentos sou saudado pela companhia do Gonçalo e do Miguel. Antes dasubida, encontro-me também com o Johnny. Este já vai mais animado,mesmo assim, aproveita mais uma vez para me recordar que estaria muitomelhor na cama a dormir do que ali a sofrer como um “burro de carga”!Mais uma vez, na descida para Ayagaüres, separo-me ligeiramente dogrupo de compatriotas. No ponto de controlo aproveito para encher o meu“camelbak” com água e preparar um bidão com sais e hidratos de carbono.O relógio marca 2h e 18min, dois minutos menos do que no ano passado,mas como neste ano a primeira etapa é 2 km mais longa do que a ediçãoanterior, fico bastante contente com o tempo realizado. Pela frente tenhoagora a primeira etapa de verdadeira montanha que me vai levar à Aldeiade Tunte, onde se encontra o segundo ponto de controlo (sólidos e líqui-dos). São 14 km e 920 m de desnível positivo. O sol sai por detrás dasmontanhas e como estava previsto, começa a castigar. A temperatura soberapidamente. A meio da etapa deixo definitivamente para trás o grupo dosportugueses. Na subida começo a ultrapassar vários corredores cujas carastransmitiam já algum sofrimento. Muitos deles, sem dúvida levados pelaeuforia da partida, saíram com um ritmo muito superior ao que deveriame na primeira subida a sério começam a apagar-se lentamente. Chego aTunte com 5h04m e fisicamente vou bastante bem, mas tenho uma ligeirador de barriga que não me deixa correr nas descidas com um ritmo maisindicado. Decido perder alguns minutos na casa de banho. Já aliviado destepequeno problema, como bananas e laranjas no ponto de controlo, que sãoo único que consigo comer devido ao calor que se faz sentir. Encho maisuma vez o “camelbak” com água e o bidão com sais e regresso à corrida.Esta terceira etapa é provavelmente uma das mais duras da corrida. São 16km com 980 metros de desnível positivo e vamos por um trilho a cerca de1000 metros de altitude, praticamente todo ele exposto ao sol do meio-dia.Faço a primeira parte da subida a um ritmo moderado e na descidaseguinte aumento consideravelmente esse ritmo para ganhar algum tempo.Ultrapasso de novo vários corredores que desta vez vão já bastante afecta-dos pelo calor. Olho à minha volta e a paisagem é fabulosa. Tenho a sen-sação de estar a voar pela montanha. Ao longe, bem ao longe, já vejo oRoque Nublo, que se tudo correr bem, em menos de 5 horas estará a meuspés. Nova subida e ainda mais calor! Arrasto-me como posso pelo trilhotalhado na rocha da montanha, onde as escadas de 50 cm de altura deixamprofundas marcas nos músculos das minhas pernas! Por fim, depois de9h13m de corrida, chego ao posto de controlo da Barragem de Las Niñas.Tal como no primeiro posto de controlo, aqui apenas nos dão água, líqui-do este que se encontra armazenado num camião cisterna do exército. Àvolta deste veículo são já muitos os corredores que se encontram deitadosno chão num estado deplorável. Para descansar um pouco e preparar maiscomodamente um novo bidão de sais, sento-me por um momento no chão.De repente todos à minha volta me perguntam se me sinto bem ou se voudesmaiar. É tal o estado dos corredores que aqui chegam que qualquer sin-toma de fraqueza é logo assistido por alguém da organização, para não per-dermos a consciência e acabarmos caídos no chão, com o correspondentetraumatismo provocado pela queda. Neste aspecto, tal como em muitosoutros, a organização é perfeita, atendendo aos corredores sempre que estesapresentem o mínimo sintoma de problema de saúde.

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Mais mil metros de desnívelRetomo mais uma vez a corrida, sozinho, para a última grande etapa

de subidas pronunciadas, sabendo que se conseguir superá-la bem, com-pleto 80% da corrida. Tenho pela frente 23 km e 1180 metros de desní-vel positivo, com passagem obrigatória pelo Roque Nublo a 1760 m, picomais alto da Ilha. Começo com um ritmo bastante lento. Pouco a poucoos troços mais íngremes vão dando lugar a zonas com menor declive. Ocalor começa também a diminuir com o decorrer do dia. O meu ritmoaumenta inversamente à distância que me separa de Garañon, próximoponto de controlo.

Entro no Garañon às 18.45 horas, 12h 53m depois de ter começado aprova e com 75 km nas pernas. A primeira coisa que faço é pedir o sacoque previamente deixei à organização com roupa para a noite e já com eleem meu poder, vou direito aos balneários para mudar de roupa. O calordo dia dá agora lugar ao frio característico da zona (1200 metros de alti-tude) ajudada também pelo pôr-do-sol. Já preparado para suportar os 12graus que se fazem sentir, no ponto de controlo como massa e fruta. Semperder mais tempo do que o necessário para recuperar um pouco, saioem direcção a Teror, que fica a 20 km. Pela primeira vez, desde quecomeçámos a corrida, a etapa seguinte é praticamente toda a descer. Nãosei se foi por magia, pela massa que comi ou pela mudança da roupa, deipor mim correndo pela montanha abaixo. Começa a cair a noite e ligo ofrontal para me ajudar a ver melhor o caminho. Corro alegremente porum trilho que vai pela aresta de uma vertente montanhosa de 800 metrosde altitude. Lá em baixo vejo as luzes de pequenas povoações isoladas.Nesse instante vivo mais um momento inesquecível de toda a corrida.Rapidamente começo a ultrapassar outros corredores. A noite cai defini-tivamente, e com ela perco parte da minha distracção: a paisagem que merodeia. Agora é a altura de apertar os dentes, olhar só para a zona ilumi-nada pelos raios de luz projectado pelo frontal e pensar que a meta é jáali ao virar da esquina. A chegada a Teror está dificil! Antes, perco-meumas quantas vezes. Ao entrar na vila, encontro-me com um casal decorredores catalães. A rapariga é a primeira classificada da prova. Felicito-a e pergunto se não se importam que lhes faça companhia nos últimos 22km que faltam até à meta. Eles aceitam e até agradecem a minha com-panhia. Vão também já bastante cansados e 6 olhos vêem mais do que 4na hora de procurar o caminho a seguir. Ainda com uma enorme sandesde chouriço na mão, começamos os três a descida para o último ponto decontrolo que se encontra a 14 km de distância. Fomos quase todo o cami-nho a correr. Esta etapa é provavelmente a menos interessante de toda aprova e, se calhar por isso, não tenho muitas recordações dela. Depois desubir e descer uma série de pequenos desníveis, chegamos ao ponto decontrolo dos Giles com 19h de prova e 109 km nas pernas. Ao chegar,olho para o horizonte e vejo a Praia de Las Canteras. Ao fundo desta,deslumbro perfeitamente a meta. Por momentos, emociono-me. O sonhoestá a ponto de se realizar. Lanço-me montanha abaixo correndo o máxi-mo que as minhas pernas me deixam, agora com o objectivo de terminara prova em menos de 20 horas. Corro e corro cada vez mais rapidamente.Ao entrar no passeio marginal da praia, penso que não vou conseguirfazer os 5 km que me separam da meta sem ultrapassar as 20 horas de

prova. Aperto ainda mais os dentes e aumento ainda mais o meu ritmo.Olho para o meu relógio e vejo que vou a 5 min/km. É incrível como éque depois de fazer quase 117 km ainda tenho força para correr a esteritmo! Já passaram 19h45m desde o início da prova! Já só me falta fazera última parte da praia e a curva que dá acesso à meta! Não diminuo oritmo até entrar na alcatifa vermelha da meta. Nesse momento, olho parao relógio colocado sobre a meta e vejo 19h48m. Caminho para a meta epasso por debaixo do relógio a caminhar. Sou “finisher”...

Lá na frente...Como era de esperar, o italiano Marco Olmo, de 60 anos, foi o vence-

dor IX TRANSGRANCANARIA. Olmo, campeão do mundo de ultrafundo, completou a prova em 12 horas e 25 minutos no primeiro lugar, àfrente do suíço Adrian Brennwald, de 32 anos (12h e 55min) e do catalãoArnau Juliá (13h e 28min). O primeiro lugar na categoria de senhoras foipara a catalã Marta Prats com 19 horas e 52 minutos (35.º na geral).

Dos sete corredores de nacionalidade portuguesa que participaramnesta aventura, seis conseguiram passar a linha de chegada.

No final uma referência a este desafio: wwwwww..ttrraannssggrraannccaannaarriiaa..nneett ewwwwww..ffrreeeerriiddeettrraaiill..ccoomm..

Classificação masculina:1. Marco Olmo (ITA) 12h25m2. Adrian Brennwald (SUI) 12h55m3. Arnau Julià I Bonmatí (ESP)13h27m...32. Pedro Jerónimo (POR) 19h48m70. Gonçalo Silva (POR) 23h36m77. Pedro Alves (POR) 24h07m82. José Gonçalves (POR) 24h20m104. João Faustino (POR) 26h07m111. Miguel Gonçalves (POR) 26h29m

Classificação feminina:1. Marta Prat Llorens (ESP) 19h49m2. Natalia Legey (ESP) 22h24m3. Sylvia Rehn (ALE) 23h23m

A corridaPartida: Praia do Inglês, em MaspalomasMeta: Praia de La Puntilla, em Las Palmas de Gran CanáriaDistancia total: 117 kmPercurso: 80% caminhos e trilhos

17% pistas florestais de terra batida3% estrada asfaltada

Desnível positivo acumulado: 4380 metrosTempo limite para terminar a prova: 30 horasParticipantes: 115 km – 226 corredores, 85 km – 107 corredores, 45km – 132 corredores Finalizaram a prova: 115 km – 113 (50%) corredores, 85 km – 77(28%) corredores, 45 km – 123 (7%) corredores